Apesar de eficiente por oito anos em pequenos episódios de sete minutos, a série dos estúdios Aardman nunca se aventurou em um longa-metragem sobre um carneiro muito esperto, um cachorro e fazendeiro que lembram versões agrícolas de Wallace e Gromit, e um bando de ovelhas que esbanjam charme e bom humor. O resultado não é apenas um longo episódio como a série televisiva, mas um filme que se aproveita de homenagens e referências muitas antigas sobre o Cinema e o próprio universo sempre criativo desses personagens, onde o fato de serem miniaturas manipuladas em stop motion nunca é um empecilho para criar as mais hilárias sequências.
Dirigido pelo roteirista Mark Burton e com a ajuda do estreante Richard Starzak, o filme se aproveita da dupla original, Justin Fletcher e John Sparkes, para interpretar Shaun e o Fazendeiro (que não tem um nome). A relação do trio carneiro, cachorro e fazendeiro é de longa data, e vemos uma foto empoeirada e descolorida de uma época bucólica e divertida. A rotina do dia-a-dia, no entanto, faz com que Shaun se desgaste, o que o faz bolar um plano para quebrar aquele ciclo interminável de acorda, levanta, e vai dormir. Seguindo a mesma estrutura de um episódio, mas com tempo o suficiente para explorar mais, o plano de Shaun parece que tem tudo para falhar quando o Fazendeiro vai parar na cidade grande, bate a cabeça e não se lembra mais quem é, se transformando em um famoso cabelereiro no processo.
O fato do filme ser quase que inteiramente mudo, pois nenhum dos personagens fala senão grunhidos incompreensíveis, remete diretamente à epoca do Cinema mudo. Conseguimos detectar um pouco de Buster Keaton e suas atrapalhadas quando o trailer do Fazendeiro sai desgovernado na fazenda e vai parar na cidade (para surpresa dos seus habitantes). Da mesma forma, o jogo de transposições de Keaton e até mesmo o jogo de cintura de Charles Chaplin ganham uma revisão em uma animação infantil quando, por exemplo, as ovelhas se disfarçam de outdoor no terminal de ônibus.
Assim como na série e nas produções do estúdio, os personagens possuem funções maiores que eles mesmos, pois servem de metáfora para a vida real. É por isso que o famoso com um penteado diferente acaba virando sensação, mesmo que inspirado no costume do Fazendeiro de tosar suas ovelhas. Ou as cores frias da cidade se sobrepõem ao sol sempre presente da vida no campo.
Mas Shaun, o Carneiro: O Filme brilha mesmo é em suas referências cinematográficas e suas "trucagens" a la comédia dos anos 20. Até mesmo Silêncio dos Inocentes acaba sendo referenciado na sequência da prisão de animais. Não é demais lembrar que em inglês este filme se chama Silent of the Lambs; e "lamb" é ovelha em inglês.
Enfim, sendo visto como um capítulo estendido da série ou como um filme com formato próprio que se aproveita da estrutura da obra original, Shaun Carneiro nunca decepciona, pois consegue obter o máximo de um formato batido, previsível e até monótono em obras semelhantes, como o fraquíssimo Pinguins de Madagascar. Entre os dois, opte pelo mais criativo.
I Origins é sutil e honesto o suficiente para gostarmos dele apesar de nossas convicções religiosas ou científicas. Ele não tenta em nenhum momento te obrigar a enxergar o mundo através de uma visão determinante do nosso destino como seres dotados de consciência, mas brinca com isso o tempo todo, o que é saudável e instigante. E mesmo lidando com uma questão delicada, controversa e complexa como a vida pós-morte, não se priva de desenvolver seus personagens de forma que eles participem do processo de descoberta como seres humanos, e não simples criações unidimensionais para cumprir um papel.
Segundo filme de ficção escrito e dirigido por Mike Cahill (o primeiro é A Outra Terra), que também trabalha com efeitos visuais e edição, a história acompanha o cientista Ian (Michael Pitt) através de uma pesquisa cujo objetivo é de uma vez por todas calar a boca de parte da comunidade religiosa (como se fosse possível) que acredita que a Teoria da Evolução está errada, e que usa como "evidência" dessa crença a complexidade inerente do olho humano. Com a ajuda de sua "quase invisível mas determinada" assistente, Karen (Brit Marling), a pesquisa busca percorrer todo o caminho evolutivo entre a primeira espécie de vida a detectar luz até a magnitude dos nossos olhos, que são únicos por pessoa e já estão sendo usados até como método de identificação. No processo de catalogar olhos, porém, Ian conhece e se apaixona por Sofi (Astrid Bergès-Frisbey), uma modelo que, acreditando como muitos que os olhos são a janela da alma e em reencarnação, tenta sempre enxergar a realidade à sua volta por uma lente mística, além de tentar abrir os olhos de Ian para a possibilidade de existir algo além do que a ciência até agora descobriu.
Sem pressa para desenvolver seu enredo, o que é vital para um acontecimento marcante e a segunda metade da projeção, I Origins dedica boa parte do seu tempo, por exemplo, na caça de Ian em busca de Sofi após perdê-la de vista, ou na dinâmica no laboratório entre ele e Karen, e como ela toma as rédeas da pesquisa com uma ideia inovadora. De certa forma, Ian é o contraponto de dois extremos fortes: duas mulheres que parecem representar a nossa própria dualidade de crença entre o mais provável e o que gostaríamos que fosse verdade. E como eu disse no início do texto, o filme nunca tenta nos convencer de nada, o que talvez seja a parte mais bela de seu roteiro. A história passeia por possibilidades e nunca faz pouco caso de seus personagens, sejam eles voltados para a ciência ou o esoterismo. Pelo contrário: ao tentar unir os dois, cria dualidades em seu discurso que nos deixa cada vez mais à vontade para aceitarmos novas ideias. Outro filme que aborda essa dualidade, o magnífico Contato, pode até ser "acusado", por comparação, em ferir sua imparcialidade no final climático, enquanto o filme de Mike Cahill caminha entre pedras de diferentes cores para percorrer um lago da maneira mais elegante possível.
E por falar em elegante, conseguindo obter algumas das imagens mais belas através dos cenários e paisagens mais intrigantes, a fotografia de Markus Förderer acerta em cheio ao mostrar de uma maneira indireta ao espectador quanta beleza os nossos olhos conseguem captar e o nosso cérebro interpretar, conseguindo no processo abrir o horizonte de pensamentos a respeito do que é realidade e, caso ela fosse além do que sabemos, como uma extensão de nossa própria visão. Não à toa, a segunda metade do filme se passa na Índia, onde há infinitas possibilidades de fotografar o exótico e místico através até mesmo de novas cores, e mesmo diante de tanta miséria extrai o belo. Enquanto isso, a trilha sonora de Will Bates e Phil Mossman evita comentar demais, fazendo uma rima com essa economia de opiniões que permeia todo o filme.
No final, se há algo de conclusivo a respeito do tema é que nunca podemos manter a mente fechada, mesmo que não acreditemos em nada. O truque de usar uma coincidência inacreditável no início da história envolvendo o número 11 pode até servir como "evidência" dentro do filme para a explicação sóbria que muitos espectadores darão para a cena final. Eu, particularmente, não acho tão relevante assim procurar pela "resposta certa" dentro do filme. Há uma espécie de beleza escondida em não tentar estragar um aparente paradoxo: quando a falta de dados justifica algo que pode estar além deles mesmos. Em outras palavras, não adianta fechar os olhos para a realidade, pois ela continuará existindo.
É um desenho de 2012, indicado ao Oscar de 2014, que estreou na Netflix esse mês (2015). Falado em francês e dirigido por três pessoas, o filme parece possuir um maior poder de marketing do que de contar uma história diferente do que o velho clichê "eles vivem em mundos diferentes". Contudo, é bem desenhado, mantendo suas virtudes em seu toque artístico.
A rata, Celestine, por algum motivo imagina um urso seu amigo e o desenha. Ela gosta de desenhar, apesar de ser criada na sociedade de ratos onde vive para coletar dentes de pequenos ursos. Os dentes viram os dois dentes da frente dos ratos, sem os quais eles falam estranho e nem os próprios ratos entendem (apesar de sempre haver algum chato no grupo que afirma estar entendendo). Isso é engraçadinho.
O urso, Ernest, acorda da hibernação morrendo de fome, mas não tem dinheiro para comprar comida. Ele é músico, mas ninguém lhe dá valor. Perseguido pela polícia por vagabundear, acaba conhecendo sem querer Celestine e ambos viram amigos inseparáveis. Isso é sentimental.
O casal de ursos, donos de uma doçaria e uma "loja de dentes", realizam um mercado perfeito: de um lado os jovens ursos compram e comem doces ao final da aula (a escola fica do lado da doçaria), e assim perdem os dentes mais rapidamente, e por isso precisam ir à loja de dentes conseguir mais. Como eles conseguem tantos dentes não é muito bem explicado, mas dá a entender que os mesmos dentes que os ursinhos perdem são usados para os ursos adultos. Isso é de uma lógica infantil, mas estamos falando mesmo de um desenho infantil, em todos os seus detalhes, e por mais que ele tente permear o campo das ideias, no máximo vira uma apologia às ideias francesas sobre economia, não muito raro resumidas, incompletas e tendenciosas.
Como um desenho para crianças, o traço do filme segue a mesma lógica dos desenhos de Celestine, que vai melhorando com o tempo e que "surge" primeiro de um esboço em um papel branco. Contendo em sua lógica visual os traços de personalidade tanto da ratinha -- agitada -- quanto do urso -- lento e desengonçado --, o momento mais inspirado do longa é a perseguição da massa de policiais de ambos os mundos. Eu poderia dizer que a lógica do julgamento duplo também é interessante, mas não é. Maniqueísta ao máximo, resolve uma situação da forma mais preguiçosa possível, típico das animações em série da TV.
Com uma didática e moral "certinhas", permeada de politicamente correto e traços curiosos o suficiente para expressarmos um "aha", Ernest and Celestine é a típica aventura de Sessão da Tarde, em que não há nada para fazer e nada a esperar. Aproveite e faça umas pipocas ou, se estiver frio e/ou chovendo, bolinhos de chuva. Só não coloque muito açúcar.
# Logs em serviços (e outras coisas)
Caloni, 2015-06-05 computer [up] [copy]Já uso logs há muito tempo. Me lembro muito bem que quando programava em BASIC o "passou por aqui" já era útil. Depois de fazer muitas bibliotecas super-flexíveis de escrita em saídas diferentes, níveis configuráveis e uso do mais complexo ao mais banal, cheguei à seguinte conclusão:
Vou tentar defender meu ponto de vista.
Esse artigo do Dr. Dobbs explica de uma maneira bem completa como fazer uma lib de log leve e configurável. O que eu peguei desse exemplo foi a forma mais C++ de formatar as linhas, deixando para trás o estilão printf que depois de variadic templates já está datado.
#include <iostream> #include <sstream> inline void Log(std::ostringstream& os) { std::cout << os.str() << std::endl; } template<typename First, typename...Rest > void Log(std::ostringstream& os, First parm1, Rest...parm) { os << parm1; Log(os, parm...); } template<typename...Rest > void Log(Rest...parm) { std::ostringstream os; LogHeader(os); Log(os, parm...); }
Por que eu acho a minha versão mais legal (não valendo falar que foi porque eu fiz):
Encapsular a saída e o comportamento de um serviço hoje em dia é algo banal. Há diversos programas que fazem isso para você, sendo desnecessário programar toda aquela parte de comunicação com o Windows. O cara do DriverEntry fez um aplicativo que faz isso, que é simples de usar e continua funcionando no Windows 8.1. Atualmente uso um outro encontrado pelo igualmente fodástico Rodrigo Strauss: o Non Sucking Service Manager (seu nome já explica por que defendo utilizar o mínimo possível das firulas da Microsoft).
Além de ser extremamente flexível e não ter falhado nas vezes que o utilizei, o NSSM consegue redirecionar a saída do aplicativo que encapsula como um serviço para um arquivo e rotacionar o arquivo por tamanho ou data (ou reexecução do serviço):
Abaixo uma receitinha básica para configurar seu aplicativo:
nssm.exe install MyService C:\Path\MyService.exe <args> nssm set MyService AppStdout C:\Path\Logs\MyService.log nssm set MyService AppStderr C:\Path\Logs\MyService.log nssm set MyService AppRotateFiles 1 nssm set MyService AppRotateOnline 1 nssm set MyService AppRotateBytes 10485760
_(para quem está se perguntando, 10485760 bytes são 10 MB.)_
Com essa forma de fazer serviços, há uma dupla vantagem:
E ainda uma vantagem-bônus:
Acho que cada um deve escrever no seu header o que achar melhor para depurar seus programas. No entanto, acho válido compartilhar quais são as informações que tem sido úteis para mim:
inline void LogHeader(std::ostringstream& os) { SYSTEMTIME st; char buffer[48] = ""; GetLocalTime(&st); sprintf_s(buffer, "%04d-%02d-%02d %02d:%02d:%02d %04X.%04X %08X ", st.wYear, st.wMonth, st.wDay, st.wHour, st.wMinute, st.wSecond, GetCurrentProcessId() & 0xFFFF, GetCurrentThreadId() & 0xFFFF, GetLastError()); os << buffer; }
Horns é uma fábula contada da forma mais banal possível: a investigação de um crime em uma cidadezinha. Passando por todos os clichês do gênero, a parte divertida é mais ou menos a metade do filme: observar a "maldade" inerente em todo e qualquer ser humano.
Tendo como seu núcleo dramático a relação entre Ig (Daniel Radcliffe) e Merrin (Juno Temple), mas se estendendo a todos os seus amigos de infância, que não saíram da cidade e cresceram e se tornaram os adultos "esperados" de uma sequência em flashback onde estão todos juntos, o assassinato da garota por seu namorado é tido como certo desde o início, dadas as circunstâncias da noite em que foi morta. circunstâncias essas que o roteiro de Keith Bunin baseado no romance de Joe Hill vai contando aos poucos, sem pressa, o que serve pelo menos para manter o interesse médio durante todo o trajeto.
Fora isso, depois que Ig urina e chuta alguns símbolos religiosos no local do crime, começam a crescer chifres demoníacos no rapaz, e as pessoas em sua presença sentem um irresistível vontade de confessar seus desejos mais egoístas, pedindo permissão a Ig para executá-los. Praticamente ninguém se safa da maldição que ele passa a carregar, de forma que ele a usa como virtude para descobrir o verdadeiro assassino de sua amada (mesmo mantendo o suspense, você não acreditou que ele fosse realmente suspeito, não? de qualquer forma, parece que o roteiro acredita que somos, sim, bobos de acreditar nisso).
É preciso dizer que Daniel Radcliffe é perfeito para o papel, que mistura o drama com um certo humor (negro), mas seu personagem é um mero joguete nas mãos de uma história que luta para nunca representar nenhuma ameaça para a visão medíocre de um espectador preguiçoso acostumado a ver e rever a mesma história de assassinato misterioso envolvendo um trio (ou quarteto) amoroso. Por outro lado, se o objetivo ao assistir esse filme é a preguiça de pensar, vá em frente. Está tudo mastigado.
Inclusive a fábula citada. Que Merrin representa um anjo, Ig o diabo, e que toda a mitologia bíblica está enfiada no vermelho constante do filme (como no carro de Ig, nas poltronas da lanchonete) e nos símbolos nada sutis (como a maçã da lanchonete, que chama "Eve"). Até o lado divertido -- deixar as pessoas confessarem seus podres -- chega em um momento de saturação, pois já nos acostumamos com isso e não tem mais graça.
Concentrando seus piores momentos no final, o filme conduzido por Alexandre Aja (que já dirigiu alguns terrores não muito inspirados, como Piranha 3D) ainda tenta arrancar alguma moral daquilo tudo, mesmo tendo conduzido o espectador durante todo o momento a refletir que não existe mocinho/bandido no universo da história. Seria o menos bandido o mocinho? Por que nunca vemos os podres de Ig, já que sabemos que todos o têm?
Enfim, se seu problema com o filme poderia ser ele questionar suas crenças em bem e mal, fique tranquilo. Amaldiçoado é tão clichê que, mesmo considerando que todos são maus, os menos maus são bons.
# Na Próxima, Acerto o Coração
Caloni, 2015-06-08 cinemaqui cinema movies [up] [copy]"Na Próxima..." é uma imersão quase que completa na vida de um psicopata. Seria muito melhor se fosse completa. Infelizmente, mais uma vez, Guillaume Canet encara retratar um crápula da vida real, e a âncora dos fatos como estão nos depoimentos das pessoas envolvidas segura parte da poesia implícita nos momentos mais reflexivos de um thriller bem movimentado.
Ambientado nos anos 70, a história do policial/psicopata Franck Neuhart (baseado na biografia de Alain Lamare) é descrito no letreiro inicial como "um dos mais estranhos casos da polícia francesa", automaticamente aumentando a expectativa do público (um artifício duvidoso para criar boas impressões sobre o filme). Para "compensar", realiza uma rima das mais elegantes que une começo e final através de um olhar tão enigmático quanto significativo.
A direção e o roteiro de Cédric Anger trabalham em um ritmo que parece empurrado pela trilha sonora inquieta de Grégoire Hetzel. O compositor chega a reconhecer a melodia dramática do seriado televisivo Dexter, que retrata a vida de um serial killer, e serve como homenagem e referência temática. Franck tem compulsão por matar jovens mulheres, e o conhecemos "treinando" seus limites atropelando uma delas. Mesmo considerando que esse é apenas o início de sua vida de assassino, logo se torna óbvio que o rapaz não tem a menor possibilidade de sair ileso de seus atos, pois brinca com o perigo indo visitar sua vítima e é desleixado em apagar pistas. O filme inteiro se torna então um cronômetro que vai contando o tempo ainda livre que Franck possui para saciar seu desejo doentio.
Tentando evitar a narrativa em off, um recurso quase sempre usado para que entendamos o ponto de vista da vítima, é uma decisão inteligente do filme deixar seus poucos pensamentos contidos nas cartas que enviava para a polícia, pois respeita o "conteúdo original" e confia na percepção do espectador de que por trás de Franck reside um monstro muito mais complexo do que aparenta em sua vida social, mostrando com todas as cores que um psicopata não apenas passa despercebido da sociedade, como ainda é comumente confundido com uma pessoa gentil e delicada.
Claro que tudo isso é graças à atuação firme de Guillaume Canet, que apesar de também ter interpretado um protagonista com um certo grau de sociopatia em O Homem Que Elas Amavam Demais, aqui constrói um personagem totalmente diferente. Introspectivo sem soar recluso, e sem narrar a história, suas cartas e seus diálogos deixam transparecer sua personalidade e visão de mundo, visão essa que parece, como todo psicopata, forçar um filtro na realidade em que ele precisa aceitar o que ele é. Usando suas próprias palavras: "um matador mata". Ele lembra à distância Edward Norton, menos na fisionomia e mais na atuação magnética, embora o que Canet faça em "Na Próxima..." Norton use seu piloto automático em Birdman.
Apesar de ser um thriller bem agitado, os momentos de maior brilhantismo residem quando nosso "herói" repousa na floresta, olha para o céu e pensa sobre seu papel no mundo. Ele se sente livre, para logo depois ser caçado como um animal. Ele tem tudo para ser um animal, traidor de sua espécie, e mesmo que seja horrível o que ele faz, é difícil fugir do fascínio que ele exerce no seu jogo com os policiais, ou de não se sentir melancólico com a situação de sua pretendente. É admirável que Cédric Anger dedique um tempo razoável explorando as nuances da relação de Franck com as pessoas e a natureza. Muito mais do que a entrega fácil de uma história que parece já contada e já vista um milhão de vezes.
Ainda assim, há algo de transcendental em uma história muito, muito... estranha. Sim, estranha. É uma pena que essa palavra, usada para descrever toda a experiência nos letreiros iniciais, tenha sido tão simplória, tão marketeira. Melhor se saiu o quadro inicial, mais enigmático, mais de acordo com a complexidade de um indivíduo impossível de conviver em sociedade. Ainda assim, digno de nossa empatia. Pelo menos cinematográfica.
Embora no começo pareça uma comédia romântica daquelas bem clichê, com o protagonista sendo narrador em off e aquelas piadinhas previsíveis inseridas durante toda a trama, Beijei uma Garota se mantém honesto ao seu conteúdo original do começo ao fim, trazendo a questão da homossexualidade como alvo de uma chacota inocente, embora nunca ofensiva, e muito menos improvável.
Trazendo a dupla de diretores/roteiristas Maxime Govare e Noémie Saglio em seu primeiro trabalho em conjunto para o Cinema, o filme tem como estrela absoluta Jérémy Deprez (Pio Marmaï), que às vésperas de se casar com seu namorado (Lannick Gautry) com quem esteve junto por 10 anos, acaba passando sua primeira noite com uma mulher (Adrianna Gradziel), pela qual se apaixona e coloca em xeque seu "status" de homossexual tão admirado por seus pais.
Trazendo uma trilha sonora agradável e quase clichê ou brega (esse fato é até apontado em um momento do longa), esse é um filme ágil, que parece ter muito a dizer, quando na verdade se apressa para conseguir encaixar todas as suas gags preparadas especialmente para a desagradável (e conhecida) situação das ComRom em que o protagonista precisa contar a verdade para as duas partes, mas vai enrolando durante praticamente todo o filme, quando inevitavelmente... bom, todos sabem como isso acaba. Talvez o mais interessante seja observar o seu desenvolvimento, e para isso temos a companhia do melhor amigo e sócio de Jérémy (outra figura repetida), o "hétero assumido" Charles (Franck Gastambide), que ganha mais espaço em tela do que geralmente é dado aos coadjuvantes, e realiza um ótimo contraponto cômico ao dramático embora simpático e divertido rapaz.
É divertido observar também que as opiniões sobre a sexualidade alheia estejam espalhadas entre os personagens. Sua mãe parece ter invertido suas opiniões para virar moderninha e acaba se transformando na antítese da tolerância sexual, provando em todas as suas participações que leu a cartilha de esquerda e aplica ela da forma mais peçonhenta, gerando um pouco de antipatia por repetição. Já o pai de Jérémy protagoniza um belo momento, mas na maioria do tempo é apenas um coadjuvante que repete falas. O resto da família é criada para servir às críticas da mãe e criar uma tensão (desnecessária) a respeito da vinda de um bebê.
Mesmo com tantos defeitos e contrapontos, a redescoberta da sexualidade nos relacionamentos é um tema que vale a pena conferir, pois mesmo que simplificado do lado dos noivos, é uma questão delicada sendo adotada em um tom mais ameno. Talvez a piada que mais incomode seja a de não existir bi-sexualidade, no sentido de que, hoje em dia, quando alguém se descobre gay, parece improvável que essa pessoa na era da internet não faça uma pesquisa básica sobre seus sentimentos e desejos, tornando portanto essa desinformação mais patética que cômica.
De qualquer forma, há mais acertos que erros em uma comédia que sabe o que quer, embora flerte com o famigerado e desgastado formato Hollywoodiano. Nesse sentido, lembra a maioria das produções brasileiras enlatadas. Felizmente, há um ar francês de libertinagem que consegue divertir mesmo que em um tom menor.
# TDC SP 2015 (Call for Papers)
Caloni, 2015-06-11 [up] [copy]Antes do nosso encontro 12 no Rio, no segundo semestre, teremos o TDC São Paulo, que já está em sua fase de chamada de trabalhos. Se você tem alguma coisa para apresentar, não se acanhe. Todos são bem-vindos! =)
Peço que os palestrantes que não tiveram a oportunidade de apresentar seu trabalho colaborem com o evento, já que nosso próximo encontro será no Rio, cujo público, acredito eu, deverá mudar em sua maioria.
Efeito Borboleta é um desses filmes difíceis de defender, mas quem comprar a briga (como eu) pode encontrar uma fonte inesgotável de prazer. Prazer de defender a arte cinematográfica, mesmo às vezes através de sua própria imperfeição. Prazer em reconhecer que, mesmo com tantos defeitos, uma obra pode exibir virtudes que a tornam ímpares, ou pelo menos dignas de algumas revisitas. Há elementos particularmente fascinantes escondidos dentro do embrulho que é este filme, em um formato não muito bem empacotado.
Centrado na figura de Evan Treborn, um garoto que passa sua infância tendo blackouts, ou seja, brancos de memória, justamente em momentos particularmente tensos e potencialmente importantes do início de sua vida, acompanhamos seu desenvolvimento em três fases distintas: aos 7 anos, aos 13 e, sua fase final, aos 21 (respectivamente interpretado por Logan Lerman, John Patrick Amedori e Ashton Kutcher). Além dele, há um círculo de amigos que irá fazer parte de toda a história em todas as suas fases. Há a confusa Kayleigh (Sarah Widdows, Irina Gorovaia e Amy Smart), seu irmão problemático Tommy (Cameron Bright, Jesse James e William Lee Scott) e o distante Lenny (Jake Kaese, Kevin G. Schmidt e Elden Henson).
Agora, por que me dou ao trabalho de citar todos os nomes envolvidos nesse projeto? Porque, diferente do que pode-se imaginar com o nome de Ashton Kutcher no papel principal, ele é, em conjunto com os adultos, as figuras menos interessantes do longa. Isso acontece porque a fase de blackouts das duas primeiras fases é realizada com muito mais capricho, o que é óbvio, pois são os momentos dramáticos dessas fases que irão ecoar no futuro desses quatro personagens (além da mãe de Evan, vivida por Melora Walters em todas as fases).
O roteiro e a direção é dos estreantes Eric Bress e J. Mackye Gruber, que não fizeram praticamente mais nada de destaque no Cinema desde então, no que se passaram 10 anos. O que é uma pena, pois adoraria vê-los em sua evolução da linguagem, pois em Efeito Borboleta está claro que eles não brilham tanto, pois há problemas sérios na condução de atores e na própria sequência das cenas. Em um dos inúmeros momentos em que vemos o médico responsável pelo caso de Evan e sua mãe sempre chorando, eles fazem questão de repetir a mesma cena da mãe chorando, uma cena completamente genérica que evidencia a falta de preparo em conduzir o elenco adulto, que por comparação fica muito aquém do extremamente competente elenco mais jovem.
A ideia por trás do filme é que Evan, ao ler os diários que escreveu como forma de terapia para seus brancos, consegue voltar no tempo, exatamente naqueles momentos que não se lembrava de ter vivenciado, e alterar o curso da sua história passada, fazendo com isso mudanças drásticas na história de vida dos quatro personagens principais. Tentando sempre conseguir com que todos fiquem bem, ele constantemente se vê na necessidade de voltar. Quer dizer, apesar do filme tentar mostrar um aspecto mais positivo nos motivos que levam Evan a viajar no tempo, sabemos com apenas cinco minutos pensando em suas decisões que sua motivação é completamente egoísta: no fundo ele quer ajudar a si mesmo e sua amada Kayleigh a sair dos inúmeros futuros alternativos em que ambos não conseguem ficar juntos, e mesmo quando em uma das alternativas ele consegue deixar todos os seus amigos bem, por ele não estar, parece inventar uma desculpa através de sua mãe para voltar novamente.
Embora simples, como todo filme de viagem no tempo está fadado ao fracasso de amarrar sua teoria. Porém, Efeito Borboleta consegue ser ainda pior, pois tropeça feio em questões óbvias. O que aconteceu, por exemplo, nas "versões originais" em que Evan desenha-se na prisão ou fazendo um vídeo erótico infantil? Ou não existe versão original? Esses fatos não são explicados. Porém, ao mesmo tempo, a coragem dos idealizadores em abordar temas como pedofilia de maneira tão franca é digna de aplausos, tanto que detalhes como esses acabam evaporando no decorrer da trama, mas não ao repensarmos depois que o filme acaba.
Enquanto isso outros detalhes da trama que possuem um ótimo potencial filosófico são deixados de lado para que este vire um enlatado thriller dramático. Seria fascinante, por exemplo, abordar esse aparente "balanço no Universo" que impede que exista um futuro onde todos estejam bem, fazendo com que alguém sempre tenha que carregar algum fardo na história (os quatro possuem versões). No entanto, o foco da história é o amor entre Evan e Kayleigh em cima de um drama criado nas diferentes dimensões de tempo/espaço, mesmo que este drama tenha que ser baseado na figura de Evan como adulto, um Ashton Kutcher que, repetindo frequentemente o seu olhar apalermado de lado, de drama vai de zero a negativo.
Então, o que torna Efeito Borboleta um filme digno de revisitas? É difícil descrever sem discorrer por cada quadro e cada momento-chave. Sua distinção entre os filmes se enquadra em momentos tensos que contornam um drama meio impessoal, quase analítico, da realidade humana. São os poucos olhares e gestos de Lenny em seu beco sem saída cósmico, ou a dor sempre presente em uma relação de abuso do pai de Tommy e Kayleigh. Por isso, fiquemos de olhos na evolução do filme conforme envelhecemos como espectador. Acredito que ele fique melhor a cada nova percepção da nossa realidade. Como os bons filmes devem ser.
Sem contar que o final se apresenta apenas 50% satisfatório. Porém, chegaram a ser filmados finais alternativos em que se torna compreensível o problema dramático (e comercial) de terminar este filme. O DVD e a internet os possuem e é digno de nota para o cinéfilo mais aficionado ir buscá-los. Ao assistirmos ao final escolhido pelos diretores vemos que a questão filosófica do filme era uma premissa importante, já que apenas quando o protagonista se suicida é que ele consegue entregar toda a felicidade possível a ser dividida entre os envolvidos. Trágico, mas budista, ou seria anti-natural? Esta, sim, é uma questão que vale a pena gastar um tempo após o filme.
# A Primeira Noite de um Homem
Caloni, 2015-06-16 cinema movies [up] [copy]Esse é um filme que possui a alma dos anos 60. Quebra de convenções por todos os lados, e um cuidado especial na condução de uma... quem diria, comédia romântica, em tons sortidos; pelo menos o suficiente para que não encaremos os detalhes inseridos na trama apenas como engraçados, mas também dramáticos; e fiquemos apreensivos pelo destino de um dos heróis mais icônicos e irônicos do Cinema: Ben Braddock.
Dirigido por Mike Nichols (que morreu de ataque do coração ano passado), o filme inicia como uma comédia, contando sobre a vinda de Ben Braddock (Dustin Hoffman) à casa da família para sua "recepção" por ter sido aceito em uma faculdade de prestígio. Nichols conta isso em apenas uma longa sequência que passeia pela residência dos Braddock. Aqui os mais velhos são geralmente conhecidos pelo seu sobrenome. Dessa forma temos Mr. e Mrs. Braddock (William Daniels/Elizabeth Wilson) e a família do sócio de Mr. Braddock, Mr. e Mrs. Robinson (Murray Hamilton/Anne Bancroft). Estamos falando de uma classe rica já acostumada a mandar em pessoas, e o filho representa um bichinho da casa que é estimado por todos.
Em apenas cerca de 10 minutos são colocados no mesmo quarto Ben e Mrs. Robinson (com ela nua). Ben Braddock, com seus trejeitos, sua fala e seu modo de pensar sugerem, é virgem ("surpresa" essa já estragada no título nacional). Mrs. Robinson, igualmente fácil de traduzir, é uma alcóolatra que tenta seduzir o jovem rapaz. Ela trata-o também como um bichinho de estimação, para satisfazer seus anseios sexuais. Enquanto se sentem orgulhosos por Ben, os Robinson também esperam ansiosos pelo retorno de sua única filha, Elaine (Katharine Ross), que poderia ser uma ótima candidata para uma união formal entre as famílias. O que eles não esperavam era que essa relação inter-famílias e extra-conjugal viesse de outro lugar.
O roteiro adaptado por Calder Willingham (que também escreveu Glória Feita de Sangue, de Kubrick) e Buck Henry a partir do livro de Charles Webb passeia em um fluxo contínuo pelos acontecimentos, onde praticamente tudo é relevante para o desenvolver da história. Podemos dizer que sua primeira metade é engraçada (principalmente quando Ben tenta conseguir um quarto para que ele e Mrs. Robinson possam finalmente ter a sua primeira noite), mas o humor está espalhado em referências e detalhes, que aos poucos vão dando lugar para uma trama que sabíamos que iria acontecer -- inclusive Ben -- mas que seria impossível evitar. Por quê? O rapaz diz logo no começo: deseja mudar algo em sua vida.
E esse "deseja mudar algo" é uma metáfora das mais inspiradas. Desafiando o status quo através da eterna luta adultos x jovens que ficou bem acirrada naquela época, os adultos também representavam o poder (e eles frequentemente escolhem o que é melhor para a vida de Ben), a religião (que merece uma bela homenagem em seu terceiro ato), o monopólio do sexo. Tudo isso está representado em uma história que caminha por caminho não-convencionais para o mais tradicional dos clichês das ComRom. Às vezes não tem como fugir do formato, mas os bons diretores conseguem extrair ouro do que já está escrito em pedra por tantos anos (e hoje é tão batido).
Até a música de The Graduate remete diretamente àquela época com todo seu ímpeto, sua poesia, sua narração bem próxima do personagem. Cantada pela dupla Simon & Garfunke e tendo a versão instrumental por Dave Grusin se torna o hino de uma geração. Ao contrário do que você pode pensar, não é sobre nerds virgens, mas sobre homens que desejam retomar o controle de suas vidas. Controle esse constantemente nas mãos dos pais. Bom, chegou a hora da retomada. Diferente dos igualmente importantes filmes de John Hughes sobre os conflitos adolescentes, é a glória juvenil homenageada e inserida em uma sociedade que já está com os dias contados.
Com tudo de errado representado pelos "adultos" e a liberdade cantada e descrita pelos movimentos desarticulados do frenético e brilhante Dustin Hoffman, encontramos no final de um túnel de reflexões um turbilhão de emoções, onde uma cruz, um parapeito e um ônibus conseguem em menos de alguns momentos representar uma das sequências mais belas produzidas pelo Cinema. É cafona, assim como a época, e é por isso que funciona do começo ao fim. E, ironicamente, envelheceu como ninguém.
Ladrões de Bicicletas é um filme curto (menos de uma hora e meia) e antigo (da década de 40) e italiano. Porém, apesar dele ser curto ele é completo, apesar dele ser antigo ele é atual, e apesar dele ser italiano ele é, felizmente ou infelizmente, universal. Para os que se interessam por bobagens, foi um dos primeiros longa-metragens a ganhar um Oscar de Filme Estrangeiro, um título que não existia e era dado de vez em quando pela academia. Para os que se interessam pelo Cinema como arte, este filme virou um dos exemplos mais conhecidos do neo-realismo italiano, um estilo de fazer filmes que buscava refletir a realidade social da época, sendo filmado quase como um documentário. Tanto que os personagens não são nada especiais, podendo ser qualquer um na megalópole italiana naquela época pós-guerra.
Aqui sabemos da história de Antonio (Lamberto Maggiorani), um pai de família que em tempos difíceis consegue um emprego que exige que ele use bicicleta: pendurar cartazes pela cidade. Tendo penhorado a magrela, ele pede ajuda a sua esposa, e o casal penhora os lençóis para conseguir o agora equipamento de trabalho de Antonio de volta. Como o título já denuncia, a bicicleta é roubada -- e mesmo assim, a sensação de insegurança no filme é instaurada em um ou dois momentos preciosos de criação de atmosfera. Desesperado, vai pedir ajuda a um amigo, e no dia seguinte, um domingo, vão todos procurar o objeto roubado em uma feira que parece ter sido montada exatamente para esse mercado de bicicletas de "terceira mão".
A direção de Vittorio De Sica com seus enquadramentos irretocáveis e nostálgicos na maioria das vezes, e a trilha sonora constante de Alessandro Cicognini força a emoção, mas sem sucesso: até a tristeza é escassa naquele universo. O drama já está montado há muito tempo atrás. Não pelos personagens, mas por todas as centenas (milhares? milhões?) de pessoas que vemos andando pelas ruas de Roma. A pobreza vira um mero detalhe frente à realidade de não poder conseguir a dignidade de ter um emprego, e logo no começo vemos uma multidão procurando por um (onde apenas Antonio é chamado, já desesperançado do outro lado da rua).
Não, não é preciso forçar nada, pois aos poucos percebemos um drama mais universal até do que de todas aquelas pessoas. É uma questão moral que está corrompendo aquela sociedade. É uma ideologia falida (não importa qual), um pesadelo com os olhos abertos. Talvez seja o resultado de uma crise material que gere a espiritual. É por isso que todas aquelas pessoas vão à missa: para comer (e ter sua barba feita).
A caçada que Antonio e seu filho fazem pelas ruas da cidade é um mero contratempo para que olhemos em volta e consigamos constatar com nossos próprios olhos. Quando Antonio encontra o ladrão, então, o óbvio pula do nosso cérebro, em um beco esquecido por aquele turbilhão de acontecimentos: os valores morais já estão invertidos há muito tempo. O mal já venceu há muito tempo, se esquecendo apenas de anunciar. É hora de mudar?
E é com isso, com esse pressentimento, que o terceiro ato, infalível, ganha todo o seu peso. Um novo turbilhão emotivo se configura -- esse em muito menos tempo -- em uma decisão desesperada de um pai, e com direito ao testemunho do seu filho. A felicidade que antes sentiam ao sentar no restaurante forma a antítese exata da vergonha e da humilhação que o vemos sentir alguns minutos depois. Quando este desaba, desabamos juntos. Estamos exauridos. Não há forças para continuar. Que bela maneira de sintetizar uma mensagem.
# Kumiko, a Caçadora de Tesouros
Caloni, 2015-06-21 cinema movies [up] [copy]Kumiko é uma fábula criada a partir de uma história real (ou pelo menos levemente inspirada em uma pessoa). Embalando uma história impossível em torno de um outro filme sobre uma história impossível (e, este também, baseado em uma história real), Kumiko é uma experiência entusiasmada, embora na maioria das vezes, não tenha lá seus motivos.
Dirigido por David Zellner (que participa do filme) e co-escrito com seu parente (irmão?), a história gira em torno da Kumiko do título, uma garota insegura que trabalha em um emprego que não gosta e que tem todos em sua volta constantemente a assediando para que ela se ajuste ao padrão do que se espera daquela sociedade de uma mulher em sua idade. Estamos no Japão, então isso faz muito sentido, e o que torna Kumiko um tanto mais heroica (transgredir as regras sociais no Japão, para uma mulher, com certeza é heroico, ainda que nos tempos atuais).
Quando Kumiko encontra uma fita VHS antiga enterrada em uma caverna na praia contendo o filme Fargo (sim, aquele dirigido pelos irmãos Coen), ela pensa ter encontrado um mapa para o tesouro: o lugar onde o personagem de Steve Buscemi no filme enterra o dinheiro do sequestro que deu errado. A partir daí a vemos planejar passo-a-passo seu objetivo. Bom, na verdade, mais ou menos. Sua rotina e sua vida solitária é mais o foco aqui, e como pessoas libertas das convenções sociais, ainda que notadamente malucas, são vistas com maus olhos.
Plasticamente um belo filme, com uma fotografia limpa e com o tema vermelho impregnando a tela, "Kumiko" é um filme tecnicamente irrepreensível, embora não tenha nenhuma ambição mais do que entregar a jornada da nossa heroína quase como uma conquistadora espanhola. Brincando com o destino real da garota (na vida real, ela se matou), alguns detalhes da japonesa em carne e osso são transmitidos mais como metáforas, e até a posição do diretor como um personagem que faz de tudo para ajudá-la é metalinguístico.
Contudo, como mensagem, assim como muitos filmes que se espelham em um acontecimento do noticiário, é vazio, o que se torna um pouco decepcionante. Ainda assim, mesmo não sendo um grande filme, Kumiko merece mil vezes mais ser assistido por ousar diferente, do que tantos filmes igualmente medíocres, mas sem qualquer traço artístico que se destaque das aventuras formulaicas que estamos acostumados a assistir. Só por isso já valeria uma visita.
Casadentro é um trabalho tão neo-realista quanto intimista. Baseado em quadros estáticos, o filme se dedica a mostrar como o ser humano ignora a passagem do tempo de sua própria vida, e ao mesmo tempo resolve discutir a relação entre quatro gerações debaixo do mesmo teto pelo período de 24 horas. Se sentindo tão opaco quanto os pensamentos dessas pessoas, o filme consegue acelerar um dia sem mover um centímetro de câmera. Conseguindo se mostrar presente durante todo o momento, o estilo de direção parece interessado demais que seja notado.
Escrito e dirigido pela peruana Joanna Lombardi, que realiza aqui seu primeiro longa-metragem, Casadentro conta a história de Dona Pilar (Élide Brero), uma senhora de 81 anos que, embora já com os reflexos e sentidos debilitados, leva uma vida confortável em sua casa com a ajuda de suas duas serviçais, a experiente e praticamente amiga Consuelo (Delfina Paredes) e a jovem e atribulada Milagros (Stephanie Orúe), além de seu xodó: Tuna, um pequeno cachorro. Na véspera do seu aniversário recebe a ligação de uma de suas filhas, que pretende visitá-la e passar a noite com sua mãe e mais duas gerações da família: sua filha (neta) e neta (bisneta). A partir daí as preocupações da Senhora Pilar são de que todos estejam devidamente acomodados e que não lhes falte nada.
Filmando com ângulos de diferentes alturas, mas sempre parado durante toda a cena, Lombardi confia no espectador para praticamente tudo. Os detalhes da história precisam ser pescados por nós a todo momento, pois não haverá aviso nem ação o suficiente para que seja notado. Com exceção de pequenos plano-detalhes (quando a câmera enfoca apenas um objeto ou apenas a face de uma pessoa na tela inteira), o importante precisará ser observado nos diálogos ou nas rápidas expressões dos personagens. O resto -- a maior parte -- é de uma rotina que cansa pela obviedade, mas que por isso mesmo consegue trazer em relevo o que quer ser contado.
Note, por exemplo, como tudo que Dona Pilar disser, fazer, ameaçar fazer ou faria se uma situação X ocorresse, é rapidamente captado e verbalizado por todos do recinto onde ela está ausente. Dessa forma, nos condicionamos a enxergar essa pessoa idosa como enxergamos, ainda que inconscientemente, os idosos em geral: lentos, previsíveis, teimosos. Ironicamente, são essas as características que vamos aos poucos atribuindo aos seus familiares, meio que espalhados entre eles. Porém, essa é uma interpretação tão boa quanto qualquer outra que você for tirar dos pequenos acontecimentos dessas 24 horas que passarmos juntos de quatro gerações de mulheres sob o mesmo teto. Eu, pessoalmente, me perguntava como é possível que essas pessoas, diante de uma vida tão longeva, potencialmente com tantas histórias para contar, se contentavam lendo um livro "muito empolgante"?
Pois bem, é esse tipo de julgamento de valor que Casadentro está buscando em quem o assiste mais atento, e não bocejando ou olhando no celular (como Milagros faz diversas vezes no filme). Se há tanta inércia em torno da aniversariante, ou é porque um diálogo já foi tentado (mais de uma vez), ou é porque há ressentimentos de coisas que ficaram perdidas no tempo e não valeria a pena escavar, agora que restam poucos anos de vida para a matriarca. Em um determinado momento sua filha se pergunta se as mulheres vivem mais, já que seu pai e avô nunca chegaram perto dos 80 anos. Dentro dos parâmetros do filme, me pergunto se esse foi um pensamento aleatório ou uma reclamação velada de por que sua mãe ainda estava lá.
Bom, todos esses são pensamentos acerca do que não acontece no filme, ou pelo menos não acontece de uma forma óbvia. É por isso que, apesar de realista, seu caráter intimista reside no que cada espectador paciente irá encontrar nessa pequena janela que se abre para a "realidade" de pessoas que parecem estar de castigo dentro de uma casa deveras tranquila, mas esquecida em algum lugar do tempo.
# Escolha de palestras para o TDC 2015 Sampa
Caloni, 2015-06-22 [up] [copy]Já passou a semana de envio de palestras, e agora chegou a hora de escolher as palestras que farão parte da Trilha C/C++ do TDC 2015, em São Paulo. Se vocês puderem colaborar, é super-simples e rápido. Há uma lista de títulos de palestras e você só precisa escolher qual a mais importante para você. Avalie com cuidado.
Divertida Mente é um sinal de que Disney/Pixar, apesar de às vezes parecer que está saindo dos trilhos, produzindo mais e mais continuações e se transformando em uma franquia comercialmente poderosa enquanto artisticamente repetitiva, dessa vez arrisca pra valer, apostando em uma versão de Ela (Spike Jonze, 2013) para o público infantil, destrinchando as emoções que nos formam de uma maneira que dificilmente você verá em produções do gênero.
A história conta desde o início com a narradora em off Alegria (Miá Mello aqui, e a sacada de gênio Amy Poehler na versão original), a emoção que nasce junto de um bebê que será o protagonista no mundo real, Riley, a filha única de um casal. Alegria é a primeira de cinco emoções que controlam o humor de Riley. Na verdade, ela é a principal, seguida (bem) de perto pela Tristeza (Phyllis Smith no original; no nacional deve ser um genérico da Globo), e tendo três outros coadjuvantes: Raiva, Medo e Nojinho. Essas cinco emoções são consideradas pela psicologia moderna as emoções-base de onde derivam todas as outras (na verdade, são sete, mas deram uma resumida). A direção é de Pete Docter, que já pegou do estúdio Up! e Monstros S.A., e co-dirigido pelo estreante Ronaldo Del Carmen, e o resultado é um tanto decepcionante. Já o roteiro, escrito a sete mãos, teve ajuda dos diálogos de parte do elenco, e está muito mais interessante em metade do tempo. A outra metade é mais da Disney do que já conhecemos.
O longa gasta seu começo descrevendo o crescimento da menina até os 11 anos e com isso explica a formação daquele mundo que podemos chamar de cérebro abstrato. Os próprios personagens que lá residem não possuem uma forma definida (mas brilham), talvez uma tentativa de não impor realismo em um conceito puramente criativo. Podemos sentir que os idealizadores desse mundo provavelmente trabalharam muito nele, estão orgulhosos dele (com razão), mas que por isso mesmo se apaixonaram demais em explicar cada detalhe de um mundo um tanto insosso para passarmos (muito) mais da metade da história nele. No entanto, tudo isso faz parte das explicações desse próprio mundo. Um tanto paradoxal.
Sim, as cores das emoções combinam com as listras da roupa de Riley, interessante. As formas do "cérebro abstrato" são sempre arredondados, eles explicam memórias como vídeos no YouTube, e tubos levam as memórias de curto prazo para gigantescas gavetas de memória de longo prazo. Até aí, nada do que já veríamos em programas educativos. Fora a fofice. Até extensões do mundo, como amigo imaginário e a terra da imaginação soam como algo já visto. Talvez tenha sido gasto tempo demais para esse projeto sair do papel.
No entanto, há um dinamismo nas transições entre o mundo real e o da mente de Riley que é fluido o suficiente para que esses detalhes nem importem muito. O que queremos, realmente, é entender essa dinâmica entre Alegria e Tristeza, mas os personagens já são definidos por emoções primárias, tornando difícil qualquer nível de interação maior que piadas óbvias.
Mesmo assim, com todos seus clichês óbvios e frases de efeito, Divertida Mente consegue se elevar do patamar do medíocre entregando tudo isso em uma aventura que se passa unicamente na mente de sua protagonista, e elaborando todos esses conceitos óbvios, mas necessários para que exista um conflito interno (trocadilho proposital) na personagem o suficiente para que ele fosse algo impactante. Paradoxalmente de novo, o conflito não é daqueles muito criativos.
E é dessa forma com que Divertida Mente, falhando pontualmente no quesito direção de arte, se sobressai em suas ideias, e sua tentativa de explicar conceitos complexos para crianças/jovens. Apenas essa virtude, única e constante por todo o roteiro, merece aplausos e faz com todo o trabalho valer a pena.
# Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros
Caloni, 2015-06-24 cinema movies [up] [copy]A trilha sonora de John Williams é bem aproveitada nessa continuação de emoções de Jurassic Park, mais de 20 anos depois de ser produzido, para um público mais aficionado por efeitos, 3D e a computação gráfica no seu limite. Por isso mesmo não se pode negar que no quesito entretenimento ele se sai maravilhosamente bem, impressionando quase da mesma forma com que o filme de Steven Spielberg nos impressionou. E quase já é algo muito bom para uma franquia já desgastada tentando se reerguer com ideias "novas".
Outra coisa que não se pode negar é a escolha ideal de Chris Pratt para o papel de galã-macho-alfa, responsável por salvar o mundo controlado pela administradora do agora aberto ao público e renomeado parque, Claire (Bryce Dallas Howard, uma escolha também interessante). Pratt, recém-saído da série Parks and Recreation, se tornou sensação no último filme besteiro da Marvel, Guardiões da Galáxia, e desde então tem aprimorado seu jeito canastrão com uma ponta de seriedade. Aqui ele faz uma interpretação além do que se poderia esperar, criando um Owen à altura das elucubrações filosóficas do Dr. Ian Malcolm do original.
Porém, a figura de Dr. Ian está dividida em Owen e em Lowery (Jake Johnson), uma figura mais consciente, ecologicamente falando, do que o oportunista e igualmente icônico personagem de Wayne Knight. Além dele podemos observar pessoas que lembram um ou outro traço das figuras mais icônicas daquele filme hoje empoeirado, mas que na época criava suspense com quase nada. E se estou falando basicamente de atuações e comparações com o original, é porque o original merece ser mencionado a partir do que o torna superior: seus personagens, sua eloquência e sua trama um pouco mais complexa do que um passeio no Parque dos Dinossauros se tivesse sido terminado e como isso pode -- e deve -- sair do controle para o prazer do público (nós, espectadores com ou sem óculos 3D).
Sim, nessa continuação existem questões interessantes a respeito das espécies híbridas, uma evolução pressentida da ciência atual, que futuramente poderá criar seres viventes diferentes de tudo o que já foi produzido pela Evolução, basicamente editando cópias de DNA, algo muito mais factível do que reconstruir exatamente os códigos genéticos de criaturas que viveram mais de 60 milhões de anos atrás, além de fruto de questões filosóficas igualmente fascinantes, como copyright de criaturas, e inclusive a questão da nomenclatura (como foi acertadamente apontado como o que tem sido feito hoje com o nome de estádios de futebol, ou até de times inteiros). Outra vantagem é explicar muito a ainda ausência de penas, um traço evolutivo que sabemos que deve estar presente em pelo menos algumas espécies da época (afinal, os próprios pássaros são herança direta dos dinossauros, como um inspirada transição inicial nos faz lembrar). Afinal de contas, não importa como os dinossauros realmente eram: para o público, e para o Cinema, a imaginação é o que conta.
Todas essas boas ideias se unem para criar um híbrido que será a nova atração na ilha, e que ficou isolado durante todo o seu crescimento em cativeiro. O resultado, como todos esperam, nem é preciso dizer. A partir daí, o filme é adrenalina pura, e os dinossauros -- ou melhor dizendo: híbridos -- estão aí para repetir a mesma cena um trilhão de vezes para quem não viu (porque estava indo buscar pipoca) esses bichos gigantescos espreitando os humanos com suas faces em perfil. Aliás, essa mesma questão está inserida no filme, quando Claire comenta que o público já não tem o mesmo fascínio pelo que parecia ser um milagre na época, e hoje é visto como mais um elefante de zoológico.
E, convenhamos, um elefante caro, barulhento, viciado em sensações. Infelizmente, ou felizmente, para muitos, isso é tudo o que teremos pelo resto do filme: correria, gritaria, efeitos digitais. E felizmente estaremos confortavelmente sentados em nossas bolas de hamster providos de refrigerante gelado. Já a história, essa que estava inspirando questões bacanas... por essa provavelmente teremos que esperar por mais uma continuação. O que será que está passando da Marvel na sala ao lado?
Pi é uma viagem quase psicodélica ao âmago da questão: a linguagem do Universo é a Matemática. Extrapolando isso, mas ao mesmo tempo mantendo o suspense de que isso poderia ser real, enxergamos a insanidade através das lentes P&B saturadas de uma luta interminável entre fé, conhecimento e a pura ganância.
Primeiro trabalho em longa-metragem do diretor Darren Aronofsky (O Lutador, Cisne Negro, Noé), a história gira em torno de Max Cohen (Sean Gullette), um matemático obcecado com sua teoria de que todo o Universo poderia ser descrito através de um padrão, e da mesma forma como grandes pensadores encontraram padrões existentes na natureza em abundância, como a espiral derivada da proporção áurea, a medida de um retângulo recursivamente gerado ao se tornar um quadrado, ele acredita que encontrará um padrão que irá descrever as oscilações caóticas da bolsa de valores, um universo próprio de mini-decisões humanas.
Tendo como companhia eventual uma vizinha fascinada pelo rapaz, uma menina japonesa que adora ver como Max é tão rápido em fazer cálculos quanto uma calculadora, um rabino interessado em desvendar um aparente código secreto da Torá, e uma mulher, sua chefe?, que o contrata exatamente pela chance de poder dominar o jogo de Wall Street, Max frequentemente se isola na casa de seu ex-professor, Sol (Mark Margolis, o Tio Salamanca de Breaking Bad), uma mente igualmente brilhante que estava às voltas de entender a lógica interna do número Pi (3,1416...), mas que teve que paralisar seus esforços devido a um derrame, e que agora se contenta em jogar Go com seu aluno e alimentar seus peixes.
Com esse microcosmos de mentes interessadas de alguma forma no conteúdo do cérebro de Max, Aronofsky sabiamente emprega um artifício brilhante para representar a angústia que se passa dentro de sua mente: seu companheiro de todos os dias é um computador (batizado carinhosamente de Euclides), e muito do que acontece com a placa de silício pode ser uma visão externa do que se passa no cérebro de seu usuário. Um dia ele gera um pane e entrega uma sequência de duas dezenas de dígitos, algo que levanta suspeitas de Max de que ele pode estar diante do padrão tão desejado. No entanto, seus ataques alucinatórios levam também o espectador a crer que tudo isso pode ser uma grande ilusão.
Empregando um P&B enclausurante, o fotógrafo Matthew Libatique, junto do diretor, seu companheiro habitual, encontra uma maneira de visualmente expressar a lógica da narrativa: o caos, se reduzido ao máximo, irá entregar um padrão facilmente identificável, de onde se extrapola todas as regras do Universo. Tendo isso em mente, cada vez mais os traços do cenário e dos personagens vai se simplificando, tendo menos detalhes em volta, e mais preto no branco (ou vice-versa), demonstrando uma rima extremamente elegante com uma fala do professor de Max a respeito de como o Go, aquele joguinho de pedras pretas e brancas, representaria o próprio Universo.
Mantendo-se sempre fiel ao suspense entre a verdade e o ilusório, Pi é um trabalho ambicioso criado com muito pouco orçamento, o que o torna tão admirável quanto Primer (outro filme barato e ambicioso sobre ficção-científica). Um trabalho e tanto da estreia de um diretor que vai se acostumando cada vez mais a retratar a ambiguidade da vida no Cinema.
Madoka Mágica, uma série com começo, meio e fim embalada em uma arte-sequência deliciosamente artística de acompanhar e um enredo absurdamente filosófico para os que destratam anime, resolve extrapolar alguns conceitos de sua conclusão original, criando esse longa-metragem onde, podemos dizer, tanto a parte artística quanto a narrativa são multiplicados por 1000, e perdendo apenas um pouco de suas rédeas originais, ainda que compensando pela sua realização.
Dirigido pelos mesmos criadores da série, que fizeram dois outros filmes anteriores a esse (mas que por algum motivo parecem não ter chegado ainda ao Ocidente), essa história a princípio parecia independente, mas aos poucos foi-se revelando o inevitável: ela precisa que a pessoa assista à série original, o que já enfraquece um pouco o enredo.
De qualquer forma, ela faz várias homenagens de onde foi inspirado, e não parece ser totalmente criada para fazer dinheiro, mas para complementar ideias que podem ter ficado de fora no seu primeiro tratamento. Aqui iniciamos a história em uma espécie de realidade alternativa, onde todas as garotas mágicas que viviam na cidade onde os fatos da série ocorreram se conhecem e combatem fantasmas e seus pesadelos. Não existe o conceito de bruxa, apesar de uma nova mascote obviamente parecer ser um derivado delas. Como todos que já assistiram à série sabem, e como esse filme não faz sentido sem seu conteúdo original, não considero spoiler dizer que da forma com que as coisas acabaram, o Universo foi reescrito sem a existência de Madoka e sem o fim trágico de uma garota mágica: se tornar uma bruxa.
No entanto, a história em Rebellion desmente justamente essas premissas, atingindo seu objetivo no momento em que Homura Akemi (sempre ela) suspeita estar vivendo em um mundo de mentira fabricado por alguém. A busca por esse alguém é o que traz algumas das surpresas mais interessantes do universo da série/filmes, além de graficamente tanto as lutas quanto as sequências paradas terem se beneficiado de uma notória evolução em seus conceitos, onde cores, formas e até estilos diferentes de animação se juntam pelo bem na narrativa e pelo dinamismo de sua história. Se configurando como uma quase-arte abstrata, as discussões a respeito de realidades alternativas, individualismo, desejo, destino e essência ganham rimas extremamente poderosas em seu visual e até em sua trilha sonora, que se aproveita dos temas originais para compor uma extensão orgânica e interpretável como um desdobramento de uma lógica interna que antes era fechada.
Contando com criadores que se especializaram em elevar à quarta potência tudo que havia sido dito, visto e pensado pelas personagens-chave da série, o roteiro de Rebellion consegue extrair essa complexidade em seus diálogos, mas infelizmente não deixa de ser previsível em determinados momentos, se auto-sabotando pontualmente, ou talvez no mínimo piscando descuidadamente para seu espectador. Continuando em seu processo de auto-análise filosófica, perde a chance de se manter em um nível razoável de interpretação de sua obra em uma primeira visita, preferindo uma abordagem hermeneuticamente centrada na metalinguagem de seu próprio enredo, se perdendo em elucubrações em um ritmo igualmente alucinante. Se esse parágrafo lhe parece particularmente difícil de entender, acredite: Rebellion é muitas vezes mais.
Ainda assim, com dois grandes defeitos em comparação à obra anterior (1: depender de material prévio, 2: auto-análise filosófica inatingível), Madoka Mágica Rebellion pode se mostrar como um trabalho maduro que inacreditavelmente tem origem na animação japonesa, e que com ela ainda se beneficia ao expor graficamente seus dilemas. Uma obra ímpar que deveria ser visitada pelo menos duas vezes. Pelo menos é o que eu tentarei fazer.
As árvores que jorram dinheiro em franquias de animação já conseguiram provar com Os Pinguins de Madagascar e Carros 2 que spin-offs de personagens secundários -- os que geralmente completam a história para seus heróis -- têm tudo para dar errado. No entanto, agora é a vez de Meu Malvado Favorito (e sua sequência) remoer o terreno de sua árvore milionária, esta plantada em um terreno arenoso, uma vez que as histórias dos dois filmes dependem de uma série de piadas prontas jogadas na tela em um ritmo que não nos permita perceber que sua história principal são dois fiapos de raiz prestes a se romper. Dessa forma, podemos considerar a ideia de produzir um filme apenas com os seres amarelos dos dois filmes -- que realizam cenas pontuais de dois segundos -- um projeto ambiciosamente marqueteiro e artisticamente repulsivo.
A história tenta ser um prequel que narra rapidamente as aventuras dos Minions por dezenas de milhões de anos (desde a época dos dinossauros), definindo-os como seres cuja essência instintiva é procurar o "chefe do mal" e o seguir. Ironicamente, todos os seus líderes sucumbem às trapalhadas dos bichinhos amarelos, fazendo girar o ciclo de evolução no decorrer das Eras, passando por uma classificação que parece se basear em uma enciclopédia antiga chinesa: um T-Rex, o "homem" (um indivíduo?), um faraó (onde ajudam a endireitar um projeto de pirâmide que originalmente estaria ao contrário, ou seja, com uma das pontas servindo como "base"; sim, é esse o nível de "humor" do filme), e, por fim, Napoleão, onde a partir de sua suposta tentativa de invadir a Rússia o exército dos Minions fica perdido em algum lugar do Pólo Norte (obviamente onde fica a Rússia). Depois de séculos, um deles, Kevin, decide ir em busca de um novo líder, seguido de perto por mais dois seres amarelos. Seus nomes não importam muito, pois sequer personalidade eles têm, parecendo que foram escolhidos para a jornada pelo roteiro "porque sim" (ou porque possuem um formato e número de olhos diferente).
De qualquer forma, eles acabam em Nova York, onde ficam sabendo de um evento de vilões em Orlando, e cuja carona que pegam é apenas um artifício para existirem mais personagems que torcem pelo trio de amarelos. Talvez também para conseguirem atingir a incrível marca de 91 minutos de "história". Dessa forma, conhecem a vilã mais malvada do mundo: Scarlett Overkill, que coincidentemente está contratando capangas e que coincidentemente acabam sendo você-sabe-quem. O sonho da vilã é roubar a coroa da rainha da Inglaterra, e praticamente acabou-se toda a estrutura narrativa necessária para impulsionar as novas piadas envolvendo os bichinhos amarelos.
Dessa vez a direção principal fica por conta de Kyle Balda, que até então havia apenas co-dirigido O Lorax: Em Busca da Trúfula Perdida. O que se prova um desastre. Evidentemente entediado com a história escrita por Brian Lynch (um dos diretores da série original), Balda parece mudar de estilo apenas para não ficar esquecido nesta grande produção. É por isso que, de repente, no terceiro ato, uma câmera de mão equipada com rack focus (zoom rápido) é usada para mostrar as sequências envolvendo um elemento-surpresa não presente nos trailers (aliás, existe cerca de 10% de elementos não mostrados nos trailers).
Sem noção nenhuma de como tentar amarrar minimamente as gags com uma história que tenha começo, meio e fim, Minions aposta, como seus antecessores, em personagens engraçadinhos com situações tiradas da cartola, com a exceção de que aqui, com a ausência de Gru e as meninas Margo, Edith e Agnes, não há quem suporte uma sequência ininterrupta de situações envolvendo bichinhos amarelos cuja lógica não entendemos, sem contar -- é preciso fazer uma "menção honrosa" -- o namorado de Scarlett: uma figura que de tão antipática acaba soando engraçada em momentos pontuais (como na sala de tortura).
Por fim, a figura de Gru obviamente seria mencionada (algo que nem considero como spoiler em um filme como esse). A única coisa que não esperaríamos seria uma sequência de frases-chave que tentam, além do famoso cachecol, fazer o espectador entender que, por se passar décadas antes de Meu Malvado Favorito, aquele é o Gru ainda jovem. Só faltou mesmo uma legenda explicando o óbvio, o que revelaria de uma vez por todas a essência do público-alvo que os idealizadores buscam atingir. Felizmente (espero), nem todos acham hilária uma árvore cuja única função é jorrar dinheiro do lado da empresa que licencia a venda de bonequinhos amarelos que fazem barulho.
Um Pouco de Caos é um passeio tranquilo, até demais, no mundo da aristocracia francesa (embora todos falem inglês sem cerimônias) para fazer-nos apreciar a atmosfera dominante do blasé frente aos que ainda precisam lutar para serem aceitos na alta sociedade. Durante o processo é tão óbvio que haverá um amor proibido que até isso se torna sem graça.
Dirigido por Alan Rickman -- o Professor Severus Snape da série Harry Potter -- depois de sua estreia na direção quase 20 anos atrás, é o primeiro filme em que ele também atua, como o Rei Luís XIV durante a construção dos jardins de Versalhes. O palácio, localizado longe do centro de Paris, suas doenças e seus pobres, contém uma coleção inigualável de jardins criados a mando do rei, e cujos projetos eram constantemente disputados pelos mais proeminentes paisagistas, especialmente os que seguem o guia moral de sua majestade: a perfeição da ordem.
A história, portanto, historicamente populada, envolve em seu centro as figuras de Sabine de Barra (Kate Winslet) como uma jardineira que defende o estilo levemente caótico de suas criações, e André Le Nôtre (Matthias Schoenaerts), o arquiteto-chefe de Luís XIV e que resolve "comprar a briga" em cima da aposta de que uma guinada mais original para o próximo jardim poderia significar mais fama e apoio do monarca. E, como já sabemos, para manter Madame de Barra por perto.
Para fechar com chave de ouro o triângulo amoroso de filmes de época, a esposa de Le Nôtre, Françoise (Helen McCrory), é a maçã podre do casamento, se veste de roxo e usa o seu poder de influência para impedir que seu marido avance o sinal nesse possível romance. Enquanto isso, Sabine sofre o trauma da morte de seu marido e filha, e tenta através de seus jardins se manter financeiramente.
Com um amplo espaço para simbolismos e filosofias envolvendo jardins e nobreza de uma França em uma época 100% absolutista, o roteiro escrito a seis mãos resolve contar uma história trivial com personagens triviais, deixando o espectador à espera da grande sacada que irá erguer os ânimos. Infelizmente, ela nunca acontece. O que acontece frequentemente, no entanto, é sermos inundados pela trilha sonora de Peter Gregson, com seus toques empolgados demais, totalmente em descompasso com o ritmo arrastado do filme.
Possuindo muito pouco dos seu elenco e menos ainda de sua história, Um Pouco de Caos ironicamente não possui nada de imprevisível ou surpreendente. É um passeio seguro pelos inúmeros jardins de uma época de ouro, onde os ricos podiam se dar ao luxo de planejar os inúmeros jardins, caminhar e dançar por eles.
Assistir a O Mordomo de Preto é uma mistura de sensações. Primeiro, tem-se a sensação de estar assistindo um seriado, e não um filme com começo, meio e fim. Depois, a certeza de estar sendo enrolado em um formato muito parecido com os filmes da Marvel atualmente, que prezam por não terminar conflito algum que preste em seus filmes. Porém, a pior sensação mesmo é a de saber que a linguagem cinematográfica está sendo deixada de lado para o bem dos enquadramentos e da plasticidade de uma outra espécie de arte que já se sai bem em seu quadrado. A questão que fica é: para que realizar live-actions de trabalhos sem tradução entre artes? Só para ver como seria com atores "reais"? Bom, sinto informar, mas os personagens criados podem ser bonitos esteticamente, mas estão bem longe de serem considerados reais ou complexos.
Girando em torno de um contrato entre Shiori Genpo, uma menina que se veste de menino e que é uma órfã bastarda de pais bilionários amigos da Rainha, e Sebastian Michaelis, um demônio que gosta de sorrir, independente do que estiver acontecendo ao seu redor, O Mordomo de Preto já diz logo no início ao que veio: criar personagens cool, como um mordomo que mata as pessoas usando facas de passar manteiga, o que adiciona um segundo ícone na estante das "figuras experimentais que não deveriam sair do papel". O primeiro ícone desta categoria é este (e, pelo menos para mim, está ganhando em disparado caso houvesse uma competição).
A história... bom, ela é irrelevante. Mundo dividido em dois, conspirações, bem contra o mal, vingança. Enfim, nada que já não tivéssemos visto em produções do gênero -- estou falando de animes -- e que veremos provavelmente muito mais vezes, já que a sanha dos fãs, ou a criatividade dos roteiristas dessas histórias, gira invariavelmente em como o japonês será uma nação poderosa em algum futuro apocalíptico e como o mundo deve se curvar aos seus caprichos (como roupas ousadas ou espalhafatosas).
Porém, pior que isso é ter que aguentar as velhas muletas desse sub-gênero que parece atormentado pela sua incapacidade de criar narrativas fluidas, ainda que ali faltasse criatividade. Dessa forma, os diálogos e narrações são longas, pretensiosas, e irrelevantes. Ainda mais quando as cenas de ação -- essas sim, muito bem feitas! -- contém muito mais elementos visuais dignos de figurar em uma arte para o Cinema (ainda que flerte com o material reciclado do Ocidente, como Tarantino, Zack Snyder e o agora em voga Matthew Vaughn). Aliás, é digno de nota como o fundo verde, usado abusivamente aqui, consegue se sair harmoniosamente bem, quase os fazendo esquecer que é uma produção de baixo orçamento.
Ainda assim, há muitas virtudes em O Mordomo de Preto que são deixadas de lado para o bem do cool e dos caminhos fáceis, como demonizar seus vilões, criar situações impossíveis para que haja uma reviravolta previsível no último instante, e apelar para artefatos já datados, como a velha bomba-relógio.
De certa forma, O Mordomo de Preto homenageia a comédia do absurdo sem ser engraçado, a ação pastelona sem criar tensão, e o drama surreal sem fazer chorar. Enfim, um trabalho artisticamente vazio, embora plasticamente impecável.
# O Poder do Agora
Caloni, 2015-06-29 books self [up] [copy]"Embora eu continuasse vivendo normalmente, tinha percebido que nada que eu viesse a fazer poderia mudar realmente a minha vida. Eu já tinha tudo de que necessitava."
Essa é a moral por trás de O Poder do Agora, livro de Eckhart Tolle que mistura filosofia e uma pitada de religião em prol do bem-estar do ser humano. Não que ele use muita religião, e se usa, é mais para o lado budista/asiático dos monges tibetanos: aprendendo a se libertar de sua mente. Ele adequa essa filosofia ao cristianismo e chama mais adeptos para a iluminação independente de seu profeta ou deus.
Para Tolle a mente é uma doença individual e coletiva. Ao enxergarmos o presente com os olhos do passado, se contrói uma imagem distorcida. Os filtros estão aí para prejudicar a nossa percepção do Agora como algo fabuloso, a todo momento, e não restringimos a mente como apenas uma ferramenta intelectual: nos identificamos com ela, e aí é que está o erro.
Aqui e agora: abandone-o, mude-o, ou aceite-o.
Capte o interior e ele vira exterior.
Não resista.
Sem tempo, sem problema.
O fazer é igual ao acontecer.
O primeiro exercício que ele pede que se faça é "observar o pensador", essa voz que todos temos dos nossos pensamentos. Observando aprendemos a nos desapegar e a enxergar que não somos essa voz, mas algo diferente. Ao criar um espaço nesse fluxo contínuo da mente, conseguimos direcionar o foco de nossa atenção para o Agora, e por consequência tornando-nos conscientes do momento. Algo, segundo Tolle, "profundamente gratificante de se fazer". A essência da tão ambicionada meditação de hoje em dia, segundo ele, é apenas criar esse espaço de mente vazia, ficando assim extremamente alerta e consciente.
A partir desse estado de extrema consciência no presente não existem problemas, apenas situações no momento, que podem ser gerenciadas facilmente, pois agora não são apenas projeções mentais de um tempo e espaço inatingíveis: estão bem na nossa frente. E mesmo assim, a situação existe no tempo, enquanto a nossa vida é agora. Enquanto a situação de vida continua sendo uma coisa da mente, a nossa vida é muito mais: é real.
O pensador compulsivo – ou seja, quase todas as pessoas – vive em um estado de aparente isolamento, em um mundo povoado de conflitos e problemas.
Se for usada corretamente a mente é um instrumento magnífico. Entretanto, quando a usamos de forma errada ela se torna destrutiva. Para ser ainda mais preciso: não é você que usa a sua mente de forma errada. Em geral, você simplesmente não usa a mente. É ela que usa você. Essa é a doença. Você acredita que é a sua mente. Eis aí o delírio. O instrumento se apossou de você.
Mesmo que tenha alguma relação com o momento, a voz (interior) será interpretada em termos do passado. Isso acontece porque a voz pertence à mente condicionada, que é o resultado de toda a nossa história passada, bem como dos valores culturais coletivos que herdamos. Assim, vemos e julgamos o presente com os olhos do passado e construímos uma imagem totalmente distorcida.
Um dia você pode se surpreender sorrindo para a voz dentro da sua cabeça, como sorriria para as travessuras de uma criança. Isso significa que você não está mais levando tão a sério o que vai pela mente, pois o seu eu interior não depende dela.
Por que temos de ser viciados em pensar? Porque estamos identificados com esse processo, já que a percepção do eu interior tem origem no conteúdo e na atividade de nossas mentes. Acreditamos que deixaríamos de existir se parássemos de pensar.
A iluminação significa chegar a um nível acima do pensamento, e não ficar abaixo dele, no nível de um animal ou de uma planta. No estado iluminado, continuamos a usar nossas mentes quando necessário, mas de um modo mais focalizado e eficiente. Assim, utilizando nossas mentes com objetivos práticos, não ouvimos mais o diálogo interno involuntário e sentimos uma enorme serenidade interior. Quando usamos de fato nossas mentes e, em especial, quando necessitamos de uma solução criativa, há uma oscilação, de segundos, entre o pensamento e a serenidade, entre a mente ativa e a mente vazia. O estado de mente vazia é a consciência sem o pensamento. Só assim é possível pensar criativamente, porque somente desse modo o pensamento tem alguma força real. O pensamento sozinho, quando não mais conectado com a área da consciência, que é muito mais ampla, rapidamente se torna árido, doentio e destrutivo.
A mente, no sentido em que emprego o termo, não é apenas pensamento. Ela inclui nossas emoções, assim como todos os padrões de reações mentais e emocionais inconscientes. A emoção nasce no lugar onde a mente e o corpo se encontram. É a reação do corpo à nossa mente ou, podemos dizer, um reflexo da mente no corpo.
Se você não consegue sentir as suas emoções, se as mantém à distância, terminará por senti-las em um nível puramente físico, como um sintoma ou um problema físico.
Se você tem dificuldade de sentir suas emoções, comece concentrando a atenção na área de energia interior do seu corpo. Sinta o seu corpo lá no fundo. Essa prática colocará você em contato com as suas emoções.
Se quisermos conhecer mesmo a nossa mente, o corpo sempre nos dará um reflexo confiável. Portanto, observe a sua emoção, ou melhor, sinta-a em seu corpo. Se houver um aparente conflito entre os dois, a verdade estará na emoção e não no pensamento. Não a verdade definitiva sobre quem você é, mas a verdade relativa ao estado da sua mente naquele momento.
Observar uma emoção por esse ângulo é basicamente o mesmo que ouvir ou observar um pensamento, como descrevi anteriormente. A única diferença é que o pensamento está na sua cabeça, enquanto a emoção, por conter um forte componente físico, se manifesta em primeiro lugar no corpo.
O padrão do pensamento cria um reflexo amplificado de si mesmo na forma de uma emoção, fazendo com que a frequência vibratória desta permaneça alimentando o padrão de pensamento original.
Basicamente, todas as emoções são modificações de uma emoção primitiva não diferenciada, cuja origem é a perda da percepção de quem somos por trás do nome e da forma. É difícil encontrar um nome que descreva essa emoção primitiva. A palavra “medo” é muito próxima, mas, além do sentido de ameaça permanente, ela pode ser entendida como um profundo sentimento de abandono e incompletude. Por isso, talvez seja melhor usar uma palavra que não se confunda tanto com aquela emoção básica e chamar isso simplesmente de “sofrimento”.
Uma das principais tarefas da mente, uma das razões da sua atividade incessante, é a de combater ou eliminar o sofrimento emocional, embora ela invariavelmente só consiga encobri-lo por um tempo. De fato, quanto mais a mente tenta se livrar do sofrimento, mais ele aumenta. A mente nunca pode achar a solução, nem pode permitir que encontremos a solução, porque é, ela mesma, uma parte intrínseca do “problema”.
Elas são inseparáveis do estado natural de conexão interior com o Ser. Sempre que houver um espaço no fluxo dos pensamentos, podem ocorrer lampejos de amor e alegria, ou breves instantes de uma paz profunda. Para a maioria das pessoas, tais espaços raramente acontecem, e mesmo assim por acaso, nas ocasiões em que a mente fica “sem palavras”, instigada por uma beleza estonteante, uma exaustão física extrema, ou mesmo um grande perigo. De repente se instala uma serenidade interior. E dentro dessa serenidade existe uma alegria sutil mas intensa, existe amor, existe paz.
Amor, alegria e paz são estados profundos do Ser, ou melhor, três aspectos do estado de ligação interior com o Ser. Assim, não possuem opositores pela simples razão de que surgem por trás da mente. As emoções, por outro lado, sendo uma parte da mente dualística, estão sujeitas à lei dos opostos. Isso quer dizer, simplesmente, que não se pode ter o bom sem que haja o mau.
Todos os anseios nascem da busca da mente por salvação ou satisfação nas coisas externas e no futuro, como substitutos da alegria do Ser. Se somos nossas mentes, somos aqueles anseios, aquelas necessidades, desejos, apegos e aversões. Fora deles não existe o eu, exceto como uma mera possibilidade, um potencial não preenchido, uma semente que ainda não germinou. Nessa condição, até mesmo o desejo de nos tornarmos livres ou iluminados não passa de mais um desejo a ser realizado ou concluído no futuro. Portanto, não busque se libertar do desejo ou “adquirir” a iluminação. Torne-se presente. Esteja lá, como um observador da mente. Em lugar de citar Buda, seja Buda, seja “O Iluminado”, que é o que a palavra buda significa.
O sofrimento que sentimos neste exato momento é sempre alguma forma de não aceitação, uma forma de resistência inconsciente ao que é. No nível do pensamento, a resistência é uma forma de julgamento. No nível emocional, ela é uma forma de negação. O sofrimento varia de intensidade de acordo com o nosso grau de resistência ao momento atual, e isso, por sua vez, depende da intensidade com que nos identificamos com as nossas mentes. A mente procura sempre negar e escapar do Agora. Em outras palavras, quanto mais nos identificamos com as nossas mentes, mais sofremos. Ou ainda, quanto mais respeitamos e aceitamos o Agora, mais nos libertamos da dor, do sofrimento e da mente.
Se não quer gerar mais sofrimento para você e para os outros, não “crie” mais tempo, ou, pelo menos, não mais do que o necessário para lidar com os aspectos práticos da sua vida. Como deixar de “criar” tempo? Tendo uma profunda consciência de que o momento presente é tudo o que você tem. Faça do Agora o foco principal da sua vida. Se antes você se fixava no tempo e fazia rápidas visitas ao Agora, inverta essa lógica, fixando-se no Agora e fazendo visitas rápidas ao passado e ao futuro quando precisar lidar com os aspectos práticos da sua vida. Diga sempre “sim” ao momento atual.
Aceite, depois aja. O que quer que o momento atual contenha, aceite-o como uma escolha sua. Trabalhe sempre com ele, não contra. Torne-o um amigo e aliado, não seu inimigo. Isso transformará toda a sua vida, como por milagre.
Preste atenção a qualquer sinal de infelicidade em você, qualquer que seja a forma, pois talvez seja o despertar do sofrimento. Ele pode se manifestar como uma irritação, um sinal de impaciência, um ar sombrio, um desejo de ferir, sentimentos de raiva, ira, depressão ou uma necessidade de criar algum tipo de problema em seus relacionamentos.
A inconsciência cria o sofrimento. A consciência transforma o sofrimento nela mesma. São Paulo expressa esse princípio universal de uma forma linda ao dizer: “Tudo é revelado ao ser exposto à luz e o que for exposto à própria luz se torna luz.” Assim como não se pode lutar contra a escuridão, não se pode lutar contra o sofrimento. Tentar fazer isso poderia gerar um conflito interior e um sofrimento adicional. Observar o sofrimento já é o bastante. Observá-lo implica aceitá-lo como parte do que existe naquele momento.
Manter-se em um estado de alerta consciente destrói a ligação entre o sofrimento e o mecanismo do pensamento, e aciona o processo de transformação. É como se o sofrimento se tornasse o combustível para a chama da consciência, resultando em um brilho de mais intensidade. Esse é o significado esotérico da antiga arte da alquimia: a transformação do metal não precioso em ouro, do sofrimento em consciência. A separação interior cicatriza, e você se torna inteiro outra vez. Cabe a você, então, não criar um sofrimento adicional.
O processo que acabei de descrever é extremamente poderoso, embora simples. Poderia ser ensinado a uma criança, e tenho a esperança de que um dia será uma das primeiras coisas a serem aprendidas na escola. Uma vez entendido o princípio básico do que significa estar presente observando o que acontece dentro de nós – e “entendemos” isso quando passamos pela experiência –, teremos à nossa disposição a mais poderosa ferramenta de transformação.
Podemos sempre lidar com uma situação no momento em que ela se apresenta, mas não podemos lidar com algo que é apenas uma projeção mental. Não podemos lidar com o futuro.
O medo parece ter várias causas – tememos perder, falhar, nos machucar –, mas em última análise todos os medos se resumem em um só: o medo que o ego tem da morte e da destruição. Para o ego, a morte está bem ali na esquina. No estado de identificação com a mente, o medo da morte afeta cada aspecto da nossa vida. Por exemplo, mesmo uma coisa aparentemente trivial ou “normal”, como a necessidade de estar certo em um argumento e demonstrar à outra pessoa que ela está errada, defendendo a posição mental com a qual nos identificamos, acontece por causa do medo da morte.
O ego precisa de alimento e proteção o tempo todo. Tem necessidade de se identificar com coisas externas, como propriedades, status social, trabalho, educação, aparência física, habilidades especiais, relacionamentos, história pessoal e familiar, ideais políticos e crenças religiosas. Só que nada disso é você.
O segredo da vida é “morrer antes que você morra” – e descobrir que não existe morte.
O tempo e a mente são inseparáveis. Tire o tempo da mente e ele para, a menos que você escolha utilizá-lo.
Estar identificado com a mente é estar preso ao tempo. É a compulsão para vivermos quase exclusivamente através da memória ou da antecipação. Isso cria uma preocupação infinita com o passado e o futuro, e uma relutância em respeitar o momento presente e permitir que ele aconteça.
O tempo não tem nada de precioso, porque é uma ilusão. Aquilo que achamos ser precioso não é o tempo, mas um ponto que está fora dele: o Agora. Isso é realmente precioso. Quanto mais nos concentramos no tempo, no passado e no futuro, mais perdemos o Agora, a coisa mais importante que existe.
Por que o Agora é a coisa mais importante que existe? Primeiramente, porque é a única coisa. É tudo o que existe. O eterno presente é o espaço dentro do qual se desenvolve toda a nossa vida, o único fator que permanece constante. A vida é agora. Nunca houve uma época em que a nossa vida não fosse agora, nem haverá. Em segundo lugar, o Agora é o único ponto que pode nos conduzir para além das fronteiras limitadas da mente. É o nosso único ponto de acesso à área atemporal e amorfa do Ser.
Toda a essência do zen consiste em caminhar sobre o fio da navalha do Agora, em estar tão absolutamente presente que nenhum problema, nenhum sofrimento, nada que não seja quem somos em essência, possa permanecer em nós.
Não teremos qualquer dúvida de que o tempo psicológico é uma doença mental se olharmos para as suas manifestações coletivas. Elas ocorrem, por exemplo, na forma de ideologias como o comunismo, o nacional-socialismo ou qualquer nacionalismo, ou de sistemas rígidos de crenças religiosas, que atuam na suposição implícita de que o bem maior repousa no futuro e que, portanto, o fim justifica os meios. O fim é uma ideia, um ponto na mente projetado no futuro, quando a salvação, sob a forma de felicidade, satisfação, igualdade, libertação, etc., será alcançada. Muitas vezes, os meios para atingir o fim são a escravidão, a tortura e o assassinato de pessoas no presente.
Não há salvação dentro do tempo. Você não pode se libertar no futuro. A presença é a chave para a liberdade. Portanto, você só pode ser livre agora.
Caso apareça uma situação com a qual você precise lidar agora, a sua ação vai ser clara e objetiva, se conseguir perceber o momento presente. Tem muito mais chances de dar certo. Não será uma reação vinda do condicionamento da sua mente no passado, mas sim uma resposta intuitiva à situação. Em situações em que a mente teria reagido, você vai achar mais eficaz não fazer nada. Fique só centrado no Agora.
A ausência de alegria, naturalidade ou leveza no que estamos fazendo não significa, necessariamente, que precisemos mudar o que estamos fazendo. Talvez baste mudarmos o como. “Como” é sempre mais importante do que “o que”. Verifique se você pode dar muito mais atenção ao fazer do que ao resultado desejado através do fazer. Dê toda a sua atenção ao que quer que o momento apresente. Isso implica que você aceitou totalmente o que é, porque não se pode dar atenção completa a alguma coisa e, ao mesmo tempo, resistir a ela.
Portanto, não se preocupe com o resultado da sua ação, basta dar atenção à ação em si. O resultado surgirá espontaneamente. Essa é uma valiosa prática espiritual. No Bhagavad Gita, um dos mais antigos e mais belos ensinamentos espirituais que existem, o desapego ao resultado da ação é chamado Karma Yoga. É descrito como o caminho da “ação santificada”.
Tudo inspira respeito, mas nada importa. As formas nascem e morrem, ainda que estejamos conscientes de uma eternidade subjacente às formas. Sabemos que “nada de verdade pode ser ameaçado”.3 Quando esse é o seu estado de Ser, como é possível não alcançar o sucesso? Você já o alcançou.
As contas de amanhã não são um problema. A degeneração do corpo não é um problema. A perda do Agora é o problema, ou melhor, a ilusão central que transforma uma situação simples, um acontecimento ou uma emoção em um problema pessoal e em sofrimento. Perder o Agora é perder o Ser.
O melhor indicador do nível de consciência é a maneira como você lida com os desafios da vida. É através desses desafios que uma pessoa já inconsciente tende a se tornar mais profundamente inconsciente, e uma pessoa consciente a se tornar mais intensamente consciente.
Se você não consegue estar presente mesmo em situações normais, como, por exemplo, quando está sozinho em uma sala, caminhando no campo ou ouvindo alguém, certamente não será capaz de permanecer consciente quando alguma coisa “vai mal”. Será dominado por uma reação, que é sempre, em última análise, alguma forma de medo, e empurrado para uma inconsciência profunda. Esses desafios são os seus testes. Só o modo como você lida com eles lhe mostrará onde você está no que se refere ao seu estado de consciência, e não a quantidade de horas que você consegue ficar sentado com os olhos fechados.
“Por que vocês estão sempre ansiosos?”, perguntou Jesus aos discípulos. “Será que os seus pensamentos ansiosos podem acrescentar um simples dia às vossas vidas?”
Buda ensinou que a raiz do sofrimento pode ser encontrada em nossos desejos e ansiedades permanentes.
“O que está acontecendo dentro de mim neste exato momento?” Mantenha o mesmo nível de interesse pelo que vai tanto no seu interior quanto no exterior.
Se você captar corretamente o interior, o exterior se encaixará no lugar. A realidade principal está no interior, a realidade externa é secundária.
Não faz a menor diferença se os seus pensamentos e emoções a respeito da situação têm ou não uma justificativa. O fato é que você está resistindo ao que é.
A poluição do planeta é apenas um reflexo externo de uma poluição interior psíquica gerada por milhões de indivíduos inconscientes, sem a menor responsabilidade pelos espaços que trazem dentro de si.
É verdade que, quando aceita seu ressentimento, o mau humor, a raiva, etc., você não sente mais necessidade de manifestá-los de maneira cega e tem menos chance de projetá-los sobre os outros. Mas eu me pergunto se você não está se iludindo. Quando uma pessoa vem praticando a aceitação por um tempo, como é o seu caso, chega a um ponto em que precisa passar para o estágio seguinte, onde essas emoções negativas não são mais criadas. Se você não passa, a “aceitação” se torna apenas um rótulo mental que permite ao seu ego continuar a ser tolerante com a tristeza e, dessa forma, fortalecer o sentimento de separação das outras pessoas, do seu ambiente, do seu aqui e agora. Como você bem sabe, a separação é a base do sentido de identidade do ego. A aceitação verdadeira poderia transformar tudo de uma vez por todas. E se sabe, bem lá no fundo, que tudo “está bem” como você diz, será que esses pensamentos negativos viriam em primeiro lugar? Se não houver julgamento nem resistência ao que é, eles nem surgem. A sua mente diz que “tudo está bem”, mas no fundo você não acredita nisso, e assim os velhos padrões de resistência mental e emocional ainda estão ali. É isso o que nos faz mal.
Observe quando estiver reclamando, com palavras ou pensamentos, de uma situação que envolva você – pode ser alguém que fez ou disse algo que lhe aborreceu, algo sobre a sua situação de vida, o lugar onde mora, ou até mesmo o tempo. Reclamar é sempre uma não aceitação de algo que é. Essa atitude contém invariavelmente uma carga negativa inconsciente. Quando você reclama, transforma-se em vítima. Quando fala, você está no controle. Portanto, mude a situação agindo ou falando, caso seja necessário ou possível, ou então fuja da situação, ou senão aceite-a. Tudo o mais é loucura.
Onde quer que você esteja, esteja lá por inteiro. Se você acha insuportável o seu aqui e agora e isso o faz infeliz, há três opções: abandone a situação, mude-a ou aceite-a totalmente. Se você deseja ter responsabilidade sobre a sua vida, deve escolher uma dessas opções e deve fazê-lo agora. Depois, arque com as consequências. Sem desculpas. Sem negatividade. Sem poluição física. Mantenha limpo o seu espaço interior.
Morra para o passado a cada instante. Você não precisa dele. Refira-se a ele apenas quando totalmente relevante para o presente. Sinta o poder do momento presente e a plenitude do Ser. Sinta a sua presença.
Esperar é um estado mental. Significa basicamente desejar o futuro e não querer o presente. Você não quer o que conseguiu e deseja aquilo que não conseguiu. Em qualquer dos tipos de espera você, inconscientemente, cria um conflito interior entre o seu aqui e agora, onde você não quer estar, e o futuro projetado, onde você quer estar. Essa situação reduz grandemente a qualidade da sua vida ao fazer você perder o presente.
Nossa jornada de vida tem um propósito externo e um interno. O propósito externo é o de alcançarmos o objetivo ou destino, realizarmos o que estabelecemos cumprir, adquirirmos uma coisa ou outra, o que, é claro, envolve o futuro. Mas se o destino ou os passos que vamos dar no futuro tomam tanto nossa atenção que se tornam mais importantes do que o passo que estamos dando agora, isso significa que perdemos completamente o propósito interno da vida, que não tem nada a ver com aonde estamos indo ou com o que estamos fazendo, mas tudo a ver com de que modo. Esse propósito interno não está relacionado com o futuro, e sim com a qualidade da nossa consciência no momento presente.
Faça uma experiência rápida. Feche os olhos e diga: “Imagino qual será o meu próximo pensamento.” Depois fique bem alerta e espere pelo próximo pensamento. Aja como um gato espreitando o buraco do rato. Que pensamento será que vai sair do buraco do rato? Experimente já.
Enquanto estamos num estado de presença intensa, estamos livres do pensamento. Estamos quietos, embora estejamos alerta. No instante em que a consciência desce abaixo de um certo nível, os pensamentos surgem aos borbotões. O ruído mental volta a aparecer e perdemos a serenidade. Estamos de volta ao tempo.
A consciência do corpo nos mantém presentes. Ela nos dá uma base firme no Agora.
Alguma coisa pode acontecer a qualquer momento e, se não estivermos absolutamente acordados e calmos, vamos perdê-la. Esse é o tipo de espera da qual Jesus falou. Nesse estado, toda a nossa atenção está no Agora. Não há nenhum espaço para fantasias, pensamentos, lembranças, antecipações. Não há tensão nem medo, apenas uma presença alerta. Estamos presentes com todo o nosso Ser, com cada célula do corpo.
Quanto maior for o espaço entre a percepção e o pensamento, mais profundos seremos como seres humanos, ou seja, mais conscientes estaremos.
Se um peixe nasce no seu aquário e você lhe dá o nome de John, escreve uma certidão de nascimento, conta-lhe a história da família dele e, dois minutos depois, o vê sendo engolido por um outro peixe, isso é trágico. Mas só é trágico porque você projetou um eu interior separado onde não havia nenhum. Você se apoderou de uma fração de um processo dinâmico, uma dança molecular, e fez dela uma entidade separada.
Ouvir o silêncio cria imediatamente uma serenidade dentro de nós. Só a serenidade dentro de nós percebe o silêncio lá fora. E o que é serenidade senão a presença, a consciência livre das formas de pensamento?
Enquanto sua mente absorver toda a sua atenção, você não conseguirá estar em conexão com o Ser. A mente absorve toda a sua consciência e a transforma em matéria mental. Você não consegue parar de pensar. O pensamento compulsivo se tornou uma doença coletiva. Tudo o que você achava que sabia a seu respeito passa a se originar da atividade mental. Sua identidade, como não tem mais raízes no Ser, se transforma em uma construção mental vulnerável e indispensável que cria o medo e este passa a ser a emoção oculta predominante. Fica faltando, então, a única coisa que realmente importa em sua vida, que é a percepção do seu eu interior mais profundo, a sua indestrutível e invisível realidade.
Não lute contra o seu corpo, porque, ao fazer isso, você está lutando contra a sua própria realidade.
Quanto mais concentramos a atenção no corpo, mais nos fixamos no Agora. Não nos perdemos no mundo exterior, nem na mente. Pensamentos, emoções, medos e desejos podem até estar presentes, mas não vão mais nos dominar.
Não desvie toda a sua atenção da mente nem do mundo exterior. Procure, por todos os meios, se concentrar naquilo que você está fazendo, mas sinta o corpo interior ao mesmo tempo, sempre que possível. Tenha as raízes fincadas dentro de você. Observe, então, como isso altera o seu estado de consciência e a qualidade do que você está fazendo. Sempre que você tiver de esperar, esteja onde estiver, use esse tempo para sentir o seu corpo interior. Assim, os engarrafamentos de trânsito e as filas vão se tornar mais agradáveis. Em vez de se projetar mentalmente para longe do Agora, aprofunde-se no Agora ao se aprofundar no seu corpo.
Portanto, quando surgirem os desafios, como sempre surgem, adote o hábito de penetrar direto em seu eu interior e se concentrar o máximo que puder no campo da energia interna do seu corpo. Não leva muito tempo, só uns segundos. Mas isso tem de ser feito no exato momento em que o desafio acontece. Qualquer demora vai permitir que a reação condicionada mental e emocional apareça e domine você. Quando dirigimos o foco para o campo interno e sentimos o corpo interior, imediatamente ficamos serenos e presentes, porque estamos tirando a consciência do campo da mente. Se precisarmos de uma resposta durante essa situação, ela virá desse campo interior. Assim como o sol é infinitamente mais brilhante do que a chama de uma vela, há uma inteligência infinitamente maior no Ser do que em nossa mente.
Enquanto mantivermos um contato consciente com o nosso corpo interior, somos como as árvores que estão enraizadas bem fundo na terra, ou como um edifício com fundações sólidas e profundas. Essa última analogia foi utilizada por Jesus na geralmente incompreendida parábola dos dois homens que construíram suas casas. Um deles construiu a sua na areia, sem fundações, e quando as tempestades e enchentes vieram, arrastaram a casa com elas. O outro homem cavou fundo até que alcançou a rocha, e só então construiu sua casa, que não foi arrastada pelas enchentes.
Em um organismo que funcione perfeitamente, uma emoção tem vida curta. É como uma onda ocasional sobre a superfície do Ser. No entanto, se não estamos dentro do nosso corpo, uma emoção pode permanecer dentro de nós por dias ou semanas, ou se juntar a outras emoções de frequência similar, ou se tornar um sofrimento, um parasita que pode viver dentro de nós durante anos, alimentar-se de nossa energia, nos deixar doentes e tornar nossa vida infeliz.
No momento em que você perdoar, terá retomado o poder que estava na mente. O falso eu interior construído pela mente, o ego, não consegue sobreviver sem discórdias e conflitos. A mente não consegue perdoar. Só você consegue. Você se torna presente, penetra em seu corpo, sente a paz vibrante e a serenidade que emanam do Ser. Essa é a razão pela qual Jesus disse: “Antes de entrar no templo, perdoe.”
Assim que o nosso estado habitual passa do estar fora do corpo e preso pela mente para estar no corpo e presente no Agora, o nosso corpo físico fica mais leve, mais claro, mais vivo. Como existe mais consciência no corpo, a ilusão da materialidade diminui.
Quanto mais consciência tivermos do corpo, mais forte se torna o sistema imunológico. É como se cada célula despertasse e festejasse. O corpo adora a atenção que lhe damos. É também uma poderosa forma de se autoajudar. A maioria das doenças acontece quando não estamos presentes em nossos corpos. Se o dono não está em casa, todos os tipos suspeitos vão aparecer por lá. Quando você está presente, fica mais difícil que entrem tipos indesejáveis.
Quando você não tiver o que fazer por alguns minutos, “inunde” o seu corpo com a consciência. É um excelente exercício para fazer à noite antes de dormir e assim que acordar de manhã, antes mesmo de se levantar. Feche os olhos. Deite-se de costas. Escolha partes diferentes do corpo para dirigir a sua atenção por alguns momentos, como mãos, pés, braços, pernas, abdômen, peito, cabeça, etc. Sinta o campo de energia dessas partes tão intensamente quanto puder. Detenha-se mais ou menos por 15 segundos em cada ponto. Deixe sua atenção percorrer o corpo, como uma onda, dos pés à cabeça e da cabeça aos pés. Leva apenas cerca de um minuto. Depois disso, sinta seu corpo em sua totalidade, como um campo de energia único. Mantenha essa sensação por alguns segundos. Esteja intensamente presente em cada célula do seu corpo durante esse tempo. Não se preocupe se a mente, ocasionalmente, conseguir desviar a sua atenção para fora do corpo e se você se perder em algum pensamento. Assim que você perceber que isso aconteceu, retorne a sua atenção para o seu corpo interior.
Se você encontrar dificuldade de entrar em contato com o seu corpo interior, é mais fácil, em primeiro lugar, concentrar a atenção no movimento da respiração. Tomar consciência da respiração, que já é uma meditação poderosa, irá, aos poucos, colocar você em contato com o corpo. Observe atentamente a respiração, como ela entra e sai do seu corpo. Respire e sinta o abdômen inflar e contrair-se levemente, a cada inspiração e expiração. Se você tiver facilidade para visualizar, feche os olhos e veja-se no meio da luz, dentro de um mar de consciência. Então, respire dentro dessa luz. Sinta essa substância luminosa preenchendo todo o seu corpo e tornando-o luminoso. Então, aos poucos, concentre-se nessa sensação. Você agora está dentro do seu corpo. Não se fixe em nenhuma imagem visual.
Sempre que for necessária uma resposta, uma solução ou uma ideia criativa, pare de pensar por um momento e focalize a atenção em seu campo de energia interior. Tome consciência da serenidade. Quando você voltar ao pensamento, ele será novo e criativo. Em qualquer atividade mental, habitue-se a ir e vir, de tantos em tantos minutos, entre o pensamento e uma espécie de escuta interior, uma serenidade interior. Poderíamos dizer: não pense apenas com a cabeça, pense com todo o seu corpo.
Quando você parar para ouvir uma outra pessoa, não escute só com a mente, escute com todo o seu corpo. Sinta o campo de energia do seu corpo interior enquanto escuta. Isso desvia a atenção do pensamento e cria um espaço de serenidade que possibilita a você ouvir realmente, sem que a mente interfira. Você está dando à outra pessoa um espaço para ela ser. É o presente mais precioso que você pode dar a alguém.
A maioria das relações humanas consiste principalmente na interação das mentes umas com as outras, e não de seres humanos se comunicando, ficando em comunhão. Nenhuma relação pode florescer por esse caminho, e essa é a razão de tantos conflitos nas relações. Quando a mente dirige a nossa vida, o conflito, as lutas e os problemas são inevitáveis. Estar em contato com o seu corpo interior cria um espaço de mente vazia dentro do qual a relação pode florescer.
Junte-se de tal modo ao campo de energia que você não mais perceba a dualidade entre o observador e o observado, entre você e seu corpo.
Ter acesso a essa região sem forma traz uma liberdade verdadeira. Ela nos liberta da escravidão da forma e da identificação com a forma.
Só quando a nossa consciência se volta para o exterior é que a mente e o mundo passam a existir. Quando se dirige para o interior, ela percebe a sua própria Fonte e regressa ao Não Manifesto.
É possível ficar consciente do Não Manifesto em todas as ocasiões. Você sentirá uma profunda paz em algum lugar lá no fundo, uma serenidade que nunca abandonará você, não importa o que aconteça lá fora.
É da Fonte que retiramos a energia vital que nos sustenta quando retornamos ao manifesto, o mundo das formas separadas. Essa energia é muito mais importante do que o alimento: “Nem só de pão vive o homem.” Mas não se chega ao sono sem sonhos de um modo consciente.
O Não Manifesto não nos liberta a menos que sejamos capazes de chegar a ele de modo consciente. Essa é a razão pela qual Jesus não disse que a verdade nos libertará, e sim que “conheceremos a verdade, e a verdade nos libertará”.
O tempo e o manifesto estão indissoluvelmente ligados, do mesmo modo que o eterno Agora e o Não Manifesto.
Um outro portal para o Não Manifesto é a paralisação do pensamento. Isso pode começar de um modo muito simples, ao prestar atenção à própria respiração ou olhar concentradamente para uma flor, em um estado de alerta total, de tal modo que não haja espaço para nenhum comentário mental ao mesmo tempo.
A entrega, ou seja, o abandono de qualquer resistência mental e emocional ao que é, também é um portal para o Não Manifesto. A razão disso é simples, já que a resistência interior nos isola das outras pessoas, de nós mesmos e do mundo à nossa volta, fortalecendo a sensação de separação da qual o ego depende para sobreviver. Quanto maior a sensação de separação, maior a nossa dependência do manifesto, do mundo das formas separadas.
Estou aqui lhe dando umas pistas para mostrar como trazer a dimensão do Não Manifesto para a sua vida. Ninguém está tentando compreendê-lo. Não há nada que compreender.
Se uma revolução cósmica provocasse o fim do Universo, o Não Manifesto não seria afetado. O livro A Course in Miracles (Um curso em milagres) expressa essa verdade de modo comovente: “Nada real pode ser ameaçado. Nada irreal existe. Aqui reside a paz de Deus.”
Todo portal é um portal da morte, da morte do falso eu.
A verdadeira salvação é satisfação, paz, vida em toda a sua plenitude. É ser quem somos, sentir dentro de nós o bem que não tem opositores, a alegria do Ser que não depende de nada que esteja fora de nós. Não é sentida como uma experiência passageira, mas como uma presença permanente. Na linguagem dos que creem em Deus, é “conhecer Deus”, não como algo externo a nós, mas sim como a nossa essência mais profunda. A verdadeira salvação consiste em conhecermos a nós mesmos como parte inseparável da Vida Única, livre do tempo e da forma, de onde se origina tudo o que existe.
Não existe salvação longe deste momento. Você está só, sem uma companhia? Acesse o Agora a partir da sua solidão. Você tem um relacionamento? Acesse o Agora a partir desse relacionamento.
Todo vício surge de uma recusa inconsciente de encararmos nossos próprios sofrimentos. Todo vício começa no sofrimento e termina nele. Qualquer que seja o vício – álcool, comida, drogas legais ou ilegais, ou mesmo uma pessoa –, ele é um meio que usamos para encobrir o sofrimento.
O amor não é seletivo, assim como a luz do sol não é seletiva. Não torna ninguém especial. Não é exclusivo. A exclusividade não tem a ver com o amor de Deus, mas com o “amor” do ego. Entretanto, a intensidade do amor pode variar. Pode haver uma pessoa que atue como um espelho do amor que você dirige a ela e que o devolva de modo mais claro e mais intenso do que outras e, se essa pessoa sente o mesmo em relação a você, pode-se dizer que as duas têm um relacionamento amoroso. O vínculo que liga as duas pessoas é o mesmo vínculo que nos liga à pessoa sentada ao nosso lado no ônibus, ou a um pássaro, a uma árvore, a uma flor. Só o que diferencia é o grau de intensidade com que o sentimos.
O verdadeiro entendimento é uma comunhão, a realização da unidade, que é o amor. Normalmente, esse entendimento desaparece rapidamente. Tão logo a mente e a identificação da mente reaparecem, deixamos de ser quem somos e voltamos a brincar e a representar para satisfazer as necessidades do ego. Voltamos, de novo, a ser uma mente humana, fingindo ser um ser humano, interagindo com outra mente, representando um drama chamado “amor”.
Quando a mente e todas as estruturas sociais, políticas e econômicas que ela criou entram no estágio final de colapso, os relacionamentos entre homens e mulheres refletem o profundo estado de crise no qual a humanidade se encontra atualmente.
Porém, toda crise representa não só perigo, mas também oportunidade. Se os relacionamentos energizam e elevam os padrões da mente egoica e ativam o sofrimento do corpo, como está acontecendo agora, por que não aceitar esse fato em vez de tentar escapar dele? Por que não cooperar com ele em vez de evitar relacionamentos ou continuar a perseguir a ilusão de uma companhia ideal, como uma resposta para os problemas ou um meio de encontrar satisfação?
Quando você sabe que não está em paz, o seu saber cria um espaço de serenidade que envolve a falta de paz em um abraço terno e amoroso, e então transforma a falta de paz em paz.
É através de você que a sanidade, ou seja, a consciência, consegue chegar a este mundo. Você não tem de esperar o mundo se curar, ou alguém se tornar consciente, antes de poder alcançar a iluminação. Pode ter de esperar para sempre. Não acuse o outro de não ter consciência. No momento em que a discussão começar, é sinal de que você passou a se identificar com uma posição mental e a defender não só aquela posição, mas também o seu sentido do eu interior. O ego está no comando. Você acabou de ficar inconsciente.
Aprenda a expressar os seus sentimentos sem culpar ninguém. Aprenda a ouvir o parceiro de um modo aberto, sem reservas. Dê ao parceiro espaço para se expressar.
Neste momento, a imensa maioria dos homens e das mulheres ainda está sob o domínio da mente. É ela que impede a iluminação e o florescimento do amor. Como regra geral, o maior obstáculo para os homens tende a ser a mente pensante, enquanto o maior obstáculo para as mulheres é o sofrimento, embora em casos isolados o oposto possa ser verdade, e em outros os dois fatores possam ter o mesmo peso.
Enquanto investir uma parte do seu sentido de eu interior no seu sofrimento emocional, você vai resistir ou sabotar, inconscientemente, cada tentativa de curar o sofrimento. Por quê? Porque você quer se manter inteira e o sofrimento se tornou uma parte essencial de você. Esse é um processo inconsciente e o único caminho para superá-lo é torná-lo consciente.
Até certo ponto, ser um estranho, alguém que não se “enquadra” com os outros, ou é rejeitado por eles por qualquer razão, torna a vida difícil, mas também traz uma vantagem com relação à iluminação: tira você da inconsciência quase que à força.
Mas será que você precisa ter um relacionamento com você mesmo? Por que não ser apenas você? Quando se relaciona com você mesmo, já se dividiu em dois: “eu” e “eu mesmo”, sujeito e objeto. Essa dualidade criada pela mente é a raiz de toda complexidade desnecessária, de todos os problemas e conflitos em sua vida. No estado de iluminação, você é você mesmo – “você” e “você mesmo” se fundem em um só. Você não se julga, não sente pena de si, não se orgulha de si, não se ama, não se odeia, etc. A divisão provocada pela consciência está curada, e sua maldição, removida. Não existe um “você mesmo” que seja preciso proteger, defender ou alimentar. Quando você está iluminado, não tem mais um relacionamento consigo mesmo. Uma vez que tenha aberto mão disso, todos os seus outros relacionamentos serão de amor.
Perdoar o presente é até mais importante do que perdoar o passado. Se perdoarmos cada momento, se permitirmos que ele seja como é, não haverá nenhum acúmulo de ressentimento a ser perdoado mais tarde.
Mas há muitas pessoas que se apaixonam pelos seus dramas particulares de vida. Identificam-se com suas histórias. O ego governa a vida delas. Investiram nele todo o sentido de eu interior. Até mesmo a busca de uma resposta, de uma solução ou de uma cura se torna parte dele. O que mais temem é que seus dramas tenham fim. Enquanto essas pessoas forem a mente, seu maior medo será o próprio despertar.
Quando vivemos em uma completa aceitação do que é, todos os dramas da nossa vida chegam ao fim. Ninguém consegue ter a mais leve discussão conosco, não importa quanto tente. Não se pode discutir com alguém completamente consciente.
Quando estamos completamente conscientes, deixamos de estar em conflito. “Ninguém que esteja em unidade consigo mesmo consegue pensar em conflito”, diz A Course in Miracles (Um curso em milagres). O livro se refere não só ao conflito com outras pessoas, mas, fundamentalmente, ao conflito dentro de nós, que deixa de existir quando não há mais nenhum desacordo entre as buscas e expectativas da nossa mente e aquilo que é.
Nossa energia física também está sujeita a ciclos. Não consegue estar sempre no máximo. Teremos momentos de baixa e de alta energia. Em alguns períodos, estaremos altamente ativos e criativos, mas em outros tudo vai parecer estagnado, teremos a impressão de não estarmos indo a lugar nenhum, nem conseguindo nada. Um ciclo pode durar de algumas horas a alguns anos e dentro dele pode haver ciclos longos ou curtos. Muitas doenças são provocadas pela luta contra os ciclos de baixa energia, que são fundamentais para uma renovação. Enquanto estivermos identificados com a mente, não poderemos evitar a compulsão de fazer coisas e a tendência para extrair o nosso valor de fatores externos, tais como as conquistas que alcançamos. Isso torna difícil ou impossível para nós aceitarmos os ciclos de baixa e permitirmos que eles aconteçam. Assim, a inteligência do organismo pode assumir o controle, como uma medida autoprotetora, e criar uma doença com o objetivo de nos forçar a parar, de modo a permitir que uma necessária renovação possa acontecer.
A mente não consegue aceitar quando uma situação à qual ela tenha se apegado muda ou desaparece. Ela vai resistir à mudança. É quase como se um membro estivesse sendo arrancado do seu corpo.
Não oferecer resistência à vida é estar em estado de graça, de descanso e de luz. Esse estado não depende de as coisas serem boas ou ruins. É quase paradoxal, mas, como já não existe uma dependência interior quanto à forma, as circunstâncias gerais da sua vida, as formas externas, tendem a melhorar consideravelmente. As coisas, as pessoas ou as circunstâncias que você desejava para a sua felicidade vêm agora até você sem qualquer esforço, e você está livre para apreciá-las enquanto durarem. Todas essas coisas naturalmente vão acabar, os ciclos virão e irão, mas com o desaparecimento da dependência não há mais medo de perdas. A vida flui com facilidade.
Observe as plantas e os animais, aprenda com eles a aceitar aquilo que é e a se entregar ao Agora. Deixe que eles lhe ensinem o que é Ser, o que é integridade – estar em unidade, ser você mesmo, ser verdadeiro. Aprenda como viver e como morrer, e como não fazer do viver e do morrer um problema.
Qualquer mudança que você faça, seja ela relacionada com seu trabalho, seus relacionamentos ou seu ambiente, é apenas uma máscara, a menos que se origine de uma mudança no seu nível de consciência. E até onde isso interessa, só pode significar uma coisa: estar mais presente.
Sempre que perceber alguma forma de negatividade crescendo dentro de você, não olhe para ela como um fracasso, mas sim como um sinal que está lhe dizendo: “Acorde. Largue a sua mente. Esteja presente.”
Portanto, toda vez que sentir a negatividade crescer dentro de você, causada ou não por um fator externo, um pensamento ou mesmo nada em particular, olhe para ela como se fosse uma voz dizendo “Atenção. Aqui e Agora. Acorde”. Até mesmo a mais leve irritação é significativa e precisa ser conhecida e observada. Do contrário, haverá um aumento cumulativo de reações não observadas.
Uma alternativa para descartar uma reação negativa é fazê-la desaparecer ao imaginar a si mesmo se tornando transparente para a causa externa da reação. Recomendo que você pratique primeiro com as coisas do dia a dia. Vamos dizer que você esteja em casa. De repente, vindo da rua, começa a soar um alarme insistente de carro. Surge uma irritação. Qual é o objetivo dessa irritação? Nenhum, até aqui. Por que você a criou? Você não a criou. Quem a criou foi a mente. Ela teve uma reação totalmente automática, totalmente inconsciente. Por que a mente a criou? Porque ela sustenta a crença inconsciente de que a resistência dela, que você absorve como alguma forma de negatividade ou infelicidade, vai dissolver a condição indesejada. Isso naturalmente é uma ilusão. A resistência que ela cria – nesse caso, a irritação ou raiva – é muito mais desagradável do que a causa original que ela está tentando desfazer. Tudo isso pode ser transformado em prática espiritual. Sinta-se ficando transparente, sem a solidez de um corpo material. Agora, permita que o barulho, ou o que estiver causando a emoção negativa, passe através de você. Ele não está mais golpeando uma “parede” sólida dentro de você. Como disse, pratique primeiro com as coisas simples. O alarme do carro, o choro de uma criança, o barulho do tráfego. Em vez de ter uma parede de resistência dentro de você, que é atingida de modo constante e doloroso pelas coisas que “não deveriam estar acontecendo”, deixe que tudo passe através de você.
Não busque nenhum outro estado além daquele em que você está agora, do contrário, vai criar um conflito interno e uma resistência inconsciente. Perdoe a si mesmo por não estar em paz. No momento em que você aceitar completamente a sua intranquilidade, ela se transformará em paz.
Lembre-se de que a nossa percepção do mundo é um reflexo do nosso estado de consciência. Não estamos separados dele e não há um mundo objetivo fora dele. A cada momento, a nossa consciência cria o mundo em que habitamos.
Nada é o que parece ser. O mundo que você criou e vê através da mente pode parecer um lugar bem imperfeito, até mesmo um vale de lágrimas. Mas o que quer que você perceba é somente uma espécie de símbolo, como uma imagem em um sonho. É o jeito pelo qual a sua consciência interpreta e interage com a dança de energia molecular do Universo. Essa energia é o material bruto da assim chamada realidade física. Você a vê em termos de corpos e de nascimento e morte, ou como uma luta pela sobrevivência. Existe um número infinito de interpretações diferentes, de mundos completamente diferentes, tudo dependendo do que a consciência percebe.
Assim como as imagens em um sonho são símbolos dos estados interiores e dos sentimentos, a nossa realidade coletiva é uma expressão simbólica do medo e das pesadas camadas de negatividade até agora acumuladas na psique coletiva humana.
Ainda podemos desfrutar os prazeres passageiros deste mundo, mas não somos mais escravos dessas experiências, não estamos mais em busca de satisfação através de uma gratificação psicológica, através da alimentação do ego. Não temos mais medo de perder alguma coisa, portanto não precisamos nos apegar a este mundo. Estamos em contato com algo infinitamente maior do que qualquer prazer, maior do que qualquer coisa manifesta. Em certo sentido, não precisamos mais do mundo e nem mesmo que ele seja diferente do que é.
Somente aqueles que transcenderam o mundo conseguem criar um mundo melhor.
Nesse nível profundo, a compaixão se torna um remédio no sentido mais amplo. Nesse estado, a sua influência curativa se baseia não no fazer, mas no ser. Todas as pessoas com quem você mantiver contato serão tocadas pela sua presença e afetadas pela paz que você emana, quer elas estejam ou não conscientes disso. Quando estiver inteiramente presente e as pessoas à sua volta tiverem um comportamento inconsciente, você não vai sentir necessidade de reagir. A sua paz será tão grande e profunda que tudo que não for paz desaparecerá nela, como se nunca tivesse existido. Isso quebra o ciclo cármico de ação e reação. Os animais, as árvores, as flores vão sentir a sua paz e reagir a ela. Você ensinará através do ser, através da demonstração da paz de Deus. Você passará a ser a “luz do mundo”, uma emanação da pura consciência, e assim eliminará a causa do sofrimento. Você eliminará a inconsciência do mundo.
Você está andando por uma estrada à noite, com uma neblina cerrada, mas possui uma lanterna potente que corta a neblina e cria um espaço estreito e nítido na sua frente. A neblina é a sua situação de vida, que inclui o passado e o futuro. A lanterna é a sua presença consciente, e o espaço nítido é o Agora.
Não se entregar endurece a forma psicológica, a casca do ego, e assim cria uma forte sensação de separação. O mundo e as pessoas à sua volta passam a ser vistos como ameaças. Surge uma compulsão inconsciente para destruir os outros através do julgamento e uma necessidade de competir e dominar.
A qualidade da sua consciência neste momento é que vai determinar o tipo de futuro que você vai viver. Portanto, entregar-se é a coisa mais importante que você pode fazer para provocar uma mudança positiva.
Olhe para uma situação específica e pergunte-se: “Existe alguma coisa que eu possa fazer para mudar essa situação, melhorá-la ou me retirar dela?” Se houver, você toma a atitude adequada. Não se prenda às mil coisas que você vai ter que fazer em algum tempo futuro, mas à única coisa que você pode fazer agora.
Seus relacionamentos vão mudar profundamente através da entrega. Se você nunca consegue aceitar o que é, consequentemente não é capaz de aceitar qualquer pessoa do jeito que ela é. Você está sempre julgando, criticando, rotulando, rejeitando ou tentando mudar as pessoas.
Não resistência não significa necessariamente não fazer nada. Significa que qualquer “fazer” se torna não reação.
No taoísmo, existe a expressão wu wei, que é comumente traduzida por “atividade sem ação” ou “sentar-se silenciosamente sem fazer nada”. Na antiga China, isso era considerado como uma das mais elevadas conquistas ou virtudes. É radicalmente diferente da inatividade, no estado comum da consciência, ou melhor, da inconsciência, que tem raízes no medo, na indolência ou na indecisão. O verdadeiro “fazer nada” implica uma não resistência interior e um intenso estado de alerta.
Ao se concentrar neste instante e evitar rotular a doença mentalmente, ela se reduz a um dos seguintes fatores: sofrimento físico, fraqueza, desconforto ou invalidez. É a isso que você se entrega, agora. Você não se entrega à ideia de “doença”.
A entrega não transforma aquilo que é, ao menos não diretamente. A entrega transforma você. Quando você estiver transformado, todo o seu mundo estará transformado, porque o mundo é somente um reflexo.
A entrega não transforma aquilo que é, ao menos não diretamente. A entrega transforma você. Quando você estiver transformado, todo o seu mundo estará transformado, porque o mundo é somente um reflexo. Se você se olha no espelho e não gosta do que vê, tem que ter enlouquecido para agredir a imagem no espelho.
Torne-se um alquimista. Transforme o metal em ouro, o sofrimento em consciência, a infelicidade em iluminação.
A iluminação através do sofrimento, o caminho da cruz, significa ser levado para o reino dos céus esperneando e gritando. Você finalmente se entrega porque já não suporta mais sofrer. A iluminação escolhida conscientemente significa abandonar nossos apegos ao passado e ao futuro e fazer do Agora o ponto principal da nossa vida.
A escolha começa no instante em que nos desidentificamos da mente e de seus padrões condicionados, o instante em que nos tornamos presentes. Até alcançar esse ponto, você está inconsciente, espiritualmente falando. Isso significa que você foi obrigado a pensar, sentir e agir de determinadas maneiras, de acordo com o condicionamento da sua mente. É por isso que Jesus disse: “Perdoai-os, porque eles não sabem o que fazem.”
A mente, condicionada como é pelo passado, sempre busca recriar aquilo que conhece e com o que está familiarizada. Mesmo que seja doloroso, ao menos é familiar. A mente sempre se apega ao que lhe é familiar. O desconhecido é perigoso porque ela não tem controle sobre ele. É por isso que a mente não gosta do momento presente e prefere ignorá-lo.
Sempre parece que as pessoas fizeram uma escolha, mas isso é ilusão. Enquanto a sua mente, com os seus padrões de condicionamento, dirigir a sua vida, enquanto você for a sua mente, que escolhas você tem? Nenhuma. Você não está nem ligando. O estado identificado com a mente é altamente defeituoso. É uma forma de insanidade. Quase todas as pessoas estão sofrendo dessa doença em vários graus. No momento em que você perceber isso, não haverá mais ressentimento. Como você pode se ressentir da doença de alguém? A única resposta adequada é compaixão.