# Zootopia
Caloni, 2016-07-02 cinema movies [up] [copy]Direita x Esquerda? Opressores x Oprimidos? Predadores x Presas? A imbecilidade dos liberais americanos apenas compete com sua genialidade nesse novo filme da Disney, que explora um tema político em um filme para crianças que possui 2 ou 3 piadas bem pontuais, mas que no fundo é muito mais para adolescentes e com conteúdo adulto.
A história gira em torno de uma coelhinha muito fofinha (Ginnifer Goodwin), mas eu não posso dizer isso porque apenas coelhos podem se referir assim aos seus iguais. Em um mundo com regras sociais de segregação como esse os roteiristas da Disney querem contar uma história sobre viver em sociedade. Percebe a hipocrisia esquerdista espirrando para fora de uma história que tenta desesperadamente soar neutra?
A coelha, Judy Hopps (em inglês, "hopp" é salto, mas "hope" é esperança; sutil demais, não?), começa o filme em uma peça de teatro, ainda criança, onde seu amigo segurando um arco-íris diz que agora ninguém precisa se esconder (sutil, novamente), e todos podem ser o que quiserem em Zootopia, o lugar que quer ser o espelho tanto das cidades maconhadas da Califórnia quanto o ícone que é Nova York: uma cidade grande onde todos se respeitam.
(No fundo, se refletirmos um pouco mais, o filme se situa nesse planeta, mas em uma época distante, milhares de anos à frente, quando os humanos já se foram, e os animais tomaram conta de tudo; mas, infelizmente, continuam se organizando em torno de um sentimento coletivista e no momento estão sofrendo uma crise do politicamente correto. Ou seja, não mudou muita coisa: animais, racionais ou não, continuam estúpidos.)
O sonho de Judy é se tornar uma policial, mas nenhuma coelha jamais se tornou uma. Porém, é exatamente isso que ela se tornou, depois de se dedicar imensamente durante longos anos (onde está o seu deus das cotas, agora?). Seus pais estão preocupados com ela na cidade, principalmente se ela topar com alguma raposa, um elemento que "tem a malícia no seu DNA". E para provar que isso é verdade, depois de algumas reviravoltas, alguns predadores começam a ter um comportamento selvagem, se entregando aos instintos de milhares de anos atrás. Resta a pequena coelha investigar o que está acontecendo.
O jogo político de "Zootopia" e as brincadeiras por trás disso são divertidas, e não tão má-intencionadas como estou descrevendo. Há um filme muito detalhista aí, cuja direção e roteiros coletivos conseguem explorar a questão das diferentes proporções entre os animais, seja dos mais minúsculos como roedores (que possuem uma mini-cidade dentro da cidade) aos mais gigantescos como as girafas (que possuem carros cujo para-brisas é impossivelmente alto para ser alcançado por um guarda de trânsito).
No entanto, talvez por falta de autoestima, o filme sofre por querer pertencer à sub-série de filmes da produtora, como um Carros 2, Aviões e o subestimado O Bom Dinossauro. Tendo algumas influências que tentam transformá-lo em um episódio de TV (de uma possível série explorando a cidade rica em paisagens), o filme frequentemente se esquece de pontuar que é uma história de três atos, e uma até que competente.
Ganhando pontos pela dublagem inspirada de Jason Bateman ("Palavrões") como a raposa Nick Wilde, além de uma fauna rica o suficiente para colocar Shakira novamente no topo das paradas como a top singer Gazelle, "Zootopia" sofre, como muitos filmes, de crise de identidade. Porém, nem isso conseguiu conter o ímpeto artístico de seus idealizadores, que conseguem contar uma história com uma moral distorcida, mas uma moral, até o fim. Sua mensagem pode ser jogada no lixo assim que termina, mas seu universo é interessante do começo ao fim, e permanece na memória como uma coisa boa.
# Para Maiores
Caloni, 2016-07-03 cinema movies [up] [copy]Um projeto que envolve diferentes diretores, roteiristas e atores em torno da comédia "nonsense" que tem algo a acrescentar (ou não) ao humor. O filme vem embalado em uma história central que envolve três jovens em uma busca na internet por um filme proibido que se assistido pode causar um cataclisma mundial -- e que na verdade é uma pegadinha de Primeiro de Abril. Esse é o pano de fundo perfeito para jogar na tela vários curtas com temas bizarros que se aproveitam ou da comédia do absurdo ou, em alguns casos, de um caso de amor entre o surreal e o psicótico. De qualquer forma, o resultado de todas as experiências é frenético, empolgado e que fará pensar, nem que seja por 5 segundos.
Talvez toda essa energia tenha sido obtida de um casting genial, seja entre os atores como entre os roteiristas e diretores, a maioria já acostumada com o subgênero "comédias de filmes ruins" (aquele que assistimos com a família e eles acham o máximo). O produtor, Peter Farrelly, e seu irmão Bobby estão acostumados a obras um pouco acima da média, como "Quem Vai Ficar Com Mary?" e "Debi & Lóide". Outros diretores são culpados por "Segurança de Shopping" e equivalentes. De qualquer forma, não apenas os cinco minutos de fama de cada um se torna interessante per se, mas todos eles conseguem achar o seu lugar na "dark web", ou nessa atmosfera pseudo-subversiva de estar navegando na internet procurando por algo proibido.
É por isso que não estranhamos quando vemos a história do homem com dois testículos no pescoço (Hugh Jackman, ótimo por causa de Kate Winslet) e nem com um encontro rápido entre super-heróis (que usa até metalinguagem, misturando um elenco envolvido com filmes como Homem de Ferro e Homem-Formiga). E se a maioria das gags envolve sexo e escatologia de uma forma mais ou menos doentia, como quando uma garota pede que seu namorado faça cocô em cima dela como algo super-romântico (e onde J.B. Smoove está hilário), outras usam o tema só como pano de fundo para sugerir alguma crítica muito velada a algum estilo de vida ou a uma maneira de pensar, como o que os homens acham das mulheres menstruadas (e onde Chloë Grace Moretz fica impossivelmente jovem) ou "homeschooling".
Seja como uma daquelas piadas exageradas que sempre seriam vistas como péssimas em filmes mais longos, ou experimentos que nunca deveriam ser feitos em qualquer trabalho mais ou menos "sério" (com alguns milhões de orçamento), o detalhe é que isso funciona perfeitamente bem no formato proposto, e o filme voa em sua uma hora e meia, quase como um comercial mal-intencionado. E por falar nisso, um bônus são os comerciais "nonsense", que servem como pausas para respirar.
Você pode até achar "Para Maiores" tempo jogado fora; se seu objetivo for assistir uma comédia fora dos eixos do pastelão ou comédia romântica, talvez tenha razão. É um filme de fim de noite, despretensioso do começo ao fim, mas que justamente por isso tem muito mais a oferecer do que piadas pseudo-inteligentes em torno de atendentes de uma loja de conveniência (você não foi convidado, Kevin Smith? ótimo: Seth MacFarlane, de Family Guy, foi).
# Um Dia Perfeito
Caloni, 2016-07-05 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Esse é um filme que pode irritá-lo pela quantidade indiscriminada de músicas animadas (e rock pesado) floreando um drama bem-humorado e mais intenso do que na verdade é. No entanto, ignore isso e terá um ótimo filme que usa o humor para aproximar as pessoas de um drama que existe apenas em países longínquos que vivem em guerra, mas que, se olharmos mais de perto, acharemos algo estranhamente familiar nessas pessoas: elas são tão humanas quanto qualquer um de nós.
O elenco é encabeçado por Benicio Del Toro, que faz Mambrú, chefe de um grupo comunitário de segurança, e que se diverte enquanto realiza mais essa ótima atuação, cheia de trejeitos que remetem tanto à sua incapacidade de lidar com a própria vida quanto à impaciência de nunca conseguir fazer algo pelas vidas que supostamente deveria ajudar.
Fora ele, temos a jovem Sophie (Mélanie Thierry), que é a novata em campo e que serve como nossos olhos para uma realidade já desgastada tanto para Mambrú quanto para seu cínico colega B (Tim Robbins), tanto que esqueceram de vez o caminho de casa. E junto deles, temos o intérprete local Damir (Fedja Stukan), e Katya (Olga Kurylenko), a ex-ficante de missões passadas de Mambrú.
O roteiro adaptado pelo diretor Fernando León de Aranoa e baseado no romance de Paula Farias consegue, apesar dos diálogos iniciais capengas e nada originais, criar momentos entre praticamente todos esses personagens e mais alguns, que estão sempre interagindo para se ajudarem ou se suportarem, e mesmo que isso não fique claro em nenhum desses momentos, o conjunto da obra acaba ficando com essa sensação de um trabalho em equipe muito mais informal do que dentro de todos os protocolos que uma guerra exige.
Além disso, a história é econômica o suficiente para pontuar elementos que adicionam à personalidade dessas pessoas sem soar exagerado, como o costume de Mambrú de dar algo de beber aos seus amigos, como uma maneira de compartilhar algo no lugar de palavras. Note a naturalidade de Del Toro em fazer isso, o seu gesto significando quase que um cachimbo da paz, e verá um grande ator construindo seu personagem.
Da mesma forma, é curioso e engraçado -- e até certo ponto realista -- o pragmatismo de B em seguir mais o seu caderno de anotações empíricas para fugir das minas implantadas do que as centenas de páginas de um guia de conduta em guerra, compilado, de acordo com ele mesmo, por pessoas em Genebra que sequer viram uma mina na vida. Mais admirável, no entanto, é perceber que as minas terrestres são usadas o tempo todo como um grande gancho para a tensão, mas sem nunca apelar para o óbvio.
E se o roteiro e a história são interessantes acima da média, seus temas também não fazem feio. Girando em torno de um grupo de ajuda comunitária e tudo que gira em torno disso -- exércitos, ONU, civis espalhados no meio de todos -- Um Dia Perfeito tem como sua âncora -- quase literal -- o gigantesco corpo de um cadáver jogado em um poço. A urgência em retirá-lo antes que contamine a água e torne a vida dos habitantes mais miserável ainda é o que move a ação, muito embora o que está sendo discutido é mais as loucuras de uma guerra do que a necessidade dos personagens.
E embora essa insistência em soar engraçado e divertido, o mais importante no filme reside em sua mensagem de paz. Ele não fala quem deve ser o responsável por ela, mas quem não deve. Del Toro consegue ajudar duas pessoas em um ato muito mais direto e simples, através da auto-determinação dessas pessoas. Ao contrário do que sua ex afirma, a opinião de um "de menor" não é irrelevante. Pelo menos não quando esse de menor já viveu tempo suficiente em um clima inóspito para saber o que é melhor para si mesmo. E, mais curioso, é que quando Mambrú consegue realmente ajudar alguém é o momento em que está ajudando a si mesmo, a conviver com a impotência dos dias mais longos.
E tudo isso empalidece diante dos últimos segundos do longa, onde a mensagem de superação de uma dificuldade interna sem a ajuda dos que fizeram caso com isso é uma prova cabal de que não são só os inimigos que não tem a mínima ideia do que as pessoas atingidas pela guerra sofrem, mas os amigos, os que tentam ajudar, também não possuem o mínimo senso de como podem ser úteis.
# Amor e Amizade
Caloni, 2016-07-06 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Sempre há um filme de época, assim como sempre há um romance de Jane Austen sobrando para filmar. Por ser algo fruto de suas experiências na nobreza britânica, onde famílias donas de títulos de nobreza -- e, portanto, terras para explorar -- viviam e sobreviviam no campo, em condições muito melhores do que os camponeses recém-chegados na cidade. Para as mulheres, estar nesse meio significa conseguir um bom partido para a sustentar. Essa é a teoria. Além disso há a questão pragmática em escolher um parceiro: boa aparência, boa companhia e conversas inteligentes. E o mais divertido em Amor e Amizade, e o que o destaca dos demais filmes do gênero, é observar como a palavra "inteligente" pode ser relativizada facilmente entre aquelas pessoas. Tudo depende da companhia que estiver ouvindo.
Observe como a viúva protagonista, Lady Susan Vernon (Kate Beckinsale) pode até se gabar de ser mais esperta que as outras mulheres por compreender melhor os homens (algo que só é possível ganhar experiência convivendo com vários deles). Seus conhecimentos sobre a Bíblia são medíocres, mas basta esse nível de instrução e usar construções rebuscadas e que indiquem uma certa vivência, obviamente maior que um jovem ainda em suas fraldas, como Reginald DeCourcy (Xavier Samuel), para hipnotizá-lo e causar o terror de sua família, sempre cuidando para que as uniões nunca dissolvam sua riqueza em duas partes.
A reputação é algo a se zelar nessa sociedade, muito mais que hoje em dia, pois se você pisar na bola, ou seja, não seguir as regras sociais, nem que seja um pouco, está perdido para o resto da vida (considerando que não tenha posses, é claro). Isso é o que move as ações de Susan, que precisa fazer uma ginástica moral todo momento para esconder os boatos a respeito de sua vida de luxúria com um homem casado. Aparentemente as mentiras ditas de maneira pomposa são muito mais aceitáveis, mas o que fica difícil de fazer é convencer que aquelas pessoas não possuem nenhum senso crítico das bobagens ditas por ela.
Apresentando os atores e personagens como atuantes em uma série ou novela (e os apresentando novamente nos créditos finais), o filme se insere como um trabalho de época, o que o torna apenas brega e ofende a inteligência dos espectadores, mesmo que esteja de certa forma homenageando o conteúdo original de Austen. O roteiro de Whit Stillman, que também dirige, torna esta adaptação uma série interminável de diálogos, necessários para que acompanhemos todo o jogo de interesses e manipulações usados por Lady Susan para conseguir o que deseja.
No entanto, este é um trabalho mais cômico do que dramático, embora não seja bem explorado. A exceção fica por conta do espontâneo Sir James Martin (Tom Bennett), que diverte em uma combinação curiosa entre simpatia, ingenuidade e ignorância. Junto com ele surge a questão da ignorância desses caipiras da nobreza, em que não conhecer a história de Salomão significa tanto que a pomposidade muitas vezes é uma fachada para mentes ociosas e entendiadas, quanto que para eles a diferença entre ser alguém aceitável em sua roda de amigos é seguir as regras de conduta e saber o mínimo necessário (como a quantidade de mandamentos bíblicos).
Não é nenhuma novidade, mas é necessário ressaltar, que neste trabalho também se incluem músicas da época, um vestuário deveras impecável (ainda que teatral) e um sotaque britânico afetado que diverte mais pelo uso das palavras do que pelo sotaque em si.
Há também um fiapo de discussão entre emoção e razão -- uma ótima ponta com o pároco da igreja, interpretado por Conor MacNeill -- mas isso acaba se tornando irrelevante para a história, da mesma forma com que as estratégias de Lady Susan funcionam até certo ponto. Este é um filme compactado de um romance, então arestas que ficaram soltas é algo de se esperar. Apenas com muito cuidado, e muita atenção, um Amor e Amizade pode virar Orgulho e Preconceito. Porém, pelo menos este está muito longe de um Orgulho e Preconceito e Zumbis (com a exceção da atriz Morfydd Clark, que faz papel em ambos).
# Homem-Aranha 2
Caloni, 2016-07-07 cinema movies [up] [copy]Doze anos e toneladas de super-heróis depois, Homem-Aranha 2 continua sendo um dos melhores filmes do sub-gênero já feito, digno de ocupar o pódio junto de pequenas obras-primas como "Superman: O Filme" e "Dark Knight".
O que o torna tão especial é que ele abraça o seu universo de tal maneira que fica difícil de soltar. O primeiro filme com o nerd mutante, também dirigido por Sam Raimi, continha esses mesmos elementos, mas ainda estava tímido demais. Nesse novo trabalho, não só os efeitos ficaram estupidamente melhores, por se adequarem melhor à selva urbana de Nova York, como estão dentro de um filme com peso dramático o suficiente para, mesmo sem ser realista, conseguir abordar os sentimentos dos personagens que habitam a tela.
E quem espera realismo de um plot como esse? É sobre um garoto nerd que virou herói de sua cidade ao ser picado por uma aranha, mas que junto ganhou a marca eterna do arrependimento por se sentir responsável pela morte de seu tio, e que agora, nessa segunda aventura, tornará esse fardo de poder e responsabilidade mais pesado ainda, graças à sua escolha de também abandonar quaisquer chances de se relacionar com o amor de sua vida, Mary Jane.
Como se não bastasse, o inimigo desta vez -- sim, estamos ainda na época em que existia apenas um inimigo nesses filmes -- também é um gênio da ciência, admira a inteligência de Peter Parker e sofre as agrúrias de sua própria invenção: um mecanismo de quatro braços mecânicos que, conectados ao seu cérebro e sua medula espinhal, começam a dominar sua mente. Não se trata de um louco maníaco, mas de um doutor que perdeu ao mesmo tempo sua esposa e a chance de ver sua obra-prima ser reconhecida. Não é um maníaco com sede de poder, mas um homem obcecado por reconhecimento.
E reconhecimento Homem-Aranha tem demais nesse filme. Muito possivelmente influenciado por "Superman 2: A Aventura Continua", a proximidade entre os nova-iorquinos e seu herói é maior ainda, como podemos notar na pequena música que é cantada nas ruas, além do desenvolvimento de uma maneira exemplar da melhor sequência de ação do filme, e uma das melhores sequências do sub-gênero: um trem fora de controle.
Há uma grandeza nos temas musicais que auxiliam bastante o envolvimento, e a direção de Raimi facilita essa conexão da homenagem ao heroísmo utilizando e abusando de enquadramentos que enaltecem seus personagens, além de sabidamente evocar a estética dos quadrinhos.
Esse também é um grande exemplo onde atores medíocres, se bem escolhidos, conseguem exercer seus papéis, se não com competência, pelo menos com dignidade. Tobey Maguire foi muito criticado por sua falta de expressão, ou melhor dizendo, a sua expressão exagerada para Peter Parker nas horas erradas. Porém, Kirsten Dunst em todos os momentos é a Mary Jane menininha dos sonhos do garoto (e a iluminação em torno dela torna bem óbvio isso), e nem por isso foi vista com maus olhos. James Franco, o amigo que vive o ódio de ter seu pai assassinado pelo herói da cidade, também faz pouquíssimo com seu personagem além de usar sua cara de playboy contrariado. E Alfred Molina, a quem pertenceria o peso de carregar todo o drama em sua expressão, é correto, carrega empatia, mas nada extraordinário.
O que torna, então, "Homem-Aranha 2" um exemplar de sucesso na arte do áudio-visual pelo prazer estético de encontrar as personas da tragédia e comédia gregas em faces conhecidas, mas sem apelar para os excessos que dão Oscars a atores que emagrecem ou choram demais, entorpecidos pela complexidade de seus personagens. Isso nunca aconteceria aqui, já que não há nada tão complexo ameaçando sair de um filme que ligeiramente ri de si mesmo a todo momento. Se a recompensa pela falta de profundidade for um "I'm back, I'm back... my back, my back"... que seja!
Mas não se engane, esta não é uma comédia, mas um drama que usa comédia como um dos elementos que ajudam a construir essa realidade meio sobrenatural e simplificada. E de drama, há apenas o coro em uníssono dos conflitos principais daquelas pessoas. As cores cinzentas misturadas com o azul e o vermelho da fotografia de Bill Pope (Matrix) é o suficiente para entendermos a mágica daquele universo, onde é possível ver um garoto se pendurando em arranha-céus e cruzando a quinta avenida em segundos, e ao mesmo tempo a sua dura realidade, onde o sacrifício humano é necessário para que disso se ergua um adulto construído da mutação entre uma aranha e um garoto com espinhas.
# A Conexão Francesa
Caloni, 2016-07-08 cinemaqui cinema movies [up] [copy]A Conexão Francesa é um filme de máfia, mas passa longe dos estilos de Martin Scorsese (Os Bons Companheiros, Cassino) e da trilogia O Poderoso Chefão. Não chega nenhum momento a ser divertido. Mesmo nos momentos de humor fica difícil de rir. Ao mesmo tempo, não se dá ao trabalho de explicar a hierarquia das gangues, nem explora muito o relacionamento entre seus membros. É um filme tenso, mas ao mesmo tempo prático. No começo vemos que ele se inspira "levemente" em eventos reais, o que se torna um eufemismo para um roteiro carregadíssimo, que se arrasta através dos acontecimentos em uma espiral constante de morte, violência e dor.
A história está completamente focada na caça iniciada pelo novo juiz de crime organizado, Pierre Michel (Jean Dujardin). Enquanto juízes geralmente passam longe do dia-a-dia dos policiais e investigadores, o personagem de Dujardin tem dois motivos para estar tão envolvido, a ponto de sair às ruas e fazer parte ativa das investigações: 1) antes era juiz de menores, e conviveu com famílias caindo em desgraça por causa do vício (uma delas é usada como gancho), e 2) ele mesmo caiu em um vício no passado (a jogatina).
Já o líder da gangue, Gaëtan 'Tany' Zampa (Gilles Lellouche), mantém um esquema aparentemente à prova de falhas, cooptando todos em volta -- por bem ou por mal -- e lembrando muito um governo amador. Bom, no fundo é o que máfias são. Ele passa de uma relativa tranquilidade nos "negócios" para um estado de alerta constante por causa do vigor de Pierre, cujas decisões enérgicas fazem efeito no departamento que dirige. Quando o juiz manda a lei às favas e começa a emitir mandatos de prisão para cercar os seus comparsas, vemos o enorme esforço que é para a justiça se mobilizar, sendo que o efeito é um pequeno contratempo no lazer dos criminosos, como deixar um dos capangas sem sua mulher, que cuidava dos filhos, o que dá uma boa medida de quem é que está vencendo essa guerra.
Ao mesmo tempo, vemos Pierre e sua equipe agindo dia e noite em busca de qualquer brecha. Eles fumam e bebem demais. Seria essa uma comparação entre drogas lícitas e ilícitas? Seria esta uma crítica não às drogas e seu crime organizado, mas à própria guerra em si, fadada a fracassar inúmeras vezes até que alguém perceba ser uma luta sem sentido? Há muito do filme em torno do funcionamento da justiça e da resposta dos criminosos. Para qualquer ação, sempre há uma reação oposta e muito mais incisiva. O clima de deseserança é imenso do começo ao fim, já que nós sabemos, espectadores de Tropa de Elite (1 e 2), onde isso vai acabar. A expressiva fotografia de Laurent Tangy também sabe. Apaixonado pelos anos 70 onde a ação se passa, as luzes e o figurino quase sempre impregnam as fumaças dos cigarros e de um indelével cinismo, presente de ambos os lados.
Ao mesmo tempo, a trilha sonora de Guillaume Roussel e as músicas escolhidas para datar o longa são icônicas, representam momentos da história, mas ao mesmo tempo chamam por uma nostalgia de uma época que se repete várias vezes na História quando o assunto é guerra contra as drogas. Na verdade, qualquer tipo de guerra, e esse é o lado moral que o diretor Cédric Jimenez posiciona o filme, levando o espectador à exaustão de uma ação infrutífera. Segundo filme de ficção de Jimenez, sua estética mira nas produções hollywoodianas, e por isso o resultado quase perde o charme e o aspecto cultural francês, talvez até de forma proposital, já que o departamento de narcóticos de qualquer país do mundo, quanto mais se esforça, mais retrocede.
Jean Dujardin (O Artista) é uma cara fácil, que traz simpatia e confiança, mas que no fundo esconde o cansaço e a desesperança disfarçados de determinação. Muitas vezes o filme confunde-nos entre o incorruptível juiz Pierre e a líder da gangue Zampa, interpretado por Gilles Lellouche como um aparente bon vivant, pai de família ocasional, que preza por sua "família", e sofre pelas perdas, mas ao mesmo tempo não conta as mortes necessárias para continuar com seus negócios intocáveis.
No entanto, a história dos dois fica como um pano de fundo muito pálido, ficando difícil entender quais as conexões com suas "profissões" ou até com suas próprias vidas. O preço que se paga em usar material de eventos históricos muitas vezes é perder aquele gancho, aquela reviravolta e aqueles elementos inseridos propositadamente pelos roteiristas. Aqui toda a história empolga, é interessante, mas não caminha para nenhum lugar em específico, girando sempre em torno da perseguição polícia vs ladrão.
Ganhando no título nacional o título original do filme de 1971 com Gene Hackman que se passa em Nova York ("The French Connection" virou "Operação França" aqui), essa é a ponta francesa do tráfico de drogas entre França e EUA, mas não deve se tornar tão famoso quanto o filme de William Friedkin. Curiosamente, é um dos filmes franceses mais americanos, já que máfia e corrupção é uma criação que a máfia ítalo-americana e seus diretores nasceram fazendo.
# Independence Day: O Ressurgimento
Caloni, 2016-07-14 cinema movies [up] [copy]Mais um remake que uma continuação. Infestado de momentos, diálogos e situações idênticas ao original, "Independency Day: Resurgence" se rende à fórmula que o tornou uma das farofas mais divertidas e rentáveis da década de 90.
Porém, já não estamos mais na época dos cinemas de rua gigantescos, nem da inocência automática do espectador-família. Assisti ao original no finado Cine Marabá, em São Paulo, em uma de suas dezenas de fileiras, entorpecido pelo som surround e pela tela que tornava a imensidão das naves alienígenas intimidadora. Hoje a tela dos kinoplexes da vida torna tudo mais insípido, mas não tão insípido quanto efeitos digitais que carecem de vida, e lembram menos um ataque que possa de verdade acontecer (uma nave com o tamanho de um terço do planeta?? eles estacionam ela no oceano???) do que um video-game cartunesco. Bem, talvez o video-game hoje em dia pensaria bem mais no problema da verossimilhança...
Aliás, o diretor Rolland Emmerich comete novamente o erro de mostrar a mesma nave com dimensões diferentes em diversos momentos do filme. O filme toda hora se esquece de física básica e passaria vergonha até comparado a um anime japonês futurista disposto a explorar o absurdo. Não há nada de errado no universo absurdo em si, mas há tudo de errado em não aproveitá-lo, servindo apenas como muleta narrativa de um roteiro preguiçoso.
A história começa seus primeiros cinco minutos de forma promissora: vinte anos se passaram (de fato) desde a invasão do primeiro filme. Estamos em um 2016 alterado por causa da assimilação da tecnologia alienígena, a China agora é forte no panorama político, e o filme confia demais em nossa memória afetiva mostrando diferentes rostos supostamente conhecidos do primeiro filme, e como eles mudaram. Fora o fato de que continuamos uma raça estúpida a ponto de seus líderes terem feitos preparativos pífios de defesa, alguns detalhes sobre heroísmo que são particularmente confusos.
O agora ex-presidente (Bill Pullman) virou um velho debilitado com crédito zero, e não o herói do dia D, atribuído ao secretário de defesa ou o que o valha. Uma mulher, Hillary... Lanford (Sela Ward), está na presidência, o que é mostrado de maneira particularmente irritante, mas que se torna uma personagem sem o menor tempo de tela. Este ainda é um mundo dos homens mesmo que ela mande na cozinha da Casa Branca. Um outro exemplo é a personagem de Charlotte Gainsbourg, desperdiçada, fazendo a companhia sexual francesa do matemático maluco interpretado novamente por Jeff Goldblum.
Além disso, as únicas mentes brilhantes continuam sendo as mais velhas, enquanto os mais jovens, órfãos (vivemos uma guerra mundial, certo?) ou o filho da lenda Will Smith... quero dizer, do personagem bad ass que ele interpretou. Há dois momentos impactantes para mim, que revelam a mente doentia por trás desse projeto. Em dado momento alguém comenta que ser filho de um herói militar é praticamente fazer parte da realeza, e outro alguém mais tarde comenta meio que a grande "recompensa" da invasão de 96 foi o mundo agora estar mais unido que antes, o que supostamente faria valer todas aquelas vidas perdidas e que agora serviria de combustível para uma nova guerra intergaláctica.
E é claro que meu choque não foi essa visão, acertada aliás, a respeito do mundo governado pela figura do Estado, e do delírio de que um mundo destruído daquele jeito de reergueria em um mundo mais "unido", mas pelo fato dessa visão estar sendo escancarada em um filme tão ruim de plot. Porém, sejamos honestos. Desde o primeiro filme, a ideia de uma raça alienígena socialista, que vive de destruir os recursos de outras raças ao redor do universo, e não de produzir sua própria riqueza, é algo genial demais para ficar nas mãos megalomaníacas do diretor Roland Emmerich.
No entanto, pode-se dizer o mesmo sobre apenas o planeta Terra.
(Aliás, Emmerich participou do roteiro original com Dean Devlin, e ambos fizeram um trabalho decente. Essa continuação aumentou a equipe em mais dois roteiristas, totalizando oito mãos completamente perdidas e que tentam a todo momento voltar para os momentos icônicos do original.)
# Mais Forte que o Mundo: A História de José Aldo
Caloni, 2016-07-14 cinema movies [up] [copy]Este é um filme que se apaixona por várias coisas ao mesmo tempo. Em algumas delas há sempre o risco de ter ido longe demais. Em outras é o praticamente essencial para a história que está sendo contada.
Este é um filme que se apaixona pela técnica da "Câmera GoPro", a que mostra o ponto de vista dos objetos manipulados pelos personagens como uma corda de pular ou uma vassoura (usada tanto pela série Breaking Bad que ficou sua marca registrada). A forma de produzir esse efeito é colocando uma dessas micro-câmeras de esportistas radicais nesses objetos e filmando por essa perspectiva (a uma resolução absurdamente proibitiva para tempos passados, daí a novidade hoje).
Este é um filme que se apaixona pela técnica da câmera ultralenta, aquela que vai desacelerando aos poucos até vermos pingos d'água flutuando no ar. Aficionados por ela temos aos montes, hoje, mas é sempre bom lembrar de Guy Ritchie e suas partículas em suspensão de "Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes" e a série Sherlock Holmes protagonizada por Robert Downey Jr.
Este é um filme que se apaixona por idolatrar mitos, e faz de tudo para transformar seu protagonista em um semi-deus, torturado pela angústia psicológica, massacrando seres humanos aleatoriamente nos ringues da vida. Seu semblante está sempre olhando para a frente, e ele encara sua vida sempre de frente, exceto pelo seu pai, o seu José "Zeus" (um Jackson Antunes muito, muito eficiente), que aleatoriamente drena todas as esperanças e a energia de seu filho, quase que o castigando por querer ser alguém na vida, ou por querer encontrar a si próprio quando o pai já desistiu.
Este é um filme que se apaixona pela mania de popularizar celebridades, e apesar de investir na figura certeira do José Loreto para viver José Aldo com um foco impressionante, acaba elencando figuras que mais atrapalham do que ajudam, como Cleo Pires (que apesar dos diálogos ágeis vive uma estrelinha global no cinemas e não convence até o final) e o comediante de stand-up Rafinha Bastos, que surpreendentemente combina mais do que a personagem de Pires. Em compensação, o filme utiliza um elenco secundário de primeira qualidade, desses que só o cinema brasileiro consegue fornecer facilmente. E quem diria que Claudia Ohana seria uma mãe que esmagada pelo marido.
Este é também um filme que se apaixona pelo seu próprio roteiro, que utiliza um fiapo de história -- José Aldo se tornou conhecido ao começar treinar no Rio, tem um passado de emoções mistas a respeito de sua família em Manaus -- e ambiciosamente desafia o espectador a descobrir o personagem misterioso, o alter-ego de Aldo, sem dar maiores explicações até a metade da projeção (com exceção de algumas dicas muito pertinentes, como a cena da perseguição de carro).
Mais Forte que o Mundo é um trabalho intimista sobre um dos maiores lutadores de UFC que já existiu. Ele se distorce para chamar a atenção do espectador, fã ou não do esporte, mostrando freneticamente uma história de anos e que começa na vida miserável de uma família de Manaus e termina nos céus do Monte Olimpo, onde apenas os mais fortes e determinados chegam. É uma ode à perseverança, física e psicológica, para quem tinha a primeira, mas lutava constantemente com a segunda. É um filme que ousa não tentar explicar muito os conflitos internos de seu herói, mas que pauta toda sua história justamente nesse fato. Usando uma fotografia estilizada, uma direção de arte rica e incisiva (principalmente na primeira parte, na pobreza de Manaus), com uma edição primorosa, senão exagerada, "Mais Forte" é sinal tanto do seu público-alvo quanto do cinema ágil, um misto de ação e drama ao mesmo tempo, salpicado com a ótima comédia nacional. Uma boa dose de adrenalina e pura testosterona audiovisual.
# Breaking Bad - A Série
Caloni, 2016-07-16 cinema series [up] [copy]Sabemos desde o início do seriado que há algo de novo, muito novo, na televisão. Através da figura de um pacato professor de química que descobre ter câncer e que será pai novamente enxergamos aos poucos a relativação da moral quando Walter White decide produzir drogas usando seu conhecimento e sua recém necessidade de zelar pelo futuro de sua família. Através dessa história inicial somos levados ao mundo do crime e como ele pode ser bem menos glamoroso do que imaginamos, mas também bem menos assustador do que nos contam. O mais fascinante durante todo o ciclo de ascensão e decadência de um ser humano qualquer é que percebemos como a força motriz que move o homem não necessariamente precisa passar pela aprovação do bem moral vigente. Isso não existe na cabeça dos que fazem o que admiramos. Apenas os fins são capazes de justificar seus mais loucos atos. Fins esses que começaram de forma nobre.
Mas não precisa continuar desse jeito.
E é aí que reside o pequeno brilhantismo de Breaking Bad, que ao abrir esse guia moral com a qual estamos acostumados a viver revela que não há nada dentro, e que estávamos na verdade olhando para nós mesmos. Pelo menos naqueles momentos onde tudo faz sentido e nosso coração bate quente, aquele momento em que nos sentimos vivos. Todo o resto pode ser ignorado.
Essa trajetória em torno dessa descoberta está cheia de simbolismos escondidos ou exacerbados em cores e ângulos de câmera inusitados. O seriado respira tanto Cinema que parece ter nascido no lugar errado. O respeito à inteligência do espectador médio de televisão é tão ofensivo quanto Walter White vender drogas com a ajuda de seu ex-aluno. Não há diálogos expositivos. Ninguém expressa seus sentimentos da forma descarada de uma novela global. No entanto, eles estão ali. Nas roupas de Saul, no olhar de Jesse, no andar de Mike, nas rugas de Walter. É o poder do audiovisual desde o seu início mudo.
E esse é o instrumento da nossa passagem pelas ações vis e cruéis do nosso protagonista. A direção de arte fascina e entretém com sua estilização cartunesca (ou expressionista). A ponto de nos esquecermos da história, das ações, dos fatos. Walter White é mal, ou Heisenberg? Não importa. Que se dane a história. Quero assistir à Arte, e ela é o meu fim. Que justifica qualquer meio. Mesmo que pessoas inocentes tenham que morrer pelo caminho, é por um bem maior. Não é assim que pensa o governo e as pessoas que o defendem?
# Breaking Bad - Primeira Temporada
Caloni, 2016-07-16 cinema series [up] [copy]Sabemos desde o início do seriado que há algo de novo, muito novo, na televisão. Através da figura de um pacato professor de química que descobre ter câncer e que será pai novamente enxergamos aos poucos a relativação da moral quando Walter White decide produzir drogas usando seu conhecimento e sua recém necessidade de zelar pelo futuro de sua família. Através dessa história inicial somos levados ao mundo do crime e como ele pode ser bem menos glamoroso do que imaginamos, mas também bem menos assustador do que nos contam. O mais fascinante durante todo o ciclo de ascensão e decadência de um ser humano qualquer é que percebemos como a força motriz que move o homem não necessariamente precisa passar pela aprovação do bem moral vigente. Isso não existe na cabeça dos que fazem o que admiramos. Apenas os fins são capazes de justificar seus mais loucos atos. Fins esses que começaram de forma nobre.
Desde o começo há um discurso libertário. E não estou falando apenas de governo, mas de todas as amarras sociais que, se de vez em quando são úteis, na maioria do tempo aprisiona e limita o espírito humano. Breaking Bad fala da quebra de todas essas amarras, uma a uma.
Mas, obviamente, o governo é a primeira delas.
A proibição de bebidas durante a lei seca, na década de 30, gerou uma onda de violência que só se compara com a atual onda de violência que gira em torno do combate às drogas. A diferença primordial é o que você chama de droga.
Em um dos últimos diálogos da temporada, entre Walter White, um químico genial que começa a lucrar produzindo e vendendo uma droga ilegal, e seu cunhado Hank, representante máximo da força e truculência estatal, com sua moral relativa e uso da autoridade e da lei de uma forma distorcida (como prender um faxineiro porque ele tinha um cigarro de maconha em seu carro, ou tratar uma prostituta viciada como um lixo), o tema principal, trazido à tona por Walter, é como as proibições legais parecem sempre arbitrárias, não sendo possível prever o que será utilizável no futuro sem medo de ser preso por isso e o que passará a ser o novo inimigo número 1 da sociedade.
O fato é que esse diálogo tem importância mínima para Hank, já que ele está do lado da lei, e tem o aval de executá-la ao seu bel prazer, mas tem importância máxima no destino de Mr. White e seu novo negócio. Afinal de contas, a droga que ele produz era comercializada em qualquer farmácia de bairro há alguns anos apenas, o que quer dizer que seus conhecimentos de química seriam inúteis caso a droga continuasse liberada, pois não teria seu preço tão valorizado. Além disso, não existiriam todas as mortes provocadas pelo seu comércio ilegal, parte delas testemunhamos, e boa parte de seus usuários sequer seria mal vista, já que haveria lugares mais adequados para seu uso recreativo. Como o álcool.
Dessa forma, vê-se facilmente que a discussão, analisando um simples diálogo, vai muito mais além do simplório "o governo não devia proibir, pois as pessoas têm o direito de se matarem", já que as consequências da proibição atinge um patamar muito mais imprevisível do que esse esquema simplório da realidade.
E mesmo se esquecermos das drogas, das leis e da violência, há um outro fator determinante na mudança de atitude do protagonista: ele sabe que irá morrer. Ele possui uma família, quer sustentá-la. Principalmente porque não conseguiu dar a vida -- vamos aprendendo -- que ele quis para si mesmo. Ele não conseguiu atingir o seu ápice como químico brilhante, e agora ele irá utilizar sua genialidade para o que for mais rentável no mínimo espaço de tempo. O seu tempo é escasso, e as transformações químicas em seu próprio corpo não o favorece.
Ou favorece? Surpreendendo a cada episódio, o pacato Sr. White vai aos poucos conhecendo a potência criadora de saber que o único tempo que nos resta, de fato, é o aqui e o agora. O passado se foi, é lamentável, mas mais ainda é o futuro, que ainda não existe, e pode muito bem não existir. Seu câncer o avisa que o futuro é ainda mais improvável. Então a hora de agir é inevitavelmente agora.
As metáforas com a química e a vida são a parte que mais vale a pena acompanhar. Em determinado episódio, ele está com uma colega "desmontando" o corpo humano em seus componentes químicos, até chegar em uma porcentagem quase total, mas ainda faltando algo. Sem saber o que é, sua colega sugere: seria a alma? A resposta é simplória ("só há química aqui"), mas poderosa nas imagens. É o momento em que Mr. White irá realizar seu primeiro homicídio pensado.
Agora decidi falar um pouco sobre o uso das cores, um assunto abordado à exaustão. Jesse Pinkman, seu parceiro no crime e ex-aluno problemático, é representado pelo amarelo. Skyler, sua esposa e um bem desejável, ainda que sempre seja alvo de problemas, é o azul. Walter White, e sua ganância que às vezes parece sair do controle, é sempre o verde. E como os cenários são pintados com essas cores, e os figurinos utilizados com essa lógica, é o prazer do fã em caçar detalhes de fotografia por toda a história. Isso ajuda a entender o que está acontecendo, às vezes. Quando Pinkman volta para a casa dos pais, a ganância deles verem seu filho um não-drogado, e alguém mais como seu irmão mais novo, vestido de camisa social, é um óbvio ululante. Porém, mais óbvio que isso são os detalhes em verde, que representa justamente essa visão linear e destrutiva do poder criativo das pessoas. Pinkman, quando mais jovem, era um artista. Em que ele se transformou?
Transformação... talvez essa seja a palavra-chave de toda a série. Bom, pelo menos é a da primeira temporada. Vemos diferentes personagens interagindo de uma forma que não veríamos não fosse o poder de transformação dos elementos químicos. Sejam células malignas trabalhando de forma caótica... seja uma droga viciante, que faz esquecer que essa vida, quando passa, nos toma cada vez mais tempo, nos deixando ver os sonhos que tínhamos irem embora para sempre.
A não ser que você tome as rédeas de sua vida. Isso é ser libertário.
# Breaking Bad - Segunda Temporada
Caloni, 2016-07-16 cinema series [up] [copy]Temporada S02 revista. Alguns sentimentos mistos. A saga do Walter White ganha alguns contornos novelísticos, mas a paixão cromática do diretor de fotografia é contagiante do começo ao fim. Não me lembro de nenhum episódio onde não estivesse procurando nos cenários e figurino a presença das cores verde, amarelo, azul e roxo; pior: agora temos um novo tom que começa a despontar: o cinza/preto.
E é por isso que um dos astros fora de cena que melhor contribui para a história é Michael Slovis, o diretor de fotografia de todos os episódios (ou da grande maioria), e que nas próximas temporadas irá digirir um episódio em cada.
E por falar próximas temporadas, é interessante entender agora, na revisão, que alguns personagens icônicos foram apresentados bem antes porque eles serão vitais para o decorrer da ascenção e queda do "gênio" do crime. Dessa forma, a presença precoce de Giancarlo Esposito (Gustavo Fring, o Gus), e Jonathan Banks (Mike Ehrmantraut) e até de Bob Odenkirk (Saul Goodman), que ganhou série própria, é indicador que a história de Breaking Bad, ao contrário de séries de guerras nas estrelas, já foi, se não totalmente pensada, delineada em seu esboço narrativo, com pelo menos uma vaga ideia de como ela deve evoluir e até ser concluída. Isso sem teorias da conspiração.
É dessa forma que testemunhamos com um certo arrepio o até então pacato e sensível Walter White (Bryan Cranston), depois de ver sua tomografia com detalhes sugerindo uma metástase (aliás, o nome da série que é o remake latino), possivemente para o cérebro, começa a ter atitudes antes incoerentes com seu personagem (como a briga com seu cunhado com a tequila, ou o soco no banheiro, ou até uma das primeiras frases icônicas, "fique longe do meu território"). Porém, agora que o câncer começa a ficar sob controle, a série sutilmente sugere que algo já saiu das estribeiras dentro do químico brilhante.
Porém, se Bryan Cranston faz aqui uma evolução fascinante do protagonista, Aaron Paul não fica nem um pouco atrás com seu garoto, Jesse Pinkman, virando de uma vez por todas os olhos e o coração do espectador. É ele que protagoniza um dos melhores episódios, Peekaboo, em que vemos uma família totalmente desmantelada pelas drogas, incluindo a criança mais suja do universo.
Aliás, é justamente Jesse o responsável pelas tiradas cômicas que melhor funcionam nesse universo. Sua ainda ingenuidade, mesmo sendo um viciado inveterado, é ao mesmo tempo engraçada, tocante e irritante. Quando ele evoca a imaginação de "Mr. White" (que ele insiste em chamar assim, como um sinal ainda de respeito) para que ele crie uma solução para (mais uma) situação de vida e morte dos dois, ele sugere ludicamente que faça um robô. Quando o professor começa a pedir que ele colete todo tipo de metal galvanizado do trailer, ele consegue fazer um olhar de fascinação absolutamente convincente: "você vai construir um robô?".
E se Breaking Bad continua usando bem tanto a lógica narrativa quanto a exploração das inúmeras situações na série -- algo mais que óbvio, visto que a série combina diferentes roteiristas e diretores, algo impossível de harmonizar se não fosse o ótimo conteúdo central: seus personagens -- o seu tema libertário se torna até mais incisivo. Ainda mais quando vemos Hank, o policial orgulhoso de combater o crime de tráfico de drogas, fabricar cerveja artesanal em sua própria garagem -- e, obviamente, nunca ligar uma coisa à outra. Quando ele fere sua mão com uma das garrafas, ele usa um guardanapo de cor azul gritante para estancar o sangue. E a série se torna um mosaico de cores e assuntos que estão sempre orbitando as pessoas desse universo.
# Breaking Bad - Terceira Temporada
Caloni, 2016-07-16 cinema series [up] [copy]Após a sequência de coincidências discutível no final da temporada anterior, Skyler agora sabe da droga, Walt decide em um ímpeto queimar o dinheiro, mas volta atrás. Todos são culpados na terceira temporada, dos usuários aos distribuidores e produtores, mas também os defensores da lei. Ninguém está a salvo do escrutínio moral, mas em vez de criticar, a série os entende perfeitamente. É a moral do indivíduo que está em jogo, e não uma série de leis absurdas em torno das quais todos lutam ferozmente.
A questão é que fazer a droga é o que Jesse Pinkman faz de melhor, e sua visão de que ele deve seguir esse caminho está completamente de acordo com seu personagem e segua uma moral que não tem nada de errado ou recriminável. A droga pode destruir vidas, mas fazê-la é um ato de virtuosismo. Jesse, portanto, aqui assume que sua natureza é "má", mas, nós sabemos, apenas do ponto de vista da coletividade. Ele compra a casa de seus pais por uma barganha, ameaçando denunciar pelo laboratório que lá existia. Usar a lei a seu favor é um dos melhores traços dessa temporada.
Afinal de contas, é com o dinheiro da produção de metanfetamina que Walter White conseguirá bancar o tratamento de seu cunhado. Irônico, não?
Os gêmeos impressionam e representam a loucura da máfia latina, e por contraste mostra como Gus chegou ao topo sendo a pessoa fria e calculista que W.W. aos poucos vai se transformando.
O relativismo moral mais uma vez é discutido quando Skyler começa a trair Walter. É compreensível, e faz pensar sobre os limites dos personagens. O realismo desse limite é o forte na trama. O fraco, como sempre, são as coincidências incríveis que acontecem, e até jogos como a corrida de Hank para o hospital em busca de sua mulher podem parecer forçados, apesar de existirem motivos pincelados durante os episódios que justificassem sua precipitada ação.
Tudo isso para um dos poucos episódios dirigido pela interessante Michelle MacLaren (o outro dessa temporada, I.F.T., também irrepreensível) e que contém um dos melhores tiroteios de toda a série, perdendo talvez para a sequência que se precede o melhor episódio, "Ozymandias", de Rian Johnson (estou falando do final de "To'hajiilee"). Tive que assistir mais umas três vezes o tiroteio entre os irmãos e Hank; primeiro para contar as balas; segundo para contar os segundos.
Enquanto isso, o personagem de Bryan Cranston consegue exalar humanidade e preocupação com a família (ele está de fato preocupado com Hank após o tiroteio), mas ao mesmo tempo vai revelando uma psicopatia e decisões que Jesse piraria só de pensar que demonstram ou que a metástase em seu cérebro pode o estar transformando (uma teoria muito válida dos fãs da série) ou que Walter White é um misto de ser humano amoroso e inteligente, mas que usa sua inteligência para seus objetivos mesquinhos enquanto pode. E quem, sendo tão inteligente assim, não o usaria para sobreviver a qualquer custo?
É essa falta de "vilanice" de seu personagem que torna a série tão fascinante. Se fosse o caso de apenas um vilão sanguinário e inconsequente como o congressista matador-de-cachorros Francis Underwood em House of Cards (não que ele seja ruim, muito pelo contrário), perderíamos o contato com a humanidade do sujeito. Porém, ao juntar os dois, temos uma das melhores atuações de todos os tempos.
E voltando aos diretores, Rian Johnson faz agora um dos melhores episódios da série, que é um filler -- um episódio para preencher espaço na temporada -- pois conta a história de uma mosca no laboratório por quase uma hora, mas se torna importante nos minutos finais para tentarmos entender o que poderia acontecer com o protagonista e seus atos se uma metástase no cérebro realmente estivesse acontecendo (e é admirável que a série nunca nos dê as certezas que esperamos, preferindo, de maneira acertada, manter o enigma no ar).
Não há frases marcantes no final dessa temporada. Porém, o que se segue antes de Walter gritar "corra" para Jesse foi um momento tenso e milimetricamente pensado. Infelizmente, aqui já esgotamos faz tempo a cota de coincidências, e Jesse encontrar a mãe do garoto que matou um de seus traficantes parece demais, talvez até mais do que o encontro entre Walter e o pai de Jane.
Full measure, escrito e dirigido por Gilligan, confirma Dave Porter como um dos melhores músicos para cinema. Ele simplesmente nos joga para um policial dos anos 80 com uma rápida sequência envolvendo Mike, que sempre ganha as melhores pontas, e merecidamente. Observe sua sobrancelha franzindo enquanto explica como se sente culpado pela decisão de manter vivo um marido que espancava sua mulher.
Conseguindo manter um equilíbrio fascinante entre seus personagens principais, Breaking Bad ainda se mantém como uma experiência única na televisão, e que ainda flerta duramente com a possibilidade de ser comparável às grandes obras do Cinema. E isso porque ainda apenas começamos.
# Breaking Bad - Quarta Temporada
Caloni, 2016-07-16 cinema series [up] [copy]A saga de Vince Gilligan continua soando como um mini-manifesto libertário, mas agora ao mesmo tempo resolve discutir moral através de múltiplas ações de múltiplos personagens. Enquanto Skyler começa a se envolver nos planos de Walt, a questão sobre o que é certo e errado entra em conflito com o que é legal e ilegal. Durante toda a temporada, um cigarro (legal) é carregado por Jesse em seus inúmeros maços; o que esse cigarro contém de especial é uma outra substância escondida (ilegal) que pode ser usada para envenenar uma pessoa. Essa substância foi produzida sem a necessidade de ferir ninguém, e envenenar alguém seria uma ação necessária caso houvesse algum risco de vida das pessoas envolvidas, por causa da produção de uma terceira substância cuja produção também é ilegal, e combatida através de bilhões de dólares queimados pelo governo em uma guerra informal.
O final da terceira temporada de Breaking Bad termina com um assassinato. Um inesperado, apressado assassinato. O começo da quarta, portanto, realiza o mesmo ato. Porém, aqui, há um significado mais profundo, mais obscuro e mais metafórico. Ele tem a dizer sobre quem está no controle, e o quanto este alguém possui de controle sobre os outros. Ele incute na mente de Walter White, uma mente cujo cérebro, desconfiamos, está sofrente um processo químico que pode ou não alterar sua percepção da realidade e sua própria personalidade. Isso já fica claro na temporada anterior, mas nessa temporada ainda temos mais um apelo (o genético). No fundo, a maior virtude da série não se mantém apenas no espectro político da coisa, mas no humano, especialmente no filosófico: somos donos de nossas próprias ações, ou a influência do ambiente (e da genética, e das doenças ou de qualquer mudança química) exerce um poder quase que sobrenatural para nossas decisões do dia-a-dia?
Das frases marcantes, há várias, mas é mais uma vez da boca de Bryan Cranston que saem duas, em sequências: "I am the danger" ("eu sou o perigo") e "I am the one who knocks" ("sou que que bate à porta") faz parte de um dos melhores diálogos da série entre Walt e Skyler, pertencente a um excelente episódio do diretor de fotografia da série, Michael Slovis, "Cornered".
Mas nada poderia ser mais marcante entre os personagens secundários do que a determinação e a astúcia da investigação a distância que Hank (Dean Norris) realiza a respeito das ligações entre o cartel de drogas, Gus Fring, a empresa alemã Madrigal e um inofensivo químico assassinado. E é aqui que aparece o caderno de anotações com uma dedicatória a "W.W." (com direito a mais um ótimo diálogo entre Hank e Walter, quanto este apresenta pela primeira vez esta pista).
Dessa vez fico em dúvida sobre qual sequência de ação poderia figurar entre as melhores. Temos um tiroteio à distância iniciada por snipers em "Problem Dog" (Peter Gould, um diretor também de Better Call Saul), mas também temos outros dois momentos icônicos, que engrandecem a figura de Gus Fring. A primeira, localizada no distante ano de 1989, aprendemos, como já havíamos desconfiado, de onde veio o conhecimento de química que possibilitou Gus de iniciar seu império nos negócios ("Hermanos"). Com a direção de Johan Renck, este é um momento icônico para o personagem.
A segunda merece um novo parágrafo para descrever, pois faz parte dos quatro últimos episódios da temporada, que devem ser assistidos obrigatoriamente em sequência, sem parar. Ele é um filme de 3 horas em um universo criado com maestria por Gilligan. Sua primeira parte, "Salud", é dirigida por ninguém menos que Michelle MacLaren, a especialista em cenas de ação, e que aqui não perde um segundo dos detalhes envolvendo a visita de Mike, Gus e Jesse ao Cartel, até sua derradeira sequência.
No entanto, é Scott Winant que a continua em "Crawl Space", em um dos dois episódios que dirigiu na série. Esse é o momento em que a trama fica mais séria e obscura, e onde diferentes personagens se cruzam em um emaranhado de interesses difíceis de se conciliarem. Há um momento em particular em que a direção de Winant atinge um perfeccionismo emocionante. É uma cena no deserto, vemos os personagens de longe, a paisagem ao fundo. Eles estão longe, mas o ouvimos falar. Uma nuvem passa por eles exatamente durante esse momento, e as pedras do deserto brilhante por um breve momento se tornam escuras, opacas, sem brilho.
Por fim, é Vince Gilligan em pessoa que desfaz todo esse clima tenso utilizando sua comédia tão atípica em momentos pontuais que concluem a trama na sequência de "End Times" e "Face Off". Com a participação mais que especial de Mark Margolis como Tio Salamanca, ele protagoniza um momento impagável na sala da DEA, um momento construído com toda a calma do mundo em três sequências. "Face Off", é preciso dizer, é um dos melhores episódios de toda a série e um dos melhores momentos no Cinema dessa década, mesmo se tratando de um episódio de televisão.
Aos poucos percebemos que as temporadas de Breaking Bad se assemelham muito em seus temas centrais, mas vão aumentando de intensidade conforme avançam para o final. Essa quarta, em específico, consegue ser ainda mais obscura que a terceira, engrandecer seus assuntos conforme eles vão ficando mais sérios (e os personagens acabam se envolvendo freneticamente em sua resolução) e ainda oferece um desfecho absolutamente irrepreensível, se a série quisesse terminar por aqui.
Felizmente, isso não aconteceu, e tivemos uma quinta temporada, a última, dividida em duas partes. E é para lá que este autor está se dirigindo, depois de participar, mais uma vez, deste universo tão realista quanto fantasioso, mas, acima de tudo, estilizado ao máximo, como uma homenagem à sétima arte, vinda da televisão.
# Breaking Bad - Quinta Temporada
Caloni, 2016-07-16 cinema series [up] [copy]Assim como Tropa de Elite (1 e 2), Breaking Bad tem seu próprio arsenal para o campeonato de frases famosas dita ao longo da série. Cada temporada apresenta pelo menos uma, de "I am the Danger" a "Say My Name" até para frases que não são particularmente brilhantes, mas fecham diálogos memoráveis como uma cereja no bolo. Muitas dessas frases são ditas pelo protagonista interpretado por Bryan Cranston, mas eu diria que há uma bela de uma competição entre todos os inesquecíveis personagens.
Apesar de gostar muito de várias das frases do "químico do mal", arrisco dizer que de todas ditas ao longo da série, possuo duas favoritas, e a primeira não é de Walter White, mas de um outro personagem: "You're the smartest guy I ever met... but you're too stupid to see... He made up his mind ten minutes ago." ("Você é o cara mais esperto que eu já conheci... mas você é estúpido demais para perceber... que ele já decidiu o que fazer há dez minutos atrás.").
Essa frase pertence ao início do episódio mais perfeito de toda a saga. O antepenúltimo da quinta temporada, entitulado Ozymandias. O nome vem do grego e diz respeito ao faraó egípcio Ramsés II. É o título de um soneto do poeta Percy Bysshe Shelley, composto junto com a chegada de fragmentos da pirâmide onde o faraó foi enterrado em um museu britânico. Shelly escreveu:
I met a traveller from an antique land
Who said: "Two vast and trunkless legs of stone
Stand in the desert. Near them, on the sand,
Half sunk, a shattered visage lies, whose frown,
And wrinkled lip, and sneer of cold command,
Tell that its sculptor well those passions read
Which yet survive, stamped on these lifeless things,
The hand that mocked them and the heart that fed:
And on the pedestal these words appear:
'My name is Ozymandias, king of kings:
Look on my works, ye Mighty, and despair!'
Nothing beside remains. Round the decay
Of that colossal wreck, boundless and bare
The lone and level sands stretch far away."
A história tem a ver em como os maiores feitos dos maiores reis, imperadores e etc de toda a humanidade eventualmente irão virar pó, serem esquecidos, conforme o nível de areia vai os encobrindo. Sim, esse é o episódio-queda de Heisenberg, e assim como o final da quarta temporada, é mais um ponto de escape perfeito para a série.
Já que, depois de Ozymandias, há ainda mais dois episódios, que fecham um arco lindo, tanto com o início da temporada quanto com o início da série. Resolve todas as questões pendentes e faz Bryan Cranston ganhar fácil o Globo de Ouro daquele ano (depois de ter sido indicado nos três anos anteriores, sem contar os cinco Emmys).
A questão é que, repetindo o feito na temporada anterior, de "To'hajiilee" a "Felina", temos um filme composto de quatro episódios indispensáveis de serem assistidos mais de uma vez pelos fãs da série. Mais uma vez um roteiro primoso e direções inspiradas arrebatam todo aquele universo tão bem criado por Vinge Gilligam e o elevam a patamar de sétima arte.
O último episódio possui a segunda das duas minhas frases favoritas, essa de Walter White: "I did it for me" ("eu fiz por mim mesmo"). Esse é o insumo, a inevitável catarse, de um personagem cuja curva passou não apenas moralmente, mas quimicamente, de um inocente professor de química para o maior gênio do "crime" de produzir drogas.
Porém, a quinta temporada não se resume aos quatro últimos episódios, mas mantém sua qualidade do início ao fim. Aliás, o primeiro episódio, "Live Free or Die", é uma distante chamada a um cliffhanger no final da série, já revelando alguns pedaços de informação a respeito do segundo aniversário de W.W. na história. Ou seja, desde a primeira até o início da quinta temporada, se passou basicamente um ano. Da quinta até seu final, um outro ano inteiro. (E a noção do tempo é perfeitamente marcada nos dois últimos episódios.)
Já "Madrigal", o segundo episódio, revela mais do que desconfiávamos: Gus Fring é a ponta do iceberg. Conseguindo demonstrar com maestria como a indústria das drogas, graças à recompensa, se estrutura de maneira muito superior a qualquer tentativa de ataque do Estado, acaba revelando um óbvio de toda a série, até então escondida na entrelinhas: os personagens que vivem disso, quando estão vivos por muito tempo, são muito bons no que fazem.
O que nos leva a talvez o policial da narcóticos mais competente, ou empenhado, em desmembrar a operação Heisenberg. Hank Schrader (Dean Norris) já tem motivação o suficiente para não largar o caso que quase deu fim à sua vida duas vezes, mas irá precisar do dobro para levar a fim sua investigação na segunda metade da temporada, quando, exatamente no meio, e exatamente no banheiro do seu inimigo, este contempla a peça final de seu quebra-cabeças, que lá estava o tempo todo, mas que nunca seria descoberto por outra pessoa senão ele.
A sua descoberta e sua ação em seguida significaria o fim tanto de sua carreira quanto a de seu cunhado (isso para não falar da família). É uma decisão difícil e que Dean Norris carrega nas costas com seu jeitão policial dos anos 80. É preciso muita força de vontade para não virar fã de Hank nos últimos episódios, força essa só compensada pela atuação particularmente obcecada de Bryan Cranston, que magicamente consegue dar verossimilança a Walter White/Heisenberg mesmo nos momentos mais frenéticos da saga.
O fato é, não importa mais quais os motivos que causam as atitudes de Heisenberg, se é o câncer ou se é ele mesmo, mas sim as transformações iniciais, e onde elas desencadearam. Uma reação em cadeia que teve início um ano atrás (na série, na primeira temporada) e que hoje encontra seu inevitável desfecho.
# De Longe Te Observo
Caloni, 2016-07-16 cinemaqui cinema movies [up] [copy]De Longe Te Observo é um trabalho intimista que subverte a estrutura dos elementos que formam esse thriller/drama e com isso inverte nossa percepção sobre o que realmente está acontecendo. Ele não consegue nos despistar o suficiente, mas o efeito funciona. Dessa forma, previsível ou não, aqui temos uma história que mexe com conceitos como trauma, apego, dinheiro e vingança.
Tudo começa com Armando (Alfredo Castro), que trabalha em um laboratório de prótese dentária, tem uma irmã que está para adotar um bebê e mora sozinho. Armando tem um fetiche por olhar o corpo desnudo de jovens rapazes, e paga altas quantias para que eles o acompanhem até sua casa para que possa observá-los. Através do seu olhar podemos perceber que ele sabe exatamente o que quer, mas nunca é um olhar de satisfação, mas um olhar mecânico, muitas vezes observador, mas no fundo não é possível saber.
É dessa forma que ele atrai o problemático Elder (Luis Silva) para sua vida, mas não de uma maneira cálida ou mecânica. Muito pelo contrário. Elder é um delinquente, que vive na rua cometendo pequenos delitos. Sua violência e descontrole se contrapõem perfeitamente com a calma e a obsessão de Armando, uma obsessão tão incondicional que começa aos poucos fazer Elder duvidar de seus julgamentos de valor a respeito da sexualidade de Armando, ou pior: gerar conivência através da compaixão.
A direção do cineasta estreante Lorenzo Vigas, vencedor do Leão de Ouro em Veneza, observa seus personagens em uma profundidade de campo impossivelmente rasa, fazendo com que todo o resto que está em cena pareça desfocado, nebuloso e indiferente. Lorenzo eleva a máxima do Cinema de mostrar apenas o que importa dentro do próprio quadro, usando o resto dos elementos apenas para pincelar a realidade do cotidiano de Caracas, ou, no caso, de qualquer cidade grande de um país pobre da América Latina.
No entanto, essa negativa em nos inundar de detalhes acaba interferindo também na localização espacial dos cenários -- fica praticamente impossível saber onde fica cada cômodo em sua casa ou trabalho -- e nos objetos simplesmente fora de quadro. Com uma edição de som precisa e cristalina, não é preciso mostrar as compras que Armando deixa cair no chão enquanto fala com certo rancor da volta do pai à cidade. Da mesma forma, não é necessário nenhum diálogo quando escutamos o andar cuidadoso, frio e calculista de Armando por sua casa ou escritório.
Enquanto isso, a tensão é criada quase de forma automática por acompanharmos essa união explosiva entre pessoas completamente diferentes, enquanto tentamos entender suas motivações e o que virá a seguir. Com um nível de controle absoluto, o roteiro, também de Lorenzo Vigas, brinca com nossa percepção ao nos fazer esquecer por longos momentos do que está em jogo, para depois sequer nos lembrar disso. A história flui naturalmente, como se espectador sozinho fosse chegando às conclusões, talvez meses depois que o próprio filme.
Isso explica os momentos sublimes do final, onde expectativa e acontecimento se encontram. Intuitivamente previsível, mas nunca óbvio. Há alguma mágica em "De Longe Te Observo" que mantém os detalhes bem longe de onde podemos facilmente observá-los.
# O Convite
Caloni, 2016-07-16 cinema movies [up] [copy]Esse filme de 2015 não estreou nos cinemas do Brasil, mas graças à Netflix está disponível para espectadores caseiros. Se trata de um thriller travestido de drama, com todos os atores desconhecidos, algumas técnicas batidas e um certo gosto de estranheza que acompanha a tela pela maioria do tempo.
Essa estranheza já começa na primeira cena, onde vemos um casal conversando sobre o convite que receberam da ex-mulher dele, Will (Logan Marshall-Green), junto de todos seus amigos e conhecidos. Eles estão no carro, e um animal acaba sendo atropelado. Ainda vivo, Will precisa sacrificá-lo com uma chave de rodas. Piedoso, talvez.
E por falar em morte, Will e sua ex com um nome talvez simbólico, mas nem um pouco sutil, Eden (Tammy Blanchard), tiveram um filho, e este morreu em condições nefastas. Atormentados pela perda, é até natural que tenham se separado. O que não é natural é reunir todos os que presenciaram a tragédia em um jantar "especial".
O estranho do filme fica por conta tanto de Eden e sua nova companhia estarem fazendo parte de uma espécie de seita onde se prega a aceitação da perda de entes queridos, além da própria morte, e uma desconfiança constante de Will, que se pega a todo momento observando detalhes no tratamento de seus hóspedes e de seus estranhos novos amigos, como o fato das portas estarem trancadas (sem a chave na fechadura) e da insistência em que todos se sintam bem e façam confissões inesperadas.
Ao mesmo tempo, cada vez que Will perde o foco o vemos impregnado de lembranças do filho. Cada cômodo da casa onde moravam remete a uma lembrança do garoto, tornando-se de certa forma impossível para ele imaginar que sua ex-esposa estivesse de fato tão bem como ela demonstra.
The Invitation já seria ótimo se parasse por aí, e eu até arriscaria dizer que preferiria que ele parasse aí. No entanto, ele vai um pouco além na paranoia e o que ele revela pode não ser nada imprevisível, mas as consequências do que é revelado são interessantes per se.
Não se trata de nenhum grande clássico, mas para quem gosta de thriller e está cansado da mesmice dos jovens na cabana isolada, talvez goste de uma relação semelhante envolvendo pessoas que são amigas e que se encontram de vez em quando. Talvez você até goste de ideia de imaginar-se na mesma situação em seu próximo evento social. Quem sabe até onde vai a loucura alheia...
# A Ponte do Rio Kwai
Caloni, 2016-07-18 cinema movies [up] [copy]É um daqueles trabalhos épicos dos anos 50 com a trilha sonora pomposa (Malcolm Arnold), cerimoniosa, em torno de um grande feito orquestrado por um grande homem. O coronel Nicholson (Alec Guinness) tem seu batalhão prisioneiro dos japoneses na Segunda Guerra em uma floresta tão densa e tão isolada do mundo que o Coronel Saito (Sessue Hayakawa) dispensa controle de fugitivos. A guerra continua e eles precisam construir uma ponte naquele fim de mundo em um prazo curto. Todos os países da língua inglesa se unem e sabotam os planos orientais. Há ao mesmo tempo uma disputa de ego, discursos sobre honra e princípios e uma alegoria muito clara sobre o que é a guerra.
Ao mesmo tempo, se torna uma metáfora sobre como fazer filmes, o seu esforço e o seu legado. Tantos figurantes em um pedaço de floresta. Ao final, um pedaço de arte que extrai do mundo físico muito mais do que ele é. Não é uma história sobre um rio, uma guerra ou sequer uma ponte. Esses são fabricados a duras penas, mas é o resultado, o efeito final que conta.
E por falar em efeito, estamos em uma época em que "a verdade está lá fora", e não dentro desses espertos e rápidos computadores dos dias de hoje. Todos os delírios visuais que você ver nesse filme -- incluindo o final bombástico -- estão nele porque foram fisicamente criados. A fotografia de Jack Hildyard torna tudo verdadeiramente quente, em um amarelo que só encontra descanso no verde intocado da floresta. Não se sabe se a maquiagem da dupla Stuart Freeborn e George Partleton resolveu usar um tom naturalista ou se estão realmente escorrendo lágrimas do elenco, mas o efeito é soberbo. Sentimos o calor só de olhar para eles, e seus olhos brilharem absurdamente.
Alec Guinness cria aqui um ser humano moral que rouba a cena no primeiro um terço do filme. A química que acontece entre seu incorruptível senso de justiça e a raiva milenar do coronel oriental interpretado por Sessue Hayakawa é a grande força motriz dessa introdução, e mereceu tornar o filme mais longo do que devia. As primeiras cenas, mesmo se passando décadas após assistir o filme, continuarão na mente do espectador.
Apesar do roteiro simples e coeso da dupla Carl Foreman e Michael Wilson, que sequer foram creditados no filme, apesar de conter diálogos, passagens e uma artimanha engenhosa em seu terceiro ato, é a direção de David Lean que torna tudo mais grandioso e até certo ponto fantasioso sem perder o senso da razão (como o impecável Dr. Strangelove de Kubrick, também sobre a guerra). Lean gravaria cinco anos depois Lawrence da Arábia, demonstrando que não há nada que não possa fazer em cenas externas.
A Ponte do Rio Kwai, apesar de um "filme antigo", ainda carrega uma energia invejável, algumas tiradas humorísticas relativamente eficientes, mas, acima de tudo, uma moral da história que transcende a superprodução.
# Procurando Dory
Caloni, 2016-07-18 cinema movies [up] [copy]Mas é claro que este é um caça-níqueis. E é claro que tenta emocionar, ser fofinho e engraçado. A única coisa que Procurando Dory não tenta é ultrapassar o seu original, Procurando Nemo. Na verdade, ele se empenha tanto em se tornar um filme divertido para as férias que se perde em sua própria pequenez. Um filme praticamente para TV, onde entram junto nesta lista não-gloriosa da Pixar: Carros, Carros 2, Aviões, Carros 3 (já fizeram?), Operação Big Hero, Vida de Inseto.
O problema com os filmes menores da Pixar é que, quando estes estreiam, todos esperam ver mais um exemplar da outra lista de filmes da produtora: WALL-E, Os Incríveis, Ratatouille, Up! Porém, é preciso lembrar que eles têm contas pra pagar, e filmes para produzir, não importa a ideia. Aliás, talvez importe, sim: que seja uma continuação.
E esta tem a desvantagem de se transformar em um passeio no parque. Enquanto Procurando Nemo até certo ponto assusta ao vermos o pequeno peixe-palhaço com uma barbatana pequena perdido na imensidão do oceano, com seus perigos infinitos, aqui os peixes nadam, andam, voam em qualquer lugar. Por mais rodeios que existam, todos sabemos que tudo vai dar certo desde a primeira cena. O passeio no parque, portanto, apesar de engraçado, é previsível e até certo ponto chato.
# Refém da Paixão
Caloni, 2016-07-18 cinema movies [up] [copy]Kate Winslet e Josh Brolin são atores tão competentes que "Refém da Paixão" sai quase ileso de seu formato drama enlatado com situações previsíveis para tornar tudo um pouco mais tenso. Até Gattlin Griffith, que faz o jovem Henry, e que quando adulto é narrado por Tobey Maguire, consegue um desempenho interessante, e talvez tenha dado a sorte de pegar o personagem mais ou menos acompanhável. No entanto, a mãe amargurada Adele (Winslet) e o bom homem preso injustamente Frank (Brolin) são funções ingratas da dupla de atores veteranos, pois uma vez estabelecidos os estereótipos, eles nunca mudam.
E, mesmo assim, esses dois insistem de uma maneira até compreensível em utilizar pequenas situações do dia-a-dia para elevar o estado de espírito neste que é talvez o trabalho mais fraco do diretor Jason Reitman, o até do roteirista Jason Reitman. Tendo estreado em Obrigado por Fumar e feito o texto de estreia de Diablo Cody em Juno, Reitan manteve a boa forma no ótimo Amor sem Escalas, seja na direção quanto no roteiro. Aqui, porém, por usar o romance de Joyce Maynard de uma maneira insípida, nunca temos a sensação de ver a história se movendo, mas sim parada, estática, nos mostrando como eram mágicos os épicos anos 80.
Justamente por isso, mas não retirando o mérito, a direção de arte de Mark Robert Taylor e a fotografia de Eric Steelberg tornam a atmosfera de 1987 algo imensamente satisfatório. A época em si se torna um personagem à parte, mas não sabemos bem por que. Talvez o filme tenha também se apaixonado erroneamente por esta década, como Adele acaba se entregando a um foragido da lei.
De qualquer forma, por mais lindo que seja, Refém da Paixão nos mantém reféns de uma ideia com potencial que consegue ser explorada apenas pontualmente, mas não é páreo para um longa-metragem. Apesar observar a passagem do tempo e experimentar viver alguns minutos nesta época, com essas cores e esses molhos de tomate enlatados, só se torna atraente se você, assim como Adele, está amargurada pelo que o destino lhe pregou: uma prisioneira em sua própria casa, junto de seu filho. Essa imagem eternizada serve muito bem para um quadro, mas não fez a mínima diferença para um filme.
# Se Meu Apartamento Falasse
Caloni, 2016-07-19 cinema movies [up] [copy]Jack Lemmon consegue a proeza de fazer dois personagens absolutamente distintos em duas comédias de Billy Wilder um ano seguido do outro. A primeira, "Quanto Mais Quente Melhor", Lemmon faz com Tony Curtis dois foragidos da polícia que se vestem de mulher e participam de uma banda que contém ninguém menos que Marylin Monroe. Já em "Se Meu Apartamento Falasse", Lemmon mora em um apartamento que serve de pulada de muro para seus "amigos" no escritório, incluindo um deles que tenta levar uma loira parecida com Marylin Monroe. O detalhe é que a única semelhança é que ela é loira.
Tanto em Quanto Mais Quente quanto em The Apartment, a energia do filme é inabalável, mesmo com uma comédia romântica de duas horas. Os diálogos, nível Wilder, são engraçados, de forma icônica, às vezes inteligentes demais para seus personagens, mas nunca deixam de ser originais. Wilder e Lemmon conseguem construir um bom samaritano que sofre quando as coisas saem do controle e agora é obrigado a ceder seu apartamento para seus colegas afim de conseguir uma promoção e não ser demitido. Quando a coisa bate no chefe de cima, é a ele que o personagem de Lemmon deve satisfação. O sexo no escritório nos anos 60 é tratado de uma maneira engraçada, mas crítica, não muito diferente do espírito da série "Mad Men", onde as secretárias e recepcionistas almejam a posição da esposa de seu chefe como quem tenta viver um sonho impossível. Exceto, talvez, pelo senso de humor característico do diretor/roteirista do espírito humano.
O esgotamento moral que a pequena Fran Kubelik (Shirley MacLaine) e o simpático C. C. Baxter (Lemmon) têm que passar é o que acaba os unindo, mas não de maneira tão fácil. Sabemos que ambos possuem um ao outro, mas o filme nunca entrega isso fácil. Como estamos em uma comédia irônica, isso pode nunca acontecer. Porém, sempre haverá uma próxima grande cena que conquista o espectador pela simplicidade e eficácia em explorar seus personagens.
Shirley MacLaine faz a mocinha da série Mad Men em um formato particularmente melancólico. Apaixonada pelo chefe de Baxter, ela já se apaixonou três vezes, apesar de apontar quatro no dedo. Ela não conseguiu a vaga de secretária por não saber soletrar, e quando entra na arapuca do homem casado, totalmente ciente disso, não consegue sair; como se estivesse em uma areia movediça que ela própria se colocou. Seu cabelo curto a destaca da multidão, mas o que a destaca mais são suas observações ácidas sobre a própria situação.
Já Jack Lemmon exibe o mesmo drama do lado masculino. Ciente de que precisa agradar seu chefe para manter sua escalada na empresa em tempo recorde, ao mesmo tempo revive um drama que passou quando se apaixonou pela mulher de um amigo. Porém, aqui ele não está apaixonado, mas apenas gosta dessa pessoa, o que torna tudo mais cruel, pois ele enxerga tudo que acontece com sua garota perfeitamente sóbrio. Sua fala e seu sorriso indicam auto controle, mas seus olhos tristes dizem outra coisa. O preto e branco do filme, lindos de morrer, exaltam o charme de Nova York, embora uma megalópole melancolicamente solitária.
A direção de Wilder, como sempre, é econômica e eficaz. Sua única transição entre cenas que me lembro é de um espaguete para um enfeite de ano novo. Sua única piada metalinguística envolve uma arma e um champanhe. Suas transições são ágeis para nunca perdermos o fio da meada, e seu melhor momento é na véspera de natal, quando Baxter fica dançando ad eternum com uma qualquer que encontra no bar, enquanto Fran se desespera sozinha no apartamento do rapaz. O que se segue após essa sequência é o melhor que o cinema de Wilder consegue alcançar em termos de envolvimento. E só isso já está milênios-luz da maioria das historinhas de romancezinhos modernos.
# O Rei da Comédia
Caloni, 2016-07-20 cinema movies [up] [copy]Martin Scorsese apresenta uma comédia de humor negro estrelando Robert de Niro e Jerry Lewis, se bem que o humor não é tão negro assim. Ele brinca com o absurdo do show business e seus candidatos à fama apresentando Rupert Pupkin (de Niro), um aspirante a comediante que aos 34 anos ainda vive com a mãe (Catherine Scorsese, mãe do diretor) e que nunca trabalhou um minuto sequer em sua carreira. No entanto, coleciona autógrafos de comediantes famosos (de acordo com ele, Marylin Monroe não era boa atriz, mas tinha jeito para a comédia) e persegue o astro do humor televisivo Jerry Langford (Lewis), além de ter um palco em casa onde ensaia o seu grande show de televisão, assim que conseguir um.
O roteiro do crítico Paul D. Zimmerman espreme a situação de tal maneira que aos poucos adentramos na loucura do tal Pupkin ("geralmente soletram errado, e pronunciam também") e sua insistência/loucura em ser amigo de Langford e conseguir seu lugar ao sol instantaneamente. Não é algo que se acredita desde o começo, mas de Niro está ótimo o suficiente para esse ser o caso. O primeiro diálogo entre os dois começa no carro do apresentador, após Pupkin invadi-lo. O sujeito não larga o osso do que imagina ser sua oportunidade de ouro, e apesar de receber um não educado ("ligue para minha secretária"), ele assume que deu tudo certo, assim como quem hoje em dia adicionaria um famoso no Facebook na sua lista de amigos -- sem resposta -- e automaticamente assume que pode passar o fim de semana na casa de veraneio do sujeito.
Não se pode dizer que rola uma química entre os personagens de De Niro e Jerry Lewis, mas uma anti-química muito poderosa. A persona de Lewis faz boa parte aqui, e sua postura profissional e que vai se irritando aos poucos é uma das pequenas pérolas nesse trabalho. Acostumado à comédia física, o seu jeito apressado de andar nas ruas e sua polidez necessária para chegar onde quer são icônicas por não se render ao exagero. Quando está amarrado em uma cadeira com dezenas de metros de fita, sua expressão e seu olhar são impagáveis.
Por outro lado, Robert De Niro apresenta um Rupert Pupkin que convence pelo trejeito. Quem nunca conheceu uma pessoa chata que insiste até as últimas consequências em uma discussão? A discussão aqui é entre Pupkin e a realidade. Vemos suas fantasias mescladas com o que realmente está acontecendo na vida do sujeito -- nada -- e as cenas dele hipoteticamente conversando com seu ídolo vão de infantil para patético para melancólico em segundos. Os diálogos de Zimmerman (que só escreveu três roteiros na vida, este é o do meio e o único solo) conseguem passar o sentimento exato sem soar repetitivo. Não precisamos aprender que esse é o sonho de um ser com complexo de inferioridade e que respira o fracasso de nunca ter conseguido nada na vida, nem convidar sua paixão do colégio (Diahnne Abbott) para sair por quinze anos. Porém, quando seu diretor da escola vira um convidado especial no show de Langford e pede desculpas em nome de todos da vida de Pupkin por nunca ter acreditado nele, é apenas para confirmar o que De Niro construiu ao longo de todo o filme.
Essa é uma Nova York charmosa só como os anos 80 e os filmes de Marin Scorsese conseguem retratar. Sua luz é vívida como em um quadro expressionista, mas melancólica como Taxi Driver juvenil. Há muito amarelo e vermelho para contar a história de quem vive com um terno que lembra a estática TV quando acaba a programação (com direito a efeitos hipnóticos em alguns momentos). A fotografia de Fred Schuler é didática, eficiente, mas nunca apaixonante. A não ser que você esteja particularmente fascinado também pela direção de arte e figurino do filme, que retratam bem o tempo que foi produzido através dos exageros naturais da década. Ainda assim, note o exagero maior de Pupkin, destoando ligeiramente de todo o resto, e verá que mesmo em Nova York, terra de alguns malucos, este é um maluco particularmente engraçado.
O resultado de O Rei da Comédia é um misto entre Rede de Intrigas para amadores com O Show de Truman ao contrário. Não dá pra saber qual é a moral da história, nem se existe uma. É um drama perfeito sobre as ilusões da vida, e ao mesmo tempo um filme sobre a esperança lunática de cada um de nós "mostrar seu valor para o mundo". A comédia é o gênero que gosta de rir da desgraça própria ou alheia. Quando estamos rindo de Pupkin, isso se torna duplamente verdade.
# A Viagem de Meu Pai
Caloni, 2016-07-22 cinemaqui cinema movies [up] [copy]A Viagem de Meu Pai começa como um filme leve sobre as vicissitudes de envelhecer, mas aos poucos se transforma em um drama ambicioso em sua estrutura, pois transforma espectadores passivos em participantes da inevitável experiência do esquecimento de nossas próprias vidas.
Tendo como protagonista o charmoso, porém confuso (e nada inocente) velhinho Claude Lherminier ("com um h", como ele diz), é divertido vê-lo tentar manipular suas cuidadoras, ou até suas perguntas ou pedidos indecorosos ("posso ver você tomar banho?"), assim como suas frases de efeito, que podem ocorrer de serem cruéis no meio de um elogio, ou doces no meio de um discurso surpreendentemente rancoroso. A maior virtude da primeira metade do filme é nos convencer que, confuso ou não, Claude no fundo é um bom velhinho que se torna cada vez mais confuso.
Tudo isso sua filha Carole (Sandrine Kiberlain) sabe de cor e salteado; herdeira natural da empresa do pai e que adapta a sua vida e a de sua família em torno dele, tentando lhe dar atenção e cuidados, mas que ao mesmo tempo observa com uma preocupação e seriedade que remete justamente ao momento no passado em que foi obrigada a aposentá-lo para tomar conta de seu legado antes que fosse tarde. Esse sentimento misto a respeito do pai é sutil, mas está sempre presente em suas visitas à casa da família, grandiosa e cheia de recordações para ambos.
O filme, adaptado pela dupla Philippe Le Guay e Jérôme Tonnerre, usa um artifício batido de início, mesclando memórias de Claude com sua viagem de avião para Miami, onde mora sua outra filha, Alice (um nome mais que sugestivo, pois evoca tanto o "País das Maravilhas" na imagem afetiva de Claude, como o nome da personagem de Julianne Moore em "Para Sempre Alice", onde sua personagem sofre de Alzheimer). Claude só quer beber suco de laranja da Flórida, está "brigado com o vinho" -- por um motivo que sequer se lembra -- e não gosta de arroz doce, pois ele lhe lembra um trauma de guerra (uma pequena pérola que demonstra não apenas a facilidade do roteiro em transformar algo repugnante em engraçado, mas também a incrível versatilidade do ator Jean Rochefort em viver seus diálogos, transformando Claude em uma criatura complexa, embora esteja caminhando em direção à simplificação -- para não dizer deterioração -- do seu ser e de suas próprias memórias).
Já a virtude de Philippe Le Guay na direção fica por conta dos seus cortes secos na passagem do tempo. Nós nunca sabemos se passou-se um mês ou uma tarde. A partir de um dado momento até o espaço começa soar confuso. Quando Claude sai de sua cama nunca há certeza do que está acontecendo, e às vezes nem onde está, ou com quem. Compartilhamos o clima de desorientação do próprio velhinho. O "truque" que o vemos fazer no começo da história para fazer sua cuidadora o levar à cidade já não funciona mais (pois ele se esqueceu que o já tinha aplicado). As investidas de Le Guay em nos levar a essa quebra nas memórias contínuas sobre o presente que estamos acostumados a ter é o melhor presente no filme.
Este também é um filme que tenta levar a discussão para o relacionamento entre pai e filha, e por isso envolve tanto a família, além de também abordar muito timidamente o respeito aos que já viveram demais. Porém, infelizmente a interpretação de Jean Rochefort rouba a cena, e o protagonista se torna muito maior do que qualquer assunto que o filme queira abordar, o que é uma ótima notícia, mas que torna a conclusão insatisfatória. O que é uma pena, pois a frase "não devemos brigar com os vinhos, assim como as pessoas; é perda de tempo" merecia uma situação melhor para ser dita. Não importa. Não é sempre que temos o momento certo para viver, pois os momentos são fragmentos no tempo que muitos de idade avançada não possuem o luxo de reter em suas memórias. Se o filme conseguir inspirar isso em seu espectador, já estará muito acima da média.
# Homem na Parede
Caloni, 2016-07-22 cinema movies [up] [copy]O filme é quase um conto narrado em diversas e longas sequência que mostram os acontecimentos em um apartamento enquanto uma esposa aguarda ansiosa pela volta do marido desaparecido. O filme inteiro se passa no apartamento, e os únicos cortes são justamente a passagem do tempo.
O que há de forte em Homem na Parede são os elementos do roteiro, que se acumulam de forma caótica e manipulada, mas que funcionam justamente pela estrutura tensa e misteriosa criada a partir de seus personagens, que sempre possuem algo a esconder. Os detalhes que vamos apanhando de um determinado relacionamento ou do passado de um personagem vão nos dando pistas do que está acontecendo com ela e seu marido.
O preciosismo técnico do diretor/roteirista Evgeny Ruman em usar cenas sem cortes funciona muito bem, mas há alguns momentos que ele chega a distrair. O uso indiscriminado de espelhos, por exemplo, apesar de fazer sentido, exagera um pouco (como na porta principal), a ponto de nos perguntarmos onde está a câmera.
Por outro lado, apenas essa técnica consegue resultados narrativos tão dinâmicos quanto posicionar dois interlocutores em uma posição para no momento seguinte invertê-los. Isso tem efeito na história em dizer quem é que está mandando agora.
Como exercício de técnica, Homem na Parede se assemelha a um TCC muito bem feito para uma produção tão modesta. Como Cinema, nos brinda com a expressividade de sua narrativa, que não precisa de muito para construir tensão do começo ao fim.
# Amor a Toda Prova
Caloni, 2016-07-28 cinema movies [up] [copy]As comédias românticas das últimas duas décadas criaram aos poucos um amontoado de clichês. Agora, imagine um filme que tenta enfiar vários desses clichês de uma só vez. Um filme onde a professora gostosa é Marisa Tomei, onde mulheres em crise da meia-idade assistem Crepúsculo (mesmo sabendo quão ruim isso é), onde um triângulo amoroso é criado entre a babá, a criança e seu pai. Onde até um genro-surpresa pode aparecer para a festa. Se, em torno de tudo isso, ainda houver dúvidas se este é um filme que comemora o lugar-comum, espere começar a chover depois de um desentendimento do casal principal. Nesse momento, até o personagem olha para o céu e exclama: "isso é tão clichê!".
Tudo começa com o divórcio entre o casal de meia-idade Cal (Steve Carell) e Emily (Julianne Moore). Cal se deixou levar pelo lugar-comum (veja, só) e criou aos poucos uma versão mais chata e mais previsível de si mesmo, deixando Emily disposta a arriscar qualquer aventura boba, como transar com um colega de trabalho. Decidida que o divórcio é a melhor maneira de resolver as coisas, isso desencadeia um turbilhão de acontecimentos em sua família que irá envolver o amor platônico entre seu filho Robbie (Jonah Bobo) e sua babá ligeiramente mais velha Jessica (Analeigh Tipton), que, diga-se de passagem, está apaixonada por Cal. Ao mesmo tempo, o comportamento patético de Cal em ir para o bar e falar sobre seu estado de corno gera compaixão do garanhão do lugar, Jacob (Ryan Gosling), que o ensina truques baratos para catar qualquer mulher disponível e necessitada. Entre as cantadas baratas que Cal começa a utilizar, ele inclui a usada para namorar sua própria mulher. Não muito legal de sua parte, Cal!
Porém, este é um filme repleto de humor negro a respeito de relacionamentos e situações que costumam ser usadas para inspirar a pena e a torcida dos espectadores, só que dessa vez a resolução dos conflitos nunca está em torno de algo mágico, como um encontro ou situação-chave, mas apenas em encarar os fatos e partir para a próxima. Casais de meia-idade geralmente aceitam isso, e o espectador mais jovem talvez se sinta traído. Não se sinta assim. A vida é injusta, irregular e cheia de obstáculos bizarros. Quando você é um pouco mais velho simplesmente se acostuma a dar a volta.
Enquanto isso, várias piadas sobre quarentões e piadas sobre jovens garanhões é usada para subverter a lógica dos enlatados de Hollywood ("isso é muito Photoshop!"). O único elemento não-clichê, mas desejoso de ser -- a inocência, o idealismo, o pragmatismo e a maturidade de Robbie, nessa ordem -- constitui um pilar moral da história, que contém pessoas mais velhas fazendo bizarrices como se estivessem no ginásio.
O que se torna imensamente divertido em Amor a Toda Prova é basicamente rir de tudo isso. Nada é levado a sério, e já sabemos que tudo vai ficar bem. Dessa forma, não se importe com o final, e apenas curta o trajeto. Não é assim que a vida amorosa merece ser vivida, afinal de contas?
# Colegas
Caloni, 2016-07-28 cinema movies [up] [copy]Vocês percebem o potencial dramático e narrativo de um filme que usa atores com Síndrome de Down para interpretar personagens com Síndrome de Down? Percebem? Porque talvez os idealizadores de Colegas não tenham tido essa mesma visão. Aliás, o lado comercial da empreitada pode ser a principal responsável por um amontoado de caos envolvido em uma história menos que clichê: simplesmente sem sentido.
Porém, seria interessante se a parte sem sentido estivesse do lado de Stalone (Ariel Goldenberg), Aninha (Rita Pokk) e Márcio (Breno Viola), os heróis da história, que fogem da clínica onde vivem para realizar seus sonhos. Afinal de contas, é deles o direito do caos, das emoções descontroladas, da vivência como não costumamos ver no Cinema.
No entanto, o caos está mais pro lado de Arlindo (Lima Duarte), o narrador onisciente chatíssimo que narra tudo que estamos vendo na tela. Além dele, uma dupla de policiais vindo direto do Zorra Total, que costuma apontar a arma para testemunhas. Acima deles, um suposto "inspetor jovem demais para o cargo" que faz inveja aos papéis completamente sem graça de Marcos Veras. Em torno deles, repórteres de telejornais tão caseiros que nem o jornal do bairro teria coragem de produzir. Para finalizar, figurantes de todos os tipos, cores, gêneros, convivendo por alguns minutos com essas pequenas criaturas e assumindo que são extremamente perigosas porque sim.
Se há algo de idílico em Colegas, isso ficou na sala de edição. O que temos é o uso de momentos, frases e situações em filmes clássicos do cinema sendo enfiados de qualquer jeito em um filme sem pé nem cabeça. Temos também um ônibus cujo itinerário passa por uma praia deserta (no meio da areia) e temos atores que acenam para a câmera, em um claro exemplo não do amadorismo desses atores, mas do uso errado da emoção pelos idealizadores do longa, que nos lançam para fora do filme sempre que uma piada sem sentido/referência/acenos para a câmera é inserido no filme.
E tudo isso torna Colegas excessivamente longo, completamente esquecível e absurdamente desnecessário. Torna também a ideia de usar atores com Síndrome de Down não tão atraente para outros trabalhos. O que ele provou é que é possível. Porém, o preço a ser pago, a ver pelo filme, é proibitivo para a arte.
# Dois Caras Legais
Caloni, 2016-07-28 cinema movies [up] [copy]Shane Black (Beijos e Tiros, Homem de Ferro 3) costuma usar com eficiência o humor negro, além de brincar com situações bizarras entre seus personagens. Em Dois Caras Legais, essa situação fica ainda mais bizarra pela caracterização tão peculiar dos anos 70. São anos 70 de brincadeira, da geração leite-com-pera. Russell Crowe e Ryan Gosling são ótimos na química, mas não precisava colocar bigode, óculos escuros e uma conspiração capitalista, OK?
Até porque esses detalhes não fazem muita diferença. Os elementos da história são de clichês de filmes policiais da época, e divertem enquanto complexos. Porém, são descartáveis e quase desnecessários para a história. Sem complexidade a história seria ainda mais divertida.
Esse é o único foco do filme e do diretor Shane Black. Ele investe quase todo o tempo em gags com uma criança (Angourie Rice) em situação adulta, como falar com uma atriz pornô enquanto assiste seu novo trabalho, ou dizer "eu preciso de um drinque", além de ser o clichê da criança que resolve tudo. O resto do tempo serve para mostrar o investigador falastrão Holland March (Gosling) tem o tique de gritar exagerado como um personagem dos Trapalhões e ficar ridículo quando bebe (o que é bem frequente), e o matador de aluguel Jackson Healy (Crowe... really?) como o cara que conserta as cagadas de March. Juntando esses três personagens, Dois Caras Legais está disposto a divertir a qualquer custo e sob qualquer pretexto.
Mas não me leve a mal. O filme tem o toque de cenas de ação em que o diretor se mostrou ligeiramente eficaz no medíocre Homem de Ferro 3. A primeira, a mais idílica, é a mais profunda. Um menino rouba a Playboy do quarto dos pais para no momento seguinte o carro conduzido pela musa da capa atravessar sua cozinha. A vemos obviamente nua, morrendo. É difícil explicar tudo que está por trás dessa cena, mas muito fácil perceber qual a mentalidade dos idealizadores e como a memória afetiva deles influenciou diretamente nos resultados.
Sem uma alma por trás da ação e piadas desenfreadas, Dois Caras Legais é uma experiência frenética e vazia. Sem nunca chegar aos pés da inventividade de Beijos e Tiros, esse trabalho de Black apenas se redime pelos tropeços em HF3. Que venha a continuação para os anos 80!
# Fome
Caloni, 2016-07-28 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Fome é um filme lento e arrastado, com seu lado amadorístico, com uma direção/edição que se apaixona pela forma e não sabe a hora de cortar. Com a falta de ritmo em vários momentos, e um contraste curioso entre ficção e realidade, pode-se enxergar com clareza que este não é um trabalho para qualquer um, por exigir paciência e determinação em decifrá-lo. Ao mesmo tempo, ele permite diferentes interpretações, das mais simples às mais complexas; tudo depende de como se enxerga os objetivos de algumas decisões narrativas e estéticas da história.
Mas a história em si é bem simples. Acompanhamos um velhinho sem-teto pelas ruas do centro da cidade de São Paulo. Arrastando um carrinho de compras com as rodas desgastadas, onde guarda seus pertences, é entrevistado por uma garota para um trabalho de escola. Daí ele ganha o nome de Malbrough, o general de uma das músicas folclóricas francesas mais famosas, "Marlbrough s'en va-t-en guerre", e a única música que o distinto maltrapilho se recorda.
Isso porque Malbrough já viu a morte várias vezes em seus colegas. Alguns morriam de fome, outros de doenças. Mas, de acordo com ele, a maioria morria mesmo é de depressão. O desafio de morar nas ruas é não morrer de tristeza. Não desistir. Malbrough é o general de uma guerra invisível contra o status quo da sociedade ocidental. E, como na música, ele não sabe quando vai voltar.
Malbrough é interpretado por Jean-Claude Bernardet, um teórico, cineasta e escritor de cinema brasileiro. Há um momento que ele é abordado por um de seus ex-alunos, que tenta ajudá-lo a destravar seu carrinho, mas acaba em sua breve conversa criticando a postura inconformista e descontrutiva do intelecto de seu professor. Nesse momento, e apenas nesse momento, conseguimos obter um pouco mais de informação sobre um protagonista que nada fala e pouco interage. Como iria interagir? As poucas pessoas que o abordam é para dar restos de comida ou fazer entrevistas para a escola.
E eis que surge a temática ambiciosa e cheia de potencial de "Fome". Articulando de maneira inocente, quase pueril, um movimento ideológico que critica a burguesia, o clero, a academia "vendida" e o blá-blá-blá que gira em torno de tudo isso, a situação de abandono de Marlbrough pode ser confundida tanto com uma crítica à sociedade quanto ao próprio cinema brasileiro, transformando a figura interpretada por um crítico de cinema em um instrumento de metalinguagem recursivo.
Inundado de tantas convicções, e incerto do foco que pretende tomar, o filme esbanja conjecturas, mas evita concluir qualquer coisa. Nunca satisfeito com seus inúmeros fechamentos, e tortuoso com um roteiro adaptado através da experimentação do diretor Cristiano Burlan e sua equipe, o pseudo-documentário possui a virtude de manter um preto e branco realista na medida que fotografa as diversas paisagens urbanas da parte central de uma megalópole com um granulado de luz estourada. Como ficção, possui o eterno defeito de tentar aplicar uma ideologia em cima de ideias muito mais complexas. De fato há uma guerra aqui: entre um realismo que faz pensar e uma ficção que pede para pararmos de pensar.
# Intocáveis
Caloni, 2016-07-28 cinema movies [up] [copy]Uma das falas mais emocionantes do novo longa de Olivier Nakache e Eric Toledano é quando Philippe (François Cluzet) -- um tetraplégico ricaço que contratou recentemente Driss (Omar Sy), um rapaz pobre e sem experiência como seu enfermeiro -- é questionado por seu amigo se não acharia perigoso estar sempre ao lado de uma pessoa que notadamente não demonstra qualquer compaixão pelo ser humano. Contrariando nossas expectativas, Philippe confessa que é exatamente isso que ele precisa no momento: de alguém que não tenha compaixão de si e de sua condição de dependente da ajuda dos outros para uma vida toda.
Esse é apenas um exemplo da capacidade sem limites para a fluidez do roteiro de Intocáveis, que se aproveita de todas as situações envolvendo a dupla de protagonistas para colocar diálogos inspiradíssimos e que tornam a improvável relação entre os dois como a chance para um exercício de humanidade. E que chance! Omar Sy está extremamente à vontade no papel de Driss, um imigrante pobre que foi adotado por uma família que não mais o deseja. Talvez Philippe não saiba, mas essa condição em que Driss se encontra talvez seja o que torna o elo entre esses dos renegados mais natural e, por isso mesmo, penetrante em nosso inconsciente.
Não importa as piadas potencialmente ofensivas que Driss dispara contra Philippe, já que sabemos que ele não o faz por mal e, se o fizesse, aí sim o filme seria um desastre. Porém, é exatamente pela ingenuidade ou vivência de Driss que entendemos sua posição diante dos caprichos de uma vida suntuosa mas trágica. Da mesma forma, o bom humor constante de François Cluzet nos traz um Philippe que já se acostumou ao seu estado de dependência, não sendo este o maior problema. Sua curva de aprendizado será em outro setor, bem mais delicado e igualmente satisfatório na narrativa.
Curiosamente é a tentativa de tornar Driss como o salvador da pátria que mais prejudica o longa. Dessa forma, em nada acrescenta o vermos resolver os problemas da filha de Philippe ou sugerir que a governanta tenha um relacionamento com o jardineiro. Driss não consegue resolver os problemas da própria família, mas se mete na vida dos outros e se sai muito melhor. De qualquer forma, essa tentativa de humanizar um ser humano muito mais completo sem seu lado bondoso seria algo realmente mais digno de se ver.
No entanto, sob as mesmas condições de temperatura e pressão, Intocáveis como argumento poderia ser um desastre completo em outras mãos. Porém, com o roteiro, direção e atuação das três duplas de profissionais se transforma em um exercício hábil e convincente dos desejos humanos. Não torna tudo simples, mas difícil no ponto certo. Dificilmente uma outra produção conseguirá dar o tom exato às dificuldades que essas pessoas têm para sobreviver (e isso porque só estamos falando das ricas).
# O Homem Irracional
Caloni, 2016-07-29 cinema movies [up] [copy]O ritmo atual de Woody Allen em escrever e dirigir um filme por ano simplifica seus trabalhos, mas exatamente por isso permite-nos enxergar de maneira mais específica os assuntos que ele sempre deseja tratar. E no caso de O Homem Irracional, onde o protagonista é um professor de filosofia, o que tinha tudo para ser um tratado mais espesso e complexo sobre a natureza humana se transforma em um exercício leve e simples de entender.
O que não quer dizer que se trata de um trabalho simples de interpretar. Afinal, estamos falando de Woody Allen falando sobre filosofia. De qualquer forma, arrisco dizer que este Woody Allen é uma versão tão impotente quanto seu personagem-chave.
De qualquer forma, sem querer entrar em detalhes de qualquer teoria específica sobre vida, morte e tudo mais, acompanhamos a vinda de Abe (Joaquin Phoenix) a uma nova escola onde irá lecionar. Tendo um passado traumático em diferentes aspectos de sua vida, e tendo tentado inutilmente fazer alguma diferença prática em melhorar o mundo se envolvendo em diferentes formas de militância e caridade, sua frustração tem aumentado no nível em que viver não o traz mais significado, e portanto realiza suas aulas e sua rotina de uma maneira mais automática e passiva possível.
Abe é um homem que tem todos os motivos para ser impotente, sexualmente falando. O que de fato é. E isso acaba frustrando duas mulheres que ele conhece: uma professora e uma aluna, Jill (Emma Stone). No começo, pelas fofocas de mulherengo a respeito de Abe e sua irreverência em beber o dia inteiro, acreditamos que sua insistência em se fazer de inocente é só um charme para conseguir mulheres mais facilmente. No entanto, aos poucos a persona criada por Joaquin Phoenix consegue convencer-nos de uma profunda insatisfação com a vida prática de alguém que tentou através dos livros trazer algum significado.
E, de certa forma, há motivos suficientes para acreditar que suas ideias, ditas originais, a respeito dos autores que discute em sala de aula -- ou apenas descreve -- não são mais originais que um comercial de sabão em pó. A forma utilizada por Abe encanta as meninas, mas o conteúdo está quebrado. Essa ambiguidade, proposital ou não, torna a experiência de tentar descobrir um exercício intelectual que não precisa de bagagem intelectual. O que é ótimo para um público leigo.
Porém, o que ocorre depois pode dar um nó no parafuso dos mais aficionados a questões morais. Acreditando ter descoberto uma maneira de finalmente melhorar o mundo na prática, Abe decide que é necessário cometer um assassinato. Ao desenvolver o tema, e seus inevitáveis desdobramentos a posteriori, a simples questão de dar à vida um significado ganha diferentes tons que apenas realizadores como Allen teria a audácia de abordar.
De qualquer forma, como disse, o filme é um dos trabalhos mais impotentes do diretor, e embora envolto em ideias fascinantes, o roteiro também está recheado de pistas simples do que está acontecendo, e reviravoltas já conhecidas de fãs do diretor. Para dar um exemplo, qualquer espectador de Match Point se sentiria milhas à frente dos personagens deste filme.
Sem ter muito como reinventar a roda, revemos um exemplar de Crime e Castigo em cena -- o livro do autor russo Fyodor Dostoyevsky já usado em Match Point -- e mais sobre o caos, a sorte e o revés. Porém, dessa vez, os motivos do filme são apenas esses, sem a profundidade da questão social que Match Point coloca. Se na obra-prima de Allen sobre o acaso acreditamos de fato estar lidando com forças incompreensíveis, agora somos conhecedores desse universo do autor, que é o mesmo, e acompanhar desdobramento semelhante se torna tão fascinante quanto enfadonho.
Conseguindo representar um exercício verborrágico sobre filosofia sem precisar inundar de detalhes o espectador desavisado, mas ainda assim atingir a ineficiência da teoria em um filme que fala sobre agir, O Homem Irracional se transforma em um dos filmes mais frustrantes da carreira recente do diretor, mas justamente por isso um dos mais interessantes de acompanhar.
Afinal, se frustrar com labirintos mentais é o que a filosofia faz de melhor. E Woody Allen é filosofia na sétima arte.
# Os Oito Odiados
Caloni, 2016-07-29 cinema movies [up] [copy]Se há um motivo para a existência de Os Oitos Odiados é dar o mais que merecido Oscar para o compositor Ennio Morricone. No entanto, esse prêmio negado ao músico de trilhas icônicas como Os Intocáveis, Era Uma Vez na América e Cinema Paradiso irá agora figurar como o mesmo Oscar negado a Martin Scorsese em toda sua carreira até Os Infiltrados: longe de ser o melhor trabalho; apenas um prêmio de consolação.
Por outro lado, temos uma revelação surpreendente em Jennifer Jason Leigh, que cria uma vilã que se diverte imensamente em ser a mensageira do diabo em um "barzinho" que irá virar a boca do inferno cercada de uma nevasca interminável.
Ainda do lado das atuações de destaque, Samuel L. Jackson usa todo o poder de um personagem que ganha sua liberdade na recém-terminada guerra civil americana, mas que continua fortalecendo sua posição a cada gesto e diálogo do próximo sulista rancoroso que encontrar pela frente. Podemos imaginar o personagem de L. Jackson como reencarnação de Django no filme anterior do diretor, onde um negro ousava andar livre e armado ao redor de plantações do rio Mississipi.
Já Quentin Tarantino, em seu oitavo filme -- como gosta de alardear nos créditos iniciais -- se apaixona perdidamente pela sua técnica e se esquece momentaneamente como fazer filmes que prendem a atenção do começo ao fim. Ele agora arrasta do começo ao fim o desenrolar da história, como se estivesse com dó de cortar cenas ou de deixar a direção (o diretor diz que quer fazer apenas 10 filmes no total, sendo o motivo apontado por às vezes contar em que número estamos).
O elenco em geral já trabalhou com o diretor e se esforça em manter um clima western parte Sergio Leoneano, parte Tarantinesco. Os diálogos são espertos demais para serem reais, e há um clima investigativo em um momento que desfaz toda a atmosfera rústica daquelas pessoas vivendo uma época onde andar armado (e saber atirar) é mandatório.
Mas não há nada na estética do filme que decepcione. Estamos assistindo a um filme autêntico de bang-bang, no melhor estilo superprodução e com uma fotografia (Robert Richardson) de fazer-nos parar por minutos apenas para apreciar a beleza das paisagens externas, além da competência com que a interna é retratada, sem perder-se em sombras.
Aliás, a falta de "pecadilhos" em um filme dessa época acaba soando mais teatral do que devia. Claro que o clima Tarantinesco das mortes (especialmente por envenenamento) contribui para fugirmos daquele universo (e lembrarmos, mais uma vez, que este é um filme de Tarantino... oitavo, certo?), mas talvez a excessiva compaixão das pessoas envolvidas, e a forma com que conversam, torna as coisas estranhas.
Já a história é a convenção em pessoa, o que nos remete diretamente aos problemas do roteirista Quentin Tarantino. Se em filmes do velho oeste -- especialmente os de Sergio Leone -- há de se experimentar situações extremas que irão fazer o chão vibrar, aqui toda a "logística" envolvida para fazer esses personagens interagir é mecânico demais. Os personagens do filme não são humanos vivendo uma época dura, mas arquétipos vivendo o sonho Tarantinesco.
E tudo isso joga Os Oito Odiados ainda mais perto do palco e mais longe da tela. Não que a história não valesse a pena acompanhar, nem o desempenho dos atores em personagens no mínimo curiosos. No entanto, tudo isso é irrelevante, se pressentirmos que todo este tabuleiro de xadrez já estava montado quando a partida começou.
# Anomalisa
Caloni, 2016-07-31 cinema movies [up] [copy]Este é uma animação que não se anima. O movimento lento de seus personagens e o comportamento robótico de cada situação -- além do próprio maxilar das pessoas denotar isso -- leva a crer que há algo de errado naquele mundo, mas ao mesmo tempo, por se parecer tanto com o nosso mundo, se torna uma comparação estranhamente familiar.
Uma crítica tão complexa quanto o comportamento humano não poderia ganhar melhores traços do que em uma animação e não poderia se beneficiar mais do que nas mãos de Charlie Kaufman (Quero Ser John Malkovich, Adaptação), que divide a direção com o estreante no cinema Duke Johnson (mas já habituado a animações, como a série Mary Shelley's Frankenhole e episódios de Community) e o roteiro com Francis Fregoli (que é Charlie Kaufman em seu pseudônimo; as brincadeiras de Adaptação ainda não o largaram).
A história gira em torno de uma viagem de uma noite a negócios de Michael Stone (David Thewlis), um celebrado autor de livros e palestras de auto-ajuda onde auxilia comerciantes de serviços e produtos no tratamento ao cliente. O filme está de cabeça pra baixo, pois aprendemos as lições de Stone através do tratamento que este próprio recebe de outras pessoas, desde o motorista de táxi que o leva do aeroporto ao hotel ao gerente do hotel. Frases genéricas que tentam melhorar o humor de Stone são ditas por todos com quem ele interage, além de recomendações igualmente genéricas, como ele visitar o zoológico da cidade e provar o chili local. Porém, desesperado por atenção real, o sujeito chega a ligar para uma ex-amante de décadas atrás e sai batendo nas portas do seu andar à procura de uma mulher com quem compartilhar algum momento único e não-automatizado.
Dublado por três pessoas, Stone é David Thewlis, a garota única que ele encontra, Lisa, é Jennifer Jason Leigh, e todos os outros personagens -- mulheres, homens, criança -- são dublados por Tom Noonan. Não é difícil enxergar onde o filme quer chegar depois que o terminamos, mas é um grande desafio para o espectador acompanhar com paciência tudo que está vendo e chegar às próprias conclusões daquele microcosmos fascinante a respeito do que nos torna diferentes de meros bonecos repetindo frases convenientes durante toda nossa vida.
Além disso, o filme pode muito bem ser visto como uma crítica ao nosso niilismo/egocentrismo em enxergar todo o resto das pessoas apenas como seres que devem realizar os nossos desejos. O uso das palavras, aliás, é particularmente inspirado. Ao procurar uma loja de brinquedos para dar algo ao filho em seu retorno, Stone entra em um sex shop (com o nome "Toys" na frente). Sua incapacidade de enxergar as outras pessoas como seres dignos de serem vistos como únicos o também impede de ter qualquer empatia por sua família, chegando ao absurdo da situação.
Só Charlie Kaufman consegue tornar uma história tão depressiva fascinante pela expressividade contida dentro dela. Mestre das recursividades, o filme pode ser interpretado de diferentes maneiras, mas sempre dentro da recursividade maluca de suas histórias. Sempre há algo de estranho nas histórias de Kaufman, e isso tem sido ótimo.
# Brooklyn
Caloni, 2016-07-31 cinema movies [up] [copy]Aroma de série de TV. Acontecimentos espaçados em episódios, convenientemente movendo a história. Apesar disso, este é um filme que consegue dialogar o tema da imigração com uma sutileza ímpar ao lidar com o arco narrativo de sua heroína de maneira sóbria.
A heroína decide sair de sua terra natal, Irlanda, e ir tentar a sorte na América, mais especificamente em Nova York, mais especificamente no bairro que dá título ao filme e que possui cada vez mais irlandeses.
A saudade não só da família, mas das raízes, é sentida por Eilis (Saoirse Ronan) do fundo de seus lindos olhos. Não se pode dizer que a linda atriz não tente, de todas as formas, expressar seus sentimentos. E consegue. Eles são simples, vindos de uma pessoa simples, que busca apenas fazer o certo, mas que arriscou um pouco além do que imaginava poder.
O aparecimento do jovem italiano Laurenzio (Christian de la Cortina) dá o tom certo ao dromance de dois seres tímidos, semelhantes, vivendo o sonho americano. Olhe para os olhares dos dois pombinhos, a forma com que seus ombros se mexem, a maneira com que cada fala é colocada. É um romance autêntico, nascido com pouco brilhantismo do roteiro, mas com a autenticidade necessária para a história.
Podem acusar Brooklyn de ser uma mera novela bem feita, o que de fato é, lembra, cheira. Mas, ainda assim, suas sutilezas vão contra essa teoria. Não é nada claro o que acontecerá com sua família, e por mais conveniente que sejam os acontecimentos depois que ela volta a cruzar o mar, tudo o que vemos pode acontecer na vida real. Acontece o tempo todo, na verdade, com todo mundo. Apenas não achamos honesto que aconteça em um filme.
Mas o filme tem muito mais a ver com os caminhos tomados por Eilis do que a verossimilhança dos acontecimentos. O jogo de cores usado no filme está longe de ser perfeito, mas ao menos pontua a perda gradativa do verde de Eilis como a maneira de se prender -- ou tentar -- à sua nova vida na América.
# Julieta
Caloni, 2016-07-31 cinema movies [up] [copy]Como sempre, sabemos desde o começo que este é um filme de Pedro Almodóvar, no estilo melodramático dele (e das cores do figurino, da direção de arte de muito bom gosto, etc). A trama mais uma vez envolve o passado misterioso de uma mulher -- a Julieta do título -- e mais uma vez as mulheres são as personagens fortes. E, para não deixar em branco, há uma tragédia grega usada como pano de fundo. Almodóvar nunca muda seus trejeitos, mas sua inventividade reciclada não gera os melhores frutos.
A história começa quando Julieta (Emma Suárez), depois de um ano planejando sua mudança para Lisboa com o marido, decide ficar em Madri após o encontro com uma amiga de longa data. Após o encontro, ela decide também redigir uma longa carta -- vulgo o filme -- onde conta para sua filha, desde o início, como conheceu o pai dela e os acontecimentos que levaram-na a um desfecho catastrófico para todos.
Conseguindo ser um hábil contador de histórias assim como um hábil diretor, Almodóvar nos deixa tensos e presos à história, e a cada detalhe desta, do começo ao fim. Algumas vezes, é verdade, ele abusa um pouco da trilha sonora dramática, que soa repetitiva. Na maioria do filme, no entanto, é a própria história e a forma de contá-la que mantém em suspenso qual será o próximo acontecimento.
E isso é graças às famosas metáforas de sua obra. Aqui, Julieta é professora de literatura grega, e conta sobre as três palavras usadas pelos gregos para se referir ao mar, sendo uma delas tendo a semântica de "caminho", como se o mar fosse uma alternativa ao mundo mais estável e conhecido da terra firme: a aventura. Nós sabemos que os gregos possuíam o destino como um personagem à parte, se divertindo às custas dos humanos. Aqui nunca isso foi mais verdade.
Vemos isso logo no começo da história, quando um galho bate no trem onde Julieta está, e um homem mais velho procurando por companhia adentra seu vagão. Uma tragédia ocorre a partir daí e poderíamos unir causa e consequência até o ato inicial de Julieta, o que a torna a própria mensageira da desgraça. Isso a marca para sempre, pois foi ali que conheceu Xoan (Daniel Grao).
Xoan é um pescador que, começando a viver o luto da mulher que estava em coma há cinco anos, recebe a visita de Julieta e tem com ela uma filha; ao mesmo tempo, Julieta (Adriana Ugarte) reprova a falta de cuidados com sua mãe pelo seu pai, que arruma uma jovem amante estrangeira enquanto deixa a mãe enferma trancada em um quarto. A passagem do tempo é fugaz, quase não a vemos, apenas pelo ponto de vista de protagonista.
A passagem acelerada do tempo, aliás, consegue convergir décadas em questões de minutos, e Almodóvar consegue sintetizar sua história maravilhosamente bem até a metade da projeção. Depois, suas metáforas perdem a força, e acontecimentos imprevistos explicam a perda de contato entre Julieta e sua filha. No entanto, a história muda de rumo no meio, mesmo anunciada nos minutos iniciais do filme.
Dessa forma, Julieta é um trabalho mal-acabado, que prometia ser outro dos trabalhos magistrais do contador de histórias espanhol. Do jeito que está, se assemelha mais às novelinhas ocasionais do diretor, como Abraços Partidos.
# Love
Caloni, 2016-07-31 cinema movies [up] [copy]O último filme do argentino Gaspar Noé (Irreversível, Viagem Alucinante) tem um tom autobiográfico demais para ficarmos confortáveis com as diversas introspecções sexuais às quais os personagens se entregam. Porém, o mais perturbador está longe de ser o sexo: mas o seu resultado. Preso em uma casa com a mãe de seu filho indesejado, o protagonista agoniza lentamente enquanto revive os momentos com sua verdadeira amada. Com certeza os "pró-vida" não estão dispostos a dialogar a respeito não dos que nunca nasceram, mas os que nasceram e agora são reféns eternos de um orgasmo inesperado.
A história é uma série de flashbacks de Murphy (Karl Glusman), o rapaz preso a uma situação que nunca quis: viver com sua vizinha, Omi (Klara Kristin), e o filho que teve acidentalmente com ela. Cineasta que busca realizar um trabalho que julga inexistente no cinema -- o sexo visto como ator principal, e não um coadjuvante de passagem -- agora possui as memórias de sua verdadeira amante eterna, Electra (Aomi Muyock), que sumiu depois de descobrir que Murphy a traiu -- não sexualmente, mas por engravidar a mulher errada.
Filmado tendo como centro sensitivo as diversas cenas de sexo real entre os atores, a trilha sonora inspirada denota um ritmo mecânico ao ato, mas ao mesmo tempo o filme utiliza as diferentes formas de fazê-lo como uma maneira de se expressar -- no que acerta em cheio. Todos os momentos íntimos importantes da história -- principalmente o sexo a três que gerou a ramificação inesperada da relação -- estão aí para ilustrar, e na memória de Murphy, são exatamente esses momentos que importam. Atingindo um grau de niilismo impregnado de drogas, os personagens no filme possuem o tom démodé existencialista de filmes de Godard, mas pelo menos fazem sexo.
E como fazem. Escolhidos a dedo, o elenco é eficaz fisicamente, expressando seus sentimentos através dos movimentos do pênis, da vulva, dos lábios, das mãos, das pernas e todo o resto. Esse poderia ser mais um filme pornô glorificado, mas se torna algo mais justamente pela estrutura empregada por Noé, que transforma tudo aquilo em uma visual sensorial pelos pensamentos atordoados do rapaz.
Porém, não é só de artistas depressivos que se move uma história, e a repetição do desespero de Murphy chega um momento que cansa. A história sendo contada é interessante, os momentos picantes possuem seu gosto estético, mas artistas chorando são de matar. Como uma criança mimada que nunca conseguirá atingir a puberdade, Murphy se desloca entre as paredes de seu apartamento, se vendo como prisioneiro em sua própria casa (como ele mesmo descreve). As tomadas são quase todas estáticas ou subjetivas, e exercem uma força de enclausuramento eficaz.
Tendo um terceiro ato extremamente auto-indulgente, o novo trabalho de Gaspar Noé é mais uma viagem de ácido, mas (muito bem) regada com sexo. É um passo a mais sobre a total desesperança do niilismo inconsequente, e um filme para os que desejam adentrar em uma nova forma de expressão: a movimentação sinuosa da pele e dos pelos pubianos.
# O Bom Gigante Amigo
Caloni, 2016-07-31 cinemaqui cinema movies [up] [copy]O Bom Gigante Amigo é um filme de criança baseado em um livro para crianças. Produzido pela Disney e dirigido por Steven Spielberg, deveria ser o ápice da pureza e inocência, mas traz uma forte carga política em sua mensagem, acidental ou não. Pode ser impressão de uma história fraca e sem muito sentido, mas só por sugerir uma relação entre sua lúdica história e a história da Europa contemporânea é digno de nota.
A história começa com a pequena Sofia (Ruby Barnhill), uma menina que mora em um orfanato em Londres e tem insônia. Em uma das noites que era a única acordada, viu um velhinho agigantado, da altura de um prédio de três andares, da janela de seu quarto coletivo. Ele a sequestra para que ela não espalhe sua existência, e a leva para a Terra dos Gigantes, onde descobre que, além de bonzinho e vegetariano, ele está cercado de outros gigantes, maiores, malvados e carnívoros (ou canibais, se você considerar que seres humanos são parentes de gigantes).
Concebido como uma fábula infantil pelo livro de Roald Dahl, é fascinante observar a perfeição estética das rugas, das feições, dos cabelos e dos movimentos do gigante-herói, apelidado de BGA (Bom Gigante Amigo). A fotografia de Janusz Kaminski, colaborador habitual de Spielberg, denota um amarelo que soa onírico, com direito de aprimorar as texturas da direção de arte que deixam o aspecto do filme muito próximo de um livro ilustrado. Tanto a Terra dos Gigantes quanto Londres conseguem fazer parte do cenário que abriga este ser maravilhoso sem soar deslocado.
Para melhorar ainda mais a aproximação com contos infantis, a dublagem de Mark Rylance (Ponte dos Espiões), que faz o Gigante Amigo, embola sua voz e faz os erros de fala da criatura ritmar com seus movimentos lentos e desajeitados, algo que se perde na legenda em português, que floreia demais o vocabulário do gigante, e a própria dublagem do áudio no Brasil, que desmerece todo o cuidado empregado pelo ator. Ruby Barnhill, por sua vez, tem pouco a acrescentar a Sofia, que é uma criança genérica quase sem nenhum passado ou particularidade.
O que nos leva ao pior do filme: sua história. Iniciando com relativo interesse, o roteiro de Melissa Mathison (E.T. - O Extraterrestre) não consegue ganhar força em nenhum momento, pois se limita a descrever aquele mundo como um passeio quase que inofensivo a um dos parques da Disney (se há algum perigo ele é meticulosamente planejado). Quando é necessária alguma ação, ela acontece pelos motivos errados. Só para citar o erro mais óbvio da trama: se para BGA a motivação em sequestrar Sofia era nunca ser visto, isso vai por água abaixo por muito pouco, já que nunca compramos a automática relação de amizade e confiança entre os dois. A não ser, é claro, que apenas o fato de usar as mesmas roupas de um antigo amigo do gigante (possivelmente a criança do livro original) seja prova de autenticidade. Paradoxalmente se torna exatamente o contrário.
E se a trama principal soa preguiçosa e deselegante -- principalmente por ensinar às crianças que mentir para conseguir o uso da força ao seu favor é OK -- os detalhes são igualmente jogados à conveniência do roteiro. Em dado momento, aprendemos como os sonhos são armazenados por BGA; em outro, magicamente e garota já sabe que é possível combinar diferentes sonhos. Isso sem contar o completo disparate de um quadro da rainha da Inglaterra ser o suficiente para mobilizar toda uma cadeia de ideias.
Porém, o pior mesmo é a "solução" apresentada pelo filme para os gigantes maus e selvagens. Mesmo vivendo na Terra de Gigantes e nunca haver qualquer menção de que eles atacariam Londres, apenas o risco de fazê-lo desencadeia um poderio militar que invade a terra mágica e define o destino daquelas criaturas para sempre. Não é possível saber com certeza se isso tem pouco ou muito a ver com a crescente onda xenofóbica na Europa decorrende da imigração desenfreada, mas fica difícil não relacionar dois atos insensatos relacionados com um povo estranho e "selvagem".
Sem conseguir contar qualquer história, mas ao mesmo tempo conseguindo entreter crianças e adultos pela simples arte de contar acontecimentos, O Bom Gigante Amigo é um filme de crianças que serve para adultos com mente de criança. Isso não seria preocupante se fosse uma péssima educação para os pequeninos, que aprendem desde já a resolver seus conflitos no punho.