O tema de A Ovelha Negra é sobre a família, mas vamos aprendendo isso aos poucos, em uma mudança de estações no melhor estilo Ki-duk Kim (diretor de Primavera, Verão, Outono, Inverno... E Primavera). A introdução se apresenta como uma história de rivalidade entre dois criadores de ovelhas. Observamos o cuidado com que Gummi (Sigurður Sigurjónsson) cuida de suas duas ovelhas premiadas, selecionando no final uma delas para um torneio anual onde encara com frustração o prêmio de segundo lugar enquanto aguarda seu vizinho, Kiddi (Theodór Júlíusson) e sua ovelha negra ganharem o prêmio principal.
Gummi e Kiddi, logo aprendemos, são irmãos. Kiddi, o mais velho, vive na mesma casa onde ambos foram criados. Gummi vive logo ao lado. Eles não se falam por quarenta anos, e o que parece impresionante se torna mais quando Gummy desconfia que a ovelha de seu irmão contraiu uma doença contagiosa e hereditária, obrigando com que todos os rebanhos das redondezas fossem sacrificados.
A história do filme é simples, mas seus detalhes enriquecem a experiência. O mistério que cerca o relacionamento dos irmãos e quais as reais intenções de Gummi, o protagonista, são o fio condutor de uma narrativa leve do diretor Grímur Hákonarson, que nunca deixa a tensão inicial cair. Há um conflito que se estende por décadas, e agora parece ser a hora do inevitável desfecho.
O roteiro, também de Hákonarson, descreve a personalidade de seus personagens através de seus atos, e logo se torna maravilhoso acompanhar o desenrolar da trama quase sem nenhum diálogo. É difícil não sentir empatia por Gummi, esse homem barbado e cabeludo como suas ovelhas, quando testemunhamos o carinho, e, principalmente, o orgulho que ele exibe por seu seleto rebanho. Quando é hora da procriação, é não só engraçado, mas contagiante vê-lo observar com um brilho nos olhos como seu macho-alfa "faz seu serviço" direitinho.
O que nos leva ao possível sub-tema de homossexualidade, que pode ou não existir, dependendo de como você interpreta os acontecimentos em torno dos irmãos. Nunca ficamos sabendo o que de fato aconteceu entre eles para essa separação de décadas, mas isso realmente não importa, pois está em um subtexto tímido demais. De uma forma de outra é possível entender como, um sendo emotivo e intenso demais, o outro frio e calculista, uma dupla dessas não poderia mesmo ficar junta por muito tempo. Enquanto vemos uma ovelha ser carregada quase como um bebê, em outro momento um dos irmãos viaja congelado dentro da pá de um trator. Se isso não diz algo sobre os dois, não sei o que mais diria.
Com uma fotografia de encher os olhos -- como é de se esperar dos filmes da exótica Islândia -- a tela larga serve não só para exibir esse cenário grandioso, mas principalmente o isolamento daquele vilarejo do resto do mundo, com seus imponentes montes cercando o vale que congela e derrete sem parar. Quando questionado sobre por que não há mulheres por perto, Gummi simplesmente fala que não existem muitas por aqui.
Indicado em Cannes na categoria Um Certo Olhar, este filme com certeza tem uma abordagem peculiar de sua história, e merece pelo menos uma visita de curiosidade.
Assistir a esse remake da superprodução de Cecil B. de Mille (seja o de 23 ou o de 56) evoca sentimentos mistos. Se por um lado essa novela disfarçada de filme produzida pela Igreja/TV Record tem uma péssima qualidade em quase tudo que toca -- semelhante ao cajado de Deus que espalha sete pragas pelo Egito -- por outro o potencial dramático e épico que o livro/filme evocam equilibram o resultado final, que é capenga, mas é carregado nas costas por uma história milenar. Com um sentimento ainda tribal, a "inspiração divina" de antigamente hoje se revela como uma tentativa de controlar um povo através do amor incondicional aos deuses, como pregam quase todas as religiões do planeta, incluindo a judaica. Essa apela para a diferença de ter apenas um deus, o "único e verdadeiro" (e tenho certeza que quase 10 em 10 espectadores -- cristãos -- irão concordar).
(Aliás, é fascinante perceber como esse sentimento de dependência é tão arraigado na espécie humana, tanto que o ato de se submeter ao desejo dos seus governantes existe até hoje, mesmo que disfarçado de desejo da maioria (democracia, estou olhando para você). Se houver apenas uma novidade nesse remake é tornar a comparação entre o esoterismo antigo e a civilização ocidental contemporânea tão explícita -- ainda que de forma inconsciente. Vemos isso quando Moisés responde aos questionamentos lógicos de seu povo com "esta é a lei", como se todas as leis fossem automaticamente sãs, se esquecendo que por gerações as leis do Egito consideravam os hebreus propriedade do faraó.)
Mas voltando à novela: se na primeira metade fica evidente que os sofríveis efeitos visuais, a trilha sonora repetitiva e desprovida de significado, e um roteiro que quase faz um favor ao irregular elenco, em nunca exigir demais de seus atores, Os 10 Mandamentos consegue se reerguer em sua segunda metade, mas não como uma lição de fé (ou purificação da alma, como querem seus idealizadores) mas muito mais como uma propaganda anti-religião e até anti-estado, já que os argumentos contra a escravidão de homens por homens é a mesma escravidão de homens por uma entidade mágica (entidade essa criada por... homens).
Curioso é entender que boa parte dessa melhora do filme se deve ironicamente aos detalhes mais sutis da produção original, como o manto vermelho/azul de Moisés, a maneira como sua barba cresce, ou até a forma mágica de Deus escrever os mandamentos. O resultado facilmente se confunde entre plágio e homenagem, e fica difícil acreditar que tudo isso seja acidental. Não me lembro se a parábola da semente, introduzida pelo pai de Moisés se encontra no conteúdo original, mas por ser uma parábola acredito que sim. Uma pena, pois se fosse original, seria talvez o único detalhe que conseguiria enriquecer o tratamento brasileiro à dialética da religião.
Sem contar que o filme admite desde o começo contar uma história conhecidíssima ao mostrar os corpos dos soldados egípcios flutuando no fundo do Mar Vermelho, já revelando o final do grande clímax da história. Ou podemos analisar como uma tentativa de reforçar a comparação inicial que o filme faz com a decisão do faraó de matar todos os bebês hebreus, que são jogados às margens do Rio Nilo, e de onde o diretor captura rapidamente a situação semelhante dos bebês. Se for realmente isso, é brilhante. O problema é que fica difícil saber se é algo proposital ou não, já que a narrativa constantemente se perde em diálogos desinteressantes e inúteis, sem contar na péssima narração em flashback aliada a momentos-chave onde personagens principais proferem frases que parecem ditas por outra pessoa, tamanha é a falta de qualidade na mixagem de som, uma característica já conhecida do cinema nacional, mas que aqui atrapalha e muito.
E, ainda assim, se torna um problema menor se comparado à maquiagem, figurinos e cenários do filme, que soam teatrais demais para serem críveis. Ou pior: "noveleiros". Para ter uma percepção do que digo, imagine um ambiente poeirento como o deserto, onde quem tem água tem poder, e note como as fachadas do palácio são impecavelmente limpas, como se fossem novas ou retocadas por contra-regras antes das filmagens. Até os escravos hebreus possuem ferimentos particularmente bonitos demais se fossem desferidos por chicotes.
E, como já havia descrito, os efeitos dessa superprodução são sofríveis. As maquetes vistas de cima lembram jogos de computador. Porém, dos males o menor, e esses efeitos são usados com economia e rapidamente, quase não sendo possível uma comparação mais apurada. Sem contar que o clímax do filme, a travessia do Mar Vermelho, é desempenhado com uma certa competência, nem que seja na edição. Sim, os efeitos estragam tudo no momento final, inserindo corpos boiando artificialmente no "melhor" estilo Chapolim Colorado. E, assim como o filme original, o uso de matte painting (fundo pintado) torna tudo muito teatral e datado, o que não é um problema no original, mas é para um filme de 2015.
Porém, tudo termina com um ar de OK. Se não chega a ser um épico e superprodução brasileira, ao menos temos o consolo de aparentemente esta ser uma produção 100% custeada por dinheiro privado (incluindo as milhares de compras na pré-estréia que serviram não para trazer público (essas salas, aparentemente, estavam quase vazias)). Resta aguardar pelo lançamento do livro (?) e talvez uma peça de teatro. Afinal de contas, os cenários já foram construídos, e o tom finalmente estará correto. Tudo pela conversão (de fiéis principalmente).
Uma pena que esse filme já esteja saindo de cartaz e passado despercebido do grande público, fora uma declaração megalomaníaca de seu diretor, Homero Olivetto, que vem em conjunto com Alê Abreu (diretor de O Menino e o Mundo), seguindo uma tendência recente de ufanismo nos cineastas nacionais, afirmando este filme ser o "Mad Max brasileiro". Ao assisti-lo podemos afirmar, sim, que ele provavelmente recebeu muita inspiração do filme de George Miller (o original de 79). Quanto à escala, não podemos dizer o mesmo. E vale lembrar que a despeito do baixo orçamento, nós sabemos que o Nordeste possui regiões que lembram uma espécie de Mad Max da vida real. Esse filme conta um drama épico onde toda a esperança parece perdida.
O interessante mesmo em Reza a Lenda é que ele rapidamente se torna um bom e velho faroeste, cujo folclore é adaptado para a caatinga nordestina e uma lenda de origem religiosa, que diz que uma santa, se colocada no lugar onde pertence, irá fazer chover. Essa é a medida de milagre que um lugar inóspito e poeirento merece, e é por isso que o filme não precisaria explicar muito da motivação de seus anti-heróis, todos eles órfãos da seca, movidos por um líder religioso (Nanego Lira), um lunático que é sincero no que acredita.
Curioso como enquanto Os Dez Mandamentos, outro filme religioso em cartaz, submete seu público àquela lavagem cerebral costumeira da religião (e da política) de aguardar por um salvador da pátria, Reza a Lenda, assim como Que Horas Ela Volta, é um exemplo de revolta contra o sistema vigente, mesmo que conte com a história de uma santa milagrosa como o que move a história. Porém, enquanto "Que Horas..." berra aos quatro ventos sua cartilha comunista no melhor estilo propaganda Eisensteiniana (o diretor/editor de filmes oficial da União Soviética), Reza a Lenda prefere a estratégia perene de incutir seu ponto de vista sobre a dominação religiosa/política sutilmente dentro de sua história, constituindo num processo um trabalho primordial de "implante de ideias" no estilo de A Origem.
Isso ocorre principalmente pelo ótimo roteiro do diretor, Patrícia Andrade (2 Filhos de Francisco) e Newton Cannito (Bróder), que estrutura uma saga simples de ser acompanhada ao mesmo tempo que possui em seu universo as particularidades do cenário que quer descrever. Dessa forma, Tenório, o político/coronel das terras, que controla o acesso a uma santa de ouro pela população cobrando ingresso, é antropomorfizado e demonizado ao mesmo tempo pelo veterano Humberto Martins sem precisar ir muito longe em sua caracterizacão. Ele dispara frases certeiras, ditas com uma cadência lenta de quem analisa friamente uma situação, e utiliza um sotaque leve e rústico o suficiente para humanizá-lo.
Enquanto isso, os flashbacks que o protagonista vai vivenciando, o líder de gangue Ara, vivido pelo interessante mas inócuo Cauã Reymond, vão enriquecendo o contexto inicial, quando um acidente fatal mata a amiga de Laura (Luisa Arraes) e a torna uma refém eventual para uma quadrilha que almeja algo impalpável em uma terra que há de os tragar sem nunca ter dado nada em troca, senão a necessidade de enterrar os próprios pais em solo infértil. Ao mesmo tempo que o filme se torna cúmplice dessa loucura acompanhamos o resgate de Ara para a sanidade. Esse embate filosófico é o ponto mais forte da história e o que define seu clímax. Em cima disso temos o clichê quase que necessário da velha história da forasteira com ares de princesa que rouba o coração do caboclo. Uma pena que a única virtude da menina é uma suspeita beleza. Seguindo a cartilha nacional, duas mulheres irão exibir seus belos corpos.
Reza a Lenda se estabelece não como a ação desenfreada que poderíamos esperar após a declaração de seu diretor, mas como um filme lento e corajosamente atento à história que quer contar. Enfraquecido pelos clichês, ainda mantém em seu núcleo um quê de revolta ideológica que faz valer seu ingresso ou seu tempo.
Filmado por um período de 10 anos, Making a Murderer é um documentário que assume a posição do réu Steven Avery, que foi preso por 18 anos por um crime que não cometeu e que, posto em liberdade, precisa se defender novamente de mais uma acusação de um crime hediondo. Porém, mais do que isso, é um filme que nos ajuda a pensar a problemática das diferentes versões de um fato e como a construção de uma história se torna mais vital do que a própria história, além de colocar em xeque o sistema americano de justiça, quando uma comunidade inteira parece estar disposta a colocar um homem detrás das grades para sempre por um jogo de influências que é difícil de se desvencilhar. Indo mais além, o documentário, pode-se dizer, escancara como é sensivelmente falha a fé popular nas autoridades e na figura do próprio estado.
Iniciando com o primeiro caso, um estupro que ocorreu no Condado de Manitowoc, a série originária da Netflix e dirigida, escrita e co-produzida pela dupla Moira Demos e Laura Ricciardi situa o histórico básico da família Avery e a antipatia das pessoas da comunidade de Manitowoc com relação à família que cuida de um ferro-velho localizado nos arredores da cidade. Além disso, registra de diferentes formas todo o processo que tornou Steven o principal suspeito até seu veredicto e posterior absolvição após 18 anos encarcerado. Concluindo com sua soltura e sua volta aos planos de sua nova vida, a chamada para o segundo episódio já é a segunda acusação que Steven irá receber injustamente.
O que se passa a seguir é uma montagem genial entre a investigação anterior do caso de estupro e o recente caso de assassinato, passando por relatos, testemunhos, gravações policiais e a maior parte do julgamento de Steven. Se antes havíamos visto um breve resumo de uma hora de um caso chocante de absolvição de culpa do estado em incriminar e prender um inocente, agora é como se esse pesadelo pessoal da família Avery estivesse se repetindo a olhos vistos, e mais uma vez, sem nenhum direito de justiça isenta de parcialidades e condutas controversas das autoridades que cuidam do caso.
Entendendo que cada detalhe precisa ser esmiuçado de maneira racional para que a inocência de Steven possa, pelo menos aos olhos do espectador, parecer algo não apenas provável mas inegável, o resultado não é o velho esquema do bem contra o mal, mas uma análise fria e calculista de como o sistema de justiça americano ultrapassa barreiras usando a fé cega da sociedade que o apóia e como a sensação de impunidade de um caso real pode chegar a limites quase que inimagináveis, não fossem estes frutos de um caso real e recente de julgamento.
Terminando quando o "filme" atinge o tempo presente, Making a Murderer é um projeto praticamente ainda em andamento, pois demonstra que há ainda pontas soltas e, pior, algo de podre no ar.
Para os fãs de Tarantino, Jackie Brown não é nenhuma novidade, exceto que aqui o roteiro é adaptado do romance de Elmore Leonard, o que quer dizer que as referências do chamado "Universo Tarantino", onde todos os seus filmes se encontram, não faria sentido aqui. No entanto, aqui estão os anos 70, um thriller policial onde uma mulher forte participa de um esquema com alta soma de dinheiro, uma trilha sonora inspirada, uma fotografia saudosista e uma montagem que consegue manter o suspense até o último momento, desvendando cada um dos detalhes da trama de uma maneira coesa, mas nunca simples demais.
Tarantino e sua montadora, Sally Menke (infelizmente falecida em 2010), realizam um trabalho intimista que junta violência com realismo, sem nunca se esquecer do lado humano. Talvez seja o filme mais humano do diretor, pois seus personagens lembram mais pessoas de carne e osso, e não super-vilões estilizados. A exceção, para variar, ficaria por conta de Samuel L. Jackson e seu Ordell Robbie, um traficante de armas não muito esperto, mas violento quando necessário, que planeja um golpe gordo que tratá mais meio-milhão à sua poupança no México. O que ele não espera é que a captura de uma de suas capangas, Jackie Brown (Pam Grier), irá culminar em um outro esquema que almeja tirar dele o que já havia acumulado.
É interessante notar como o roteiro se preocupa em explicar todos os personagens antes deles começarem a se envolver. Dessa forma, o tratamento que Ordell dá a um capanga seu (uma participação bem-humorada de Chris Tucker), depois que ele descobre que ele poderá pegar 10 anos de pena e certamente abriria o bico, é o estopim para entendermos o que deverá acontecer com a própria Jackie. Ela, reparamos tanto em sua primeira interação com a polícia quanto com Ordell, está milhas à frente de ambos os lados, e só precisa tomar cuidado para dar cada passo, pois está mexendo com pessoas inseguras -- seja o próprio Ordell como o responsável pela operação policial, o metódico-porque-não-é-confiante Ray Nicolette (Michael Keaton).
A sopa de personagens é enriquecida por Louis Gara (de Niro), um velho capanga que se limita a se drogar junto de uma das vadias de Ordell, Melanie (Bridget Fonda), e Max Cherry (Robert Forster), um agente de fianças que, assim como Jackie, após duas décadas no mesmo lugar, parece cansado de sua rotina.
E chegamos a Jackie, a estrela absoluta do filme, interpretada por Pam Grier, que fez filmes de espionagem e gore com o diretor Jack Hill na década de 70, e cuja participação não apenas simboliza seus personagens do passado, como é mais uma escalação comum do diretor, que resgata atores e atrizes das névoas do esquecimento. Jackie não precisa dizer nada para entendermos sua motivação e seu raciocínio. Aeromoça que ganhava alguns por fora trabalhando para pessoas como Ordell, acabou sendo presa no passado, limitando suas opções arrumando uma droga de emprego. Quando ela é pega, trama junto com Max um plano ambicioso para finalmente dar a volta por cima.
Esse é um filme que expõe o racismo como nenhum outro. O personagem de Sidney Poitier aguarda o trem na estação da pequena cidade de Sparta para visitar sua mãe. Naquela mesma noite um figurão da cidade é assassinado. Um policial, um dos caipiras da cidade, encontra Portier sentado em um banco, e para ele o crime já está resolvido: único negro encontrado aquela noite, só ele poderia ser o culpado de um crime tão brutal.
Dirigido por Norman Jewison, que já foi indicado a sete Oscar e não ganhou nenhum (apesar de "No Calor..." ter ganhado cinco, incluindo de melhor filme), o filme explora diferentes situações em que os moradores e a força policial da região têm que interagir com Virgil Tibbs (Portier), e o fato dele ser negro é um grande empecilho, já que com isso eles lhe negam o respeito (chamando-o pelo nome, mesmo já sabendo que ele também é um policial) e se sentem ofendidos muitas vezes apenas por Tibbs se encontrar no mesmo recinto. O melhor momento do longa é uma visita ao "dono" da cidade, que ainda mantém uma plantação de algodão com vários negros (como funcionários), conversa animadamente sobre Orquídeas com Portier, mas acha normal esbofetear a cara de um negro se este lhe faltar com o respeito.
O filme é fácil de entender, e tem um "appealing" emocional e uma história simples que o tornaram fácil indicação para Oscar. No entanto, por trás do filme censura livre se encontra hoje um exemplar único, que felizmente, será visto com repulsa pela maioria de seus espectadores atuais (na época já foi polêmico, mas hoje talvez fosse inconcebível). Sua trilha sonora é cantada por Ray Charles. Deu ao ator Rod Steiger o Oscar de ator principal, e deixou Portier injustamente fora do páreo. Talvez a polêmica da época não fosse tão descabida assim...
É uma satisfação ver que a Pixar continua com sua vontade de arriscar de vez em quando, e possivelmente possui os desenhistas mais ambiciosos do mercado. O Bom Dinossauro é um trabalho estético e artístico admirável, que causa estranheza em alguns momentos, mas em outros faz valer totalmente a pena.
Contando uma história simples, onde há 65 milhões de anos um asteróide NÃO bateu em nosso planeta, aqui os dinossauros falam e são agricultores pacatos, e os "humanos" ou humanoides ainda são criaturas primitivas que andam nas quatro "patas". Um dos dinossauros, Arlo (Jack McGraw/Raymond Ochoa), nasceu diferente, com suas pernas bambas, e não consegue ajudar muito a família, pois tem medo até das galinhas que alimenta todos os dias. Ao perder seu pai, as coisas pioram na fazenda, e ao se perder, pioram ainda mais. É quando ele conhece Spot (Jack Bright), um garoto humano que vira seu mascote de estimação.
Apresentando diferentes cenários, personagens e situações em uma espécie de "road-movie" exótico, o roteiro simples desenvolvido por sete pessoas praticamente não exige diálogos, embora eles estejam lá para os espectadores mais jovens, e para mostrar a inversão dos valores, quando os dinossauros são mais evoluídos que os humanos. E como um Avatar para crianças, apresenta diferentes espécies que juntas formam um mosaico pré-histórico regado com músicas de country (parece que os idealizadores do projeto também comeram da frutinha que gera alucinações).
No entanto, nem tudo é inovação. Se inspirando levemente em O Rei Leão, o uso mais uma vez de um trio de abutres, quer dizer, pterodátilos, soa repetitivo demais, e até desnecessário. No entanto, a participação especial de três "T-Rexes" é um ponto alto, além do próprio cenário contribuir para o maravilhamento espontâneo que surge ao observar uma natureza tão real que chega a parecer real (se não for).
Outros detalhes, mas esses incomodam um pouco, é a escolha pitoresca de uma cobra com patas cuidando de um fruto inacessível, além de uma outra família de humanos que difere a ponto de parecer outra espécie, mas nem tanto. A impressão que fica é que por algum motivo os produtores são tentados a não ofender alguns religiosos, sem coragem também para assumir esse "bem bolado", onde evolução e criação dão as mãos.
Entregando uma conclusão satisfatória, com mais um momento Disney de fazer chorar (mas esse plenamente justificado), O Bom Dinossauro erra em pouquíssimos pontos e acerta na média. Uma diversão não tão boa para crianças pequenas, mas interessante para jovens e imperdível para adultos mais curiosos.
Trumbo tristemente é daqueles filmes que nos esquecemos como foi nos primeiros minutos após a sessão. Felizmente, aquela experiência cinematográfica da viagem no tempo ainda irá entregar ao espectador a doce memória de um personagem tão excêntrico, além de estarmos falando de Cinema, um assunto sempre agradável (mesmo que nesse caso envolva sua pequena dose de política).
O personagem em questão é Dalton Trumbo, interpretado por Bryan Cranston, famoso pela série Breaking Bad e que aqui consegue uma performance relevante de um roteirista de Hollywood que é forçado a deixar de trabalhar por conta de um boicote realizado nos EUA quando, em plena Guerra Fria, havia um movimento contra todo e qualquer envolvimento com a Rússia comunista, vulgo União Soviética.
Trumbo na época era membro do Partido Comunista americano e ao mesmo tempo o roteirista mais bem pago de Holywood. Suas influências entre colegas e amigos fazia sempre com que ele fosse, de certa maneira, um porta-voz oficial das ideias mais radicais. É importante sabermos disso quando atores como John Wayne (David James Elliott) e atrizes como Hedda Hopper (Helen Mirren) iniciam campanhas contra comportamentos "anti-americanos" e perseguem através da lei todo cineasta envolvido com práticas que lembrem os de seus ex-amigos russos (curioso que cerceamento de liberdade deveria constar como comportamento americano, mas enfim...). Dispensável dizer, Trumbo se torna o alvo principal dessas pessoas, o que faz com que portas sejam fechadas e ele perca o prestígio profissional que havia alcançado.
Mas não sua genialidade, seu humor e sua persistência. E é isso o que o filme quer demonstrar com fatos históricos, como ter ganho dois Oscars através de pseudônimos (que não se sabia ser de Trumbo), além de conseguir manter uma rede clandestina de ótimos roteiristas escrevendo histórias para produtores de filmes ruins, como os irmãos King (momento em que John Goodman faz uma divertida aparição). Isso não impede que sua reputação até como americano seja posta em xeque, o que torna ele e sua família mal-vindos na vizinhança, vítimas de ataques aleatórios de ódio e suspeitas se alguns dos roteiros premiados não estariam vindo de uma "fonte proibida".
Aliás, os melhores momentos como drama estão quando há tensão e conflito na família, cuja esposa e filhos são obrigados a orbitar em torno da figura de Trumbo para ajudá-lo a superar a falta de projetos bem-remunerados por uma excessiva carga horária na frente da máquina de escrever, evitando que ele pare até mesmo por dez minutos para o aniversário de sua filha (uma participação breve, mas inspirada, de Elle Fanning). Infelizmente, o roteiro é maniqueísta e constrói personagens unidimensionais demais para que nos importemos.
E é por isso que "Trumbo" é ótimo entretenimento, nos coloca no tempo e espaço daquela época, mas consegue ser tão esquecível quanto um filme de ação inconsequente. Sentimentos mistos irão ocupar as salas de projeção. Se você gosta de realismo, talvez Trumbo não seja uma experiência muito agradável. Se prefere o água-com-açúcar de filmes que exploram o universo de sua história, aí talvez valha a pena ser inserido nesse mundo (felizmente) distante e esfumaçado.
Vindo de Martin Scorsese (O Lobo de Wall Street, Taxi Driver, Touro Indomável), esse parece o Bons Companheiros -- que ele também dirige -- versão longa. É também sobre ascenção e queda, embora a ascenção pareça muito mais rápida que a queda. É sobre os bons e velhos tempos dos Cassinos em Las Vegas, a época das extorsões, da vista grossa, e onde os espertinhos eram tratados lá mesmo, em uma sala à parte, de preferência com um martelo. Ele conta a história de três tipos de pessoas que viviam por lá: o capanga violento e leal enquanto bem alimentado (Joe Pesci), a prostituta especialista em tomar dinheiro de apostadores (Sharon Stone) e alguém frio e calculista e disposto a atingir a perfeição para não perder seu lugar no que ele chama de paraíso (Robert De Niro).
O filme nos dá dois narradores em off: o responsável pelo Cassino mais bem-sucedido da cidade, Sam 'Ace' Rothstein (De Niro), que conta como o paraíso desabou pouco a pouco, e seu estourado amigo/capanga, Nicky Santoro (Pesci), e é divertido acompanhar suas diferentes opiniões sobre o mesmo ocorrido, assim como é divertido testemunhar as explosões de raiva de Pesci, como quando ele faz uso de uma caneta e conta uma história envolvendo amassar a cabeça de alguém duas vezes: antes e depois do coma.
Sharon Stone aqui consegue a proeza de flertar com o caricatual e clichê -- uma prostituta que, apegada apenas ao seu cafetão e sufocada pelo controlador De Niro -- e criar uma personagem de carne e osso, temperamental, e, como quase todo mundo, tentando se salvar em um mundo que desaba a olhos vistos, graças, ironicamente, ao perfeccionismo e excelência de Rothstein, incapaz de aliciar incompetentes, quem quer que sejam, mesmo que isso custe o apoio de homens mais poderosos que a máfia italiana no deserto dos EUA: os políticos de lá.
Joe Pesci faz aqui o que fez em Os Bons Companheiros bem melhor, mas ainda assim protagoniza alguns dos momentos mais memoráveis da cinegrafia violenta do diretor. Os saltos morais que ele dá, principalmente no terceiro ato do filme, são mostrados de uma maneira sutil, mas não deixam de ser reprováveis, e é quando ele perde o apoio do espectador tendo já havia perdido do seu diretor, que alguns talvez saibam que é um moralista disfarçado.
E De Niro consegue manter o controle e a compreensão do espectador ao mostrar alguém disposto a arriscar até um casamento que tem tudo para dar errado, mas que tenta manter o controle ainda assim. Sua administração no Cassino é invejável, e ao sabermos que o único "crime" -- exceto explorar a ambição alheia -- é sonegar impostos, ganha a simpatia do público. O problema é quando as coisas começam a sair do controle, e vemos o quão longe vai a obsessão do sujeito, tratando sua esposa como propriedade e seu amigo como um incômodo para os negócios. Se fosse um empreendedor em um negócio com menos política, seria o próximo bilionário da Forbes. Por cair na tentação de voar sozinho e mais alto, arriscou alto demais.
Esse é, assim como O Lobo de Wall Street, um filme longo, porém intenso, sempre tendo algo a contar, com uma história recheada de acontecimentos, diálogos memoráveis, cenas marcantes. Mais uma vez um deleite ao adentrar no universo da máfia e de suas apostas.
Quantas vezes uma pessoa aguenta receber o diagnóstico errado do problema de sua vida e perceber que está apenas se enganando em um mundo que não está pronto para recebê-la?
É possível até deduzir a essência da história contada em A Garota Dinamarquesa, mas muito mais difícil senti-la. Estruturado como um melodrama insosso, o novo filme de Tom Hooper (O Discurso do Rei) contém todas as virtudes que poderiam fazer parte de um ótimo drama sobre um assunto sexual ainda pouco explorado de maneira honesta. No entanto, se arriscando pouco e escolhendo o caminho seguro da pura e simples descrição de eventos, o resultado é no máximo satisfatório, com aquele gostinho de "poderia ser melhor".
Narrando a vida da personagem da vida real Einar Wegener (e se você ainda não sabe exatamente do que se trata, seria um desperdício de surpresa dizer aqui), é interessante acompanhar o processo de "redescoberta" de Einar junto de sua esposa Gerda. Como todo casal jovem da época, tentam fazer um filho, mas sem sucesso. Ambos são pintores e fazem parte de uma parcela da sociedade europeia já acostumada a comportamentos excêntricos. Dessa forma, começando com a necessidade de Einar vestir peças de roupa femininas para posar para os quadros de Gerda, logo isso se torna uma brincadeira sexual, e em seguida já vemos Einar desfilar em um evento de arte maquiado e vestido como uma mulher, Lili, anunciada como a prima de Einar que veio do interior.
Logo também se torna óbvio que, apesar de se focar na vida de Einar, a melhor coisa do filme é o relacionamento que este nutria com sua esposa e o jogo de confidencialidades dos dois. E mesmo quando Gerda começa a temer pelo desaparecimento do que um dia foi seu marido, é tocante perceber seu amor em se desapegar de seu relacionamento original, ou mesmo encarar o fato de que, na realidade, ambos eram muito mais melhores amigos do que outra coisa. É curioso, portanto, que as melhores cenas não girem em torno disso. Uma delas, por exemplo, é sobre a surpresa de Einar em perceber como os homens se jogam facilmente para cima de uma mulher assim que a veem, ainda mais sendo uma estranha e misteriosa mulher. Falando qualquer bobagem para conseguir abordar a "moça", a sequência é um joguete tão cômico quanto revelador para o personagem e sua reação.
Aliás, o empenho de Eddie Redmayne mais uma vez se mostra recompensador, como foi em A Teoria de Tudo, onde interpretava Stephen Hawking, talvez com a única diferença da intensidade. É preciso lembrar também que a transformação de Hawking é trágica, enquanto a realizada por Eiar é um sonho a ser alcançado. Porém, ambos os caminhos não são fáceis, e precisam da ajuda de quem mais os ama. Porém, de uma forma ou de outra, Redmayne se torna o ator perfeito para o papel, e o desempenha com perfeição graças à cumplicidade e química desenvolvidas com Alicia Vikander (do ótimo Ex-Machina), que desempenha com ele dois papéis primordiais para que o filme seja mais do que parece.
Sendo assim, é desapontador a inserção de outros personagens, como os de Ben Whishaw e Matthias Schoenaerts, que, reais ou não, parecem desempenhar uma única função, nunca se inserindo organicamente na narrativa. Como consequência, cada episódio envolvendo um ou outro se torna mais ou menos desconexo com a história principal, nunca complementando-a. Isso costuma acontecer em histórias baseadas em casos reais, mas aqui se torna particularmente inquietante até pela falta de um elenco que consiga se destacar.
Até o casal principal parece ter sido sabotado pelo roteiro de Lucinda Coxon, baseado no romance de David Ebershoff, que não se preocupa em convertê-los em seres de carne e osso, mas apenas mártires da situação. Até diálogos mais ou menos inspirados, como "um casamento cria algo mais que duas pessoas" soam clichês demais. E, mesmo apenas como mártires, o casal parece estar inserido em uma realidade onde não há muita resistência ou preconceito sobre a questão, apenas ignorância. Mas ignorância é algo que temos até hoje em dia, tornando o filme absurdamente inofensivo.
E as coisas só pioram com a direção de Hooper, que utiliza quadros que evocam uma profundidade de campo gigantesca, como uma rua com uma série de casas amarelas, ou até um corredor de hospital infinitamente longo. Essas cenas não possuem um significado facilmente traduzido, se é que foram pensadas com algum. As coisas se saem melhor quando há de fato algum simbolismo envolvido, como quando Einar está em um tratamento que envolve radiação, e vemos apenas metade do seu corpo pelo vidro da porta, como se este estivesse sendo cerrado ao meio, ou até mesmo a bonita passagem em que ele diz ter sonhado com sua mãe.
Entre altos e baixos, o saldo de A Garota Dinamarquesa está levemente acima da média, mas deixa a questão: quantas vezes um tema que merecia um tratamento melhor será levado à telona e ser exibido para um mundo que talvez ainda não esteja pronto para recebê-lo?
# Orgulho e Preconceito e Zumbis
Caloni, 2016-02-12 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Há muitos filmes que se agarram a um conteúdo original pela força dramática que estes fornecem (como o recente Dez Mandamentos brasileiro), mas se esquecem de adicionar algo realmente valioso. Pelo contrário: se escondem covardemente "por trás das saias" de uma obra de referência, ambiciosa e complexa, e de lá atiram com pistolas de água no espectador, indeciso se gosta do que vê por lembrar algo que já viu ou furioso por terem brincado com algo que nunca deveria ter sido "tirado da caixa".
Acho que poucos filmes seriam tão perturbadores nesse quesito que esse Orgulho e Preconceito e Zumbis, que utiliza os personagens, a história e os diálogos da obra literária de Jane Austen e do filme homônimo (Joe Wright, 2005). Claro, a obra já foi adaptada outras vezes e até virou série televisiva pela BBC. É um conteúdo hoje popular graças a isso. E justamente por isso o diretor e roteirista Burr Steers (do ótimo A Estranha Família de Igby) inseriu na história outro elemento igualmente popular nessa década: zumbis.
O pano de fundo é a Peste Negra, trazida pelos franceses ("claro que foram eles") e espalhadas em diferentes formas. Entre elas, apodrecendo a carne das pessoas infectadas, mas mantendo-as sãs, falantes, pensantes. Desde, é claro, que elas não comecem a devorar cérebros humanos por aí. Se fizerem isso, estarão marchando para o caminho da perdição, do animalesco. Dentro da história surge um grupo que evita comer cérebros humanos para comer de porcos, e que através da fé conseguem se manter "vivos" e livres da tentação. Constituem a alta classe de zumbis. Seriam os intelectuais, a aristocracia. Se continuarem assim, alguém comenta, logo estarão no Parlamento inglês.
A correlação com os zumbis de George Romero e seu A Noite dos Mortos Vivos e sequências não poderia ser mais viva e vibrante. Que ideia! Eu adoraria assistir um filme que relacionasse esses zumbis com a sociedade da época de Jane Austen, onde os nobres espantavam o tédio realizando bailes, que eram usados para que pares fossem arranjados, terras fossem transferidas de uma família para outra.
Infelizmente, este filme é mais Orgulho e Preconceito e menos Zumbis. O que vemos neste é apenas um remake da obra de Austen em um formato mais explícito. Afinal, nós já sabemos que as mulheres são o sexo forte em seus romances, as verdadeiras heroínas. Aqui, são elas que realizam treinamento de artes marciais na Ásia (Japão se for rica, China se for pobre) e são elas que portam facas e espadas entre suas vestimentas delicadas. Tudo para se defenderem das criaturas comedoras de cérebro, que se mantém afastadas dos campos graças ao "entremeios", um sistema de defesa do exército britânico, que destruiu todas as pontes e mantém Londres separada do resto do mundo civilizado exceto por um único caminho.
Enquanto isso, a nobreza arruma tempo para elaborar seus bailes e seus estratagemas de troca de herança, quase como se não houvessem zumbis. E é isso que é decepcionante no filme. Zumbis existem, vemos eles uma hora ou outra, mas eles nunca de fato participam da história ou são extremamente vitais para seu desenrolar. É como se eles apenas fossem uma nação inimiga pronta para atacar a qualquer momento. E se retirarmos os zumbis da trama, a história se volta quase que integralmente para um Orgulho e Preconceito e Paródia. As cenas estão lá, os diálogos funcionam, só que às vezes em um contexto ligeiramente diferente.
Isso não basta. Já vimos esse filme, e em um formato muito melhor: o drama original. A paródia não consegue nunca criar momentos cômicos interessante, pois se limita a repetir a receita do drama e inserir a novidade dos zumbis pontualmente. Depois da definição fantástica de como seriam os zumbis da aristocracia britânica, esse seria um filme que eu adoraria assistir. Infelizmente, vou continuar esperando.
Curioso este filme ser tão recente, e sintomático também. Se Best of Enemies começa na ascenção de uma política conservadora e autoritária nos EUA, bem no meio de choques causados por segregação racial e pela guerra no Vietnã, a profecia do liberal Gore Vidal do "declínio do império" não poderia ser mais presente hoje em dia. O que ele não esperava é que esse declínio seria causado justamente pela esquerda que tanto defendia.
Dirigido e escrito por Robert Gordon e Morgan Neville, este documentário tem por objetivo explorar a rivalidade histórica entre o conservador William F. Buckley e o liberal Gore Vidal (e quando falamos "liberal", entenda o liberal americano, ou seja, socialista, de esquerda). Para isso o filme usa como tema central o debate em 10 episódios que a rede de televisão ABC encomendou na época do encontro republicano em Miami, em 1968.
O clima épico com que os comentaristas que são entrevistados pelo filme parece anunciar algo grandioso. O que vemos, porém, são momentos do debate entre os dois argumentadores tirados fora de contexto, em uma edição que nunca consegue de fato montar uma sequência só que contenha algum traço do brilhantismo de qualquer um dos dois lados.
Mais sintomático, porém, é notar uma certa tendência em posicionar os estereótipos de ambos. Dessa forma, Vidal é o mais compreensivo e mais intelectual, enquanto Buckley aparece diante de seus comentaristas como um bufão ignorante estilo George W. Bush. Dessa forma, nenhum dos dois ganha a simpatia do público, não importando sua suposta genialidade.
Além disso, o clima montado em torno dos debates é fantasioso demais. Se há algo de útil no filme é apenas resgatar uma dinâmica que hoje, na era da internet, não existe mais. É uma mensagem nostálgica dos bons debates -- que não chegamos a ver -- e de como a visão política pode mudar de tempos em tempos. Basta citar um fato novo e ouviremos os velhos argumentos em roupagem nova.
"What Happened, Miss Simone" é uma coletânea de depoimentos, entrevistas, colagens de fotos e performances que, a despeito de seguir uma ordem cronológica certinha, consegue se tornar uma montanha-russa de emoções e pensamentos acerca da vida da artista e ativista Nina Simone. E mesmo criando um fechamento mais que convencional, desperta em seu final a sensação de que conhecemos talvez menos de 10% do que foi a música, cantora e ativista.
Mais um filme produzido pela Netflix, que vem se mostrando um foco de documentários com conteúdo riquíssimo, a direção de Liz Garbus (Bobby Fischer Against the World) deixa claro desde o começo que irá dramatizar pesadamente na carreira da artista, que começa já criança tocando piano na igreja onde sua mãe realizava sessões religiosas para os negros da região. Descoberta por uma professora de piano branca, a pequena Eunice Kathleen Waymon recebe uma tutora e já coloca um sonho em sua mente: se tornar a primeira pianista negra de música clássica.
Esse desejo logo é rejeitado pela instituição onde tenta ser aprovada; não por falta de aptidão, mas por ser negra. Estamos em um EUA segregado, onde atentados ocorrem de tempos em tempos, marcando paulatinamente na memória do povo afro-americano a memória do que seus antepassados sofreram. A jovem Waymon vive isso, e para continuar seu caminho artístico, se submete a tocar em bares que sua mãe ficaria horrorizada de conhecer. E é aí que nasce o nome Nina Simone: um fruto do medo de ser descoberta. A definição de liberdade para Simone não poderia ser mais óbvio: a falta de medo. Não medo de leões na savana africana, mas medo das pessoas em sua volta, seja sua mãe, seu futuro e violento marido ou simplesmente os brancos estranhos que vivem do outro lado do trilho do trem por onde ela caminha ainda criança. A época e o local não eram propícios para o nascimento de uma artista como Simone.
Auxiliado pelo testemunho de sua filha, Lisa Celeste Stroud, que também é produtora, de seu ex-marido, seu ex-colega de banda e um inusitado amigo, o filme consegue revelar bastante sobre a persona de Simone como cantora e como pessoa, mas a sensação é só conseguir capturar sua essência durante suas performances em palco. Dona de uma voz extremamente diferente para cantoras femininas, Nina consegue expressar as letras da música que toca de uma forma que parecem torná-las únicas naquele momento.
Há na história, claro, seus momentos de ativista, quando vai convergindo aos poucos todo seu repertório para temas políticos. Nina participa de maneira tão intensa essa sua fase que sempre a vemos do lado de revolucionários extremistas. Em deteterminado momento diz que fulana a ensinou muitas coisas sobre Marx e Lênin. Em outro momento ela mesma admite que os negros só conseguirão a paz que tanto almejam se criarem seu próprio Estado. Engajada através de sua arte, percebemos que essa é a maneira que ela encontrou para gritar para o mundo o seu desespero interno. E o filme também se engaja, sempre mostrando em seu primeiro ato como o sucesso como cantora e o seu enriquecimento ainda não são suficientes para preencher uma necessidade interna de sua existência. Pelo jeito, a recusa da instituição musical custou caro aos sentimentos da artista.
Porém, os melhores momentos são os últimos, onde vemos uma sequência de anos e décadas sendo narrada de uma maneira coesa e tão intensa quanto os anos 60. Sua fuga para Libéria e retomada da carreira na Suíça são ganchos para que voltemos a ser convidados a entender novamente quem é Nina Simone.
E o mais impressionante de tudo é que, depois de tudo isso, talvez ainda falte uma resposta definitiva. Não que seja decepcionante, como biografias mal-feitas. É que pessoas como ela, passando por esse planeta por 70 anos, foram insuficientes para capturar boa parte de sua essência. Quando sua filha diz que, vendo a mãe já mais velha, percebe que ela não pertence mais à epoca, a resposta é que a época já não pertence mais a ela. Isso resume bem o sentimento de um filme como esse.
O Abraço da Serpente é uma viagem cósmica através da descendência de todos os homens. Razão e tradição se digladiam para contar uma história que atravessa o senso da individualidade sem perder o senso da responsabilidade. E, sim, é também sobre índios.
Porém, categorizar essa experiência de "filme de índio" é diminuí-la, muito embora ela trate todo o tempo do folclore, comportamento, cultura, conhecimento e crença de algumas tribos de índios da Amazônia após a invasão colombiana. Quando falamos de índios, surge aquela sensação de estranhamento, de culpa e de distanciamento. Nada nesse filme nos leva aos mesmos sentimentos.
Contando a história (real) de Theodor Koch-Grunberg (Jan Bijvoet), um cientista alemão que pesquisa tudo a respeito da Amazônia e suas crias -- índios inclusos -- conhecemos um sobrevivente de uma tribo massacrada durante a invasão colombiana: Karamakate (Nilbio Torres). Ele é o herói da história. É dele a decisão de ajudar ou não o tal cientista através de uma planta sagrada de seu povo, sua única salvação. Junto dele acompanha um leal "índio domesticado", de roupas e sabendo usar uma arma.
Então, de repente, somos transportados para o futuro, onde conhecemos os frutos da pesquisa de Theo, vindo de outro cientista, Richard Evans Schultes (Brionne Davis), este americano. Lá já aprendemos que Grunberg morreu na expedição (o que ainda falta descobrir é como e por quê), mas encontramos Karamakate (Antonio Bolivar), embora seja outro, mudado, que está perdendo paulatinamente sua memória, e junto com ela a memória de seu povo.
A direção e narrativa (Ciro Guerra) de "O Abraço..." levam a crer que boa parte do roteiro (construído por Ciro através dos diários de Theo e Evans) tem um fundo simbólico. Durante todo o tempo nos questionamos a respeito mais das atitudes dos personagens do que dos personagens em si. Eles são meras representações do que ocorreu naquela floresta várias vezes. O grande trunfo do filme é ser baseado em relatos históricos desses dois exploradores, e ainda conseguir criar uma atmosfera fantástica que abraça esse mundo fantástico de uma floresta ainda enigmática e que, com a vinda do homem branco, deu origem a diferentes tipos de doenças, loucuras e crueldade, sejam elas vindas da religião, da ganância ou do puro delírio de grandeza, mesmo.
Todas essas formas são materializadas quase em um formato de mini-teatro, onde cada novo acontecimento ocorre em um local específico da floresta. O tom preto e branco com uma saturação forte torna as noites mágicas, e os dias pálidos demais. A pintura que vemos na cara dos indígenas vira uma máscara monocromática vestida com perfeição. Questões filosóficas, como a invasão cultural, estão inseridas de maneira tão arraigada na história que é ela que define os rumos de tudo o que ocorre.
Concluindo de uma maneira tão irônica quanto seu início, 40 anos atrás, "O Abraço da Serpente" é um trabalho ambicioso que mantém por boa parte do tempo a proeza do suspense eterno. Nos espantamos com quase todo novo momento, toda nova cena, todo novo personagem. Não é um filme para muitos, mas os poucos que o verem irão se sentir satisfeitos por essa viagem no tempo e espaço.
50 Tons de Preto é a maneira mais eficiente de criticar o sexismo de seu primo que deveria ser levado a sério, 50 Tons de Cinza. Ele é uma paródia. Usa a mesma história do original e se aproveita de sua mediocridade para fazer comédia. De quebra, é um rodízio de comentários que, inspirados ou não, tentam ridicularizar uma situação que já é ridícula na fonte, mas embora possa soar redundante, não é. Certas coisas precisam ser ditas com outra forma de abordagem para serem visíveis ao público, e nada como uma comédia despretensiosa para isso.
Ainda por cima o filme se permite toda e qualquer piada sobre racismo, pois é sobre o relacionamento entre dois negros, o que lhe dá certa imunidade nesse assunto. Não se sabe se as críticas a respeito da palavra "nigga" (crioulo, em inglês) aparecer no filme de Tarantino, Django Livre, suavizou-a para ela ser usada aqui mais de uma vez, ou se simplesmente ninguém liga quando é uma comédia besteirol. De uma forma ou de outra, aqui não vemos apenas a nudez feminina, mas principalmente a afro-masculina, ridicularizada para fazer rir. Nesse sentido, o filme deveria chocar mais que o água-com-açúcar do Tons de Cinza. Não choca. Aparentemente na comédia -- pelo menos a americana -- pode de tudo.
Mas não sejamos injustos: a história aqui é o que menos importa. Alguns detalhes são até non sequitur, como quando Hannah (Kali Hawk) diz ter um umbigo invertido durante a primeira cena de sexo, algo que não vemos nunca mais. O filme não é feito para figurar entre os melhores do ano. Felizmente, nem nos piores. Isso graças a um elenco carismático, cujo pilar reside tanto no poder de anasalar a voz de Kali Hawk (Missão Madrinha de Casamento) e na insistência em fazê-la soar como uma versão ridiculizada da personagem original de Dakota Johnson (funcionando parcialmente) quanto nas caretas e nos trejeitos do problemático Christian (Marlon Wayans).
Como toda paródia, há uma ou outra referência engraçadinha a outros filmes do momento, como 12 Anos de Escravidão, Whiplash, entre outros. Todos gratuitos, mas quase nenhum inserido totalmente deslocado, ou tão deslocado que não funcione. Algumas coisas funcionam bem, outras não. Rir é opcional e algo bem subjetivo nesse caso. Talvez você goste da maneira liberal americana de tirar sarro do conteúdo risível da autora E. L. James. Eu gostei; principalmente porque o politicamente correto não está em jogo aqui, ou se está, ficou tão disfarçado no meio das piadas que não faz tanta diferença.
De uma forma ou de outra, se você procura um besteirol qualquer, mas que contenha referências pop e (mal/bem)-intencionadas, 50 Tons de Preto é uma escolha interessante, passageira e divertida. Até onde durar sua perversão humorística.
Jean-Luc Godard, em plena década de 60, em um filme aparentemente biográfico, que funciona leve, sem lógica, mas com acontecimentos que não fogem da realidade, mas entram em nossa estranheza do incompreendido, das coincidências exóticas. Mas é uma época pulsante, com questões juvenis incompreendidas. Godard tinha minha idade quando o fez (36), e ele discute muito sobre o homem, a mulher, e os dois juntos.
Há a bela Madeleine (Chantal Goya), entre outras, que o filme insiste em mostrar em planos-detalhe em meio a mesas nas esquisas dos cafés da França, barulhos de rua, pessoas indo e vindo. Sua relação com Paul (Jean-Pierre Léaud) é platônica, mas é motivo suficiente para que isso gere ciúmes de outras mulheres. Ao mesmo tempo temos jovens igualmente interessados em Madeleine. Paul é o principal, e a morte ronda ele. Ah, como ronda!
Porém, não há história que abrace o que está sendo dito. Talvez experimental seja uma palavra mais adequada para extrair o gênero que Masculino-Feminino, usando seus sub-títulos, suas construções sonoras, seus diálogos inusitados e sem sentido. É um filme-poesia, que pode encantar quem procura algo diferente do normal (mesmo hoje) ou aborrecer quem não entende nada do que acontece. E isso tende a piorar.
Com uma linda fotografia P&B que serve quase como um documentário da época, a Guerra do Vietnã é o foco, e com isso o roteiro (do próprio Godard baseado em histórias de Guy de Maupassant) aproveita e questiona, ou melhor dizendo, joga questões não-respondidas, sobre política. Ele está conversando com o espectador, mas usa seus personagens todo o tempo. Ele não precisa de uma narrativa para mostrá-las, pois apenas a curiosidade em torno dos jovens é suficiente.
Talvez o único defeito grande do filme é ficar sem moral, ou um fechamento chamativo. No entanto, está tudo lá, espalhado no meio da "história". Se fala de prostitutas como se fala de romance, ou de gravidez como se fala de pessoas morrendo na Índia. É uma coletânea de fatos e ficção entrelaçados em torno de nada. Se não há moral nesse experimento, não há como criticar ou julgar seus personagens e seu idealizador. Uma solução covarde ou uma plataforma de testes. Ainda assim, fascinante.
Há algo de muito brega, amador e piegas nessa comédia romântica que, seguindo os passos de Simplesmente Amor, tenta relacionar diferentes relacionamentos, e seguindo os passos de Nova York Eu Te Amo, tenta relacionar todos eles em torno de uma cidade (nesse caso, a megalópole São Paulo).
Nunca conseguindo atingir o envolvimento visto nos filmes supracitados, pelo menos você ao assisti-lo irá ganhar de brinde diferentes números musicais que tentam resumir o drama de cada um dos personagens, a maioria de maneira bem-humorada e uns poucos mais dramatizados. No entanto, todos românticos, e é isso que forma o grude de todas as histórias.
Isso e dezenas de tomadas aéreas da cidade que nunca dorme.
O roteiro e produção de Bruna Lombardi, que também participa do filme, apela para o "patriotismo" paulista dos que vieram, foram adotados pela cidade, e compreendem seus desafios no melhor sentido (e estão muito bem com isso). Além disso, a história pega elementos fáceis, do momento, como planejamento urbano (trânsito), ecologia (áreas verdes) e tolerância (gays). Além disso, arrisca criar uma diversidade de classes sociais sem miseráveis ou simplesmente pobres fedidos. Por conta disso, soa muitas vezes como novela, onde ninguém na verdade possui um drama realista: são só bocas falando e lamentando decisões da vida, ou nem isso. Às vezes é só a vida passando.
Mas não é isso que soa como novela. O exagero nas cenas em que a câmera passeia pelos cenários torna tudo um balé comercial, passageiro e enlatado. As cores vibrantes parecem consequência mais do amadorismo do que um musical pensado em temas, mas não se engane: assim como nas novelas, as camadas mais ricas da sociedade são invadidas por tons monocromáticos, e as mais pobres o tom "todas as cores gritantes do universo".
E ainda sobre o amadorismo, os números musicais escancaram o completo despreparo da dublagem e engenharia de som da indústria cinematográfica brasileira. Quase a maior parte do tempo a letra da música nos distrai por estarmos caçando o sincronismo entre o que está sendo cantado e a boca dos atores, revelando sua fraca estrutura, ainda que quase sempre embalada em uma dança pelo palco (e mais câmeras dançantes).
Mas o mais notável de tudo isso é que, aos trancos e barrancos, a mensagem de esperança funciona. É por causa dela que o sincronismo sonoro capenga das canções pode ser confundido com liberdade poética. É por causa dela que as cores berrantes podem ser confundidas com uma abordagem lúdica da natureza. E é por causa dela que as crises existenciais mais chinfrins (com o campeão sendo a da personagem de Lombardi) se misturam com o drama do dia-a-dia de pessoas comuns, rasas, mas muito das vezes, mais profundas que todos os roteiros complexos demais para levar em consideração o fator humano.
Talvez essa seja uma defesa rasa ao filme, apelando inocentemente pela esperança de uma cidade melhor para morar. Mas não sou ingênuo. A proposta do filme é boba e simplória. Mas é justamente por ser boba que tem a chance de dar certo. Pelo menos como uma viagem intimista.
Hotel Transilvânia é uma surpresa em animação e seus divertidos momentos. A direção transforma efeitos visuais competentes em sequências sempre interessantes, utilizando personagens cativantes construídos através do imaginário popular e não tão clichês quanto poderíamos esperar.
E apesar de tudo isso, o filme não passa de um engodo para criar uma franquia. Um fiapo de história que sobrevive pelo carisma de seus personagens e suas brincadeiras.
Criando uma premissa interessante com ideias que a suportem -- o conde Drácula culpa a morte da esposa, um século atrás, pelo ódio e ignorância dos humanos; como consequência, super-protege a filha única e cria um negócio baseado nisso -- Hotel Transilvânia consegue estabelecer seus elementos de maneira satisfatória, mas na hora de desenvolvê-los o peso de sua profundidade rasa o faz ironicamente desabar. O terceiro ato apenas revela isso: a história por trás do filme não estava pronta para tanta "complexidade".
E como consequência todo o resto desaba junto. Logo percebemos que não há muitos motivos para construir um hotel em que os monstros se protegem de humanos. Primeiro porque todos eles só ficam no hotel durante a temporada. Segundo porque, se eles não estão no hotel, deveriam estar em outro lugar. Esse lugar, se habitado por humanos, revelaria que eles hoje em dia são inofensivos e até fãs dos monstros. Se não estão em algum lugar habitado por humanos, há algumas peças faltando nesse quebra-cabeças.
Enfim, uma bobagem divertidinha, que pode divertir os mais desatentos, e decepcionar os mais cinéfilos.
Adam Sandler consegue a proeza de tornar a tosca dublagem brasileira menos pior do que ouvi-lo arriscar um sotaque que é uma mistura de Zohan com trechos de Little Nick.
Ele é o conde Drácula dessa sequência da animação onde a próxima preocupação do pai superprotetor é seu neto. Nascido de sua filha vampira e seu genro humano -- claro que eles tiveram que casar antes -- paira a dúvida em sua cabeça se ele se tornará um "monstro", com suas presas de vampiro, se transformando em morcego e tudo mais, ou se continuará com a aparência e comportamento de uma singela, inocente e inofensiva criatura humana. Com a cara do pai humano, é isso que deixa Drácula possesso.
E é isso que o leva a pegar o carro fúnebre com seus amigos de longa data -- Frankenstein, Lobo, Homem-Invisível e Geléia Estranha -- para alguns experimentos que irão tentar fazer nascer as presas de seu pequeno neto, em um breve road movie noturno. O resultado é tão divertido quanto seu original, e pelo menos dessa vez existe um pouquinho mais de história, coesa, acontecendo.
Não que isso nos faça esquecer da dublagem de Sandler. Nem um pouco.
O Menino e o Mundo é uma animação sobre os olhos de um menino enxergando o mundo. E de fato ele consegue isso, com maestria: o mundo que vemos é estático, simplista, ingênuo e dramatizado até a última gota de tinta.
Conta a história desse menino de um lugar isolado que, quando o pai parte de casa, vai atrás dele, e em uma mini-aventura ele descobre que há forças conflitantes no mundo. De um lado um latifundiário do algodão; do outro escravos... ops, funcionários colhendo e fabricando tecido; do outro os militares... ops, a polícia, aparentemente ditatorial; e um pouco mais longe, o capital estrangeiro, dominando tudo e a todos.
Apenas descrever esse cenário é risível. Tão risível quanto os traços usados pela equipe do diretor e roteirista Alê Abreu, que investe em cores e formas lúdicas, como se fosse giz de cera. O resultado é bonito, poético e pobre. Tão pobre quanto a ideologia marxista por trás de sua história, em um drama que não possui heróis ou vilões: apenas a imaginação nefasta de uma criança não tão jovem assim.
Mas o filme não é apenas pobre de espírito: é covarde, também. Explora uma situação para convenientemente jogá-la para o passado, embora esteja com os olhos no presente. Dessa forma se exime de qualquer imperfeição desse universo fantasioso, pseudo-surreal, que talvez exista em uma realidade alternativa, do alto de um terraço gourmet de um artista que aprendeu a venerar seu dinheiro público espalhando propaganda doutrinária. Não à toa, o patrocínio é anunciado como do BNDES, Petrobras e por aí vai a valsa. Já sabemos onde isso chega:
Ao Oscar! Sim, o filme foi indicado a melhor animação; o mundo está polarizado, e os filhos de Occupy Wall Street estão preocupados com o verde de suas fazendas, ou é apenas uma culpa se alastrando até o terceiro mundo. Ou o mais provável: uma animação universal, embora com foco local, mas que não é falado em nenhum idioma conhecido, o que poupa os membros da academia de lerem legendas.
Com o uso de uma trilha sonora igualmente passada e que se repete à exaustão, O Menino e o Mundo pode ser confundido com um hino cheio de cores e formas que se apresentam como uma ideia. Não nos importemos agora com o que ela transmite: isso é Cinema panfletário da melhor qualidade. É envolvente embora simplório, ritmado embora capenga. Ele consegue extrair do seu pouco o tudo que necessita falar. Não há como não gostar de um filme que consegue fazer tanto com tão pouco, embora esse tanto não seja tanto assim...
O Menino e o Mundo deverá ser revisitado na próxima década. E na próxima, e na próxima. É uma história universal que diz mais sobre o contador da história do que da história em si. E nos ensina uma lição: podemos acreditar no que uma criança nos conta, mas nunca na interpretação dela por um adulto. Principalmente se esse adulto esteja do lado dos que monopolizam as armas.
A fórmula Marvel de produzir super-heróis enlatados é tão maldita que só um filme como Deadpool, que brinca com toda a produção desses mesmos enlatados, para conseguir se desvencilhar, ainda que parcialmente, dos seus outros filmes lançados a balde.
É por isso que até seus créditos iniciais brincam com o processo de escalação, apresentando os personagens pelos seus estereótipos, tais como Um Cara Durão, Um Vilão, Um Personagem Feito de CGI, Uma Gostosa. Mais do que isso: declara que os roteiristas é que são os verdadeiros heróis.
Nada mais justo: realizando a façanha de através da meia-hora mais criativa e envolvente que um filme de herói tem há alguns anos, é de lá que saem os melhores diálogos, as melhores construções de personagem, os melhores ganchos para o resto do filme e a melhor quebra de quarta parede já vista em uma produção do sub-gênero, e que ainda por cima insiste em ser bem-humorado enquanto estoura miolos, arranca cabeças e esmaga corpos humanos.
E tudo isso seguindo à risca o processo de engessamento de histórias aplicado pela Marvel. É possível sentir a tensão que deve ter havido entre os roteiristas e entre quem estava com o dinheiro. Sim, os roteiristas serem os verdadeiros heróis faz todo o sentido para mim.
Os fãs devem dizer (ouço falar) que esse personagem merece o tratamento 18 anos (ou 16, no caso do Brasil) porque sem a violência gráfica seria impossível produzir um filme com ele. A violência existe, sim, e é desferida não a robôs vindos de outra galáxia ou qualquer coisa feita por computador, mas humanos. Genéricos, irrelevantes, mas humanos.
Outro ponto é que a violência é apenas violência. O "herói" Deadpool mata e ameaça pessoas, mas não passa de uma versão Peter Parker com uma moral bem flexível. E seu passado provavelmente conturbado até tenta explicar esse seu lado negro, mas não sem um propósito: ele conhece uma prostituta... quer dizer, dançarina... quer dizer, só garçonete de boate, mesmo. Ambos tem um passado pesado, e é isso. No processo até tenta se desculpar pelo conteúdo machista e... convenhamos, de controverso, quase não sobra mais nada. Ele é um herói mutante que não quer se vestir de amarelo com os X-Men. Ponto.
E, se for pensar, o que mais cansava em todos os heróis é essa tendência mágica e sobrenatural de praticar o bem (e é um bem livre de qualquer suspeita, BTW). Ate Homem de Ferro foi "corrompido" pelo câncer do politicamente correto. São tempos sombrios para figuras como Dead Pool.
E uma das grandes sacadas de casting é colocar Ryan Reynolds como o herói. Sua objeção a um uniforme verde (ele foi Lanterna Verde) e seu histórico de galã (não à toa, foi casado com Scarlett Johansson) favorecem esse jogo de anti-herói e sua aparência desfigurada. Tudo converge harmoniosamente para um anti-filme da Marvel.
E é por isso que o terceiro ato é tão decepcionante. Não pelas lutas, que são divertidinhas. Nem pelos efeitos, impressionantemente feitos em computador. O que decepciona mesmo é a volta para a normalidade, o previsível e o risco zero. Já sabemos tudo que vai acontecer desde o momento em que A Gostosa é raptada. Isso é para acabar com os poderes de qualquer mutante. E eu não colocaria dessa vez a culpa nos roteiristas.
Em Nome do Pai é daquelas pérolas baseadas em fatos reais que funciona pelo emocional, mas também é um trabalho intimista que adentra o suficiente no lamaçal da "justiça" estatal para conseguir identificar o que critica sem desmerecer nossa inteligência.
Conta a história absurda (mas verídica) de Gerry Conlon, um homem condenado erroneamente por ser um dos terroristas responsáveis pelo maior atentado em solo britânico desde a Segunda Guerra. Ele se baseia no romance autobiográfico do próprio Conlon, o que poderia querer dizer um texto longo e chato sobre o psicológico de seu protagonista, mas o roteiro de Terry George e do diretor Jim Sheridan estipula uma linha de raciocínio fixa e tensa através da atuação ímpar de Daniel Day-Lewis (com quem o diretor trabalhou em Meu Pé Esquerdo) e de sua relação com o pai, Giuseppe (Pete Postlethwaite, um suporte inestimável).
A passagem do tempo no filme é capenga. O filme é curto para isso. No entanto, as mudanças psicológicas que ocorrem com seus personagens funciona, e a facilidade com que Daniel Day-Lewis consegue carregar uma persona dúbia, um anti-herói desfigurado pelo trauma de uma vida nada fácil, aliado à visão autoritária e ardilosa dos representantes do governo, dispostos a tudo para manter a ilusão de ordem frente às revoltas nacionalistas irlandesas.
O papel do pai no filme não está só no título, mas tem valor simbólico. É inimaginável o destino desse personagem na vida real, e revoltante em todos os aspectos sua peregrinação por justiça. É seu trapo branco erguido no começo do filme para salvar o filho que se mantém simbolicamente levantado por quinze anos seguidos, sem atirar nenhuma bala. Pete Postlethwaite faz um sujeito convicto de suas ações, mas incerto do mundo que vive, cuja noção de certo e errado desmorona diante de seus olhos.
Com dois gigantes representando pai e filho, Emma Thompson não tem muito tempo de tela, e vira uma mera figurante de luxo que consegue unir o emocional ao racional, e fazer parte da identificação do espectador com a resolução daquele problema que parece insolúvel. Sua última cena representa isso, e o motivo de estar lá.
E, por fim, a direção de Jim Sheridan é precisa em suportar uma história que dificilmente seria rodada não como um dramalhão, mas um filme político. Sheridan consegue os dois, e torna simples de entender como violência é um pré-requisito de qualquer estado. Justiça é apenas um desses enfeites que são arrancados da parede conforme a conveniência do momento.
Quando Eli Roth (O Albergue) está envolvido, seja como diretor ou, no caso, produtor e ator, pode esperar cenas de violência gráfica de muito mal gosto. Mas como gosto é algo que não se discute, talvez ver o coração de uma criança ser atirado em uma televisão seja a sua praia. Nesse caso, bem-vindo ao parque de diversões doentio da mente de alguém obcecado em chocar e, se sobrar tempo, tentar contar uma história.
E história existe. Ela é boa, se você ignorar os clichês. Conta uma provável lenda (ahã) em que a origem dos palhaços é demoníaca; ele se alimenta de cinco crianças: uma criança por mês no inverno (?). A roupa desse suposto demônio foi encontrada por um pai (Roth) disposto a se vestir de palhaço para agradar seu filho. Ela estava guardada em um baú, é claro. E depois da festa ele não consegue mais tirar a roupa, é claro.
Acompanhar o desenvolvimento dessa história é nutrir nossa curiosidade mórbida. Vemos a situação piorar a cada passo, e pessoas que são más (ou julgadas más) serão mortas no processo, e as "puras" serão poupadas, embora corram grande risco. No fundo, não há personagens: são todos estereótipos. Inclusive um menino irritante, que tem fotos irritantes espalhados por sua casa, tem colegas jogando video-game online que fazem questão de descrever o quão babaca ele é apenas para em seguida ser a vítima de nossos julgamentos mais primitivos de justiça.
Os efeitos de maquiagem do palhaço são marcantes, e é marcante que um filme decida matar crianças e um cachorro (embora de maneira sutil para uns, e demonizando outros). Porém, mais marcante ainda é essa gana de separar o bem contra o mal. Afinal de contas, crianças chatas merecem morrer. Mas não o filho da gente.
# Spotlight: Segredos Revelados
Caloni, 2016-02-29 cinema movies [up] [copy]Esse é um filme que foca obcecadamente em seus fatos. A ponto de sacrificar seus personagens. E tudo bem. O material de Spotlight é bom o suficiente para funcionar sem qualquer personagem de destaque, muito embora Mark Ruffalo quase consiga algo interessante.
Conta a história da investigação de um jornal local de Boston quando um caso antigo de padres molestadores de crianças é desengavetado pelo recém-chegado editor, o ponderado Marty Baron (Liev Schreiber). Usando para isso uma equipe independente que trabalha em uma sala à parte usando métodos à parte, o chefe do departamento Spotlight, Walter 'Robby' Robinson (Michael Keaton), aciona sua dinâmica equipe à caça desses acontecimentos, descobrindo no processo um sistema mantido sob a luz da autoridade da igreja e os olhos e bocas fechadas de sua comunidade.
Todo filme que desafie as pessoas a repensar a questão da autoridade, e de como ela polui nossas mentes, impedindo-nos de pensar por nós mesmos, é válido. E essa história talvez seja uma das mais tenebrosas que diz respeito às consequências desastrosas da religião -- no caso, da católica cristã -- sobre seus fiéis, jovens ou não. Ela parece tomar lados, mas apenas do lado mais fraco, sendo que até os padres parecem ser vítimas de uma seita desumana e doentia. Ao tornar os padres celibatários e mantê-los como mensageiros de Deus em suas comunidades, o poder de destruição psicológica perante crianças que não conseguem sequer ajuda de seus pais é imenso.
E o filme vai desvendando cada detalhe desse intricado sistema, que pretende antes de tudo proteger a imagem da igreja e evitar mais escândalos, utilizando jornalistas que, como a grande maioria, também foi criada sob a mesma fé. Uma das jornalistas frequentava até há pouco as missas dominicais com sua avó. Um outro nutria um desejo íntimo e inconsciente de, apesar de não praticar mais, pertencer ao mesmo grupo religioso de criança. O objetivo é claro: não separar a opinião do espectador crente do que foi descoberto, mas tentar fazê-lo enxergar o horror das descobertas dessa equipe através do mesmo ponto de vista. E com isso, adquirir o apoio de sua audiência.
É possível sentir a pressão de todos os lados contra o uso da imprensa para "difamar" a comunidade, sendo que difamar no caso é apenas dizer a verdade. Advogados, sacerdotes e a própria imprensa foram colocadas no bolso por décadas. Spotlight consegue fazer tudo isso apenas com o dom do diálogo e muita pouca interpretação. Não há nada de brilhante nisso, exceto pelo seu modus operandi: parece quase que invisível enxergar algum drama nessa história.
É um filme que visualmente não apresenta quase nada, mas que no campo das ideias, é interessante do começo ao fim.