# Shaun, o Carneiro: O Filme
Caloni, 2015-06-01 <cinema> <movies> [up] [copy]Apesar de eficiente por oito anos em pequenos episódios de sete minutos, a série dos estúdios Aardman nunca se aventurou em um longa-metragem sobre um carneiro muito esperto, um cachorro e fazendeiro que lembram versões agrícolas de Wallace e Gromit, e um bando de ovelhas que esbanjam charme e bom humor. O resultado não é apenas um longo episódio como a série televisiva, mas um filme que se aproveita de homenagens e referências muitas antigas sobre o Cinema e o próprio universo sempre criativo desses personagens, onde o fato de serem miniaturas manipuladas em stop motion nunca é um empecilho para criar as mais hilárias sequências.
Dirigido pelo roteirista Mark Burton e com a ajuda do estreante Richard Starzak, o filme se aproveita da dupla original, Justin Fletcher e John Sparkes, para interpretar Shaun e o Fazendeiro (que não tem um nome). A relação do trio carneiro, cachorro e fazendeiro é de longa data, e vemos uma foto empoeirada e descolorida de uma época bucólica e divertida. A rotina do dia-a-dia, no entanto, faz com que Shaun se desgaste, o que o faz bolar um plano para quebrar aquele ciclo interminável de acorda, levanta, e vai dormir. Seguindo a mesma estrutura de um episódio, mas com tempo o suficiente para explorar mais, o plano de Shaun parece que tem tudo para falhar quando o Fazendeiro vai parar na cidade grande, bate a cabeça e não se lembra mais quem é, se transformando em um famoso cabelereiro no processo.
O fato do filme ser quase que inteiramente mudo, pois nenhum dos personagens fala senão grunhidos incompreensíveis, remete diretamente à epoca do Cinema mudo. Conseguimos detectar um pouco de Buster Keaton e suas atrapalhadas quando o trailer do Fazendeiro sai desgovernado na fazenda e vai parar na cidade (para surpresa dos seus habitantes). Da mesma forma, o jogo de transposições de Keaton e até mesmo o jogo de cintura de Charles Chaplin ganham uma revisão em uma animação infantil quando, por exemplo, as ovelhas se disfarçam de outdoor no terminal de ônibus.
Assim como na série e nas produções do estúdio, os personagens possuem funções maiores que eles mesmos, pois servem de metáfora para a vida real. É por isso que o famoso com um penteado diferente acaba virando sensação, mesmo que inspirado no costume do Fazendeiro de tosar suas ovelhas. Ou as cores frias da cidade se sobrepõem ao sol sempre presente da vida no campo.
Mas Shaun, o Carneiro: O Filme brilha mesmo é em suas referências cinematográficas e suas "trucagens" a la comédia dos anos 20. Até mesmo Silêncio dos Inocentes acaba sendo referenciado na sequência da prisão de animais. Não é demais lembrar que em inglês este filme se chama Silent of the Lambs; e "lamb" é ovelha em inglês.
Enfim, sendo visto como um capítulo estendido da série ou como um filme com formato próprio que se aproveita da estrutura da obra original, Shaun Carneiro nunca decepciona, pois consegue obter o máximo de um formato batido, previsível e até monótono em obras semelhantes, como o fraquíssimo Pinguins de Madagascar. Entre os dois, opte pelo mais criativo.
# O Universo no Olhar
Caloni, 2015-06-03 <cinema> <movies> [up] [copy]I Origins é sutil e honesto o suficiente para gostarmos dele apesar de nossas convicções religiosas ou científicas. Ele não tenta em nenhum momento te obrigar a enxergar o mundo através de uma visão determinante do nosso destino como seres dotados de consciência, mas brinca com isso o tempo todo, o que é saudável e instigante. E mesmo lidando com uma questão delicada, controversa e complexa como a vida pós-morte, não se priva de desenvolver seus personagens de forma que eles participem do processo de descoberta como seres humanos, e não simples criações unidimensionais para cumprir um papel.
Segundo filme de ficção escrito e dirigido por Mike Cahill (o primeiro é A Outra Terra), que também trabalha com efeitos visuais e edição, a história acompanha o cientista Ian (Michael Pitt) através de uma pesquisa cujo objetivo é de uma vez por todas calar a boca de parte da comunidade religiosa (como se fosse possível) que acredita que a Teoria da Evolução está errada, e que usa como "evidência" dessa crença a complexidade inerente do olho humano. Com a ajuda de sua "quase invisível mas determinada" assistente, Karen (Brit Marling), a pesquisa busca percorrer todo o caminho evolutivo entre a primeira espécie de vida a detectar luz até a magnitude dos nossos olhos, que são únicos por pessoa e já estão sendo usados até como método de identificação. No processo de catalogar olhos, porém, Ian conhece e se apaixona por Sofi (Astrid Bergès-Frisbey), uma modelo que, acreditando como muitos que os olhos são a janela da alma e em reencarnação, tenta sempre enxergar a realidade à sua volta por uma lente mística, além de tentar abrir os olhos de Ian para a possibilidade de existir algo além do que a ciência até agora descobriu.
Sem pressa para desenvolver seu enredo, o que é vital para um acontecimento marcante e a segunda metade da projeção, I Origins dedica boa parte do seu tempo, por exemplo, na caça de Ian em busca de Sofi após perdê-la de vista, ou na dinâmica no laboratório entre ele e Karen, e como ela toma as rédeas da pesquisa com uma ideia inovadora. De certa forma, Ian é o contraponto de dois extremos fortes: duas mulheres que parecem representar a nossa própria dualidade de crença entre o mais provável e o que gostaríamos que fosse verdade. E como eu disse no início do texto, o filme nunca tenta nos convencer de nada, o que talvez seja a parte mais bela de seu roteiro. A história passeia por possibilidades e nunca faz pouco caso de seus personagens, sejam eles voltados para a ciência ou o esoterismo. Pelo contrário: ao tentar unir os dois, cria dualidades em seu discurso que nos deixa cada vez mais à vontade para aceitarmos novas ideias. Outro filme que aborda essa dualidade, o magnífico Contato, pode até ser "acusado", por comparação, em ferir sua imparcialidade no final climático, enquanto o filme de Mike Cahill caminha entre pedras de diferentes cores para percorrer um lago da maneira mais elegante possível.
E por falar em elegante, conseguindo obter algumas das imagens mais belas através dos cenários e paisagens mais intrigantes, a fotografia de Markus Förderer acerta em cheio ao mostrar de uma maneira indireta ao espectador quanta beleza os nossos olhos conseguem captar e o nosso cérebro interpretar, conseguindo no processo abrir o horizonte de pensamentos a respeito do que é realidade e, caso ela fosse além do que sabemos, como uma extensão de nossa própria visão. Não à toa, a segunda metade do filme se passa na Índia, onde há infinitas possibilidades de fotografar o exótico e místico através até mesmo de novas cores, e mesmo diante de tanta miséria extrai o belo. Enquanto isso, a trilha sonora de Will Bates e Phil Mossman evita comentar demais, fazendo uma rima com essa economia de opiniões que permeia todo o filme.
No final, se há algo de conclusivo a respeito do tema é que nunca podemos manter a mente fechada, mesmo que não acreditemos em nada. O truque de usar uma coincidência inacreditável no início da história envolvendo o número 11 pode até servir como "evidência" dentro do filme para a explicação sóbria que muitos espectadores darão para a cena final. Eu, particularmente, não acho tão relevante assim procurar pela "resposta certa" dentro do filme. Há uma espécie de beleza escondida em não tentar estragar um aparente paradoxo: quando a falta de dados justifica algo que pode estar além deles mesmos. Em outras palavras, não adianta fechar os olhos para a realidade, pois ela continuará existindo.
# Ernest and Célestine
Caloni, 2015-06-04 <cinema> <movies> [up] [copy]É um desenho de 2012, indicado ao Oscar de 2014, que estreou na Netflix esse mês (2015). Falado em francês e dirigido por três pessoas, o filme parece possuir um maior poder de marketing do que de contar uma história diferente do que o velho clichê "eles vivem em mundos diferentes". Contudo, é bem desenhado, mantendo suas virtudes em seu toque artístico.
A rata, Celestine, por algum motivo imagina um urso seu amigo e o desenha. Ela gosta de desenhar, apesar de ser criada na sociedade de ratos onde vive para coletar dentes de pequenos ursos. Os dentes viram os dois dentes da frente dos ratos, sem os quais eles falam estranho e nem os próprios ratos entendem (apesar de sempre haver algum chato no grupo que afirma estar entendendo). Isso é engraçadinho.
O urso, Ernest, acorda da hibernação morrendo de fome, mas não tem dinheiro para comprar comida. Ele é músico, mas ninguém lhe dá valor. Perseguido pela polícia por vagabundear, acaba conhecendo sem querer Celestine e ambos viram amigos inseparáveis. Isso é sentimental.
O casal de ursos, donos de uma doçaria e uma "loja de dentes", realizam um mercado perfeito: de um lado os jovens ursos compram e comem doces ao final da aula (a escola fica do lado da doçaria), e assim perdem os dentes mais rapidamente, e por isso precisam ir à loja de dentes conseguir mais. Como eles conseguem tantos dentes não é muito bem explicado, mas dá a entender que os mesmos dentes que os ursinhos perdem são usados para os ursos adultos. Isso é de uma lógica infantil, mas estamos falando mesmo de um desenho infantil, em todos os seus detalhes, e por mais que ele tente permear o campo das ideias, no máximo vira uma apologia às ideias francesas sobre economia, não muito raro resumidas, incompletas e tendenciosas.
Como um desenho para crianças, o traço do filme segue a mesma lógica dos desenhos de Celestine, que vai melhorando com o tempo e que "surge" primeiro de um esboço em um papel branco. Contendo em sua lógica visual os traços de personalidade tanto da ratinha -- agitada -- quanto do urso -- lento e desengonçado --, o momento mais inspirado do longa é a perseguição da massa de policiais de ambos os mundos. Eu poderia dizer que a lógica do julgamento duplo também é interessante, mas não é. Maniqueísta ao máximo, resolve uma situação da forma mais preguiçosa possível, típico das animações em série da TV.
Com uma didática e moral "certinhas", permeada de politicamente correto e traços curiosos o suficiente para expressarmos um "aha", Ernest and Celestine é a típica aventura de Sessão da Tarde, em que não há nada para fazer e nada a esperar. Aproveite e faça umas pipocas ou, se estiver frio e/ou chovendo, bolinhos de chuva. Só não coloque muito açúcar.
# Logs em serviços (e outras coisas)
Caloni, 2015-06-05 <computer> [up] [copy]Já uso logs há muito tempo. Me lembro muito bem que quando programava em BASIC o "passou por aqui" já era útil. Depois de fazer muitas bibliotecas super-flexíveis de escrita em saídas diferentes, níveis configuráveis e uso do mais complexo ao mais banal, cheguei à seguinte conclusão:
Vou tentar defender meu ponto de vista.
Esse artigo do Dr. Dobbs explica de uma maneira bem completa como fazer uma lib de log leve e configurável. O que eu peguei desse exemplo foi a forma mais C++ de formatar as linhas, deixando para trás o estilão printf que depois de variadic templates já está datado.
#include <iostream> #include <sstream> inline void Log(std::ostringstream& os) { std::cout << os.str() << std::endl; } template<typename First, typename...Rest > void Log(std::ostringstream& os, First parm1, Rest...parm) { os << parm1; Log(os, parm...); } template<typename...Rest > void Log(Rest...parm) { std::ostringstream os; LogHeader(os); Log(os, parm...); }
Por que eu acho a minha versão mais legal (não valendo falar que foi porque eu fiz):
Encapsular a saída e o comportamento de um serviço hoje em dia é algo banal. Há diversos programas que fazem isso para você, sendo desnecessário programar toda aquela parte de comunicação com o Windows. O cara do DriverEntry fez um aplicativo que faz isso, que é simples de usar e continua funcionando no Windows 8.1. Atualmente uso um outro encontrado pelo igualmente fodástico Rodrigo Strauss: o Non Sucking Service Manager (seu nome já explica por que defendo utilizar o mínimo possível das firulas da Microsoft).
Além de ser extremamente flexível e não ter falhado nas vezes que o utilizei, o NSSM consegue redirecionar a saída do aplicativo que encapsula como um serviço para um arquivo e rotacionar o arquivo por tamanho ou data (ou reexecução do serviço):
Abaixo uma receitinha básica para configurar seu aplicativo:
nssm.exe install MyService C:\Path\MyService.exe <args> nssm set MyService AppStdout C:\Path\Logs\MyService.log nssm set MyService AppStderr C:\Path\Logs\MyService.log nssm set MyService AppRotateFiles 1 nssm set MyService AppRotateOnline 1 nssm set MyService AppRotateBytes 10485760
_(para quem está se perguntando, 10485760 bytes são 10 MB.)_
Com essa forma de fazer serviços, há uma dupla vantagem:
E ainda uma vantagem-bônus:
Acho que cada um deve escrever no seu header o que achar melhor para depurar seus programas. No entanto, acho válido compartilhar quais são as informações que tem sido úteis para mim:
inline void LogHeader(std::ostringstream& os) { SYSTEMTIME st; char buffer[48] = ""; GetLocalTime(&st); sprintf_s(buffer, "%04d-%02d-%02d %02d:%02d:%02d %04X.%04X %08X ", st.wYear, st.wMonth, st.wDay, st.wHour, st.wMinute, st.wSecond, GetCurrentProcessId() & 0xFFFF, GetCurrentThreadId() & 0xFFFF, GetLastError()); os << buffer; }
# Amaldiçoado
Caloni, 2015-06-07 <cinema> <movies> [up] [copy]Horns é uma fábula contada da forma mais banal possível: a investigação de um crime em uma cidadezinha. Passando por todos os clichês do gênero, a parte divertida é mais ou menos a metade do filme: observar a "maldade" inerente em todo e qualquer ser humano.
Tendo como seu núcleo dramático a relação entre Ig (Daniel Radcliffe) e Merrin (Juno Temple), mas se estendendo a todos os seus amigos de infância, que não saíram da cidade e cresceram e se tornaram os adultos "esperados" de uma sequência em flashback onde estão todos juntos, o assassinato da garota por seu namorado é tido como certo desde o início, dadas as circunstâncias da noite em que foi morta. circunstâncias essas que o roteiro de Keith Bunin baseado no romance de Joe Hill vai contando aos poucos, sem pressa, o que serve pelo menos para manter o interesse médio durante todo o trajeto.
Fora isso, depois que Ig urina e chuta alguns símbolos religiosos no local do crime, começam a crescer chifres demoníacos no rapaz, e as pessoas em sua presença sentem um irresistível vontade de confessar seus desejos mais egoístas, pedindo permissão a Ig para executá-los. Praticamente ninguém se safa da maldição que ele passa a carregar, de forma que ele a usa como virtude para descobrir o verdadeiro assassino de sua amada (mesmo mantendo o suspense, você não acreditou que ele fosse realmente suspeito, não? de qualquer forma, parece que o roteiro acredita que somos, sim, bobos de acreditar nisso).
É preciso dizer que Daniel Radcliffe é perfeito para o papel, que mistura o drama com um certo humor (negro), mas seu personagem é um mero joguete nas mãos de uma história que luta para nunca representar nenhuma ameaça para a visão medíocre de um espectador preguiçoso acostumado a ver e rever a mesma história de assassinato misterioso envolvendo um trio (ou quarteto) amoroso. Por outro lado, se o objetivo ao assistir esse filme é a preguiça de pensar, vá em frente. Está tudo mastigado.
Inclusive a fábula citada. Que Merrin representa um anjo, Ig o diabo, e que toda a mitologia bíblica está enfiada no vermelho constante do filme (como no carro de Ig, nas poltronas da lanchonete) e nos símbolos nada sutis (como a maçã da lanchonete, que chama "Eve"). Até o lado divertido -- deixar as pessoas confessarem seus podres -- chega em um momento de saturação, pois já nos acostumamos com isso e não tem mais graça.
Concentrando seus piores momentos no final, o filme conduzido por Alexandre Aja (que já dirigiu alguns terrores não muito inspirados, como Piranha 3D) ainda tenta arrancar alguma moral daquilo tudo, mesmo tendo conduzido o espectador durante todo o momento a refletir que não existe mocinho/bandido no universo da história. Seria o menos bandido o mocinho? Por que nunca vemos os podres de Ig, já que sabemos que todos o têm?
Enfim, se seu problema com o filme poderia ser ele questionar suas crenças em bem e mal, fique tranquilo. Amaldiçoado é tão clichê que, mesmo considerando que todos são maus, os menos maus são bons.
# Na Próxima, Acerto o Coração
Caloni, 2015-06-08 <cinemaqui> <cinema> <movies> [up] [copy]"Na Próxima..." é uma imersão quase que completa na vida de um psicopata. Seria muito melhor se fosse completa. Infelizmente, mais uma vez, Guillaume Canet encara retratar um crápula da vida real, e a âncora dos fatos como estão nos depoimentos das pessoas envolvidas segura parte da poesia implícita nos momentos mais reflexivos de um thriller bem movimentado.
Ambientado nos anos 70, a história do policial/psicopata Franck Neuhart (baseado na biografia de Alain Lamare) é descrito no letreiro inicial como "um dos mais estranhos casos da polícia francesa", automaticamente aumentando a expectativa do público (um artifício duvidoso para criar boas impressões sobre o filme). Para "compensar", realiza uma rima das mais elegantes que une começo e final através de um olhar tão enigmático quanto significativo.
A direção e o roteiro de Cédric Anger trabalham em um ritmo que parece empurrado pela trilha sonora inquieta de Grégoire Hetzel. O compositor chega a reconhecer a melodia dramática do seriado televisivo Dexter, que retrata a vida de um serial killer, e serve como homenagem e referência temática. Franck tem compulsão por matar jovens mulheres, e o conhecemos "treinando" seus limites atropelando uma delas. Mesmo considerando que esse é apenas o início de sua vida de assassino, logo se torna óbvio que o rapaz não tem a menor possibilidade de sair ileso de seus atos, pois brinca com o perigo indo visitar sua vítima e é desleixado em apagar pistas. O filme inteiro se torna então um cronômetro que vai contando o tempo ainda livre que Franck possui para saciar seu desejo doentio.
Tentando evitar a narrativa em off, um recurso quase sempre usado para que entendamos o ponto de vista da vítima, é uma decisão inteligente do filme deixar seus poucos pensamentos contidos nas cartas que enviava para a polícia, pois respeita o "conteúdo original" e confia na percepção do espectador de que por trás de Franck reside um monstro muito mais complexo do que aparenta em sua vida social, mostrando com todas as cores que um psicopata não apenas passa despercebido da sociedade, como ainda é comumente confundido com uma pessoa gentil e delicada.
Claro que tudo isso é graças à atuação firme de Guillaume Canet, que apesar de também ter interpretado um protagonista com um certo grau de sociopatia em O Homem Que Elas Amavam Demais, aqui constrói um personagem totalmente diferente. Introspectivo sem soar recluso, e sem narrar a história, suas cartas e seus diálogos deixam transparecer sua personalidade e visão de mundo, visão essa que parece, como todo psicopata, forçar um filtro na realidade em que ele precisa aceitar o que ele é. Usando suas próprias palavras: "um matador mata". Ele lembra à distância Edward Norton, menos na fisionomia e mais na atuação magnética, embora o que Canet faça em "Na Próxima..." Norton use seu piloto automático em Birdman.
Apesar de ser um thriller bem agitado, os momentos de maior brilhantismo residem quando nosso "herói" repousa na floresta, olha para o céu e pensa sobre seu papel no mundo. Ele se sente livre, para logo depois ser caçado como um animal. Ele tem tudo para ser um animal, traidor de sua espécie, e mesmo que seja horrível o que ele faz, é difícil fugir do fascínio que ele exerce no seu jogo com os policiais, ou de não se sentir melancólico com a situação de sua pretendente. É admirável que Cédric Anger dedique um tempo razoável explorando as nuances da relação de Franck com as pessoas e a natureza. Muito mais do que a entrega fácil de uma história que parece já contada e já vista um milhão de vezes.
Ainda assim, há algo de transcendental em uma história muito, muito... estranha. Sim, estranha. É uma pena que essa palavra, usada para descrever toda a experiência nos letreiros iniciais, tenha sido tão simplória, tão marketeira. Melhor se saiu o quadro inicial, mais enigmático, mais de acordo com a complexidade de um indivíduo impossível de conviver em sociedade. Ainda assim, digno de nossa empatia. Pelo menos cinematográfica.
# Beijei uma Garota
Caloni, 2015-06-10 <cinemaqui> <cinema> <movies> [up] [copy]Embora no começo pareça uma comédia romântica daquelas bem clichê, com o protagonista sendo narrador em off e aquelas piadinhas previsíveis inseridas durante toda a trama, Beijei uma Garota se mantém honesto ao seu conteúdo original do começo ao fim, trazendo a questão da homossexualidade como alvo de uma chacota inocente, embora nunca ofensiva, e muito menos improvável.
Trazendo a dupla de diretores/roteiristas Maxime Govare e Noémie Saglio em seu primeiro trabalho em conjunto para o Cinema, o filme tem como estrela absoluta Jérémy Deprez (Pio Marmaï), que às vésperas de se casar com seu namorado (Lannick Gautry) com quem esteve junto por 10 anos, acaba passando sua primeira noite com uma mulher (Adrianna Gradziel), pela qual se apaixona e coloca em xeque seu "status" de homossexual tão admirado por seus pais.
Trazendo uma trilha sonora agradável e quase clichê ou brega (esse fato é até apontado em um momento do longa), esse é um filme ágil, que parece ter muito a dizer, quando na verdade se apressa para conseguir encaixar todas as suas gags preparadas especialmente para a desagradável (e conhecida) situação das ComRom em que o protagonista precisa contar a verdade para as duas partes, mas vai enrolando durante praticamente todo o filme, quando inevitavelmente... bom, todos sabem como isso acaba. Talvez o mais interessante seja observar o seu desenvolvimento, e para isso temos a companhia do melhor amigo e sócio de Jérémy (outra figura repetida), o "hétero assumido" Charles (Franck Gastambide), que ganha mais espaço em tela do que geralmente é dado aos coadjuvantes, e realiza um ótimo contraponto cômico ao dramático embora simpático e divertido rapaz.
É divertido observar também que as opiniões sobre a sexualidade alheia estejam espalhadas entre os personagens. Sua mãe parece ter invertido suas opiniões para virar moderninha e acaba se transformando na antítese da tolerância sexual, provando em todas as suas participações que leu a cartilha de esquerda e aplica ela da forma mais peçonhenta, gerando um pouco de antipatia por repetição. Já o pai de Jérémy protagoniza um belo momento, mas na maioria do tempo é apenas um coadjuvante que repete falas. O resto da família é criada para servir às críticas da mãe e criar uma tensão (desnecessária) a respeito da vinda de um bebê.
Mesmo com tantos defeitos e contrapontos, a redescoberta da sexualidade nos relacionamentos é um tema que vale a pena conferir, pois mesmo que simplificado do lado dos noivos, é uma questão delicada sendo adotada em um tom mais ameno. Talvez a piada que mais incomode seja a de não existir bi-sexualidade, no sentido de que, hoje em dia, quando alguém se descobre gay, parece improvável que essa pessoa na era da internet não faça uma pesquisa básica sobre seus sentimentos e desejos, tornando portanto essa desinformação mais patética que cômica.
De qualquer forma, há mais acertos que erros em uma comédia que sabe o que quer, embora flerte com o famigerado e desgastado formato Hollywoodiano. Nesse sentido, lembra a maioria das produções brasileiras enlatadas. Felizmente, há um ar francês de libertinagem que consegue divertir mesmo que em um tom menor.
# TDC SP 2015 (Call for Papers)
Caloni, 2015-06-11 [up] [copy]Antes do nosso encontro 12 no Rio, no segundo semestre, teremos o TDC São Paulo, que já está em sua fase de chamada de trabalhos. Se você tem alguma coisa para apresentar, não se acanhe. Todos são bem-vindos! =)
Peço que os palestrantes que não tiveram a oportunidade de apresentar seu trabalho colaborem com o evento, já que nosso próximo encontro será no Rio, cujo público, acredito eu, deverá mudar em sua maioria.
# Efeito Borboleta
Caloni, 2015-06-13 <cinema> <movies> [up] [copy]Efeito Borboleta é um desses filmes difíceis de defender, mas quem comprar a briga (como eu) pode encontrar uma fonte inesgotável de prazer. Prazer de defender a arte cinematográfica, mesmo às vezes através de sua própria imperfeição. Prazer em reconhecer que, mesmo com tantos defeitos, uma obra pode exibir virtudes que a tornam ímpares, ou pelo menos dignas de algumas revisitas. Há elementos particularmente fascinantes escondidos dentro do embrulho que é este filme, em um formato não muito bem empacotado.
Centrado na figura de Evan Treborn, um garoto que passa sua infância tendo blackouts, ou seja, brancos de memória, justamente em momentos particularmente tensos e potencialmente importantes do início de sua vida, acompanhamos seu desenvolvimento em três fases distintas: aos 7 anos, aos 13 e, sua fase final, aos 21 (respectivamente interpretado por Logan Lerman, John Patrick Amedori e Ashton Kutcher). Além dele, há um círculo de amigos que irá fazer parte de toda a história em todas as suas fases. Há a confusa Kayleigh (Sarah Widdows, Irina Gorovaia e Amy Smart), seu irmão problemático Tommy (Cameron Bright, Jesse James e William Lee Scott) e o distante Lenny (Jake Kaese, Kevin G. Schmidt e Elden Henson).
Agora, por que me dou ao trabalho de citar todos os nomes envolvidos nesse projeto? Porque, diferente do que pode-se imaginar com o nome de Ashton Kutcher no papel principal, ele é, em conjunto com os adultos, as figuras menos interessantes do longa. Isso acontece porque a fase de blackouts das duas primeiras fases é realizada com muito mais capricho, o que é óbvio, pois são os momentos dramáticos dessas fases que irão ecoar no futuro desses quatro personagens (além da mãe de Evan, vivida por Melora Walters em todas as fases).
O roteiro e a direção é dos estreantes Eric Bress e J. Mackye Gruber, que não fizeram praticamente mais nada de destaque no Cinema desde então, no que se passaram 10 anos. O que é uma pena, pois adoraria vê-los em sua evolução da linguagem, pois em Efeito Borboleta está claro que eles não brilham tanto, pois há problemas sérios na condução de atores e na própria sequência das cenas. Em um dos inúmeros momentos em que vemos o médico responsável pelo caso de Evan e sua mãe sempre chorando, eles fazem questão de repetir a mesma cena da mãe chorando, uma cena completamente genérica que evidencia a falta de preparo em conduzir o elenco adulto, que por comparação fica muito aquém do extremamente competente elenco mais jovem.
A ideia por trás do filme é que Evan, ao ler os diários que escreveu como forma de terapia para seus brancos, consegue voltar no tempo, exatamente naqueles momentos que não se lembrava de ter vivenciado, e alterar o curso da sua história passada, fazendo com isso mudanças drásticas na história de vida dos quatro personagens principais. Tentando sempre conseguir com que todos fiquem bem, ele constantemente se vê na necessidade de voltar. Quer dizer, apesar do filme tentar mostrar um aspecto mais positivo nos motivos que levam Evan a viajar no tempo, sabemos com apenas cinco minutos pensando em suas decisões que sua motivação é completamente egoísta: no fundo ele quer ajudar a si mesmo e sua amada Kayleigh a sair dos inúmeros futuros alternativos em que ambos não conseguem ficar juntos, e mesmo quando em uma das alternativas ele consegue deixar todos os seus amigos bem, por ele não estar, parece inventar uma desculpa através de sua mãe para voltar novamente.
Embora simples, como todo filme de viagem no tempo está fadado ao fracasso de amarrar sua teoria. Porém, Efeito Borboleta consegue ser ainda pior, pois tropeça feio em questões óbvias. O que aconteceu, por exemplo, nas "versões originais" em que Evan desenha-se na prisão ou fazendo um vídeo erótico infantil? Ou não existe versão original? Esses fatos não são explicados. Porém, ao mesmo tempo, a coragem dos idealizadores em abordar temas como pedofilia de maneira tão franca é digna de aplausos, tanto que detalhes como esses acabam evaporando no decorrer da trama, mas não ao repensarmos depois que o filme acaba.
Enquanto isso outros detalhes da trama que possuem um ótimo potencial filosófico são deixados de lado para que este vire um enlatado thriller dramático. Seria fascinante, por exemplo, abordar esse aparente "balanço no Universo" que impede que exista um futuro onde todos estejam bem, fazendo com que alguém sempre tenha que carregar algum fardo na história (os quatro possuem versões). No entanto, o foco da história é o amor entre Evan e Kayleigh em cima de um drama criado nas diferentes dimensões de tempo/espaço, mesmo que este drama tenha que ser baseado na figura de Evan como adulto, um Ashton Kutcher que, repetindo frequentemente o seu olhar apalermado de lado, de drama vai de zero a negativo.
Então, o que torna Efeito Borboleta um filme digno de revisitas? É difícil descrever sem discorrer por cada quadro e cada momento-chave. Sua distinção entre os filmes se enquadra em momentos tensos que contornam um drama meio impessoal, quase analítico, da realidade humana. São os poucos olhares e gestos de Lenny em seu beco sem saída cósmico, ou a dor sempre presente em uma relação de abuso do pai de Tommy e Kayleigh. Por isso, fiquemos de olhos na evolução do filme conforme envelhecemos como espectador. Acredito que ele fique melhor a cada nova percepção da nossa realidade. Como os bons filmes devem ser.
Sem contar que o final se apresenta apenas 50% satisfatório. Porém, chegaram a ser filmados finais alternativos em que se torna compreensível o problema dramático (e comercial) de terminar este filme. O DVD e a internet os possuem e é digno de nota para o cinéfilo mais aficionado ir buscá-los. Ao assistirmos ao final escolhido pelos diretores vemos que a questão filosófica do filme era uma premissa importante, já que apenas quando o protagonista se suicida é que ele consegue entregar toda a felicidade possível a ser dividida entre os envolvidos. Trágico, mas budista, ou seria anti-natural? Esta, sim, é uma questão que vale a pena gastar um tempo após o filme.
# A Primeira Noite de um Homem
Caloni, 2015-06-16 <cinema> <movies> [up] [copy]Esse é um filme que possui a alma dos anos 60. Quebra de convenções por todos os lados, e um cuidado especial na condução de uma... quem diria, comédia romântica, em tons sortidos; pelo menos o suficiente para que não encaremos os detalhes inseridos na trama apenas como engraçados, mas também dramáticos; e fiquemos apreensivos pelo destino de um dos heróis mais icônicos e irônicos do Cinema: Ben Braddock.
Dirigido por Mike Nichols (que morreu de ataque do coração ano passado), o filme inicia como uma comédia, contando sobre a vinda de Ben Braddock (Dustin Hoffman) à casa da família para sua "recepção" por ter sido aceito em uma faculdade de prestígio. Nichols conta isso em apenas uma longa sequência que passeia pela residência dos Braddock. Aqui os mais velhos são geralmente conhecidos pelo seu sobrenome. Dessa forma temos Mr. e Mrs. Braddock (William Daniels/Elizabeth Wilson) e a família do sócio de Mr. Braddock, Mr. e Mrs. Robinson (Murray Hamilton/Anne Bancroft). Estamos falando de uma classe rica já acostumada a mandar em pessoas, e o filho representa um bichinho da casa que é estimado por todos.
Em apenas cerca de 10 minutos são colocados no mesmo quarto Ben e Mrs. Robinson (com ela nua). Ben Braddock, com seus trejeitos, sua fala e seu modo de pensar sugerem, é virgem ("surpresa" essa já estragada no título nacional). Mrs. Robinson, igualmente fácil de traduzir, é uma alcóolatra que tenta seduzir o jovem rapaz. Ela trata-o também como um bichinho de estimação, para satisfazer seus anseios sexuais. Enquanto se sentem orgulhosos por Ben, os Robinson também esperam ansiosos pelo retorno de sua única filha, Elaine (Katharine Ross), que poderia ser uma ótima candidata para uma união formal entre as famílias. O que eles não esperavam era que essa relação inter-famílias e extra-conjugal viesse de outro lugar.
O roteiro adaptado por Calder Willingham (que também escreveu Glória Feita de Sangue, de Kubrick) e Buck Henry a partir do livro de Charles Webb passeia em um fluxo contínuo pelos acontecimentos, onde praticamente tudo é relevante para o desenvolver da história. Podemos dizer que sua primeira metade é engraçada (principalmente quando Ben tenta conseguir um quarto para que ele e Mrs. Robinson possam finalmente ter a sua primeira noite), mas o humor está espalhado em referências e detalhes, que aos poucos vão dando lugar para uma trama que sabíamos que iria acontecer -- inclusive Ben -- mas que seria impossível evitar. Por quê? O rapaz diz logo no começo: deseja mudar algo em sua vida.
E esse "deseja mudar algo" é uma metáfora das mais inspiradas. Desafiando o status quo através da eterna luta adultos x jovens que ficou bem acirrada naquela época, os adultos também representavam o poder (e eles frequentemente escolhem o que é melhor para a vida de Ben), a religião (que merece uma bela homenagem em seu terceiro ato), o monopólio do sexo. Tudo isso está representado em uma história que caminha por caminho não-convencionais para o mais tradicional dos clichês das ComRom. Às vezes não tem como fugir do formato, mas os bons diretores conseguem extrair ouro do que já está escrito em pedra por tantos anos (e hoje é tão batido).
Até a música de The Graduate remete diretamente àquela época com todo seu ímpeto, sua poesia, sua narração bem próxima do personagem. Cantada pela dupla Simon & Garfunke e tendo a versão instrumental por Dave Grusin se torna o hino de uma geração. Ao contrário do que você pode pensar, não é sobre nerds virgens, mas sobre homens que desejam retomar o controle de suas vidas. Controle esse constantemente nas mãos dos pais. Bom, chegou a hora da retomada. Diferente dos igualmente importantes filmes de John Hughes sobre os conflitos adolescentes, é a glória juvenil homenageada e inserida em uma sociedade que já está com os dias contados.
Com tudo de errado representado pelos "adultos" e a liberdade cantada e descrita pelos movimentos desarticulados do frenético e brilhante Dustin Hoffman, encontramos no final de um túnel de reflexões um turbilhão de emoções, onde uma cruz, um parapeito e um ônibus conseguem em menos de alguns momentos representar uma das sequências mais belas produzidas pelo Cinema. É cafona, assim como a época, e é por isso que funciona do começo ao fim. E, ironicamente, envelheceu como ninguém.
# Ladrões de Bicicletas
Caloni, 2015-06-18 <cinema> <movies> [up] [copy]Ladrões de Bicicletas é um filme curto (menos de uma hora e meia) e antigo (da década de 40) e italiano. Porém, apesar dele ser curto ele é completo, apesar dele ser antigo ele é atual, e apesar dele ser italiano ele é, felizmente ou infelizmente, universal. Para os que se interessam por bobagens, foi um dos primeiros longa-metragens a ganhar um Oscar de Filme Estrangeiro, um título que não existia e era dado de vez em quando pela academia. Para os que se interessam pelo Cinema como arte, este filme virou um dos exemplos mais conhecidos do neo-realismo italiano, um estilo de fazer filmes que buscava refletir a realidade social da época, sendo filmado quase como um documentário. Tanto que os personagens não são nada especiais, podendo ser qualquer um na megalópole italiana naquela época pós-guerra.
Aqui sabemos da história de Antonio (Lamberto Maggiorani), um pai de família que em tempos difíceis consegue um emprego que exige que ele use bicicleta: pendurar cartazes pela cidade. Tendo penhorado a magrela, ele pede ajuda a sua esposa, e o casal penhora os lençóis para conseguir o agora equipamento de trabalho de Antonio de volta. Como o título já denuncia, a bicicleta é roubada -- e mesmo assim, a sensação de insegurança no filme é instaurada em um ou dois momentos preciosos de criação de atmosfera. Desesperado, vai pedir ajuda a um amigo, e no dia seguinte, um domingo, vão todos procurar o objeto roubado em uma feira que parece ter sido montada exatamente para esse mercado de bicicletas de "terceira mão".
A direção de Vittorio De Sica com seus enquadramentos irretocáveis e nostálgicos na maioria das vezes, e a trilha sonora constante de Alessandro Cicognini força a emoção, mas sem sucesso: até a tristeza é escassa naquele universo. O drama já está montado há muito tempo atrás. Não pelos personagens, mas por todas as centenas (milhares? milhões?) de pessoas que vemos andando pelas ruas de Roma. A pobreza vira um mero detalhe frente à realidade de não poder conseguir a dignidade de ter um emprego, e logo no começo vemos uma multidão procurando por um (onde apenas Antonio é chamado, já desesperançado do outro lado da rua).
Não, não é preciso forçar nada, pois aos poucos percebemos um drama mais universal até do que de todas aquelas pessoas. É uma questão moral que está corrompendo aquela sociedade. É uma ideologia falida (não importa qual), um pesadelo com os olhos abertos. Talvez seja o resultado de uma crise material que gere a espiritual. É por isso que todas aquelas pessoas vão à missa: para comer (e ter sua barba feita).
A caçada que Antonio e seu filho fazem pelas ruas da cidade é um mero contratempo para que olhemos em volta e consigamos constatar com nossos próprios olhos. Quando Antonio encontra o ladrão, então, o óbvio pula do nosso cérebro, em um beco esquecido por aquele turbilhão de acontecimentos: os valores morais já estão invertidos há muito tempo. O mal já venceu há muito tempo, se esquecendo apenas de anunciar. É hora de mudar?
E é com isso, com esse pressentimento, que o terceiro ato, infalível, ganha todo o seu peso. Um novo turbilhão emotivo se configura -- esse em muito menos tempo -- em uma decisão desesperada de um pai, e com direito ao testemunho do seu filho. A felicidade que antes sentiam ao sentar no restaurante forma a antítese exata da vergonha e da humilhação que o vemos sentir alguns minutos depois. Quando este desaba, desabamos juntos. Estamos exauridos. Não há forças para continuar. Que bela maneira de sintetizar uma mensagem.
# Kumiko, a Caçadora de Tesouros
Caloni, 2015-06-21 <cinema> <movies> [up] [copy]Kumiko é uma fábula criada a partir de uma história real (ou pelo menos levemente inspirada em uma pessoa). Embalando uma história impossível em torno de um outro filme sobre uma história impossível (e, este também, baseado em uma história real), Kumiko é uma experiência entusiasmada, embora na maioria das vezes, não tenha lá seus motivos.
Dirigido por David Zellner (que participa do filme) e co-escrito com seu parente (irmão?), a história gira em torno da Kumiko do título, uma garota insegura que trabalha em um emprego que não gosta e que tem todos em sua volta constantemente a assediando para que ela se ajuste ao padrão do que se espera daquela sociedade de uma mulher em sua idade. Estamos no Japão, então isso faz muito sentido, e o que torna Kumiko um tanto mais heroica (transgredir as regras sociais no Japão, para uma mulher, com certeza é heroico, ainda que nos tempos atuais).
Quando Kumiko encontra uma fita VHS antiga enterrada em uma caverna na praia contendo o filme Fargo (sim, aquele dirigido pelos irmãos Coen), ela pensa ter encontrado um mapa para o tesouro: o lugar onde o personagem de Steve Buscemi no filme enterra o dinheiro do sequestro que deu errado. A partir daí a vemos planejar passo-a-passo seu objetivo. Bom, na verdade, mais ou menos. Sua rotina e sua vida solitária é mais o foco aqui, e como pessoas libertas das convenções sociais, ainda que notadamente malucas, são vistas com maus olhos.
Plasticamente um belo filme, com uma fotografia limpa e com o tema vermelho impregnando a tela, "Kumiko" é um filme tecnicamente irrepreensível, embora não tenha nenhuma ambição mais do que entregar a jornada da nossa heroína quase como uma conquistadora espanhola. Brincando com o destino real da garota (na vida real, ela se matou), alguns detalhes da japonesa em carne e osso são transmitidos mais como metáforas, e até a posição do diretor como um personagem que faz de tudo para ajudá-la é metalinguístico.
Contudo, como mensagem, assim como muitos filmes que se espelham em um acontecimento do noticiário, é vazio, o que se torna um pouco decepcionante. Ainda assim, mesmo não sendo um grande filme, Kumiko merece mil vezes mais ser assistido por ousar diferente, do que tantos filmes igualmente medíocres, mas sem qualquer traço artístico que se destaque das aventuras formulaicas que estamos acostumados a assistir. Só por isso já valeria uma visita.
# Casadentro
Caloni, 2015-06-22 <cinemaqui> <cinema> <movies> [up] [copy]Casadentro é um trabalho tão neo-realista quanto intimista. Baseado em quadros estáticos, o filme se dedica a mostrar como o ser humano ignora a passagem do tempo de sua própria vida, e ao mesmo tempo resolve discutir a relação entre quatro gerações debaixo do mesmo teto pelo período de 24 horas. Se sentindo tão opaco quanto os pensamentos dessas pessoas, o filme consegue acelerar um dia sem mover um centímetro de câmera. Conseguindo se mostrar presente durante todo o momento, o estilo de direção parece interessado demais que seja notado.
Escrito e dirigido pela peruana Joanna Lombardi, que realiza aqui seu primeiro longa-metragem, Casadentro conta a história de Dona Pilar (Élide Brero), uma senhora de 81 anos que, embora já com os reflexos e sentidos debilitados, leva uma vida confortável em sua casa com a ajuda de suas duas serviçais, a experiente e praticamente amiga Consuelo (Delfina Paredes) e a jovem e atribulada Milagros (Stephanie Orúe), além de seu xodó: Tuna, um pequeno cachorro. Na véspera do seu aniversário recebe a ligação de uma de suas filhas, que pretende visitá-la e passar a noite com sua mãe e mais duas gerações da família: sua filha (neta) e neta (bisneta). A partir daí as preocupações da Senhora Pilar são de que todos estejam devidamente acomodados e que não lhes falte nada.
Filmando com ângulos de diferentes alturas, mas sempre parado durante toda a cena, Lombardi confia no espectador para praticamente tudo. Os detalhes da história precisam ser pescados por nós a todo momento, pois não haverá aviso nem ação o suficiente para que seja notado. Com exceção de pequenos plano-detalhes (quando a câmera enfoca apenas um objeto ou apenas a face de uma pessoa na tela inteira), o importante precisará ser observado nos diálogos ou nas rápidas expressões dos personagens. O resto -- a maior parte -- é de uma rotina que cansa pela obviedade, mas que por isso mesmo consegue trazer em relevo o que quer ser contado.
Note, por exemplo, como tudo que Dona Pilar disser, fazer, ameaçar fazer ou faria se uma situação X ocorresse, é rapidamente captado e verbalizado por todos do recinto onde ela está ausente. Dessa forma, nos condicionamos a enxergar essa pessoa idosa como enxergamos, ainda que inconscientemente, os idosos em geral: lentos, previsíveis, teimosos. Ironicamente, são essas as características que vamos aos poucos atribuindo aos seus familiares, meio que espalhados entre eles. Porém, essa é uma interpretação tão boa quanto qualquer outra que você for tirar dos pequenos acontecimentos dessas 24 horas que passarmos juntos de quatro gerações de mulheres sob o mesmo teto. Eu, pessoalmente, me perguntava como é possível que essas pessoas, diante de uma vida tão longeva, potencialmente com tantas histórias para contar, se contentavam lendo um livro "muito empolgante"?
Pois bem, é esse tipo de julgamento de valor que Casadentro está buscando em quem o assiste mais atento, e não bocejando ou olhando no celular (como Milagros faz diversas vezes no filme). Se há tanta inércia em torno da aniversariante, ou é porque um diálogo já foi tentado (mais de uma vez), ou é porque há ressentimentos de coisas que ficaram perdidas no tempo e não valeria a pena escavar, agora que restam poucos anos de vida para a matriarca. Em um determinado momento sua filha se pergunta se as mulheres vivem mais, já que seu pai e avô nunca chegaram perto dos 80 anos. Dentro dos parâmetros do filme, me pergunto se esse foi um pensamento aleatório ou uma reclamação velada de por que sua mãe ainda estava lá.
Bom, todos esses são pensamentos acerca do que não acontece no filme, ou pelo menos não acontece de uma forma óbvia. É por isso que, apesar de realista, seu caráter intimista reside no que cada espectador paciente irá encontrar nessa pequena janela que se abre para a "realidade" de pessoas que parecem estar de castigo dentro de uma casa deveras tranquila, mas esquecida em algum lugar do tempo.
# Escolha de palestras para o TDC 2015 Sampa
Caloni, 2015-06-22 [up] [copy]Já passou a semana de envio de palestras, e agora chegou a hora de escolher as palestras que farão parte da Trilha C/C++ do TDC 2015, em São Paulo. Se vocês puderem colaborar, é super-simples e rápido. Há uma lista de títulos de palestras e você só precisa escolher qual a mais importante para você. Avalie com cuidado.
# Divertida Mente
Caloni, 2015-06-24 <cinema> <movies> [up] [copy]Divertida Mente é um sinal de que Disney/Pixar, apesar de às vezes parecer que está saindo dos trilhos, produzindo mais e mais continuações e se transformando em uma franquia comercialmente poderosa enquanto artisticamente repetitiva, dessa vez arrisca pra valer, apostando em uma versão de Ela (Spike Jonze, 2013) para o público infantil, destrinchando as emoções que nos formam de uma maneira que dificilmente você verá em produções do gênero.
A história conta desde o início com a narradora em off Alegria (Miá Mello aqui, e a sacada de gênio Amy Poehler na versão original), a emoção que nasce junto de um bebê que será o protagonista no mundo real, Riley, a filha única de um casal. Alegria é a primeira de cinco emoções que controlam o humor de Riley. Na verdade, ela é a principal, seguida (bem) de perto pela Tristeza (Phyllis Smith no original; no nacional deve ser um genérico da Globo), e tendo três outros coadjuvantes: Raiva, Medo e Nojinho. Essas cinco emoções são consideradas pela psicologia moderna as emoções-base de onde derivam todas as outras (na verdade, são sete, mas deram uma resumida). A direção é de Pete Docter, que já pegou do estúdio Up! e Monstros S.A., e co-dirigido pelo estreante Ronaldo Del Carmen, e o resultado é um tanto decepcionante. Já o roteiro, escrito a sete mãos, teve ajuda dos diálogos de parte do elenco, e está muito mais interessante em metade do tempo. A outra metade é mais da Disney do que já conhecemos.
O longa gasta seu começo descrevendo o crescimento da menina até os 11 anos e com isso explica a formação daquele mundo que podemos chamar de cérebro abstrato. Os próprios personagens que lá residem não possuem uma forma definida (mas brilham), talvez uma tentativa de não impor realismo em um conceito puramente criativo. Podemos sentir que os idealizadores desse mundo provavelmente trabalharam muito nele, estão orgulhosos dele (com razão), mas que por isso mesmo se apaixonaram demais em explicar cada detalhe de um mundo um tanto insosso para passarmos (muito) mais da metade da história nele. No entanto, tudo isso faz parte das explicações desse próprio mundo. Um tanto paradoxal.
Sim, as cores das emoções combinam com as listras da roupa de Riley, interessante. As formas do "cérebro abstrato" são sempre arredondados, eles explicam memórias como vídeos no YouTube, e tubos levam as memórias de curto prazo para gigantescas gavetas de memória de longo prazo. Até aí, nada do que já veríamos em programas educativos. Fora a fofice. Até extensões do mundo, como amigo imaginário e a terra da imaginação soam como algo já visto. Talvez tenha sido gasto tempo demais para esse projeto sair do papel.
No entanto, há um dinamismo nas transições entre o mundo real e o da mente de Riley que é fluido o suficiente para que esses detalhes nem importem muito. O que queremos, realmente, é entender essa dinâmica entre Alegria e Tristeza, mas os personagens já são definidos por emoções primárias, tornando difícil qualquer nível de interação maior que piadas óbvias.
Mesmo assim, com todos seus clichês óbvios e frases de efeito, Divertida Mente consegue se elevar do patamar do medíocre entregando tudo isso em uma aventura que se passa unicamente na mente de sua protagonista, e elaborando todos esses conceitos óbvios, mas necessários para que exista um conflito interno (trocadilho proposital) na personagem o suficiente para que ele fosse algo impactante. Paradoxalmente de novo, o conflito não é daqueles muito criativos.
E é dessa forma com que Divertida Mente, falhando pontualmente no quesito direção de arte, se sobressai em suas ideias, e sua tentativa de explicar conceitos complexos para crianças/jovens. Apenas essa virtude, única e constante por todo o roteiro, merece aplausos e faz com todo o trabalho valer a pena.
# Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros
Caloni, 2015-06-24 <cinema> <movies> [up] [copy]A trilha sonora de John Williams é bem aproveitada nessa continuação de emoções de Jurassic Park, mais de 20 anos depois de ser produzido, para um público mais aficionado por efeitos, 3D e a computação gráfica no seu limite. Por isso mesmo não se pode negar que no quesito entretenimento ele se sai maravilhosamente bem, impressionando quase da mesma forma com que o filme de Steven Spielberg nos impressionou. E quase já é algo muito bom para uma franquia já desgastada tentando se reerguer com ideias "novas".
Outra coisa que não se pode negar é a escolha ideal de Chris Pratt para o papel de galã-macho-alfa, responsável por salvar o mundo controlado pela administradora do agora aberto ao público e renomeado parque, Claire (Bryce Dallas Howard, uma escolha também interessante). Pratt, recém-saído da série Parks and Recreation, se tornou sensação no último filme besteiro da Marvel, Guardiões da Galáxia, e desde então tem aprimorado seu jeito canastrão com uma ponta de seriedade. Aqui ele faz uma interpretação além do que se poderia esperar, criando um Owen à altura das elucubrações filosóficas do Dr. Ian Malcolm do original.
Porém, a figura de Dr. Ian está dividida em Owen e em Lowery (Jake Johnson), uma figura mais consciente, ecologicamente falando, do que o oportunista e igualmente icônico personagem de Wayne Knight. Além dele podemos observar pessoas que lembram um ou outro traço das figuras mais icônicas daquele filme hoje empoeirado, mas que na época criava suspense com quase nada. E se estou falando basicamente de atuações e comparações com o original, é porque o original merece ser mencionado a partir do que o torna superior: seus personagens, sua eloquência e sua trama um pouco mais complexa do que um passeio no Parque dos Dinossauros se tivesse sido terminado e como isso pode -- e deve -- sair do controle para o prazer do público (nós, espectadores com ou sem óculos 3D).
Sim, nessa continuação existem questões interessantes a respeito das espécies híbridas, uma evolução pressentida da ciência atual, que futuramente poderá criar seres viventes diferentes de tudo o que já foi produzido pela Evolução, basicamente editando cópias de DNA, algo muito mais factível do que reconstruir exatamente os códigos genéticos de criaturas que viveram mais de 60 milhões de anos atrás, além de fruto de questões filosóficas igualmente fascinantes, como copyright de criaturas, e inclusive a questão da nomenclatura (como foi acertadamente apontado como o que tem sido feito hoje com o nome de estádios de futebol, ou até de times inteiros). Outra vantagem é explicar muito a ainda ausência de penas, um traço evolutivo que sabemos que deve estar presente em pelo menos algumas espécies da época (afinal, os próprios pássaros são herança direta dos dinossauros, como um inspirada transição inicial nos faz lembrar). Afinal de contas, não importa como os dinossauros realmente eram: para o público, e para o Cinema, a imaginação é o que conta.
Todas essas boas ideias se unem para criar um híbrido que será a nova atração na ilha, e que ficou isolado durante todo o seu crescimento em cativeiro. O resultado, como todos esperam, nem é preciso dizer. A partir daí, o filme é adrenalina pura, e os dinossauros -- ou melhor dizendo: híbridos -- estão aí para repetir a mesma cena um trilhão de vezes para quem não viu (porque estava indo buscar pipoca) esses bichos gigantescos espreitando os humanos com suas faces em perfil. Aliás, essa mesma questão está inserida no filme, quando Claire comenta que o público já não tem o mesmo fascínio pelo que parecia ser um milagre na época, e hoje é visto como mais um elefante de zoológico.
E, convenhamos, um elefante caro, barulhento, viciado em sensações. Infelizmente, ou felizmente, para muitos, isso é tudo o que teremos pelo resto do filme: correria, gritaria, efeitos digitais. E felizmente estaremos confortavelmente sentados em nossas bolas de hamster providos de refrigerante gelado. Já a história, essa que estava inspirando questões bacanas... por essa provavelmente teremos que esperar por mais uma continuação. O que será que está passando da Marvel na sala ao lado?
# Pi
Caloni, 2015-06-26 <cinema> <movies> [up] [copy]Pi é uma viagem quase psicodélica ao âmago da questão: a linguagem do Universo é a Matemática. Extrapolando isso, mas ao mesmo tempo mantendo o suspense de que isso poderia ser real, enxergamos a insanidade através das lentes P&B saturadas de uma luta interminável entre fé, conhecimento e a pura ganância.
Primeiro trabalho em longa-metragem do diretor Darren Aronofsky (O Lutador, Cisne Negro, Noé), a história gira em torno de Max Cohen (Sean Gullette), um matemático obcecado com sua teoria de que todo o Universo poderia ser descrito através de um padrão, e da mesma forma como grandes pensadores encontraram padrões existentes na natureza em abundância, como a espiral derivada da proporção áurea, a medida de um retângulo recursivamente gerado ao se tornar um quadrado, ele acredita que encontrará um padrão que irá descrever as oscilações caóticas da bolsa de valores, um universo próprio de mini-decisões humanas.
Tendo como companhia eventual uma vizinha fascinada pelo rapaz, uma menina japonesa que adora ver como Max é tão rápido em fazer cálculos quanto uma calculadora, um rabino interessado em desvendar um aparente código secreto da Torá, e uma mulher, sua chefe?, que o contrata exatamente pela chance de poder dominar o jogo de Wall Street, Max frequentemente se isola na casa de seu ex-professor, Sol (Mark Margolis, o Tio Salamanca de Breaking Bad), uma mente igualmente brilhante que estava às voltas de entender a lógica interna do número Pi (3,1416...), mas que teve que paralisar seus esforços devido a um derrame, e que agora se contenta em jogar Go com seu aluno e alimentar seus peixes.
Com esse microcosmos de mentes interessadas de alguma forma no conteúdo do cérebro de Max, Aronofsky sabiamente emprega um artifício brilhante para representar a angústia que se passa dentro de sua mente: seu companheiro de todos os dias é um computador (batizado carinhosamente de Euclides), e muito do que acontece com a placa de silício pode ser uma visão externa do que se passa no cérebro de seu usuário. Um dia ele gera um pane e entrega uma sequência de duas dezenas de dígitos, algo que levanta suspeitas de Max de que ele pode estar diante do padrão tão desejado. No entanto, seus ataques alucinatórios levam também o espectador a crer que tudo isso pode ser uma grande ilusão.
Empregando um P&B enclausurante, o fotógrafo Matthew Libatique, junto do diretor, seu companheiro habitual, encontra uma maneira de visualmente expressar a lógica da narrativa: o caos, se reduzido ao máximo, irá entregar um padrão facilmente identificável, de onde se extrapola todas as regras do Universo. Tendo isso em mente, cada vez mais os traços do cenário e dos personagens vai se simplificando, tendo menos detalhes em volta, e mais preto no branco (ou vice-versa), demonstrando uma rima extremamente elegante com uma fala do professor de Max a respeito de como o Go, aquele joguinho de pedras pretas e brancas, representaria o próprio Universo.
Mantendo-se sempre fiel ao suspense entre a verdade e o ilusório, Pi é um trabalho ambicioso criado com muito pouco orçamento, o que o torna tão admirável quanto Primer (outro filme barato e ambicioso sobre ficção-científica). Um trabalho e tanto da estreia de um diretor que vai se acostumando cada vez mais a retratar a ambiguidade da vida no Cinema.
# Madoka Magica: Rebellion
Caloni, 2015-06-27 <cinema> <movies> [up] [copy]Madoka Mágica, uma série com começo, meio e fim embalada em uma arte-sequência deliciosamente artística de acompanhar e um enredo absurdamente filosófico para os que destratam anime, resolve extrapolar alguns conceitos de sua conclusão original, criando esse longa-metragem onde, podemos dizer, tanto a parte artística quanto a narrativa são multiplicados por 1000, e perdendo apenas um pouco de suas rédeas originais, ainda que compensando pela sua realização.
Dirigido pelos mesmos criadores da série, que fizeram dois outros filmes anteriores a esse (mas que por algum motivo parecem não ter chegado ainda ao Ocidente), essa história a princípio parecia independente, mas aos poucos foi-se revelando o inevitável: ela precisa que a pessoa assista à série original, o que já enfraquece um pouco o enredo.
De qualquer forma, ela faz várias homenagens de onde foi inspirado, e não parece ser totalmente criada para fazer dinheiro, mas para complementar ideias que podem ter ficado de fora no seu primeiro tratamento. Aqui iniciamos a história em uma espécie de realidade alternativa, onde todas as garotas mágicas que viviam na cidade onde os fatos da série ocorreram se conhecem e combatem fantasmas e seus pesadelos. Não existe o conceito de bruxa, apesar de uma nova mascote obviamente parecer ser um derivado delas. Como todos que já assistiram à série sabem, e como esse filme não faz sentido sem seu conteúdo original, não considero spoiler dizer que da forma com que as coisas acabaram, o Universo foi reescrito sem a existência de Madoka e sem o fim trágico de uma garota mágica: se tornar uma bruxa.
No entanto, a história em Rebellion desmente justamente essas premissas, atingindo seu objetivo no momento em que Homura Akemi (sempre ela) suspeita estar vivendo em um mundo de mentira fabricado por alguém. A busca por esse alguém é o que traz algumas das surpresas mais interessantes do universo da série/filmes, além de graficamente tanto as lutas quanto as sequências paradas terem se beneficiado de uma notória evolução em seus conceitos, onde cores, formas e até estilos diferentes de animação se juntam pelo bem na narrativa e pelo dinamismo de sua história. Se configurando como uma quase-arte abstrata, as discussões a respeito de realidades alternativas, individualismo, desejo, destino e essência ganham rimas extremamente poderosas em seu visual e até em sua trilha sonora, que se aproveita dos temas originais para compor uma extensão orgânica e interpretável como um desdobramento de uma lógica interna que antes era fechada.
Contando com criadores que se especializaram em elevar à quarta potência tudo que havia sido dito, visto e pensado pelas personagens-chave da série, o roteiro de Rebellion consegue extrair essa complexidade em seus diálogos, mas infelizmente não deixa de ser previsível em determinados momentos, se auto-sabotando pontualmente, ou talvez no mínimo piscando descuidadamente para seu espectador. Continuando em seu processo de auto-análise filosófica, perde a chance de se manter em um nível razoável de interpretação de sua obra em uma primeira visita, preferindo uma abordagem hermeneuticamente centrada na metalinguagem de seu próprio enredo, se perdendo em elucubrações em um ritmo igualmente alucinante. Se esse parágrafo lhe parece particularmente difícil de entender, acredite: Rebellion é muitas vezes mais.
Ainda assim, com dois grandes defeitos em comparação à obra anterior (1: depender de material prévio, 2: auto-análise filosófica inatingível), Madoka Mágica Rebellion pode se mostrar como um trabalho maduro que inacreditavelmente tem origem na animação japonesa, e que com ela ainda se beneficia ao expor graficamente seus dilemas. Uma obra ímpar que deveria ser visitada pelo menos duas vezes. Pelo menos é o que eu tentarei fazer.
# Minions
Caloni, 2015-06-27 <cinemaqui> <cinema> <movies> [up] [copy]As árvores que jorram dinheiro em franquias de animação já conseguiram provar com Os Pinguins de Madagascar e Carros 2 que spin-offs de personagens secundários -- os que geralmente completam a história para seus heróis -- têm tudo para dar errado. No entanto, agora é a vez de Meu Malvado Favorito (e sua sequência) remoer o terreno de sua árvore milionária, esta plantada em um terreno arenoso, uma vez que as histórias dos dois filmes dependem de uma série de piadas prontas jogadas na tela em um ritmo que não nos permita perceber que sua história principal são dois fiapos de raiz prestes a se romper. Dessa forma, podemos considerar a ideia de produzir um filme apenas com os seres amarelos dos dois filmes -- que realizam cenas pontuais de dois segundos -- um projeto ambiciosamente marqueteiro e artisticamente repulsivo.
A história tenta ser um prequel que narra rapidamente as aventuras dos Minions por dezenas de milhões de anos (desde a época dos dinossauros), definindo-os como seres cuja essência instintiva é procurar o "chefe do mal" e o seguir. Ironicamente, todos os seus líderes sucumbem às trapalhadas dos bichinhos amarelos, fazendo girar o ciclo de evolução no decorrer das Eras, passando por uma classificação que parece se basear em uma enciclopédia antiga chinesa: um T-Rex, o "homem" (um indivíduo?), um faraó (onde ajudam a endireitar um projeto de pirâmide que originalmente estaria ao contrário, ou seja, com uma das pontas servindo como "base"; sim, é esse o nível de "humor" do filme), e, por fim, Napoleão, onde a partir de sua suposta tentativa de invadir a Rússia o exército dos Minions fica perdido em algum lugar do Pólo Norte (obviamente onde fica a Rússia). Depois de séculos, um deles, Kevin, decide ir em busca de um novo líder, seguido de perto por mais dois seres amarelos. Seus nomes não importam muito, pois sequer personalidade eles têm, parecendo que foram escolhidos para a jornada pelo roteiro "porque sim" (ou porque possuem um formato e número de olhos diferente).
De qualquer forma, eles acabam em Nova York, onde ficam sabendo de um evento de vilões em Orlando, e cuja carona que pegam é apenas um artifício para existirem mais personagems que torcem pelo trio de amarelos. Talvez também para conseguirem atingir a incrível marca de 91 minutos de "história". Dessa forma, conhecem a vilã mais malvada do mundo: Scarlett Overkill, que coincidentemente está contratando capangas e que coincidentemente acabam sendo você-sabe-quem. O sonho da vilã é roubar a coroa da rainha da Inglaterra, e praticamente acabou-se toda a estrutura narrativa necessária para impulsionar as novas piadas envolvendo os bichinhos amarelos.
Dessa vez a direção principal fica por conta de Kyle Balda, que até então havia apenas co-dirigido O Lorax: Em Busca da Trúfula Perdida. O que se prova um desastre. Evidentemente entediado com a história escrita por Brian Lynch (um dos diretores da série original), Balda parece mudar de estilo apenas para não ficar esquecido nesta grande produção. É por isso que, de repente, no terceiro ato, uma câmera de mão equipada com rack focus (zoom rápido) é usada para mostrar as sequências envolvendo um elemento-surpresa não presente nos trailers (aliás, existe cerca de 10% de elementos não mostrados nos trailers).
Sem noção nenhuma de como tentar amarrar minimamente as gags com uma história que tenha começo, meio e fim, Minions aposta, como seus antecessores, em personagens engraçadinhos com situações tiradas da cartola, com a exceção de que aqui, com a ausência de Gru e as meninas Margo, Edith e Agnes, não há quem suporte uma sequência ininterrupta de situações envolvendo bichinhos amarelos cuja lógica não entendemos, sem contar -- é preciso fazer uma "menção honrosa" -- o namorado de Scarlett: uma figura que de tão antipática acaba soando engraçada em momentos pontuais (como na sala de tortura).
Por fim, a figura de Gru obviamente seria mencionada (algo que nem considero como spoiler em um filme como esse). A única coisa que não esperaríamos seria uma sequência de frases-chave que tentam, além do famoso cachecol, fazer o espectador entender que, por se passar décadas antes de Meu Malvado Favorito, aquele é o Gru ainda jovem. Só faltou mesmo uma legenda explicando o óbvio, o que revelaria de uma vez por todas a essência do público-alvo que os idealizadores buscam atingir. Felizmente (espero), nem todos acham hilária uma árvore cuja única função é jorrar dinheiro do lado da empresa que licencia a venda de bonequinhos amarelos que fazem barulho.
# Um Pouco de Caos
Caloni, 2015-06-27 <cinemaqui> <cinema> <movies> [up] [copy]Um Pouco de Caos é um passeio tranquilo, até demais, no mundo da aristocracia francesa (embora todos falem inglês sem cerimônias) para fazer-nos apreciar a atmosfera dominante do blasé frente aos que ainda precisam lutar para serem aceitos na alta sociedade. Durante o processo é tão óbvio que haverá um amor proibido que até isso se torna sem graça.
Dirigido por Alan Rickman -- o Professor Severus Snape da série Harry Potter -- depois de sua estreia na direção quase 20 anos atrás, é o primeiro filme em que ele também atua, como o Rei Luís XIV durante a construção dos jardins de Versalhes. O palácio, localizado longe do centro de Paris, suas doenças e seus pobres, contém uma coleção inigualável de jardins criados a mando do rei, e cujos projetos eram constantemente disputados pelos mais proeminentes paisagistas, especialmente os que seguem o guia moral de sua majestade: a perfeição da ordem.
A história, portanto, historicamente populada, envolve em seu centro as figuras de Sabine de Barra (Kate Winslet) como uma jardineira que defende o estilo levemente caótico de suas criações, e André Le Nôtre (Matthias Schoenaerts), o arquiteto-chefe de Luís XIV e que resolve "comprar a briga" em cima da aposta de que uma guinada mais original para o próximo jardim poderia significar mais fama e apoio do monarca. E, como já sabemos, para manter Madame de Barra por perto.
Para fechar com chave de ouro o triângulo amoroso de filmes de época, a esposa de Le Nôtre, Françoise (Helen McCrory), é a maçã podre do casamento, se veste de roxo e usa o seu poder de influência para impedir que seu marido avance o sinal nesse possível romance. Enquanto isso, Sabine sofre o trauma da morte de seu marido e filha, e tenta através de seus jardins se manter financeiramente.
Com um amplo espaço para simbolismos e filosofias envolvendo jardins e nobreza de uma França em uma época 100% absolutista, o roteiro escrito a seis mãos resolve contar uma história trivial com personagens triviais, deixando o espectador à espera da grande sacada que irá erguer os ânimos. Infelizmente, ela nunca acontece. O que acontece frequentemente, no entanto, é sermos inundados pela trilha sonora de Peter Gregson, com seus toques empolgados demais, totalmente em descompasso com o ritmo arrastado do filme.
Possuindo muito pouco dos seu elenco e menos ainda de sua história, Um Pouco de Caos ironicamente não possui nada de imprevisível ou surpreendente. É um passeio seguro pelos inúmeros jardins de uma época de ouro, onde os ricos podiam se dar ao luxo de planejar os inúmeros jardins, caminhar e dançar por eles.
# O Mordomo de Preto
Caloni, 2015-06-29 <cinema> <movies> [up] [copy]Assistir a O Mordomo de Preto é uma mistura de sensações. Primeiro, tem-se a sensação de estar assistindo um seriado, e não um filme com começo, meio e fim. Depois, a certeza de estar sendo enrolado em um formato muito parecido com os filmes da Marvel atualmente, que prezam por não terminar conflito algum que preste em seus filmes. Porém, a pior sensação mesmo é a de saber que a linguagem cinematográfica está sendo deixada de lado para o bem dos enquadramentos e da plasticidade de uma outra espécie de arte que já se sai bem em seu quadrado. A questão que fica é: para que realizar live-actions de trabalhos sem tradução entre artes? Só para ver como seria com atores "reais"? Bom, sinto informar, mas os personagens criados podem ser bonitos esteticamente, mas estão bem longe de serem considerados reais ou complexos.
Girando em torno de um contrato entre Shiori Genpo, uma menina que se veste de menino e que é uma órfã bastarda de pais bilionários amigos da Rainha, e Sebastian Michaelis, um demônio que gosta de sorrir, independente do que estiver acontecendo ao seu redor, O Mordomo de Preto já diz logo no início ao que veio: criar personagens cool, como um mordomo que mata as pessoas usando facas de passar manteiga, o que adiciona um segundo ícone na estante das "figuras experimentais que não deveriam sair do papel". O primeiro ícone desta categoria é este (e, pelo menos para mim, está ganhando em disparado caso houvesse uma competição).
A história... bom, ela é irrelevante. Mundo dividido em dois, conspirações, bem contra o mal, vingança. Enfim, nada que já não tivéssemos visto em produções do gênero -- estou falando de animes -- e que veremos provavelmente muito mais vezes, já que a sanha dos fãs, ou a criatividade dos roteiristas dessas histórias, gira invariavelmente em como o japonês será uma nação poderosa em algum futuro apocalíptico e como o mundo deve se curvar aos seus caprichos (como roupas ousadas ou espalhafatosas).
Porém, pior que isso é ter que aguentar as velhas muletas desse sub-gênero que parece atormentado pela sua incapacidade de criar narrativas fluidas, ainda que ali faltasse criatividade. Dessa forma, os diálogos e narrações são longas, pretensiosas, e irrelevantes. Ainda mais quando as cenas de ação -- essas sim, muito bem feitas! -- contém muito mais elementos visuais dignos de figurar em uma arte para o Cinema (ainda que flerte com o material reciclado do Ocidente, como Tarantino, Zack Snyder e o agora em voga Matthew Vaughn). Aliás, é digno de nota como o fundo verde, usado abusivamente aqui, consegue se sair harmoniosamente bem, quase os fazendo esquecer que é uma produção de baixo orçamento.
Ainda assim, há muitas virtudes em O Mordomo de Preto que são deixadas de lado para o bem do cool e dos caminhos fáceis, como demonizar seus vilões, criar situações impossíveis para que haja uma reviravolta previsível no último instante, e apelar para artefatos já datados, como a velha bomba-relógio.
De certa forma, O Mordomo de Preto homenageia a comédia do absurdo sem ser engraçado, a ação pastelona sem criar tensão, e o drama surreal sem fazer chorar. Enfim, um trabalho artisticamente vazio, embora plasticamente impecável.