# Crash no Windows Explorer
Caloni, 2016-03-01 [up] [copy]Quem nunca se deparou com um sistema Windows em que o Explorer travasse ou crashasse de vez em quando? O problema com esse tipo de problema (recursividade...) é que ele pode ocorrer por infinitos motivos. Tão infinitos quanto os shell extensions, aquelas DLLs irritantes que são carregadas automaticamente por todo processo explorer.exe, e que portanto podem gerar infinitas maneiras de travar seu shell.
Um que estava me incomodando já há algum tempo era um deadlock que acabava em restart do Explorer (isso é automático no Windows 10). Para verificar o que era, antes configurei a geração de dumps automática para que qualquer novo crash gerasse um arquivo de dump para eu analisá-lo. Só passou algumas horas para ter algo que pudesse trabalhar: um dump pode ser analisado pelo Visual Studio (qualquer versão) ou depuradores como WinDbg (do pacote Debugging Tools for Windows). Como análise exploratório, apenas o Visual Studio é suficiente, pois ele pode exibir coisas como os módulos carregados pelo processo e a pilha de chamadas da thread faltosa.
No caso do dump que eu estava analisando, verifiquei que a thread que gerou o travamento continha uma DLL da NVidia. Essa DLL, de acordo com o AutoRuns, estava cadastrada no registro como um Context Menu Handler para o shell. Depois de desativá-la e iniciar uma nova instância do Explorer foi possível verificar que a DLL não estava mais sendo carregada pelo processo.
E "magicamente" o travamento não aconteceu nos próximos dias =).
# Love - Primeira Temporada
Caloni, 2016-03-01 cinema series [up] [copy]O que significa se relacionar? Por que para algumas pessoas isso funciona tão bem, enquanto para outras é como dirigir um trator esmagando todos os corações pelo caminho?
A nova série da Netflix, Love, busca responder essa questão em um formato que tenta evitar sitcoms como How I Met Your Mother e se aproximar do drama de fato que é se relacionar com outras pessoas. Porém, não deixa de lado o bom humor, além de explorar bem o lado tecnológico dos dias de hoje e criar uma diversidade de etnias e gêneros que torcemos que seja verdade na vida real (nem que seja nesse universo limpinho, sanitizado e semi-rico de Hollywood).
Porém, ele vai um pouco além. Ao criar personagens bons e fofinhos, ele meio que discorre um pouco em como essas pessoas vivem em uma realidade alternativa, onde não é a falta de problemas financeiros que permite a criação de dramas pessoais (como os romances de The Internship), mas muito mais as pessoas realmente doentias, como viciados em drogas e sexo. E para isso apresenta Gillian Jacobs em um papel muito semelhante ao que fez em Community, onde suas expressões de olhos esbugalhados fazem sentido, mas internamente ela parece uma mistura com Jeff Winger (um pesonagem de Community manipulador e narcisista).
O mais interessante, contudo, é observar a naturalidade com que a relação entre Mickey e Gus, o casal principal, é explorada. Se trata apenas de mais um relacionamento entre essas pessoas. Eles não estão sozinhos, e não ficam sozinhos por muito tempo. Nem os personagem em sua volta. Isso não é um drama ou comédia de casais fixos, mas um drama (e uma comédia) sobre como é difícil manter-se como parte de um casal fixo (e "fixo" entenda "por mais de um mês").
O roteiro de Love abusa desse naturalismo. Tanto que nem parece ser um roteiro pensado como estrutura. No fundo a estratégia da Netflix é simplesmente mostrar seus personagens em ação, e eventualmente o espectador irá se apaixonar por eles, querer saber o final da temporada. Funciona. Talvez até bem demais. Há algo de sutil na construção de cada episódio, que evita os exageros enquanto mantém sua plateia empolgada.
# Tudo Vai Ficar Bem
Caloni, 2016-03-01 cinemaqui cinema movies [up] [copy]O diretor Win Wenders (Pina) faz em "Tudo Vai Ficar Bem" um trabalho intimista e sutil em um ritmo que não deve agradar a muitos. Porém, é algo necessário para abordar essa espécie de thriller que evita cair no lugar-comum, pois está mais interessado em explorar seus personagens pela suas psiques do que pelas suas ações.
O tema se desenvolve a partir de um terrível acidente. O filme não tem pressa nenhuma de identificá-lo, assim como seu protagonista. A trilha de Alexandre Desplat incomoda, mas tem que ser assim mesmo. Apesar de tudo ser perfeitamente crível e normal, é necessário que alguém afirme que ainda assim, parece haver algo de errado a todo instante.
E o que está "errado" parece ser Tomas (James Franco), um escritor que atualmente vive uma situação conturbada com sua esposa -- ele quer um livro, ela quer filhos -- e que depois do acidente encontra o momento adequado para sua separação. Quatro meses depois, mais um acontecimento traumático. E um certo padrão parece tomar conta de sua vida. Não é simples de entender, mas é fácil de perceber que o rapaz tem problemas.
Mas a questão não é essa. Se fosse algo que o incomodasse, seria esse o drama. Porém, na posição de escritor, tudo que acontece em volta de Tomas é matéria-prima para seus livros. Como seu editor diz, o paradoxo de ser um escritor é que tudo o que o afeta acaba afetando sua forma de escrever.
Seria fácil rotular o personagem de James Franco como autista, nem que seja um grau quase que indistinguível. Porém, as pessoas em torno do universo de "Tudo Vai Ficar Bem" não ajudam. O pai de Tomas (Patrick Bauchau) critica sua falecida esposa por ter sido entediante demais. A personagem de Charlotte Gainsbourg (elencada incorretamente) vive o inferno na terra criando seu único filho, mas cria uma espécie de simbiose literária com Tomas a partir de suas crenças sobrenaturais. E o jovem Christopher (Robert Naylor) se torna uma versão natural de Tomas, se relacionando com o mundo em que vive de uma maneira no mínimo estranha.
O que o roteiro de Bjørn Olaf Johannessen nos entrega não e nada fácil de acompanhar. O fato de Wenders transformar em uma experiência que lembra um Swimming Pool (François Ozon, 2003) para adultos é o que torna o filme mais palatável, mesmo visualmente. Porém, ainda assim há um esgotamento mental em episódios que vão se espaçando em período de quatro anos, e o título nunca parece fazer jus à sua promessa. São esses filmes que fazem as pessoas não gostarem de "filme de arte" e o espectador mais atento, cansado da mesmice todo final de semana, ficar fascinado pelas possibilidades que o Cinema traz; mesmo que ele não goste tanto assim do resultado final.
# Astrágalo
Caloni, 2016-03-07 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Biografias tendem a ser chatas quando seguem muito à risca a visão literária do autor. Quando se trata de uma autobiografia, esse risco dobra. Portanto, por mais que Astrágalo seja burocrático e arrastado na maioria do tempo, de certa forma é um alívio notar a beleza de suas composições em preto e branco, além de sua estética vazia, embora evocativa de uma época charmosa, ou de uma época quando bandidos se davam ao luxo de serem charmosos.
No entanto, este não é exatamente um representante do gênero noir, onde as sombras escondem algo mais que não conseguimos ver. Tudo é muito cristalino. Criando sua dose de amor instantânea em seus primeiros minutos, quando vemos Julien (Reda Kateb) salvar Albertine (Leïla Bekhti) de sua fuga da prisão (uma cena forte), o amor vai crescendo de forma assimétrica entre eles e entre cortes secos no tempo. A recuperação de Albertine logo traz de volta suas cicatrizes passadas: uma amiga um tanto desonesta que sequer gosta da filha e a parceira do crime que a colocou na prisão.
Baseado no livro da própria Albertine Sarrazin, a diretora Brigitte Sy escolhe mostrar o que teoricamente conseguiria trazer um pouco de reflexão para uma história com poucas virtudes dramáticas, exceto pela desesperança da vida de Albertine. Entregue à própria sorte, logo ela se vê vendendo seu corpo para conseguir seu próprio dinheiro, mas não sem se esquecer de quem lhe deu uma nova vida. Julien poderia muito bem ser um desses carrascos que usam mulheres indefesas para compor um harém, e o filme de certa forma flerta com isso. No entanto, talvez embaçada pela visão de uma bandida apaixonada por outro bandido, a vida narrada pela protagonista carece de fontes confiáveis, soando novelística demais, mesmo com alguns percalços colocados pelo caminho.
Um deles diz respeito ao seu osso quebrado durante a fuga. Um osso pequeno do pé, que irá lhe impedir de andar normalmente pelo resto da vida. Sempre necessitando de um suporte, a metáfora é eficiente: depois de livre novamente, seu salvador se torna sua muleta na Terra. Se livrar dele não é cômodo, nem desejável.
Filmado com enquadramentos deslumbrantes, como um em que vemos apenas uma linha horizontal por onde se move Albetine e dois tempos (seu torso e suas pernas), Astrágalo é uma experiência extenuante mesmo em sua pouco mais de uma hora e meia de duração. O que é curioso, pois muitos de seus momentos poderiam facilmente virar quadros belíssimos de uma França vista através de perfis muito próximos da câmera ou meros objetos de cena. A beleza plástica não consegue substituir a falta de uma trama minimamente interessante.
# Embriagado de Amor
Caloni, 2016-03-07 cinema movies [up] [copy]Paul Thomas Anderson é um diretor peculiar, tanto quanto Sidney Lumet. Ambos fizeram trabalhos com temas variados, mas se entregaram a cada projeto como se cada um deles fosse sua obra-prima. Nenhum dos dois pode ser "acusado" de fazer Cinema autoral (aquele que pelo filme você já sabe quem é o diretor).
Porém, PTA -- esse é o diminutivo do nome do diretor para os íntimos -- tem, sim, sua marca registrada: a expressividade áudio-visual extrapolada. Quando falamos de Magnólia ou Boogie Nights se torna dispensável apontar onde há o exagero narrativo. No entanto, mesmo filmes mais "sóbrios", como Sangue Negro ou O Mestre, possuem, aqui e ali, aquela nota em sustenido e que destoa de todo o resto. destoa no bom sentido. Acho que uma palavra melhor seria "arrisca". PTA não tem medo de arriscar. E é essa característica isolada que, aplicada a diretores talentosos como Anderson, a que mais gera conteúdo novo e provocante na sétima arte.
Com Embriagados de Amor, uma comédia romântica com Adam Sandler, não poderia ser diferente. E só de ouvir as palavras "comédia romântica" e "Adam Sandler" juntas provavelmente o espectador mais atento já deve imaginar do que se trata, baseado nas dezenas de filmes do gênero que Sandler produz com seus amigos todos os anos. No entanto, peço sempre para as pessoas prestarem atenção ao diretor que comanda a obra. Nos enlatados de Sandler, quase sempre o diretor também é um amigo do ator e cujos projetos nunca saíram da mesmice.
Mas essa é uma obra atípica. PTA está no comando, e é por isso que nos primeiros minutos vemos o personagem de Sandler de terno azul, sozinho em um galpão, para logo em seguida testemunhar um carro capotando e um pequeno órgão sendo despejado na rua. É por isso também que a trilha sonora e os aspectos de cena do filme mudam ao gosto da imaginação do protagonista. Esse é um filme que experimenta com o novo, sem dúvida, e muitas vezes talvez sem motivo.
Mas quem se importa se é justificável ou não? Estamos na mente de Adam Sandler como um introvertido meio esquizofrênico que frequentemente tem acessos de raiva causados principalmente pela sua onerosa convivência com as sete irmãs. Mentiroso compulsivo -- já sabemos que é para escapar de situações que se sente desconfortável -- Sandler não demonstra competência nenhuma em atuar, mas por outro lado se mostra uma escolha certeira para o personagem: abobalhado, tropeçando e demonstrando uma limitação em coordenar mais de uma ação ao mesmo tempo.
Outras pessoas tropeçam em Embriagado de Amor, e é isso que está em jogo nesse filme. Há uma realidade alternativa aí esperando para ser desvendada. As cores primárias pintam cada cena, mas é o que está em contra-luz, escuro, que realmente importa. Até assistir esse filme, eu acharia particularmente difícil ver um ator como Sandler protagonizar uma cena de amor realmente emocionante. Agora, depois de ver o labirinto visual que PTA cria para ele quando ele precisa desesperadamente voltar para o apartamento de sua garota, podemos dizer que nunca é tarde para se encontrar o diretor certo.
# Na Mira do Chefe
Caloni, 2016-03-07 cinema movies [up] [copy]Esse filme parece uma coisa, mas é outra. Vendido como uma comédia despretensiosa e potencialmente um pastelão, Na Mira do Chefe é um trabalho de roteiro que brinca com seu universo próprio achando graça em levar a sério as histórias de máfia.
No entanto, ao fazer isso, ele acaba se saindo muito melhor que o esperado. Criando personagens que aos poucos vão nos cativando, seja pelos diálogos pontualmente inspirados, seja pelas atuações convincentes, a narrativa possui a vantagem de nunca revelar ao espectador o que virá em seguida.
Dessa forma, partindo de uma viagem despretensiosa por uma secular e onírica cidade belga em um molde que soa como um panfleto de viagem turística, chegamos em um drama sobre um homem que acidentalmente mata uma criança e é corroído pelo remorso. De quebra, no terceiro ato temos a participação mais que inspirada de um Ralph Fiennes caricato sem desfazer aquele mundo absurdo, mas crível, que fora criado.
Com participações especiais de personagens que vão se acumulando, mas permanecem adicionando à trama principal, esse é um exemplo de como construir uma história original usando como mote um subgênero mais que batido.
# O Tigre e o Dragão: A Espada do Destino
Caloni, 2016-03-09 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Embora pareça ser um simples caça-níqueis, dezesseis anos depois do lançamento da pequena obra-prima de Ang Lee, a produção de "O Tigre e o Dragão: A Espada do Destino" possui uma qualidade acima de um "fan film", e respeita até um certo momento o universo original. Porém, se arrastando em diálogos e expressões sem qualquer trama muito complexa, o filme se torna uma série de pausas até a próxima luta.
A boa notícia é que há algumas lutas que valem a pena ver. Entre as inúmeras, que tentam resgatar diferentes momentos do longa original -- como a "dança de pés", a luta na taverna e uma luta no meio de uma paisagem belíssima -- podemos encontrar aqui e ali alguns momentos interessantes, mas nunca empolgantes. Não há muito o que se empolgar com os fracos e monossilábicos personagens, que não possuem nenhuma história ou passado que valham alguma coisa senão a repetição de dramas -- mais uma vez -- vistos no original.
E se no caso de O Tigre e o Dragão o objetivo era muito mais eternizar os estilos de lutas de artes marciais em um universo onde as pinturas seculares dessa arte fossem levadas ao pé da letra, para isso criando obviamente cenas e sequências de tirar o fôlego, no caso da produção da Netflix, apesar de boa qualidade, há um quê de demonstrar avanços nos efeitos digitais, que como em todo o filme que se esbalda neles, mais uma vez passa vergonha com construções obviamente artificiais, como vilas, montanhas impossivelmente altas e uma pista no gelo naturalmente composta por uma fina camada de neve para que os espadachins pudessem realizar seus malabarismos.
Além disso, a direção de Wood-Ping Yuen é burocrática, e quer transformar cada mudança de cena em um episódio para uma série de TV. Se gabando das construções computadorizadas que carecem de realismo, Wood-Ping faz travelings verticais à exaustão. Para "harmonizar", uma trilha sonora solene a ponto de dar sono no meio de uma luta faz um acompanhamento nada nobre às sequências engessadas da trama.
E se falta alma ao projeto, não importa o quão bem executada é uma luta. Se seu objetivo é apenas narrar um pequeno conto sobre um imperador sanguinário que deseja roubar uma espada lendária, além de no processo também narrar uma pequena lenda envolvendo bebês trocados, todas as cenas de ação são descartáveis e desnecessariamente longas. Nunca há o bom senso dos personagens, e todos eles possuem habilidades sobrenaturais e não fazem questão de torná-las críveis; apenas bonitas.
E bonito por bonito, vale mais a pena rever o conteúdo original, também disponível na Netflix. Lá cada luta possui sua razão de ser, e o objetivo dos mestres não é se gabar de seu conhecimento em lutas marciais, mas utilizá-las com a mais alta sabedoria. Infelizmente, os mestres de A Espada do Destino devem ter sido contratados pelo Circo de Soleil.
# Beasts of No Nation
Caloni, 2016-03-11 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Beasts of No Nation é praticamente um documentário em forma de ficção. E só se trata de uma ficção porque sequer sabemos o país em que vive o pequeno Agu, interpretado por Abraham Attah, intenso e inesquecível. E, se formos ser sinceros, não saber onde se passa a ação é o menor dos detalhes de uma experiência que vai se tornando, assim como Attah, intensa e inesquecível; embora nesse caso infelizmente inesquecível.
Narrando a história do menino do parágrafo acima, o filme se propõe soar genérico sobre vidas ao relento que devem ocorrer muitas e muitas vezes nos países do continente africano. Quando se lê no título que não há nação que hospede essas "bestas selvagens", rapidamente nos lembramos da Somália, que hoje pode figurar entre os países sem um governo centralizado bem definido. Porém, se formos contar os países do continente negro em guerra civil nos últimos anos, a lista pode se estender para Nigéria, Congo, Sudão, Líbia e tantos outros. A questão que o filme coloca vai mais além. Ele fala sobre uma região que não comporta a ideia de país, algo que foi forçado pelo próprio processo de colonização europeia, e como consequência hoje vemos os intermináveis conflitos entre milícias armadas e sanguinárias, financiadas por capital estrangeiro para se apoderar de suas riquezas naturais.
Sim, é clichê, e, sim, é formulaico (e com grandes chances de se revelar falso). Porém, preste atenção em algo menor. Preste atenção em Agu, um ser humano, garoto, que nasceu em um vilarejo e que vive com sua família em paz e harmonia com o pouco que possuem. Agu e seus amigos conseguem se divertir com o esqueleto de uma televisão, tentando vendê-la como a "TV da imaginação", criando programas ao rodar do antiquíssimo botão de troca de canal. No final, acabam trocando por comida com o exército nigeriano. O vilarejo está na iminência de uma invasão, mas isso não impede que a família se divirta em um jantar em família. No fundo, existem duas realidades sendo mostradas aqui: a primeira, de uma vida livre, plena, sem amarras e que se sente prazerosa só de olharmos para seus moradores dançando de olhos fechados. A segunda realidade, a do instinto brutal, violento, assassino e irracional do homem com sede de poder, que organiza exércitos, formais ou não, para conquistar mais território.
Tal qual os conquistadores da Antiguidade, esse é o objetivo desses indivíduos: se tornarem o próximo governo da região. Até chegarem na civilizada cobrança de impostos, terão que partir para métodos mais... diretos. Como assassinatos em massa, estupro, pilhagem. Todos que se colocarem no caminho estão à mercê desse sistema primitivo do mais forte. Existem basicamente duas opções: se juntar a eles ou morrer.
E o destino de Agu, naturalmente, é a primeira opção. Destituído de sua família de maneira brutal, ele se vê na floresta impossibilitado até de conseguir saber o que comer. A direção de Cary Joji Fukunaga entra aí, nos pequenos detalhes que visualmente conseguem explicar mais que diálogos. Quando vemos Agu se encontrar com a milícia comandada pelo eloquente e ardiloso Dike (Emmanuel Affadzi), não precisamos ouvir o garoto, pois seu pensamento é claro: "preciso de ajuda para sobreviver, e essa é a única forma".
Além disso, o roteiro, também de Affadzi, consegue nos transportar para reflexões a respeito dos terríveis eventos que esse menino protagoniza, e assim como Buscapé em Cidade de Deus, ouvimos pontualmente seu pensamento, como um narrador onisciente revivendo sua experiência em tempo real, sempre tendo como base o que Deus estará pensando dele de lá de cima. Suas frases são como tijolos sendo arremessados ao espectador, que não consegue sequer conceber fazer parte daquele pesadelo, quanto mais sendo uma criança.
Agu sendo o elo mais fraco entre aqueles seres humanos lutando como animais em busca de sobrevivência, Dike é o elo mais forte daquele grupo, e mesmo ele empalidece frente ao seu comandante. E este mesmo é apenas um mandante de forças externas, algo bem óbvio e que mais uma vez a direção (e o roteiro) fazem questão de ressaltar isso sem um diálogo expositivo sequer. O próprio Dike se sente traído, e isso é vital para que entendamos as reais recompensas de agir feito um animal, e como tudo é desconstruído sem o disparo de uma bala.
Beasts of No Nation, salvo um ou outro momento manipulativo, é um exemplar raro da cinematografia naturalista, que já deu origem a obras-primas como Pixote (Hector Babenco, 1981). É intenso visualmente ao mesmo tempo que tece uma trama tão comum quanto bestial nos dias de hoje. Mais uma vez: infelizmente.
# Demi-soeur
Caloni, 2016-03-13 cinema movies [up] [copy]Essa comédia francesa com certeza segue o molde do estereótipo... "comédia francesa". Fala sobre amor em família, personagens cativantes e transformações de caráter.
Porém, se engana quem acha que conhece o enredo logo que este inicia. Revelando surpresas curiosas a cada nova fase de sua história, a chegada da deficiente mental Nénette (Josiane Balasko) à vida de seu até então desconhecido irmão Paul (Michel Blanc) é irregular e fascinante de se acompanhar, pois pequenos detalhes serão usados a seu favor (como o fato de Nénette ter uma tartaruga de estimação, e Paul ter o hobby de colecionar animais marinhos).
Ainda assim, o roteiro algumas vezes preguiçoso de Josiane Balasko, que o adaptou de Franck Le Joseph e tomou as rédeas da direção, entrega soluções fáceis para criar um caminho quase indolor em direção à redenção de Paul. Tudo bem que Nénette tenha conhecido uma banda de heavy metal e açucarado o café de Paul com ecstasy, e isso seja obviamente o fio condutor de um novo relacionamento entre os dois que começou errado. Mas não está tudo bem quando o terceiro ato parte para decisões extremas para rapidamente resolver a questão.
Com pelo menos uma interpretação digna de ser assistida de Josiane Balasko, pela possibilidade de enxergar em um deficiente mental uma figura não tão realista, mas carinhosa e não totalmente inútil como muitas pessoas acreditam ser, Demi-soeur é mais uma crítica à ambição mesquinha e uma ode à vida simples focada nos relacionamentos.
# Hell and Back
Caloni, 2016-03-13 cinema movies [up] [copy]Uma comédia escrachada nem sempre é lançar um monte de palavrões e piadas a respeito de sexo, gays, estupro, negros, pênis e vagina. Se você não sabe o que está fazendo, corre grande risco de gerar o efeito contrário: a indiferença, ou o desprazer. A maior prova disso recentemente é essa animação, que consegue errar na história, no tom, na lógica, na narrativa e na direção.
Tudo gira em torno de uma história simples (até demais): um parque de diversões que ameaça fechar por falta de clientes e um livro do demônio com poderes mágicos que leva os mortais Remy, Augie e Curt para as profundezas do inferno. Os dois primeiros vão para resgatar o terceiro porque são os heróis da história. Ao encontrar a demônia (ou deusa?) Deema (Mila Kunis) partem em busca do único mortal que conseguiu ir e voltar do inferno: Orfeu. Enquanto isso, o Diabo (Bob Odenkirk, da série Better Call Saul) tenta desesperadamente conquistar a sedutora (?) anja Barb (Susan Sarandon).
Feito em stop motion, como animação não há desculpas: ela é rasa, com vários momentos confusos em que o movimento dos personagens e do cenário se tornam pedestres demais para entender o que está acontecendo.
Dirigido porcamente por Tom Gianas e Ross Shuman (esse último responsável por Frango Robô, o que pelo menos explica o humor), detalhes até interessantes do inferno, como um bonde aéreo que se move por engrenagens que movimentam braços, são mostrados de passagem e sem qualquer interesse. Não há nada mais irritante em uma direção do que o desleixo de um universo mais interessante do que o que estamos vendo.
# House of Cards - Primeira Temporada
Caloni, 2016-03-13 cinema series [up] [copy]Quanto mais penso que House of Cards não teria por que figurar entre as melhores séries que já vi (até o momento), pois "não tem nada de mais", mais fico convencido que tem. A despeito das demonstrações de poder e ambição de Francis Underwood (o personagem de Kevin Spacey) que divertem o público em geral, as entrelinhas que sutilmente se formam entre os personagens sobriamente idealizados por Beau Willimon, cujo livro "Farragut North" foi brilhantemente adaptado por George Clooney em Tudo pelo Poder, ajudam a construir na série um clima tão realista que torna-se assustador imaginar que aqueles acontecimentos podem de fato ter ocorrido ou estar ocorrendo com outros nomes em outros lugares, mas que mantém a mesma premissa narrativa de depender do poder emanado pelo Estado para que as marionetes dancem em torno do palco que se forma.
O que me leva a considerar essa dança tão fascinante é que não é uma série unicamente sobre política e seu jogo de influências, mas uma história que basicamente envolve pessoas e o que elas fariam em determinadas situações. Conforme nos acostumamos com as regras do sistema político, algo mais intrincado emerge: o poder do networking manipulado. Pior: conforme nos acostumamos com o poder do networking, fica difícil não concordar com as decisões racionais dos personagens, por mais anti-éticos e controversos que sejam.
Kevin Spacey está, como de costume, um gênio. Seu tom de fala impassivo e tranquilo deixa transparecer que está no jogo há muito tempo. Suas ambições deixam claro que não chegou na posição atual por acaso. Todos os movimentos de House of Cards parecem demonstrar que, entre os "chefões", nada é por acaso (e sugere em seus minutos finais que existam outros chefões empenhados no jogo).
E é esse "nada por acaso" que torna cada minuto de House of Cards, pois mais parado que seja, sempre interessante.
# House of Cards - Segunda Temporada
Caloni, 2016-03-13 cinema series [up] [copy]Já sabemos que Frank Underwood (Kevin Spacey) é capaz de literalmente tudo por mais poder. Se isso não fica claro no desfecho trágico do final da primeira temporada, com certeza o início da segunda não deixará a menor dúvida da mente doentia e obstinada do agora vice-presidente.
Criando uma metáfora extremamente eficiente entre uma batalha da guerra civil americana e a obsessão de Underwook pela presidência, os símbolos e os desfechos cada vez mais irônicos dos personagens secundários povoam o imaginário do espectador de maneira sutil, mas permanente. Já não é mais possível pensar claramente a respeito da estratégia do nosso anti-herói sem se deixar ofuscar pelo rastro de ressentimento, ódio e mágoas deixados pelo caminho. Porém, a ironia da série está justamente em apontar, ainda que sutilmente, que todas aquelas pessoas envolvidas, em maior ou menor grau, estão tão obcecadas pelo jogo de poder quanto o personagem de Kevin Spacey. Se da primeira vez havia um herói por quem torcer (Peter Russo), agora ambos os lados do tabuleiro são culpados (ainda que possamos fazer uma curiosa comparação entre Russo e o desfecho trágico de outro personagem).
E se falo em guerra civil e tabuleiro no mesmo parágrafo é porque tudo se assemelha a um jogo de xadrez nessa história: fios narrativos aparentemente soltos entre os episódios criam uma trama extremamente coesa conforme as consequências começam a bater à porta, sendo exatamente uma das maiores virtudes dessa temporada conseguir manter a sutileza e ao mesmo tempo nos lembrar de personagens e fatos que aparecem apenas no início da história (ou em pequenos intervalos) para voltar nas horas finais. (E digo isso com "conhecimento de causa", pois demorei meses para concluir a série, sem querer acabar tudo de uma vez.) Tudo isso, enfim, são pistas milimetricamente posicionadas por um trabalho conjunto de roteiro e direção absurdamente magnéticos. O trabalho de nove diretores e quinze roteiristas é mover as peças nesse tabuleiro desenhado com uma fotografia sóbria e duramente realista sobre os usos e desusos do poder na democracia.
A cereja do bolo obviamente são os dois episódios finais, quando o diretor James Foley volta com tudo e consegue tornar um acontecimento digno de uma catarse em um ritual fúnebre e previsto. Claro que "previsto" é que vamos descobrindo bem aos poucos, pois isso tiraria as surpresas e os riscos envolvidos. No entanto, quando Frank fala sobre "diminuir riscos" em uma última conversa com Tusk a respeito de seus métodos manipuladores das finanças conseguimos pescar que na verdade isso é o que o próprio Underwood consegue fazer na esfera política: com todas as peças já tendo sido colocadas em seus melhores lugares tempos atrás, basta executar o plano serenamente e observar o próximo passo a seguir. Depois de assistir a duas temporadas de House of Cards, só sendo bem mau-caráter para acreditar nas boas intenções dos governantes de um Estado. Qualquer um deles.
# House of Cards - Terceira Temporada
Caloni, 2016-03-13 cinema series [up] [copy]Até a sua segunda temporada, House of Cards se beneficiava dos movimentos estratégicos de Frank Underwood (Kevin Spacey) para chegar ao topo e assim mover a história. Agora que ele ocupa o cargo máximo da nação mais poderosa do mundo sobra pouco espaço para subir, mas um longo caminho para descer. A recuperação de Doug Stamper (Michael Kelly) e sua genialidade resumida em pouquíssimos movimentos faz reflexo com a fraqueza de Underwood em um cargo público, como tão bem define as incessantes entrevistas com a imprensa e os ataques dos jornalistas, que parecem ter surgido de um panfleto comunista. Eles agora são poeticamente patrióticos. Faz até enganar por alguns momentos que há pessoas bem-intencionadas em torno desse lamaçal que ironicamente se chama Casa Branca.
Curioso como os criadores da série -- notadamente Beau Willimon e seu principal diretor James Foley -- depois de arrancarem nossa inocência confiam que vão nos fazer acreditar nesse "bem" etéreo de novo. Não vão. Não quando os melhores momentos da temporada são justamente os que concluem que esse negócio de ética e moral em política é uma grande bobagem. A dor de um presidente em transição e com um casamento desmoronando é bobagem maior ainda, pois não serve para que esse presidente com os dias contados evolua. Ou, mesmo que sirva de lição, de nada adianta se não ganhar as eleições. Qual a vantagem de se tornar um ser humano melhor sem o cargo mais poderoso do planeta? Ou seja: voltamos no bom e velho cinismo da série, talvez a única parte que reste do antes divertido Kevin Spacey, que anda compartilhando demais com seu público.
No entanto, enquanto essa rasa história -- pelo menos para cerca de 12 horas de série -- não se desenvolve, temos que aturar, assim como os seus desafetos, o projeto America Works sendo mencionado uma infinidade de vezes, e mais uma infinidade de situações bem menos ambiciosas do que estávamos acostumados a ver. O passeio de Claire (Robin Wright) pela ONU, por exemplo, é um exercício de futilidade -- talvez porque a ONU assim o seja -- que quase faz cair no sono não fosse as participações especiais de Petrov (Lars Mikkelsen), o sócia e caricatura de Vladimir Putin, presidente da Rússia. Petrov é mais do que uma caricatura, porém. Ele indica -- se já não ficou óbvio -- que o próprio Francis é uma caricatura, onde o mais óbvio é George Bush (pai) -- e Claire na escola infantil são ecos do ataque terrorista. Porém, poderíamos estar falando de qualquer presidente americano que abusou do poder -- praticamente todos que fizeram algo, e não marionetes do Raymond Tusk da vez.
De qualquer forma, fica claro que House of Cards não quer deixar a oportunidade de colocar "Francis presidente" em todos os clichês que os fãs imaginaram, o que não deixa de ser decepcionante exatamente porque se tratam de cartas marcadas -- perdoem o trocadilho. Dessa forma, precisamos ver o presidente em negociações com o presidente russo, em uma crise no Oriente Médio, enfiando um projeto pessoal goela abaixo do Congresso, os preparativos para o próximo pior furacão de todos os tempos, etc, etc, etc. Tudo é muito burocrático, os personagens coadjuvantes não conseguem substituir Spacey (com exceção de um Michael Kelly enigmático) e o próprio Spacey está ocupado demais dirigindo um país que quer para si. Seu maior inimigo se torna ele mesmo, e isso não chega nem perto da complexidade dos roteiros anteriores.
Mesmo com toda essa preguiça intelectual e falta de ambição que daria nos nervos da própria família Underwood, as falas de Spacey continuam afiadas e certeiras (às vezes em mais de um alvo). A sequência do debate presidencial -- incluindo os dois episódios antes dele de fato começar -- tem seus bons momentos, ainda que artificial em seu todo. Porém, esse ano o prêmio vai mesmo para Michael Kelly e a direção crua de James Foley em seu último episódio que com a ajuda do roteiro de Beau Willimon criam uma rima que quase faz apagar todas aquelas horas monótonas em companhia do presidente norte-americano. A única boa notícia foi saber que Doug Stamper está de volta no jogo.
# House of Cards - Quarta Temporada
Caloni, 2016-03-13 cinema series [up] [copy]A temporada 4 de House of Cards é o que esperaria ver de um Francis Underwood presidente, algo que foi adiado pela pálida temporada anterior, que ainda que tenha seus momentos gloriosos, falha em sua premissa principal: causar tensão no dia-a-dia presidencial. E essa tensão está amplamente disponível agora, se espalhando por todas as vias políticas. Obviamente ela afeta sempre indiretamente Frank, mas a série se inicia com Lucas Goodwin na prisão (Sebastian Arcelus), que assim como Doug Stamper (Michael Kelly) terá uma curva trágica que desencadeará a trama principal.
Porém, dessa vez na ribalta (e essa palavra é citada muitas e muitas vezes) também se apresenta uma nova Claire Underwood, decidida a não continuar sob a luz mais fraca. Através de uma série de eventos que brincam razoavelmente bem com todo o esquema de jogo de influências e mudanças de estratégia no meio do vôo, a primeira metade da temporada desencadeia eficientemente para um dos momentos e um dos episódios mais fortes dramaticamente na trama, quando um evento arrebatador pode ser confundido como conspiração, medida desesperada ou simplesmente uma coincidência tão incrível que ela se torna espontânea, orgânica e com certeza um dos melhores momentos no roteiro de toda a série, unindo todas as pontas de seus personagens de uma vez.
E é justamente esse acontecimento que altera de uma vez a relação entre Claire e Frank, ou pelo menos a torna mais clara para nós, espectadores. Decisões importantes e estratégias são reveladas antes de acontecerem, pois agora há algo maior e mais irracional para se lidar: a opinião pública. E se há algo inverossímil na série, é considerar que essa opinião seja tão embasada e sensível a pequenos escândalos. Bom, talvez um pouco mais que aqui no Brasil.
No entanto, o que a torna infinitamente mais crível é assumir que todos seus personagens são corruptos, em menor ou maior grau, pois todos estão dispostos a realizar ações que irão lhes garantir uma ou outra vantagem. Por isso até personagens menores como Seth Grayson se revelam apenas como mais do mesmo, e ironicamente é por isso que considero Doug Stamper como o personagem mais íntegro de toda a série.
Até porque, convenhamos, integridade não combina com realidade. Heather Dunbar (Elizabeth Marvel), apesar de flertar com a possibilidade de ser íntegra até os ossos -- e potencialmente ser a queridinha da esquerda, alguém por quem torcer -- vira aos poucos uma figura medíocre que nada consegue por sua falta de flexibilidade moral. E é isso o que torna tão fascinante a figura de Will Conway (Joel Kinnaman), um novo rival que ataca de queridinhos da América e que pertence ao mesmo jogo político que aqui nos trouxe Fernando Collor. Jovem e disposto a usar as mídias sociais ostensivamente ao seu favor, chegando ao cúmulo de embolsar o criador de um saite de buscas famoso -- ainda que não seja uma acusação, uma espetada interessante no poder de empresas como Google. Em contrapartida, isso traz à tona questões como o poder da NSA, que não possui um saite de buscas, mas algo muito mais poderoso: rastrear todos os americanos na internet e nas linhas telefônicas.
Ganhando pontos também por nos trazer um roteiro que não se priva de criar caminhos falsos, expectativas invertidas e tramas desconexas que de repente se tornam relevantes, House of Cards S04 é tudo que sua primeira temporada nos trouxe, e isso já é muita coisa. Infelizmente, ainda se parece com mais do mesmo, embora isso já seja por si só fascinante de acompanhar.
# Violação de Privacidade
Caloni, 2016-03-13 cinema movies [up] [copy]Robin Williams devia ter se aposentado de suas atuações em comédia. Porém, assistindo a filmes como Insônia, Retratos de uma Obsessão e este Violação de Privacidade, se torna até compreensível que o ator resolva dedicar metade do seu tempo para filmes açucarados para equilibrar esse seu lado sombrio e penetrante.
Aqui ele faz o papel de Alan Hakman, um Editor, mas não no sentido que você conhece. Estamos em um futuro ou realidade alternativa onde algumas pessoas (1 em 20) escolhem implantar uma espécie de gravador de áudio e vídeo em seus filhos antes do nascimento. Após sua morte, um editor tem acesso a todas as centenas de milhares de horas de suas vidas e realiza um filme baseado nos "melhores momentos", ou melhor dizendo, os melhores momentos que a família está interessada em ver refletida na tela durante sua exibição (chamada de Rememorização).
Obviamente a família irá ignorar todos os momentos que na verdade gostariam de esquecer sobre o defunto, e é isso o que torna o personagem de Robin Williams tão trágico. Amaldiçoado desde sua infância com a visão de um menino que acabara de conhecer despencando em um poço por causa de sua ousadia em arriscar sua vida, Hackman é o que ele mesmo se denomina de "devorador de pecados", uma figura mitológica que expia sua culpa absorvendo a culpa de outras pessoas. Não é preciso mostrar muita coisa da vida das pessoas que Hackman homenageia. Assim que ele abre um arquivo, o sistema (chamado de Guilhotina) realiza uma seleção e um catálogo por categorias, incluindo família, profissão, hobbies, masturbação, violência. De fato, não é preciso entender muito dentro do filme para perceber que todas as pessoas, no decorrer de suas vidas, terão algo a se arrepender, e que gostariam que ninguém nunca soubesse. Hackman, em contraponto, quer mergulhar nesse mundo sombrio, revendo os piores momentos das pessoas, como a tentar se redimir por comparação.
A direção e o roteiro de Omar Naim se esbaldam em cima de uma ideia não tão profunda, complexa ou inquietante. Se enxergando como um Minority Report, o filme perde um pouco de sua credibilidade em momentos mais tensos que são indevidamente forçados por Naim, como a visão de Hackman cercado de centenas de imagens, ou uma perseguição no cemitério onde um tiro inicia o playback de um dos túmulos. Além disso, detalhes como o formato em madeira da Guilhotina colocam Violação de Privacidade fora do espectro temporal, sugerindo ser um velho futurista, mas sem um motivo muito bem definido para tal. O mesmo se pode dizer da trilha sonora, que grita aos quatro ventos ser um thriller inesquecível e impactante. E de fato o é, mas em termos. Talvez a melhor figura técnica do filme seja mesmo a fotografia, sombria e magnética com seus tons pastéis, como se o sol estivesse eternamente se pondo ou oculto, em uma espécie de alvorada ou pesadelo ocorrendo múltiplas vezes.
Violação de Privacidade é a prova do talento nato de Williams em contemplar sua própria persona obsessiva e inquietante. O filme talvez careça de uma polida, mas certamente explora bem suas ideias. Depois de seu final, talvez o ator tenha que fazer mas uma vez uma comédia em que coloca um nariz vermelho em sua cara. Só assim para recuperar a sanidade outra vez.
# Chatô - O Rei do Brasil
Caloni, 2016-03-15 cinemaqui cinema movies [up] [copy]O filme "Chatô - O Rei do Brasil", entre paralisações e processos na justiça, levou 20 anos para ser concluído. Uma vez lançado, pode ser facilmente resumido em uma palavra: bagunça. O ator televisivo Guilherme Fontes faz aqui sua estreia na direção e realiza um primeiro trabalho que já pode ser comparado a de Arnaldo Jabor em seu último: A Suprema Felicidade. Em ambos os filmes, há um misto entre cenas desconexas tentando extrair significado do nada, como se apenas a justaposição de diferentes tempos na vida do magnata Assis Chateaubriand e sua relação com figuras históricas -- entre elas Getúlio Vargas -- fosse rivalizar com a construção de personagem vista em "Cidadão Kane"; não funciona. No máximo, consegue soar no máximo com o mais semelhante "Plano 9 do Espaço Sideral".
O roteiro escrito a seis mãos foi baseado no romance de Fernando Morais e fornece diálogos pseudo-grandiosos que carecem de sutileza, dignos da figuraça de Chateaubriand, um paraibano que se orgulhava de suas origens. Deve ser por isso que a palavra Brasil é dita tantas vezes, e a análise rasteira e pedestre do povo brasileiro, um adjunto. O patriotismo -- inexistente na época, pois fora fabricado pelos militares várias décadas depois -- é venerado como parte do sangue da elite, mesmo que eles estivessem coroando um coronel sulista ao posto máximo de uma retumbante república de bananas. Isso se torna particularmente ridículo quando a personagem de Andrea Beltrão declara preferir ir a Paris do que à Paraíba para minutos depois a vermos dizer com um respeito solene a respeito do futuro presidente do país.
Porém, a atuação inerte de Beltrão empalidece frente às caricaturas de Paulo Betti e Marco Ricca, fazendo respectivamente Getúlio Vargas e o próprio Chatô. O primeiro força seu sotaque para tentar esconder seus diálogos vergonhosos, mas o segundo os diz com uma segurança típica dos ignorantes. E é aí que podemos detectar talvez uma premissa completamente avessa à figura de um intelectual como Chateaubriand. Reconhecendo-o como um bruto que deu sorte, o filme nos mostra magicamente um atendente de uma loja de tecidos virar dono de um jornal, para em seguida se enveredar pela rádio e TV. Não é possível entender se o objetivo era criticá-lo por fazer parte de uma elite que tanto atacava através da mídia que controlava ou se é pura xenofobia de suas origens avessas ao estereótipo de magnata da imprensa.
Para piorar a situação, a direção de Guilherme Fontes transforma a experiência em uma minissérie ou uma novela com ritmo irregular. São pouquíssimos os momentos em que uma cena dá continuidade à outra -- não no tempo ou no espaço, necessariamente: na lógica da narrativa. E é justamente essa a abordagem de conteúdos para TV. Nunca entregando uma trama que consiga prender a atenção do espectador, a TV confia no espetáculo das atuações (no caso de uma novela ou série) e na variedade dos seus temas. Aqui o tema é um só, e ele é repetido de maneira desregular e à exaustão, sendo que nem no início nem no desenvolvimento sabemos qual é o tema.
Se tornando aos poucos um passatempo cada vez menos atraente e com um ou outro momento interessante, "Chatô - O Rei do Brasil" é um projeto que poderia muito bem continuar engavetado para sempre, pois não consegue sequer esboçar um diálogo crítico a respeito da figura história que pretende retratar. Quem dirá se tornar um filme de referência de uma época.
# O Tigre e o Dragão
Caloni, 2016-03-15 cinema movies [up] [copy]Muitos fãs de artes marciais torceram o nariz na época em que O Tigre e o Dragão foi lançado. Na visão deles, o fato das pessoas "voarem" tirava toda a realidade da história. Muitos perderam a noção de que sempre existe uma metamorfose entre a história e o seu narrador. Quando falamos de uma história milenar, são tantas gerações no caminho, que torna-se fácil achar tudo exagerado e absurdo.
O que o diretor Ang Lee fez com o material do romance de Du Lu Wang adaptado por três roteiristas foi empoderar o romance fabuloso por trás das histórias do povo da Manchúria com todos os elementos presentes tanto no romance original quanto nas lendas chinesas. Porém, o filme vai além, e engrandece a beleza dessas lendas em cenários deslumbrantes, reconstruindo boa parte de suas pinturas. Além disso, conta com um romance que trabalha questões filosóficas e épicas de forma tão intensa com seus personagens que se torna difícil não ficar absorvido pela história. Para finalizar, apresenta uma série de lutas que ficarão conhecidas eternamente pela emoção que evocam.
É particularmente fascinante como as cores se equilibram durante a luz do sol e da lua, e como personagens cruéis por natureza sempre se vestem de negro (como a bruxa Jade Fox), outros sábios se vestem de maneira simplista e sempre com tons claros (Yu Shu Lien e Li Mu Bai), enquanto outros apresentam um misto (Jen Yu e Lo 'Dark Cloud'), não por acaso os mais jovens da trama. Na luta, o mesmo padrão se apresenta, e vemos os mais tempestuosos realizando manobras ágeis, porém impensadas, contrabalanceando com toda a humildade e serenidade dos que conhecem esse caminho como ninguém. O momento mais icônico das lutas talvez nem seja a impressionante luta das "meninas" no salão de armas, mas o Mestre Li Mu Bai recitando pequenas frases que tentam dissuadir uma jovem utilizando um galho como sua espada.
E se contarmos pelas virtudes técnicas, não é preciso dizer nada. Basta comparar os efeitos visuais desse filme de 2000 com sua continuação produzida pela Netflix, dezesseis anos depois. A continuação é sofrível em sua computação barata e desleixada, enquanto o original se assemelha muito mais a um trabalho tão dedicado que, assim como "2001 - Uma Odisseia no Espaço" (1968), deve figurar no Cinema entre os filmes que envelheceram muito bem, apesar de abusarem de efeitos.
Mas nada disso seria relevante se o coração do filme não tivesse sido moldado em torno de um objetivo: tornar a arte marcial algo não apenas bonito, não apenas artístico e não apenas luta. Aqui os movimentos dos espadachins é a pura expressão de sua existência. É a essência dos sábios que treinaram pela vida inteira que traz beleza às lutas, e não a luta em si. É a história por trás da luta que merece ser celebrada, e seus personagens, intensos em sua essência. O filme é uma lenda viva que estabelece como regra nada abaixo do impecável. É a própria arte marcial influenciando a sétima arte pela sua obstinação pela perfeição.
# Vinho para Roubar
Caloni, 2016-03-18 cinema movies [up] [copy]Esse filme argentino segue a cartilha do gênero "Onze Homens e um Segredo" e "Missão Impossível". Porém, com baixo orçamento, apresenta um romance para preencher as lacunas dos efeitos visuais, além de personagens agradáveis, mas quase invisíveis. Os filmes argentinos, bons ou ruins, nunca pecam pela falta de charme. No entanto, ao usar a abordagem hollywoodiana, assume o risco de perder até isso.
E esse risco se encontra no roteiro, na direção e na trilha sonora. O roteiro tenta soar inteligente com mil reviravoltas, mas apresenta todos seus desafios como pequenos percalços, feito uma novela das sete. Além disso, seus personagens, cativantes no início, vão aos poucos perdendo a simpatia. A direção se engana em apresentar uma Mendoza igualmente pálida, pois fecha sua lente para espaços fechados ou com uma largura de tela insuficiente para apresentar a cidade como um outro personagem -- algo implícito na produção, encomendada para apresentar a região de vinhos para o resto do mundo. A trilha sonora, por fim, insiste no mesmo tom, todo o tempo. Isso cansa fácil e faz perder o ritmo várias vezes, pela sua monotonia instaurada pela repetição. Além do mais, a música é muito mais enlatada do que uma criação feita para o filme.
Por fim, para os conhecedores e apreciadores de vinhos, mesmo os mais leigos, a trama não poderia soar mais artificial. Qualquer um habituado com o processo de envelhecimento do vinho sabe que ele deve ser feito em um ambiente seco de temperatura controlada e no máximo por uma ou duas décadas. Peças de museu existem, claro, mas não são bebidas: são guardadas, eternamente.
Aliás, foi minha última visita à cidade que me fez ver o filme, que estreou na Netflix. O motorista do passeio guiado pelas vinícolas fez uma ponta nesse filme e deu os detalhes da produção (não o encontrei, uma pena). Se o objetivo era apresentar Mendoza através de uma trama chamativa que envolvesse o mundo do vinho, essa degustação ficou só na vontade.
# Heróis de Ressaca (The World's End)
Caloni, 2016-03-19 cinema movies [up] [copy]Uma comédia britânica que não se resume a boas risadas. Aliás, talvez você nem encontre boas risadas, dependendo do seu senso de humor. A questão é que há muita falta de timing cômico na maioria das cenas, tornando a atuação exagerada de Simon Pegg simplesmente exagerada.
No entanto, há uma história aí. Se trata de um homem que não conseguiu tocar sua vida depois do colégio, se limitando a definir a memorável noite em que ele e seus quatro amigos saíram pela cidadezinha onde moravam para fazer o circuito dos 12 bares, sendo que o último se chama Fim do Mundo. Após a narração épica de Gary, o vemos em um círculo de pessoas, fazendo o testemunho de algum grupo de apoio, e já com mais de 40 anos.
Obviamente ele precisa de ajuda, e vai buscar terapia tentando reunir seus amigos de outrora para finalizar o que havia começado quando ainda adolescente. Meio que realizando um pequeno milagre (explicável) ao realmente reunir todos para essa "aventura", o que se passa depois faz par com Um Drink no Inferno.
O que parecia incômodo se torna bizarro, digno de um terror B de 50 anos atrás. Porém, há uma interessante questão sobre o conflito do politicamente correto, e a padronização de pessoas, lugares, comportamentos. Isso é a evolução vista de longe (talvez até de outra galáxia), mas permanece uma dúvida: isso é liberdade? O que abre outra questão: o que é liberdade?
Nem todos os atores estão confortáveis em seus papéis. Pegg obviamente está. Seu parceiro eterno, interpretado em sua versão quarentona por Nick Frost, faz o que podemos chamar de arco, e é bem-humorado o suficiente para funcionar.
Realizando em seu terceiro ato uma espécie de debate intergaláctico entre a tal da liberdade e do progresso, a síntese do filme está em todas as idiotices que Gary e seus amigos realizam depois dos quarenta. Eles estão certos? Gary está certo? Ou já é certo se é livre? Quem diria encontrar questões filosóficas em um filme de bebedeira. Bom, como todo mundo que já encheu a cara em um bar, sabe que questões filosóficas emergem da caneca depois de algumas viradas.
# Mais Forte Que Bombas
Caloni, 2016-03-19 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Mais Forte Que Bombas consegue pegar o contexto mais imediatista dos conflitos armados, onde pessoas morrem e sofrem todos os dias, e através de uma fotógrafa que vive esse dia-a-dia trazer a questão de outros tipos de conflitos, mais internos e intrínsecos da convivência entre seres humanos. Se torna uma tarefa difícil considerar a depressão um problema tão urgente quanto soldados atirando em mulheres e crianças, mas a dedicação do filme em elaborar uma intrincada rede de sentimentos, navegando por diferentes períodos na vida dos seus personagens, favorece imensamente essa conexão entre sofrimento interno e externo.
E é assim que a primeira sequência, mostrando o nascimento do bebê de um casal jovem, se transforma em poucos minutos em um exemplo de desencontro que revela mais do que deveria. É no final de um abraço inesperado, e o que ele irá significar no futuro da relação da família recém-formada, que se mantém uma narrativa cheia de movimentos sutis e o vai-e-vem do tempo vai fazendo cada vez mais sentido, pois vamos entendendo melhor cada personagem e suas relações.
O roteiro, composto por Eskil Vogt e Joachim Trier, este também assinando a direção, estabelece pequenos fragmentos de conversa entre a fotógrafa Erin (Rachel Brosnahan), seu marido Gene (Gabriel Byrne), seus filhos Jonah (Jesse Eisenberg) e Conrad (Devin Druid). Essas conversas estão espalhadas no tempo pois são guiadas pelo trauma e pelo impacto da morte de Erin em um acidente de carro. O filme dedica um bom tempo com o jovem problemático Conrad, pois esse tempo é precioso justamente para que entendamos que ele não é problemático. Seu arco romântico é o que melhor define essa percepção realista de Conrad.
Porém, em torno dele, giram impressões diferentes dos outros dois homens na família que passam por momentos diferentes em seus relacionamentos amorosos. Jonah está desesperado, premeditando que sua esposa o irá deixar. Experimentando talvez aquela ansiedade de pai de primeira viagem, ele foge de seu relacionamento buscando amparo tanto em uma ex-namorada quanto na casa de seu pai, Gene. Este, por sua vez, passa por um momento de luto em que ele precisa manter seus dois filhos no radar, mas não evita se relacionar com uma professora do colégio onde leciona e onde seu filho Conrad estuda.
A traição é um tema bastante explorado no longa, mas não da forma convencional. Estamos diante de seres particularmente maduros (ou discretos) a respeito de seus próprios defeitos, e tentam conviver com eles da melhor forma possível. Como um drama intimista, o filme realiza melhor suas peripécias ao revelar seus detalhes da trama casualmente. É dessa forma que um personagem pergunta ao outro se ele o traía, ou até descobrimos que uma determinada amante sabe da existência de sua esposa.
São as lacunas, ou estilhaços, que se formam no tempo e no espaço entre esses personagens, que "Mais Forte Que Bombas" prevalece como uma oportunidade de assistir um filme sem um conflito suficientemente forte para nos manter tensos, mas, ainda assim, com personagens suficientemente interessantes para que a falta de um conflito maior se torne quase que irrelevante.
# Sem Limites
Caloni, 2016-03-19 cinema movies [up] [copy]Bradley Cooper protagoniza este filme de Neil Burger, provavelmente o melhor trabalho até aqui do diretor que já fez O Ilusionista, mas também Divergente.
A história, adaptada pelo igualmente habituado a trabalhos medíocres Leslie Dixon, é baseada no romance de Alan Glynn, e talvez por isso suas ideias sejam interessantes se levadas pela abordagem realista que o filme todo o tempo tenta trazer.
Cooper é Eddie Morra, um escritor frustrado em crise de inspiração, que engole um pílula de uma nova droga que promete trazer concentração e acesso ao cérebro inimagináveis. A partir daí, sua vida muda e rapidamente o escritor frustrado tem um livro em 4 dias e começa a operar loucamente na bolsa de valores, atiçando a "curiosidade" de velhos veteranos nesse jogo, como Carl Van Loon (Robert De Niro), que faz a vez Gordon Gecko (Wall Street).
O filme tenta explicar muita coisa visualmente, o que é ótimo. Vemos praticamente o ponto de vista de Eddie, que é o narrador onisciente. Porém, as narrações são recheadas de obviedades e redundância ao que acabamos de ver, o que torna a experiência meio enfadonha. As melhores partes, sem dúvidas, são quando, por relapso ou proposital, não sabemos direito a relação entre os usuários dessa droga.
E outra coisa que força demais a lógica dessa atmosfera de conspiração é quando percebemos que nenhum desses gênios instantâneos foi capaz de reproduzir a fórmula, embalados na ganância do dinheiro fácil. Talvez seja apenas a visão do filme de que apenas os gananciosos usariam essa droga, ou conseguiriam obtê-la.
# De Volta para o Futuro
Caloni, 2016-03-20 cinema movies [up] [copy]Quem nunca gostaria de conhecer seus pais na época em que se conheceram? Partindo dessa premissa, e espalhando cuidadosamente pistas e detalhes da vida do jovem Marty McFly (Michael J. Fox) e sua família, assim como dos habitantes da cidade onde moram, Robert Zemeckis e Bob Gale conseguem a partir de uma história simples envolver completamente o espectador com o destino de seu protagonista. Além disso, as referências entre as épocas são um show à parte, e boa parte do mérito da imersão da viagem no tempo também fica por conta do igualmente cuidadoso trabalho de direção de arte. Mais imersão que essa, poucos filmes no Cinema conseguem ter.
O que Zemeckis e Gale fazem com o roteiro, contudo, é digno de aplausos. Dirigindo uma comédia, o timing cômico sempre é importante. Porém, mais do que isso, são as piadas. E é inegável que as piadas em De Volta para o Futuro são construídas, em sua maioria, através do próprio contexto em que acontecem. Por isso a sacada genial do antes ator Ronald Reagan se tornar presidente dos EUA, ou até do atendente negro da lanchonete em 1955 se tornar prefeito em 1985. A lógica da viagem no tempo é simplista, como muitos acusaram, por exemplo, O Efeito Borboleta, pois as consequências que os atos no passado geram nos futuros pais de Marty é óbvia e previsível do ponto de vista do espectador. Porém, não se pode esquecer que estamos em uma comédia, não em um drama, o que faz toda a diferença no tom usado, que torna tudo mais leve e perdoável.
Curiosamente, as atuações de Michael J. Fox e Christopher Loyd são um show à parte, mas a mais convincente, pois depende disso para seu arco final, é a de Crispin Glover como George McFly, um nerd naquela época que não conseguia se livrar de seu bullie eterno, o valentão, exagerado e idiota Biff Tannen (Thomas F. Wilson).
O ritmo do filme é lento o suficiente para degustarmos cada detalhe da história, mas rápido o suficiente para dar o tom de urgência que as ações dos viajantes no tempo necessitam. No futuro o ritmo irá acelerar drasticamente em Parte II, e novamente relaxar em Parte III. Um conjunto de filmes que merece ser visto em sequência.
# De Volta para o Futuro II
Caloni, 2016-03-20 cinema movies [up] [copy]Quatro anos depois do sucesso do filme sobre viagem no tempo, o diretor Robert Semeckis e seu companheiro de roteirização Bob Gale planejam uma continuação em duas partes, o que criaria um desfecho de uma trilogia em dois passos. Para isso, dois roteiros foram produzidos e filmados praticamente ao mesmo tempo.
O segundo filme, como um reflexo do primeiro, se volta para problemas que ocorrerão na família McFly 30 anos no futuro, o que implica em revisitarmos os mesmos conceitos do filme original com a grande diferença de estarmos visualizando um futuro possível para os idos anos 80, o que dá total liberdade de criação para a direção de arte, que amplia o universo do filme anterior e enriquece o atual com cores vibrantes e ideias e referências que pulam de todo lugar. É possível assistir o filme diversas vezes e ainda assim não encontrar todas elas.
A trilha sonora do mestre Alan Silvestri, agora já consagrada, recebe um tratamento alternativo, mas mantendo o tema tão vivo na mente dos fãs. A história, a princípio idêntica à primeira, se abre como em um leque e possibilidades em quatro dimensões, e é como se estivéssemos acompanhando uma história que acontece não em três lugares distintos, mas em três tempos, nessa que é a grande virtude do roteiro, que justifica sua aparente complexidade central.
Esse é o mais complexo dos três filmes, e pode se tornar corrido por boa parte do tempo. Ele passa num instante, o que prova o conceito de Einstein do tempo ser relativo. Também comprova as teorias audio-visuais no Cinema, que comprovam que uma edição eficaz consegue montar uma bagunça no roteiro tão bem composta como este Parte II.
# De Volta para o Futuro III
Caloni, 2016-03-20 cinema movies [up] [copy]Encerrando a trilogia da viagem no tempo, o diretor-roteirista Robert Zemeckis vai audaciosamente 100 anos atrás, no velho oeste, para buscar a aventura e a curva dramática de um personagem até então esquecido, mas vital para o sucesso da franquia: o cientista pseudo-maluco Dr. Brown (Christopher Lloyd). Mais audaciosamente ainda, fecha com chave de ouro uma das trilogias mais bem sucedidas do Cinema ao fazer referência à própria Sétima Arte ao brincar com figuras como Clint Eastwood. Alan Silvestri adapta sua música-tema e sua orquestração para a época, e as tomadas tomam um aspecto completamente inusitado do que poderia se esperar de um filme de ficção científica.
Talvez o último não seja mais tão científico, mas não há como negar que a ciência está ali, na figura de Emmett Brown. No entanto, mais do que uma aspiração materialista subentendido no primeiro, há aqui uma visão mais espiritual e filosófica do que significa o tempo, e como o destino consegue ser influenciado não apenas por uma engenhoca inventada por um cientista maluco, mas por escolhas que fazemos todos os dias. Não há como saber o que nos espera o futuro, pois a cada dia ele está sendo completamente reescrito.
O romance entre Brown e Clara Clayton é instantaneamente encantador. Não à toa, ela é uma professora do interior fascinada por ciência e Julio Verne, assim como Doc. Brown, como convenientemente descobrimos nesse episódio. Marty vira um personagem coadjuvante, embora vital, para selar para sempre no tempo essa amizade que já dura três filmes e incessantes viagens no tempo, isso no espaço de algumas horas (se considerarmos os ganchos entre cada filme, tudo se resumiu a uma tarde no tempo de 1985).
A presença novamente espirituosa de Thomas F. Wilson como Buford "Cachorro Louco" Tannen dá o tom do conflito mais uma vez. É preciso ressaltar a importância de um vilão tão caricato e adorável em todos os três filmes. Sem ele as viagens espaço-temporais de Doc Brown e Marty não seriam as mesmas.
Rodado ao mesmo tempo que Parte II, esse é um filme que mais uma vez se destaca, comprovando que é possível realizar três filmes sobre viagem no tempo, cada um com sua temática e ritmo, usando os mesmos bem construídos personagens. Ele se transforma aos poucos em uma despedida e homenagem ao universo que tanto contribuiu para a Sétima Arte. Adoraria que fossem feitos mais sequências, mas temo que a época da inocência e do humor ingênuo já esteja em algum lugar do passado.
# Rush: No Limite da Emoção
Caloni, 2016-03-20 cinema movies [up] [copy]Rush não é um filme apenas sobre a rivalidade de dois pilotos de corrida, mas sobre dois estilos de vida. Melhor ainda, é sobre uma rivalidade que de fato existiu na vida real, entre o britânico James Hunt (Chris Hemsworth) e o austríaco Niki Lauda (Daniel Brühl). O primeiro é o ápice do estereótipo dos pilotos de Fórmula 1: sexo, drogas e fama. O segundo é seu oposto: um profissional das pistas. Hunt tem os cabelos compridos e em seu macacão está escrito "sexo: o café-da-manhã dos campeões". Lauda analisa o risco de não sair vivo de uma corrida e estabelece para si o limite de 20%.
Ron Howard talvez não fosse o diretor certo para o filme. Responsável por trabalhos como Uma Mente Brilhante, toda a farofa possível de se realizar em corridas será realizado por ele. Cortes ritmados, trilha sonora solene, e a visão de perfil e de close de seus astros olhando para o horizonte, a próxima curva que talvez nunca alcancem. Além do mais, o filme contém um homem cuja virtude se mede pela quantidade de mulheres com quem já esteve na cama, algo um pouco distante da imaginação do diretor, que prefere mostrar singelamente três pares de pés.
No entanto, justiça seja feita, sua convicção de qual é o protagonista é certeira, e vital para o andamento da história. É o homem que vive nas sombras, o indesejado e que mantém uma rivalidade crescente que desafia seus limites humanos. Daniel Brühl vive um Lauda absolutamente crível, cujas falas possuem tanto a lógica irrefutável dos alemães (apesar dele não ser alemão) quanto um misto de inveja e auto-reflexão, comparando-se ao despreocupado, instável e fascinante James Hunt. Ao mesmo tempo, Hemsworth utiliza sua carisma da maneira certa, realizando o mesmo trajeto de seu rival, mas à sua maneira. Quando ele resolve dar uma lição em um jornalista atrevido, parte dos sentimentos de nobreza que desconfiávamos de Hunt até aquele momento foram confirmados. Não se trata de esmagar o inimigo, mas de cultivar uma rivalidade que impulsiona um ao outro.
As cenas das corridas exibem um senso estético interessante, mas nunca profundo. Com cortes rápidos e utilizando as narrações televisivas para informar o espectador a todo o momento o que está acontecendo (algo que é difícil de acompanhar até mesmo assistindo a uma corrida real), metade é apenas burocrático, e a segunda metade contém mais conteúdo graças aos acontecimentos que ocorreram anteriormente dentro, mas principalmente, fora da pista.
Recriando com satisfação uma rivalidade épica da Fórmula 1 entre dois campeões igualmente épicos, Rush é um filme que sobrevive como um ótimo entretenimento e drama apesar de uma direção megalomaníaca.
# Albert Nobbs
Caloni, 2016-03-27 cinema movies [up] [copy]Não é uma discussão de gêneros, mas da estreiteza da alma humana. Albert Nobbs se torna um personagem de tragédia anunciada, mas nunca deixa de ser fascinante através da pele de uma Glenn Close obstinada em entregar uma figura que teve uma vida tão desesperada, e por tanto tempo, que se acostumou em viver presa em sua jaula do dia-a-dia, enquanto ajunta pacientemente centavos e xelins para uma dia viver a vida que lhe fora negada desde a infância.
Disfarçada de homem por toda a vida, Albert almeja conseguir se erguer com seus próprios pés, e assim não depender da estrutura da sociedade em que vive, e que certamente lhe colocaria na sarjeta se revelasse quem é, como uma mulher indigna de pertencer a um hotel cuja dona demonstra de todas as formas a pobreza material e espiritual que vem com o inevitável corolário: a mesquinhez como ferramenta de sobrevivência.
Do seu lado, a simplesmente bela e jovem Mia Wasikowska tem uma vida mais "fácil", não valorizando o bem que possui desde o nascimento. Por conta disso, o desperdiça com um jovem aventureiro (Aaron Taylor-Johnson), que é colocado como vítima das circunstâncias. Essa é a parte da luxúria no filme, mais um pecado capital para harmonizar esse universo carente de virtudes.
A própria Nobbs é um "sujeito" mesquinho e incapaz de se socializar. Não é preciso dizer, ele também é visto como vítima das circunstâncias. Ele quantifica em xelins seu investimento para cortejar uma garota afim de colocar seu plano em prática. E ele simplesmente não consegue fazer a pergunta direta para a única pessoa que tem dado certo nesse mundo: como você conseguiu?
Ingênua por pertencer a um mundo tão fechado que lhe priva de exibir seus próprios seios, mas acidentalmente apreciada como um garçom que possui uma sensibilidade acima da média dos glutões que habita o hotel, incluindo o beberrão amante da dona, que a trai com outra serviçal. Nobbs sabe quais as flores certas para determinada hóspede, e não levanta suspeitas. Não se sabe se isso é um detalhe fantasioso do filme ou a atuação visceral de Close.
A direção de Rodrigo García (do péssimo Passageiros) não faz jus ao conteúdo. Com uma direção de arte que lembra seriados televisivos britânicos como Call The Midwife, pela ausência de recursos e tratamento mais realistas, ou por cenários excessivamente limpos para uma época que muitos morriam de febre, a direção também peca pela simplicidade e leveza que perturba. Porém, a calma com que conduz a história e apresenta visualmente seus personagens e os delírios de Nobbs quase compensam a modesta produção.
Com duas horas de duração, a atuação hipnótica de Glenn Close faz tudo passar como um episódio de seriado, mas com uma profundidade que poucos ousam ter. Os últimos momentos são os melhores, pois não entregam um desfecho fácil -- e impossível -- e estendem o tema, dando um gostinho de quero mais que se despede com graça e leveza. A feminilidade estava no ar o tempo todo.
# Winter on Fire: Ukraine''s Fight for Freedom
Caloni, 2016-03-27 cinema movies [up] [copy]Um hino à liberdade em três atos. No primeiro ato, a repulsa à traição do líder máximo da nação com uma manifestação espontânea e apartidária. No segundo ato, um cenário de conflitos que são dominados pelo patriotismo e organização cooperativa. No terceiro ato, o estado, esse monstro disforme que mata tudo que toca, revela sua última faceta, e transforma o hino de liberdade em um banho de sangue.
A tomada da Praça da Independência em Kiev, capital da Ucrânia, por civis em posse de seus direitos de protestar, foi a melhor forma de se manifestar através da ação a teórica auto-determinação de um povo. Independente desde 1991 da Rússia Soviética, foi a chegada ao poder de um presidente-fantoche, aliado aos interesses russos de continuar submetendo os habitantes da Ucrânia aos desejos da mãe-russa, e sua recusa em assinar o tratado de livre comércio com a União Europeia, que deu origem ao estopim necessário para uma série de movimentos civis pró-liberdade. Sim, o objetivo claro e conciso dessas pessoas era simplesmente se verem livres da influência de um mundo que se provou avesso à liberdade e dignidade humanas, e marchar em direção ao mundo civilizado, o mundo do comércio pacífico entre as pessoas, o mundo da única chance do ser humano de se tornar algo a mais do que um animal submetido ao sacrifício: o capitalismo.
No entanto, entre o desejo e sua concretização haviam barricadas, e soldados armados e treinados, dispostos a ferir e até matar pessoas. Sua motivação? Não se pode explicar como humana, mas apenas como animais contratados por um líder que se mostrou um tirano sanguinário em uma questão de meses. Note bem: se "mostrou", não se "transformou", pois na verdade já era. Essa é a natureza do estado, ou pelo menos a motivação mais primitiva: subjugar pessoas pelo uso da força. A retirada de indivíduos de seu livre-arbítrio. O presidente-fantoche era apenas o tirano da vez, que teve o azar de ter que tirar sua máscara para defender seu bem mais precioso: o poder sobre a liberdade de milhões de indivíduos, e todas as recompensar que veem junto disso.
O diretor Evgeny Afineevsky e o roteirista Den Tolmor realizam um trabalho que caminha passo-a-passo com a contemporaneidade do século 21 e seus celulares, milhares de câmeras informais espalhadas em torno de qualquer acontecimento ao redor do mundo. Através de uma narrativa que escolhe personagens importantes, ou significativos, para a história que quer contar, podemos facilmente navegar em meio ao caos dos dias que se passam na praça e nos conflitos, pois há sempre uma linha de raciocínio, a unir presente e passado dessas pessoas, para o imediatismo dos conflitos. Quando vemos uma dessas pessoas ser entrevistada, o que ela está dizendo nos remete diretamente à ação registrada por alguns desses milhares de celulares ou câmeras. A facilidade de acompanhar a ação dá impressão de ter sido uma edição fácil, mas na verdade isso é fruto de um trabalho afiadíssimo do montador Will Znidaric, que consegue dar uma fluidez invejável a um documentário, fazendo-o se comparar em intensidade aos melhores filmes de ação e drama, com o adendo significativo de tudo aqui filmado estar acontecendo de verdade.
A paixão do povo ucraniano pode ser vista nesse documentário em uma revolução dos dias atuais e filmado como nos dias atuais. Graças à internet e à tecnologia, a vida acontece muito mais rápido. Não leremos nos livros de história a respeito da Revolução Ucraniana, mas a testemunhamos através dos celulares de indivíduos, registrando em tempo real, em cores, com alta definição e altíssima intensidade, a crueldade de um sistema político centralizando que, democrático ou não, deixa de servir ao seu povo quando os reais motivos de sua existência não mais estão suficientemente alinhados. Que isso sirva de lição para qualquer país que queira se tornar sério neste século. E que, como Cinema, este exemplo se torne o "Homem com uma Câmera na Mão" deste século, com a diferença desta câmera estar fragmentada em milhões de testemunhos.
# Para Minha Amada Morta
Caloni, 2016-03-29 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Para Minha Amada Morta é um filme que começa como drama, mas logo se revela um thriller psicológico envolvente. Não se trata muito de ação, mas de possibilidades. E dentro das possibilidades, a de fazer o mal é onde o filme impera, evocando em seus momentos sempre a questão: o que ele irá fazer em seguida?
A história começa com um pai e um filho. Ambos estão de luto pela perda da esposa/mãe. O marido, se recompondo, encontra vídeos caseiros da mulher, desde sua infância até uma descoberta incômoda: a traição.
No entanto, não é o ato de trair que incomoda Fernando (Fernando Alves Pinto), embora este seja o guia para o espectador, mas uma frase que sua esposa diz no vídeo para seu amante: "você foi a melhor coisa que já me aconteceu na vida".
Disposto a adentrar na vida do sujeito, Fernando o rastreia facilmente de seu trabalho. Fotógrafo da polícia, descobre que o ex-amante (Lourinelson Vladmir) de sua mulher fora preso, mas está hoje livre e com uma vida pacata e religiosa com mulher e filhas. Ele está alugando a pequena casa dos fundos, e é aí que Fernando irá começar a ser uma presença física para o sujeito.
Disposto a explorar os sentimentos de Fernando conforme ele interage com a recatada família, tanto a edição de som e a trilha sonora, quanto os enquadramentos e a movimentação da câmera do diretor, exploram a mesma coisa: o desconforto, a claustrofobia, a metáfora do maligno. Fernando vai aos poucos se descaracterizando como ser humano frente ao espectador, mas nunca deixa de ter razão. Ele está (ou sempre foi) psicótico, mas o roteiro não o torna um monstro, mas um observador do cinismo e da hipocrisia da sociedade e da religião.
A câmera, sempre com uma profundidade rasíssima, só utiliza o ponto de vista de Fernando, enquanto seu desafeto e familiares se posicionam em um fundo sem foco. Esse é o nível do ódio e desorientação que Fernando e o espectador vivenciam.
A direção de Aly Muritiba -- que também escreve o roteiro -- mantém tudo sob controle, e talvez esse seja o pecadilho do filme, que prefere não ousar, mas apenas conjecturar. No entanto, como se pode testemunhar, apenas o "ele pode fazer" já é incômodo o suficiente para ganhar a total atenção de quem assiste. Um feito e tanto em um filme com poucos acontecimentos impactantes.
# Pee-wee's Big Holiday
Caloni, 2016-03-29 cinema movies [up] [copy]Uma experiência lúdica que infelizmente se entrega ao televisivo. Pee-wee Herman já é um personagem conhecido, um misto cômico de Bob Esponja e Mr. Bean que não consegue desempenhar bem nenhuma dessas personas (e se pudesse, seria uma simples cópia) e o resultado é muitas vezes o inverso, tal qual aquele palhaço que vimos na infância e nos apavorou por noites seguidas em nossos piores pesadelos.
O que torna Bob Esponja divertido são as piadas com fundo do mar, que flerta inocentemente com a visão adulta da criança dentro de nós. Mr. Bean é uma crítica ácida à arrogância do britânico estereotipado. Pee-wee não consegue ser nem tão inocente quanto Bob Esponja e nem tão digno de pena quanto o atrapalhado personagem de Rowan Atkinson.
O filme se trata de um road movie em que Pe-wee sai pela primeira vez de sua cidadezinha pacata e previsível. O rapaz chega a criar uma maquete da cidade e na sua saída um senhor atualiza o número de habitantes sempre que passa pela fronteira.
Seu destino é a oposta Nova York, cosmopolita e lar de Joe Manganiello, com quem fez uma amizade instantânea quando ambos descobriram que possuem várias coisas em comum, incluindo um doce chamado "barrilzinho doce".
Pee-Wee pode ser doce e inocente. Esse não é o problema. O problema é quando o filme se trata como doce, inocente e infantil. Infantil demais. Não chega a entreter uma criança, e dificilmente irá ganhar as graças de um adulto.
As personagens que desfilam são episódicas, passageiras e tão improváveis quanto Pee-Wee, mas mais uma vez, isso não é um problema. O problema é que elas são estereotipadas, previsíveis e enfadonhas exatamente como a cidade em que Pee-Wee vive, tornando sua aventura uma simples extensão de seu quintal.
# Sinfonia da Necrópole
Caloni, 2016-03-30 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Esse é o segundo musical brasileiro que estreia recentemente nos cinemas. O primeiro, Amor em Sampa, tropeça na falta de jeito nacional com trilha sonora. A boa notícia é que Sinfonia da Necrópole não só se sai bem melhor nesse quesito, como possui uma coleção de músicas inspiradas sobre o tema: o além-vida.
A história de passa em um cemitério, com um aprendiz de coveiro como protagonista, o Deodato (Eduardo Gomes). Convidado pelo tio já experiente, Deodato é sensível demais para o trabalho, algo representado no filme pelos seus constantes desmaios. O timing cômico dessas cenas é péssimo.
Curiosamente, o timing dos números musicais funciona muito melhor. Cantado pelos próprios atores, em um modelo naturalista (embora dublado em estúdio), o pecado dessas cenas é nunca conseguir trabalhar o mise-en-scene (a disposição dos elementos na tela), nem o enquadramento. Chega a ser frustrante, pois diante das possibilidades que túmulos, jazigos, flores e corredores que um cemitério como o usado para as filmagens possui, o diretor sempre nos entrega monótonos planos gerais à altura dos atores.
Quando a prática Jaqueline (Luciana Paes), uma agente funerária que chega para modernizar o cemitério, movendo alguns jazigos de lugar para construir o equivalente aos apartamentos cada vez menores de hoje em dia, Deodato é escolhido como seu ajudante, e instantaneamente rola uma química mais que forçada entre os dois.
E apesar desses pesares, Sinfonia da Necrópole acerta, acredite ou não, em toda sua crítica velada (trocadilho não-intencional) ao modo de vida moderno, e ao rebuscar sua história com números musicais imaginados por Deodato, torna tudo mais interessante e mais florido (mais uma vez, trocadilho não-intencional). E quando a questão ética (ou talvez religiosa) faz com que os próprios mortos realizem sua canção, o filme chega próximo de se tornar algo mais do que um episódio inspirado em um especial de humor na TV.
Porém, ainda que cozinhado em banho-maria todo o tempo, ele é capaz de despertar a simpatia por sua leveza em tratar o tema da morte. Nem que seja por piadas como "onde Judas bateu as botas" ou "esse assunto não é da nossa ossada".
É capaz que essas piadas tenham me influenciado a fazer dois trocadilhos em apenas um parágrafo, embora nenhum dos dois seja intencional. E talvez esse seja o problema com "Sinfonia". Ele consegue ser muito bom em alguns momentos, e engraçado em outros, mas torna tudo muito não-intencional.
# Martírio
Caloni, 2016-03-31 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Martyrs, como todo terror que se preza, possui uma história bem simples. O que o torna envolvente é a sua forma de representar a insanidade humana, seja através da religião ou de uma ideologia qualquer que utilize o ser humano como objeto de sacrifício.
Nesse sentido, ele é bem universal, o que, pelo menos em teoria, descartaria a necessidade desse remake norte-americano. Não vi o original, mas me parece que o único motivo de refilmar a produção francesa é a velha alergia que os americanos têm de legenda.
Não existem grandes heróis ou heroínas no filme, mas apenas vítimas e vilões, o que é de se admirar. Vemos no início a jovem Lucie (Troian Bellisario, da série Pretty Little Liars) conseguir se livrar de amarras e sair correndo para longe de um lugar que parece ter sido seu cativeiro. Ela se torna, então, moradora de um orfanato, onde encontra sua melhor amiga, Anna (Bailey Noble). Lucie aos poucos se abre para a amiga, e revela que recebe a visita constante de monstros.
Dez anos se passam. As jovens cresceram, e a história dá início a uma reviravolta particularmente inspirada, onde a dúvida se estamos presenciando um filme sobre a loucura humana ou sobre o sobrenatural é o pêndulo que se torna particularmente interessante de ver em movimento, mesmo que intuitivamente já saibamos a resposta (ou pelo menos a resposta que melhor se encaixaria no contexto da história).
No entanto, a descoberta da ante-sala do inferno se torna o ponto alto do longa, onde a partir daí não há pudores na dor e sofrimento alheio. Muito parece gratuito e desnecessário, e o roteiro, embora bem construído, dá seus deslizes em saídas fáceis e explicações gratuitas (embora tente amarrar com alguma lógica).
Desinteressado em florear muito seus motivos, Martyrs simplesmente é o que é. Não há melhor conspiração que a sua ausência e não há pior maldade do que a possível em um mundo onde já vivemos. Os simbolismos envolvidos na explicação são ótimos por dispensarem qualquer ideia mirabolante ou gancho espiritual.
Sobre a direção dos irmãos Goetz, fica difícil não citar o uso de uma profundidade de campo reduzida, onde quase nada do cenário, ou personagens secundários, é possível ver. Esse artifício foi utilizado pelo vencedor do Oscar esse ano de filme estrangeiro, O Filho de Saul, por motivos semelhantes, além de um quê de esconder o objeto do medo sem precisar colocá-lo atrás da porta. E funciona razoavelmente bem em conseguir esconder também parte do gore que é desnecessário, e só diretores como Eli Roth fariam questão de mostrar.
Mesmo assim, se você não é muito fã de violência gráfica extrema, haverá um ou dois momentos propícios para virar os olhos. Nada muito exagerado. É que o psicológico de Martyrs pega pesado. E, com um pouco de atenção, o filosófico também poderá pegar você de jeito.