# True Detective: Primeira Temporada

Caloni, 2017-11-01 cinema series [up] [copy]

Este é o tipo de série que pode ir de maçante para fascinante, dependendo de quem assiste. Com um roteiro intrincado, sério, sisudo demais, a história contada em oito capítulos segue uma sequência difícil de ser equiparada. Porém, mais do que isso, aqui temos dois personagens em pés de igualdade. Cada um deles é interpretado por um monstro da atuação. Como não amar Matthew McConaughey e Woody Harrelson depois de seus Rus Cohle e Marty Hart? Esta, sim, é uma tarefa difícil.

Como comentei no meu preview sobre a série, o niilismo presente na série é um dos seus melhores aspectos. Ele nos libera para pararmos de pensar em termos do bem contra o mal para nos focarmos naqueles dois detetives e como de tão diferentes que parecem a princípio eles viraram melhores amigos. Mais do que isso: irmãos de sangue por décadas. Isso mesmo com todas as rixas e diferenças no mundo. Nem parece que estou falando isso deles. Mas fica claro desde o começo de seus testemunhos, sentados naquelas cadeiras por boa parte da série. O detetive Marty Hart tem várias ressalvas sobre seu parceiro. Mas sempre faz questão de mencionar: "ele é um bom detetive". Geralmente ele ressalta isso com as mãos.

Já o detetive Rust Cohle é a figura mais sombria do lado branco da força já vista. No piloto ele já nos oferece a sua visão de mundo: "a consciência humana é um erro da natureza". Não é possível entender como uma pessoa ainda tão jovem conseguiu realizar todo o arco filosófico e chegar à conclusão que nada importa nessa vida. O seu passado é citado, mas incompreendido. E a série se beneficia em não querer explicar os mínimos detalhes de nada. Eles não sabem, nós não sabemos. Esta não é uma série para ficar anotando, como Cohle faz, um registro de pistas e eventos.

Quero dizer, olhe apenas para esses dois. Woody Harrelson faz aqui um Marty Hart cuja complexidade é difícil de se desvencilhar. Homem de família e com valores, mas mulherengo e violento, Hart é a síntese mais comum da vida dos policiais, que testemunham o absurdo da vida humana na Terra e parecem querer criar uma bolha para proteger sua família. E quando o fazem, criam uma vida própria fora dessa bolha. Hart não é um canalha, e Harrelson faz o possível para deixar claro que é mais complexo que hipócrita. E o faz com maestria. Entendemos a "inocência" deste homem bruto, simples, e mesmo que ele erre absurdamente, debaixo de sua casca dura ele é um homem comum tentando se locomover no mundo sem um manual da vida.

Já Rust Cohle é o resultado de alguém que não possui um casco duro o suficiente. Foi engolido pela realidade. E Matthew McConaughey foi engolido por esse personagem. No lugar não vemos mais o ator, mas um personagem tenebroso, de olhar e mente obcecadas com algumas poucas coisas e ignorando todo o resto. Quer dizer, pensamos ser isso. Seus anos de vícios descontrolados como um infiltrado o fazem ver coisas todo o momento. Uma pista para a excelente introdução da série (e sua arrepiante trilha sonora, cujo narrador é um psicopata). Cohle consegue se expressar melhor pelas ações, mas quando fala, oh boy, você precisa escutá-lo.

Ambos são peça fundamental para o sucesso da série, sem os quais ela simplesmente não existiria. Apesar da trama complexa conseguir nos chamar atenção, ainda que nos arrastando vagarosamente por quatro décadas, é apenas a presença dos dois que permite que continuemos por todo o caminho. No final, o que mais importou foi entender a dinâmica dos dois. Mais do que a possível resolução de um crime que permaneceu escondido por tanto tempo. Quem liga para isso? Haverão muitos, muitos mais do que esse. A série entende que heroísmos aqui são passageiros, e quase irrelevantes. Ela tenta dar um ar mais otimista em suas últimas palavras, mas convenhamos: o estrago já está feito. Por que somos conscientes?


# Olhando Para As Estrelas

Caloni, 2017-11-04 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Olhando para as Estrelas é um filme fofinho que não enxerga dificuldades, apenas facilidades. Com isso ele perde um potencial drama da vida real, ou troca pela visão de um mundo de sonhos, onde tudo é possível. Mas se tudo é possível tão "fácil" assim, qual a graça da conquista?

O documentário possui várias virtudes narrativas que encantam desde o começo. Na primeira tomada vemos luzes fora de foco, símbolo do palco, para logo depois vermos as estrelas entrando em cena: dançarinas de balé. Depois aprendemos que elas são cegas. Ou seja, não conseguem ver nem as luzes, e muito menos as estrelas no céu. Isso não impede que a postura dessas meninas durante as aulas de dança, como ensina a professora, seja sempre olhando para o alto.

A história começa prometendo. Vemos a rotina de Geyza Pereira, a mais talentosa do grupo. Geyza pratica há 17 anos. Ela acorda cedo, pega ônibus, toma café na padaria e vai pro salão. Ela não nasceu cega. Foi vítima de um fungo no cérebro. Curiosamente, foi após descobrir o balé que ela se encontrou, e virou outra pessoa.

Ela e Thalia Macedo são colegas de dança. Thalia sofre um pouco com o preconceito das crianças na escola. Além de não enxergar ela usa olhos postiços. Mas ao mesmo tempo ela é boa de escrever. Usa o computador fluentemente. Antes era uma máquina que imprimia em braile, para a surpresa de sua mãe, que não sabia que seria possível para a filha, cega desde os dois anos, a capacidade de aprender a ler.

Este filme é muito sobre capacidade. Ele ensina o que os não-acomodados já sabem por instinto: que não há muitos limites para quem quer realmente algo na vida. Essas duas meninas não estão acomodadas. São campeãs, desde o primeiro momento que a vemos.

Por isso a história delas não tem a ver com conquista ou desafio. Elas já possuem a conquista em seu DNA, e desafios são apenas um dia comum. Elas gostariam de ser independentes, mas nem sempre as calçadas possuem aviso de travessia.

A direção de Alexandre Peralta entrega no começo um filme promissor que lentamente mostra que não sabe direito o que mostrar, senão a cartilha burocrática sobre a vida dos cegos. O mais impressionante mesmo são as lições de balé, que se baseiam no toque e na repetição. As garotas possuem pessoas bondosas e dedicadas em volta, como uma professora, um coreógrafo e dançarinos. Esta é a única instituição voltada para o ensino de balé para cegos no mundo. Isso não impressiona, mas faz pensar:

O quão mais longe cada ser humano consegue ir, dada a oportunidade certa?


# O Outro Lado da Esperança

Caloni, 2017-11-06 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

O Outro Lado da Esperança cria metáforas visuais que ao longo da história servirão para martelar o incômodo e o absurdo. Vemos um navio se aproximando. A câmera se aproxima dele, que atraca no porto. É um navio que carrega asfalto. E do asfalto eis que surge um imigrante. Sujo de ponta a ponta. Toma um belo banho e está limpo de novo. A "mesma coisa" acontece com o vendedor que se livra de todo seu estoque e transforma o seu dinheiro em um restaurante. Ambos estão tentando tocar suas vidas, mas é difícil, pois ambas estão tocadas pela truculência das autoridades. Bom, pelo menos há um pouco de humor para ilustrar o absurdo da situação.

O novo filme de Aki Kaurismäki explora pequenos absurdos cotidianos que não são engraçados, mas simplesmente... absurdos. O resultado é um filme leve, gráfico, teatral, mas ao mesmo tempo surreal. Ele caminha fácil entre planos, levando sua história a pontos que possivelmente já imaginaríamos, mas não com tanta criatividade.

O filme fala sobre imigração, isso é óbvio. Mas ao mesmo tempo quer dialogar com todo homem comum que deseja mais. E quando o imigrante e o vendedor desejam mais, todos se viram contra eles. Mas o próprio sistema já é uma contradição ambulante. Assim como as pessoas. Repare no vendedor. Ele está insatisfeito com sua mulher, que bebe sem parar. Então ele deixa a aliança na mesa, se despede e parte para abrir um restaurante, que é um ótimo negócio, pois "as pessoas bebem quando as coisas estão mal, bebem quando as coisas estão bem".

Já o imigrante, caracterizado com uma presença de espírito ímpar pelo ator estreante Sherwan Haji, consegue manter seu tom do começo ao fim. Ele quase não muda, mas o vemos mudar. Nem que seja por dentro. Ele espera resgatar sua irmã para tentar construir uma vida onde foi parar: na Finlândia. Mas a Finlândia é uma terra de loucos. Pelo menos a trilha sonora é divertida. E a música tocada pelo seu personagem, Khaled, perfura nossos corações em poucos segundos.

Agora observe a trajetória dos dois protagonistas. Para um deles, o vendedor, as coisas estão dando sempre certo. Quero dizer, o sujeito vende todo seu estoque de camisetas e vence o chefão de uma jogatina ilegal e sua quadra com um straigh flush. E mesmo lotando seus sushis com toneladas de wasabi, dezenas de clientes orientais aparecem para conferir.

Já a trajetória de Khaled é o extremo oposto. Tentando jogar pelas regras ele se cadastra no programa de imigração do país, fica à deriva por um bom tempo e é atacado por radicais nazistas. Mesmo quando ele se dá bem por um momento, sabemos que no máximo será isso: um momento. O que não impede que a sua história também seja otimista, ou pelo menos leve.

Mas seja de uma forma ou de outra, "O Outro Lado..." não consegue acertar bem o que pretende falar. Ele é estiloso, possui bons personagens em criativos momentos. Seu humor vai crescendo aos poucos, mesmo sem conseguir ser inteligível. Mas sua mensagem... essa se perdeu no mar. Apenas os imigrantes sobreviveram.


# Pica Pau: o Filme

Caloni, 2017-11-06 cinema movies [up] [copy]

Em todos esses anos dessa indústria vital, essa é a primeira vez que isso me acontece. Nem os novos desenhos politicamente corretos do pica-pau de cabeça vermelha estragaram a magia. Mas este "Pica-Pau: A Animação de Computador da Década de 90" de fato consegue nos fazer renegar que esse passarinho biruta tem qualquer relação com os desenhos originais.

A pegada do filme é passarinho de computador que fala com a gente, tem momentos engraçadinhos sozinho em cena pra vender um conceito mercadológico e uma história requentada com todos os clichês possíveis sendo mal utilizados. Pais separados, filho abandonado, namorada mais jovem do pai (que é burra e fútil), especulação imobiliária, poder dos ricos sobre os pobres, dupla de capangas estilo um esperto e outro estúpido, festival na cidadezinha, banda de jovens e música pop. Nomeie qualquer um desses e mais alguns e ele estará no filme da pior maneira possível junto da comédia física necessária para Pica-Pau brilhar.

E o Pica-Pau apenas brilha porque todo o resto é muito, muito ruim. No original pode ser até melhorzinho, mas a dublagem brasileira está muito próximo do horrível aqui. Então a única coisa que dá um respiro no filme é ouvir suas frases idiotas resumindo a situação. O pessoal quer construir uma casa no meio da floresta em que ele vive, ele olha para a câmera e diz "vou ter que dar um jeito neles". Daí ele sai voando e... dá um jeito neles. Ha ha ha.

A melhor piada, construída com tempo suficiente, são as inúmeras noites em que vemos o pai tentando dormir com o som de picadas do passarinho que nunca dorme. Note como o humor do pai se altera a cada novo momento. Essa é a única progressão minimamente interessante do filme inteiro. O resto é um bolo de previsibilidade que você já sabe onde vai dar.

Mas apenas nós, espectadores, sabemos disso. Os roteiristas não. Eles não possuem a menor idéia de como fazer isso funcionar de maneira minimamente interessante. Durante o filme inteiro Pica-Pau não consegue ser capturado porque é muito esperto. A menos quando ele precisa ser capturado para dar andamento à história, e então magicamente ele é capturado. É dessa forma desinteressante que o filme desenvolve sua história, usando seus personagens quando eles são úteis, e descartando-os quando não se precisa mais deles.

Pica-Pau: O Filme sequer consegue ser um filme de abertura. Em certo momento de perigo ele exclama para a câmera: "acho que esse filme não vai ter continuação!" Eu mantenho essa exclamação e te digo, rapazinho: espero que você tenha razão.


# Histórias de Amor Que Não Pertencem a Este Mundo

Caloni, 2017-11-11 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Você já conviveu intimamente com alguém que possui muito medo do desconhecido, uma ansiedade angustiante e que não consegue deixar de falar sobre todas as terríveis possibilidades (para essas pessoas é uma certeza) que o futuro nos espera? Se sim, talvez "Histórias de Amor Que Não Pertencem a Este Mundo" o ajude a entender melhor essa pessoa, e a entender que, apesar de tanto fatalismo, há por trás um ser humano que deseja ser feliz à sua maneira.

O problema é que o filme de Francesca Comencini não está muito interessado em humanizar uma condição humana lamentável. Ou é a atriz Lucia Mascino, a despeito de seu visível talento em caracterizar Claudia como uma mulher em seus quarenta anos e com a insegurança em seus ossos. De qualquer forma, aqui temos uma história que se leva sozinha graças à direção competente de Francesca, que impede que nos percamos em detalhes de uma história convencional.

Mas esta é sim uma história convencional, muito embora não contada de maneira linear. Claudia tem um problema: sua produção excessiva de ocitocina, a droga do amor, mas também a droga do medo. Ela se apaixona perdidamente por Flavio (Thomas Trabacchi) e já o imagina como o homem de seus sonhos realizando todos os seus desejos pueris, como casar e ter filhos. A relação entre ambos é plausível, cheira a familiar, e ao mesmo tempo possui seus toques charmosos, como morarem em uma quase choupana isolada do mundo. O apartamento que dividem na cidade também não é dos melhores, com mofo e paredes precisando de uma pintura. Mas não haverá reforma, pois Claudia é "irreformável". Ela é o que é, goste ou não. Note como sua melhor amiga nem tenta mais "consertá-la" ou aconselhá-la. Ela apenas ouve. Em breve seu companheiro fará o mesmo, e será o início do fim. Como a própria Claudia aponta. Ela tem o dom, ou a maldição, de prever o futuro ou causá-lo.

O medo e o amor incontroláveis de Claudia a permitem viver uma vida mais intensa, completa? Duvido disso. O filme também. A vemos preenchendo o desconhecido com certezas que estão em sua cabeça. No primeiro almoço com Flavio ela já se declara. Ela não vê como falar que o ama em outro momento pode ser melhor. E talvez esteja certa, o que torna tudo mais doloroso. As regras sociais nos fazem enxergar seu comportamento como inapropriado. Mas será, mesmo?

Há uma guerra sendo travada, e Claudia sabe disso. Ela se recusa a dividir a história ou a literatura em guerras e amor. Para ela o amor é uma guerra. E ela luta pelo seu amor como se estivesse em uma guerra. Contra si mesma e contra todos. Tudo é contado através de momentos, pequenas janelas, oportunas, que nos permitem ir entendendo seu humor aos poucos. Quando chegamos à metade, uma nova personagem aparece, e embora a história, como falei, não seja linear, fica claro que este é o anúncio que Claudia temia. Ela é apenas um fantasma agora nas memórias de Flavio.

O que é mais fascinante em "Histórias de Amor..." é que o filme não se preocupa nem um pouco em pontuar quando cada acontecimento pode ter acontecido, nem a sequência de eventos. E para Claudia isso também pouco importa. Ela consegue se lembrar de tudo o que viu, de todas as pessoas que conheceu, e seus detalhes, mesmo que tenha visto há 10 anos atrás. O filme nos entrega a sua visão, da maneira mais ou menos caótica e difusa com que enxerga. Não há muita participação de qualquer outro personagem além de Claudia. Nem Flavio pode ser considerado um personagem de peso. Ele só existe para satisfazer a imaginação de Claudia. E ela tem uma imaginação tão forte que entendemos que, mesmo ausente, ela ainda é a perfeita narradora em off.

Entregando uma trilha sonora internacional e momentos "pop" bem embalados em um formato comercial, "Histórias de Amor..." fala sobre um tema sério sem nos fazer chorar, mas rir. É uma confusão de sentimentos com o gostinho de como é entender uma pessoa como Claudia. Talvez nunca saberemos, pois conhecemos apenas os efeitos de suas ações. E talvez ela nunca saberá como a vemos. É o muro intransponível da comunicação entre homens e mulheres. De uma maneira particular, o muro que separa cada ser humano do próximo. Ninguém nunca nos entende quando enxergamos o futuro.


# Alias Grace

Caloni, 2017-11-12 cinema series [up] [copy]

Homens retardados, animalescos, vivendo em torno de mulheres histéricas, depressivas ou apáticas. Este é o retrato da história contada por Grace Marks para um doutor, igualmente abjeto, Dr. Simon Jordan. A narrativa de Grace sob os olhos da série da Netflix representa um dos últimos pilares do movimento igualmente abjeto chamado (ainda) de feminismo: a crença marxista que homens e mulheres são definidos através de sua relação de opressores e oprimidos. Da mesma forma que a fantasia de Marx sobre o sistema de classes.

A série dirigida por Mary Harron (Psicopata Americano) possui virtudes estéticas interessantes. Ela nos coloca sob uma névoa, da fotografia de Brendan Steacy, acostumado a terror, que é histórica e dramática ao mesmo tempo, e que se assemelha a um sonho. As sequências temporais são cortadas elegantemente para gerar um efeito atordoante. Porém, nada disso consegue evitar que nos acostumemos com a história de telenovela, graças aos efeitos digitais de baixa produção e uma trilha sonora de Jeff Danna que evoca um mundo estático onde nada muda.

As atuações principais, da frígida Saran Gadon (O Homem Duplicado) e Edward Holcroft (Kingsman), são eficiente em sua caracterização, mas não em sua performance. A dicção empregada por Gadon é robótica, automática, que evita qualquer identificação com um ser humano. Ela é a representante das mulheres na Terra. Já Edward Holcroft prefere não criar personagem algum, ficando na zona de conforto de olhares vazios e contemplativos. E todo o elenco segue mais ou menos esse ritmo.

A história ficcionaliza os eventos dos assassinatos de 1843 por Thomas Kinnear e sua governanta Nancy Montgomery no Norte do Canadá, antes da unificação do país. Há um pouco sobre a situação política da época e um pouco sobre como a sociedade funcionava, mais ou menos como os donos de terra europeus pouco antes do capitalismo estragar a abastada e preguiçosa vida da nobreza. Os assassinatos em si são suavizados para a tela. Não há muito gore em cena, apenas relatos e disse-que-me-disse retratados da maneira mais educada possível. E nada é muito chocante. Exceto o filtro da realidade da escritora Margaret Atwood e da roteirista Sarah Polley, que produz a série levantando a bandeira feminista sem pudores. Um vergonha alheia.

O resultado é uma narrativa morna, que dá sono e que não sabe direito aproveitar seu material. Se torna mais do mesmo, com pouca criação e muita dissimulação. Casas feitas em computador, figurinos estilizados demais e personagens inexistentes (exceto o relato histórico). Se você gosta de assistir algo para acompanhar seu chá das cinco... por que não ouvir sobre como eram chatas as mulheres da época?


# Ninguém Está Olhando

Caloni, 2017-11-16 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Ninguém Está Olhando é um estudo de personagem eficiente, o que não quer dizer que necessariamente agradável. É difícil entender os motivos do protagonista sem cair nos velhos preconceitos. E com isso é difícil se identificar com um rapaz tão problemático. Porém, se você pertence à geração mimimi, tenho boas notícias pra você.

Nico, interpretado de maneira contida, carismática e sob constante pressão por Guillermo Pfening, é um ator que está encurralado em país estrangeiro. Ele se coloca propositadamente nessa posição de desesperança porque está sentindo a pressão de todos os lados, como aos poucos vamos percebendo. Não é pressão financeira, mas é ela que bate mais forte no sujeito, que enquanto astro de uma novela de sucesso em seu país de origem, Argentina, é um ilustre desconhecido nas ruas de Nova York. Sua amiga e sua colega de apartamento são legais, mas nem tanto. Entendemos até certo ponto as motivações do sujeito, que sofre uma desilusão amorosa junto de outra desilusão na carreira. A falta de dinheiro é o menor dos problemas.

Mas isso não impede que a diretora/roteirista Julia Solomonoff queira abrigar neste tema intimista uma visão um pouco mais cosmopolita da própria produção, que é argentina e brasileira, mas se passa na maior parte do tempo na cidade norte-americana. É por isso que a falta de recursos pesa tanto? Não se sabe. Um ator de talento que depois de um ano na geladeira não tem recursos para passar alguns meses em terra estrangeira. Ele faz um bico de babá do filho de sua amiga enquanto aguarda um premiado diretor mexicano conseguir uma boquinha das produtoras após a fronteira.

O jogo de estereótipos é forte: temos o marido da amiga de Nico, um americano business man frio padrão, uma produtora de cinema rígida e pragmática, crianças e suas mães latinas ilegais nos brinquedos do Central Park e uma linha tênue entre o dramalhão independente e um retrato universal do sofrimento, da solidão e da desilusão. Nico se auto-sabota a todo momento. O sujeito é orgulhoso e não possui a mente limpa e clara para decidir o que fazer da vida. Quer apenas se vingar de seu desafeto, mas nutre sentimentos mistos por ele. Enquanto isso evita a todo custo tentar sobreviver, em um movimento suicida sutil, mas inquieto.

Para tudo isso a câmera tremida de Solomonoff acompanha Nico em lindos quadros estilizados, mas com um olhar frio, enquanto narra este conto em quatro estações (embora nos créditos finais seja avisado que são apenas três; possivelmente inverno, verão e outono). A rotina de nosso herói aos poucos vai o sufocando, ou melhor dizendo, o encurralando. Mas não podemos culpar sua má sorte quando é ele mesmo que a estimula. E mesmo assim ele caminha a passos orgulhosos. É a síntese do farsante que se sente bom demais para recomeçar a vida.

Se torna um pequeno feito que o ator Guillermo Pfening consiga nos fazer identificar seu drama sem perdermos o interesse. Seu olhar é distante e patético. Andando sempre cabisbaixo, suas decisões são sempre as piores. Sua vida é uma poesia triste e sonolenta, que quase mergulha na própria depressão. É curioso até que não haja momentos muito perigosos em sua vida. "Ninguém Está Olhando" não quer forçar nada além do aceitável, mas monta um circo que encaixa perfeitamente com a incapacidade deste rapaz de olhar as coisas de maneira um pouco mais realista.

Para quem busca um retrato sutil de um pedaço de realidade específico demais, este é um filme que embala sonhos e decepções como ninguém. Ele é leve, mas que leva fácil. Pode ser assistido por corações sensíveis que vai gerar no máximo uma pequena tristeza que passa assim que a pessoa chegar na próxima Starbucks. E quando chegar, peça uma bebida quente, mesmo que esteja no verão. Enquanto estiver bebendo, pense em quantas pessoas estão vivendo nesse momento uma desilusão amorosa no mundo, e reflita. Termine sua bebida e passe para o próximo filme. Tente um mais alegrinho.


# Thelma

Caloni, 2017-11-16 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Thelma é uma gostosa revisita ao mundo do thriller de "Carrie, a Estranha" (o original de Brian de Palma), que discute religião com um certo distanciamento e compreensão. Atualizado conforme manda o figurino, temos no pacote discussões sobre sexualidade, autoridade e gnosticismo. E em cima disso tudo um possível arcabouço crítico por cima da sociedade atual.

Isso é o que já é esperado do diretor Joachim Trier, que depois de seu drama esteticamente impecável de Mais Forte Que Bombas repete aqui uma fórmula graficamente semelhante, em um mundo pálido, sem vida, onde o espectador é convidado a olhar novamente para velhos padrões do cotidiano.

De uma maneira semelhante, mas muito, muito mais sutil, ao que fez Darren Aronofsky no seu recente "Mãe!", a discussão do sobrenatural encoberto de situações do mundo comum é uma bem-vinda revisita ao mundo do fantástico, que de uns tempos pra cá tem preferido o velho gênero trash do que o cuidadoso drama. Aqui Trier tenta o caminho do drama intimista, mas o filme simplesmente não consegue se conter.

Nos momentos mais calmos, porém, acompanhamos a história fascinante de Thelma, que carrega o título nas costas com a propriedade que este merece. Encoberta de simbolismos desde o começo, quando criança, o momento a sós com o pai em uma caça é revelador em várias camadas. Mas a que mais permanece é o mistério que serve de gancho para toda a narrativa.

Este gancho consegue discutir tanto a relação da filha com seus pais como com seus novos amigos na faculdade e sua mudança gradativa em relação à religião que foi criada. Essas discussões são abertas para o espectador, que ainda não tem todos os elementos para entender o que está acontecendo, e que por isso mesmo as questões levantadas na primeira metade de "Thelma" se tornam tão poderosas à medida que o longa avança. Criando expectativa em cima de expectativa com micro-acontecimentos no dia-a-dia da garota, o uso de todos os recursos visuais e sonoros para "criar o clima" é o tipo de recompensa que qualquer cinéfilo merece após ver tantas tentativas desajeitadas em criar tensão e medo onde não existe nenhum dos dois.

Note como os símbolos então vão se repetindo de uma maneira criativa e até certo ponto hermética. Porque apesar de insistir na questão do lago congelado, da piscina, das aves e do vidro, sugerindo fortemente a conexão entre dois mundos, a mensagem é aberta o suficiente para fazer perder seu próprio peso. Talvez seja um filme para revisita, mas ainda assim desconfio que ele trará mais dúvidas do que respostas.

O grande mistério por trás da personagem-título não deve ser aberto neste texto (afinal é um thriller!), mas ele também envolve todos os elementos já citados. Todos de uma vez. E cabe ao espectador saber encaixar os detalhes que o filme arrisca dar sentido. Note como os roteiristas Trier e Eskil Vogt jogam pedaços de pseudo-informação para nos fazer pensar de maneira mais científica, ainda que estejamos falando de um outro patamar de conhecimento, inacessível a nós por premissa. Tudo poderia ser simplesmente um thriller fantástico, mas ao lançar frases soltas como a dualidade onda/partícula o filme evoca nosso lado racional, tornando a experiência tão fria quanto a paleta de cores escolhida por Jakob Ihre, colaborador habitual do diretor.

O resultado disso se vê claramente no terceiro ato, que soa distante e não causa o impacto sugerido desde o seu início. Tentando se desvencilhar do clichê de efeitos visuais batidos ou momentos arriscados onde é necessário saber equilibrar o exagero do que se mostra, "Thelma" não desaba, mas se mantém mais do mesmo todo o momento, o que é decepcionante em sua própria forma.

Não que isso estrague o filme. Ele é esteticamente muito refinado para nos sentirmos roubados dentro de uma história ambiciosa o suficiente para nos prender na cadeira todo momento. A frustação é que simplesmente não há uma entrega além do que seria possível fazer, já que sempre impedindo que nossa mente viaje para cantos mais obscuros de nossa criatividade, essa visão asséptica de Trier para com seu material, se em Mais Forte que Bombas favorece um drama intimista, aqui cria distanciamento para com o drama da garota.

O que nos faz voltar novamente para a questão levantada no filme entre ciência e sobrenatural. Seria a ciência uma versão asséptica do próprio conhecimento? Estaríamos nós enclausurados deste lado do vidro (ou espelho), incapazes de enxergar o que há além? Essas questões são levemente arranhadas pelo filme, mas nunca conduzidas além disso. O máximo que passa são alguns fios de cabelo. E o outro lado, como visto em "Thelma", também seria frio demais para que houvesse alguma novidade.


# Patti Cake$

Caloni, 2017-11-18 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Patti Cake$ poderia ser facilmente resumido como uma mistura entre "Preciosa: Uma História de Esperança" (Lee Daniels, 2009) e "8 Mile: Rua das Ilusões" (Curtis Hanson, 2002), e qualquer um que tenha assistido a esses dois longas irá se identificar com o drama dos jovens artistas anônimos nas periferias das cidades grandes, rejeitados automaticamente pelas autoridades locais como vagabundos perdidos na sociedade.

Porém, enquanto Preciosa e 8 Mile se limitam em um drama vitimista com moral de superação, Patti Cake$ adota uma postura alto-astral. Poderia isto ser fruto de uma sociedade que rapidamente enriqueceu nesses 10, 15 anos, e se não espiritualmente, ao menos financeiramente? O filme deixa claro que há, sim, alguns problemas financeiros para a jovem Patti e sua família, mas pior do que eles é não poder viver seu sonho.

E seu sonho é ser uma rapper de sucesso, respeitada, amada, adorada... glorificada. Como seu maior ídolo: O-Z (Sahr Ngaujah).

O movimento rap tem vários significados, conotações e etimologias. Alguns dizem que é um acrônimo para Ritmo e Poesia (do inglês Rithm and Poetry). Outros que o "R" tem mais a ver com rimar. E outros usam ainda outros significados mais obscuros para um termo que virou sinônimo de um gênero musical: o Hip Hop.

Aos meus quinze anos, quando eu ouvia desde Racionais MCs, a referência oficial no Brasil, até obscuridades da época, como De Menos Crime (antes de seu hit "Fogo na Bomba"), o RAP tinha a clara conotação de música marginalizada que combatia o sistema vigente através de suas letras e ritmos experimentais, através da junção de diferentes gêneros musicais e mixagens "estrábicas" que conseguiam harmonizar canto gregoriano, Beethoven, MPB e pagode de raiz. O movimento, se espalhando facilmente pelo mundo, tem por definição nunca se definir. E é em sua anti-definição que ele mais brilha, como um dos representantes mais underground da contra-cultura.

Dentro dessa ideologia, o que faria menos sentido no mundo é um filme com uma produção razoável sobre uma rapper marginalizada pelas condições de seu tempo: branca, loira, obesa, pobre e tímida. Porém, sendo justamente a poesia dentro dessa ideologia a força motriz que transforma a realidade opressora do artista em combustível para a criação dos seus melhores trabalhos, e a contradição inerente de suas criações, com o objetivo de alertar a humanidade do perigo da padronização (a "ovelhização", como cantado no filme), não há nada de errado em vivermos o sonho junto de Patti e seus amigos, já que este sonho representa tudo o que eles com certeza não conseguirão em suas pouco esperançosas vidas.

O longa do estreante Geremy Jasper se insere como se deve nesse universo. Iniciando dentro do sonho de Patti com o formato de um show inesquecível, a realidade da garota é colorido com suas próprias letras descrevendo sua situação, mas sempre com um impulso otimista sobre como ela superou os obstáculos e chegou onde chegou. Ela se vê retornando às origens que nunca saiu, cantando vitória e demonstrando uma auto-confiança invejável para qualquer ser humano naquela situação. Dessa forma, no ritmo de vídeo-clipes, câmera lenta e estilização da pobreza, a trilha sonora é cantada por ela mesma e sua banda, em um trocadilho de suas origens na periferia de Nova York, Nova Jérsei: PBNJ (as composições ficaram por conta de Jason Binnick e do diretor do filme). Essa seria a única narrativa aceitável para esta história, a que não trai o movimento. Ela vive no sonho, o sonho faz parte do filme e o filme é sobre esse sonho. Qualquer licença poética está liberada (como as coincidências da história que você com certeza irá localizar).

Toda a história do filme possui uma cadência contagiante justamente por conta dessa narrativa pseudo-realista. Nos damos conta que o filme é um sonho de onde Patti não quer acordar. E não podemos julgá-la. Tendo que trabalhar em bicos ingratos para ajudar sua mãe a custear o tratamento da avó que começa a sofrer a decadência do Alzheimer, o momento em que ela realmente se liberta é compondo suas letras, e nas ruas improvisando sua arte. Como uma repentista urbana, Patti transforma sua realidade, por mais barra pesada que seja, em poesia musical.

A performance de Danielle Macdonald está arrebatadora. Assim como suas músicas. Há pouquíssimos momentos que podemos distinguir a atriz de seu personagem, ou ambas de uma possível personagem da vida real. Talvez a única pista seja que ela tem um "verdadeiro" talento em improviso que soa talentoso demais para ser verdade. Mas, pense a respeito: quantos talentos estão perdidos pelas ruas? Talentos esses que nunca ouviremos a respeito. Este conto não é tão irreal quanto parece.

O momento que resume este longa-video-clipe em formato de filme (e cuja história você não precisa saber muito) é quando, em um momento auto-reflexivo do próprio filme, é dito que um quadro na parede, comprado por 2,4 milhões de dólares, foi uma ninharia, pois o que está ali representa de maneira autêntica toda a dor e violência do artista que o criou. Conseguir representar em cada linha, cada cor e cada forma a insanidade da existência humana, e ainda imprimir em alguns centímetros quadrados toda a dor resultante deste esforço, é o verdadeiro paradoxo.

Assim como é um paradoxo entender que as maiores obras de arte talvez precisem da dor lancinante e do sofrimento intenso de seus criadores, que apenas buscam um lugar ao sol em suas existências sem sentido. Seria essa busca que gera algum significado ou é a própria vida, que está ali apenas para ser interpretada por um artista que nasce através dessa dor?


# Palestras do CCPPBR14

Caloni, 2017-11-20 ccppbr [up] [copy]

Esse sábado, dia 25/11/2017, teremos em São Paulo nosso 14o. encontro de programadores e aficionados C/C++. Teremos palestras do pessoal das antigas e de um pessoal novato. Ou seja, terá palestras para todos os gostos. As palestras foram selecionadas pela própria comunidade CCPP através de votação, e houve excesso de palestrantes. C++ está bombando!

A programação já está disponível no saite do Grupo CCPP já faz mais de um mês, mas estou publicando para a visibilidade de que está perto! Segue o que teremos:

  • C++ dentro da publicidade, arquitetura e design, por Henrique Penteado Kujawski Périgo
  • Estilos de multitasking cooperativo, loop de eventos e programação assíncrona, por Vinícius dos Santos Oliveira
  • Indo além do arroz com feijão RESTful, enchendo a marmita de gRPC, GraphQL, MQTT, SocketIO e outras misturas, por Rodrigo Delduca
  • Não faça do zero, por Rosemary Sumitani
  • Como realmente funciona o if, por Wanderley Caloni
  • Introdução a Minifilters, por Fernando Roberto da Silva
  • Encerramento/Happy Hour, por Quem Puder

O encontro acontecerá no bairro Vila Olímpia, próximo da estação de trem e do shopping, na Av. Doutor Cardoso de Melo, 1491. As inscrições ainda estão abertas. Nos vemos lá!


# Póstumo

Caloni, 2017-11-20 cinema movies [up] [copy]

A diretora/roteirista Lulu Wang se acha tão esperta... nesse seu primeiro longa ela explora uma história comum o suficiente para não despertar muita surpresa e rasa o suficiente para não despertar interesse em um ou outro diálogo de fato interessante. Porém, próximo da direção, o roteiro se torna muito bom. Planos confusos e ângulos sobrepostos em uma bagunça de temas tenta mostrar como a arte deste homem é tão boa se comparada ao que é feito nesse filme.

Este é um filme morno que lembra novela. Ou pior: um filme da Netflix. Desses que é encomendado pelos espectadores e que é criado por uma máquina? Pois bem. Esse não chega a ser tão ruim quanto Naked e nem tão bonzinho quanto O Mínimo Para Viver. Mas fica na média. Traz personagens cuidadosamente calculados para funcionarem em situações não muito profundas e aceitáveis pelo espectador médio e não apresenta praticamente nenhuma surpresa pelo caminho.

A história é a seguinte: artista dramático, birra com seu expositor, pensam que ele se matou e cria-se uma nova exposição póstuma que finalmente atrai a atenção de críticos e especialistas na arte dos borrões e esculturas gigantes. Aqui, mãos gigantes, rostos gigantes... e talvez por não conseguir vender fácil, não há pênis gigantes.

Mas a figura de Jack Huston, neto do icônico John Huston (e outros da família Huston), como o artista moderno Liam Price (notou o trocadilho entre Price e um artista não-ambicioso financeiramente?) consegue aos poucos empurrar o conceito: no fundo todo artista egocêntrico está tão interessado em seu próprio pênis que sequer mantém um relacionamento. E a responsável por descobrir a faceta humana deste aparente gênio das esculturas grandes borrifadas é McKenzie Grain, que encorpada pela sem graça Brit Marling tem a missão de se apaixonar pelo seu grandissíssimo... ego.

É claro que por trás da figura deste incompreendido artista há alguém sensível, blá blá blá... você já pegou a ideia. E durante todo esse filme de intermináveis 94 minutos não é possível pensar em nada mais do que duas coisas: 1) qual o sentido dessa previsível história e 2) estamos vendo dicas turísticas sobre Berlim durante o filme?

Infelizmente o filme não consegue convencer nem que Liam é genial, nem que McKenzie está apaixonada por ele. O que o filme consegue é nos fazer olhar por Berlim e tentar entender como alguém tão bom quanto Lambert Wilson está fazendo nesse filme. As melhores cenas são dele. E ele mal aparece em vinte minutos de filme.


# CCPPBRSP 14 Postergado

Caloni, 2017-11-21 ccppbr [up] [copy]

Pois é. Não vai rolar dessa vez. Por falta de quórum, o 14o. Encontro CCPPBR está postergado. Não cancelado. Mas não acontecerá essa semana. Se você já se inscreveu não se preocupe. Iremos realizar o estorno das compras do PagSeguro. Basicamente é isso.


# Em Busca de Fellini

Caloni, 2017-11-23 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Em Busca de Fellini é desses filmes que homenageiam grandes diretores tentando extrair um pouco de seu estilo. É claro que o resultado geralmente nunca atinge o brilhantismo do autor original. E nem é pra isso. E como homenagem, o filme de Taron Lexton consegue explorar tantas nuances do diretor italiano que o ponto mais impressionante do projeto é que tanto tempo se passou após seu último filme, e mesmo assim, o sonho da humanidade continua.

Federico Fellini era um ilustrador que idealizou seus filmes com pouco roteiro e muita análise. Sobretudo humana. Para isso as emoções desempenharam um papel fundamental, e dificilmente você irá assistir um filme dele sem se deparar com sentimentos dúbios e amorais, que nos fazem pensar em como o ser humano é muito mais complexo do que a velha dualidade bem e mal. Sem maniqueísmos, mas cheio de fantasia, Fellini não era um surrealista, tampouco um realista. Ele era, como em um de seus ditados, um visionário. E hoje essa visão nos volta à lembrança na forma de mais um filme.

A personagem principal é a garota Lucy. Lucy foi criada por uma mãe com a cabeça nas nuvens (Maria Bello). Tendo como contrapartida sua tia Kerri (Mary Lynn Rajskub), ambas são apenas o pano de fundo necessário para que Lucy bata suas asas para longe de um lar superprotetor e utópico. E de utopia para utopia, Lucy passa a venerar em pouco tempo o diretor italiano Federico Fellini, que conhece em um festival onde são passados todos seus filmes. Decidida a conhecê-lo pessoalmente depois de ter assistido várias vezes A Estrada da Vida, Noites de Cabíria, A Doce Vida, Boccaccio '70, 8½, Satyricon e Amarcord. Sua mãe descobre ter uma doença terminal e o drama felliniano está completo para sua viagem pela Itália.

Para os que não conhecem nada de Fellini, este pode ser um bom filme introdutório. Sobretudo para os americanos, que a despeito das 12 indicações ao Oscar por seus filmes, seu trabalho se mantém esquecido e arquivado. Talvez seja o problema da legenda. Afinal, estamos nos anos 80, e em todo beco que Lucy conversa com alguém sempre haverá um italiano que sabe falar inglês perfeitamente, quase sem sotaque. Apesar do filme se passar a maior parte do tempo na Itália, a língua italiana é um enfeito estético usado de vez em quando.

Aqui, seguindo o caminho da homenagem, o roteiro também não segue muita lógica. Caminhamos nas nuvens junto de Lucy, uma garota sem personalidade que está aí para que tenhamos a figura do espectador dentro do filme. Ela passeia por diferentes cenários, personagens e situações como itinerante, e não como modificadora do seu destino. Mas assim como até uma pedra tem seu propósito, Lucy também o tem.

Ela é interpretada pela belíssima Ksenia Solo, com seus grandes olhos azuis e cachinhos dourados. Ela usa a maior parte do tempo uma roupa com listas, que lhe dá um toque bucólico. Ela também usa umas mangas meio rebuscadas que lembram Alice (no País das Maravilhas). Além disso, a fotografia de Kerri Garrison é uma atração à parte. Usando sobretudo um azul leve e triste com toques amarelos na casa de Lucy, na Itália os tons de preto, amarelo e outras cores adquirem uma luminosidade mais boêmia e teatral. A Itália vista no filme é mais artística, mais poética, e seus pontos turísticos são exaltados como um personagem mais importante que a própria Lucy. Assim como seus inusitados personagens. Temos homens bons e maus, e mulheres geralmente donas de seu mundo, embora a maioria seja lasciva de uma maneira despretensiosa.

E é claro que a maioria das situações irão justamente fazer nossos olhos observarem uma revisita ao mundo de Fellini. Esta é uma homenagem fofinha. Portanto, aproveite. Não há nada a temer, pois tudo sempre dará certo. Talvez a única falha do filme seja isso: a falta de tensão. Se até Fellini encostava seus pés no chão de vez em quando -- e isso era o que tornava seus filhos providos de um significado maior do que simplesmente uma viagem experimental ao mundo dos sonhos -- aqui o roteiro de Nancy Cartwright e Peter Kjenaas prefere não arriscar estragar um passeio tão lindo, não percebendo que as agrúrias da vida fazem parte do passeio. Principalmente quando o passeio em si é um microcosmos da vida.

E esta vida é certinha demais para fascinar. Ou talvez Fellini não tenha mais espaço nos dias de hoje. É capaz. Com tanta ironia e desprezo pelos sentimentos humanos, a vida se tornou um simulacro dela mesma. E tendo isso em jogo, Em Busca de Fellini pode ter um sentido metalinguístico. Onde estará, nos dias de hoje, o próximo Fellini a alçar vôo na arte que imita os sonhos?


# Emoji: O Filme

Caloni, 2017-11-23 cinema movies [up] [copy]

Não é sintomático que um filme chamado Emoji tenha tão poucas emoções? Talvez não. Afinal de contas, os emojis basicamente são a simplificação de nossa linguagem e dos nossos sentimentos. Onde um email com uma poesia é colocado na lixeira porque "usar textos é tão retrô" e onde no lugar de um emoji com uma única emoção enlatada surge um emoji com várias!

Spoiler? Quem se importa com isso? Com certeza não os consumidores de trailers de cinema, que entregam praticamente toda a história do filme em poucos segundos. E sinto que com esse filme isso seria realmente possível. Talvez desde o argumento inicial desse filme pouca coisa mudou.

Exceto uma coisa: quais vão ser os patrocinadores desta produção. Porque, claro, um filme hoje em dia que se passa dentro de um smartphone cheio de apps nada mais natural que as empresas desenvolvedoras dos apps paguem por ele. E isso pode ser tão sutil quanto Facebook, Twitter e Instagram (que devem ter sido até pagos para participar) ou gritante como Candy Crush, Just Dance, Spotify e Dropbox.

A história é de um emoji, o "meh", que aqui se chama Gene e não consegue apenas fazer sua cara de meh. Ele tem um amigo, o "Bate Aqui", que irá lhe dar uma mãozinha. Se você entendeu essa piadinha infame e não deu risada, espere para você mesmo, espectador, fazer mais caras de meh durante o filme do que o próprio Gene. Talvez a solução para o problema dele estará disponível na Netflix em breve: seu próprio filme. Duvido que ao assisti-lo ele não ganhe permanentemente uma face blasé.

Como se não fosse possível enfiar mais estereótipos e referências neste filme, incluindo os trolls de internet, os spams, o cavalo de Tróia, o firewall, os anti-vírus (e, sim, os vírus), e a hacker, "Emoji: Meh" copia descaradamente Detona Ralph em seu subplot (e sua música final) e ainda "detona" a ideia com uma personagem feminista de fazer vomitar (como se hoje em dia houvesse alguma feminista que não causasse esse efeito). Aliás, a própria história principal já lembra Divertidamente até demais (filme sobre emoções não serem tão simples, e os próprios pais de Gene possuem o mesmo problema da menina do filme da Disney: lidar com um adolescente problemático; claro que o adolescente ser um emoji poderia ser interessante... mas não é).

Por fim, se você espera um filme clichezão tapa-buraco (filme sobre emoticons: check!) com pouca criatividade em sua história, seu roteiro, sua direção de arte e até fotografia (até Tron, o original dos anos 80, se sai bem melhor em sua abstração), "Emoji: Arght!" é o seu tipo de filme. No começo ouvimos uma narração em off de Gene. Em determinado momento, uns 20 segundos depois, ele comenta: "acho que a essa altura você nem está mais me ouvindo". Se você é esse tipo de espectador, e saca seu smartphone no cinema porque está entediado (com cara de meh), fico feliz de lhe apresentar a sessão que você deve ir (e consequentemente a que eu nunca irei).


# Meu Malvado Favorito 3

Caloni, 2017-11-23 cinema movies [up] [copy]

Esta é uma continuação nos mesmos moldes do primeiro e do segundo filme. O mesmo estilo de piada nos acompanha, seja de Gru, de Agnes, das outras meninas, da sua agora namorada, e agora do seu irmão gêmeo e um vilão que, ao contrário do primeiro moderninho Vetor, agora é um bandido ao estilo anos 80. E também descobrimos que o pai de Gru era um vilão estilo anos 60, digno dos filmes de James Bond. Ou Austin Powers.

Todo esse emaranhado é traçado por um fiapo de história que está interessado principalmente nas piadas. E elas funcionam. Principalmente com os Minions. Criaturinhas curiosas, essas. Parecem um receptáculo das piadas mais escrotas que poderiam estar em um desenho animado. E elas funcionam. Pelo menos para os adultos mais crianças, ou as crianças mais adultas.

Além disso, há fofice no ar com Agnes, e ela quase sempre rouba a cena. Está em busca de um unicórnio em uma floresta. É impressionante como nada tem muita lógica nos filmes dessa série, mas por algum motivo nos esquecemos disso e deixamos passar. Parece pelo bem da diversão. Esqueçamos um pouco Disney/Pixar, Dreamworks. Essas grandes, sim, precisam zelar por muito. Aqui temos apenas que dar boas risadas.

E elas acontecem, mais do que o tédio. Há criações visualmente curiosas, como um avião estilo navio-pirata que conduz vários minions agrupados em um saco feito com roupas de presidiários. Mas uma torre-fortaleza do vilão dos anos 80 com um cubo mágico em cima foi de matar. Pior que isso só usar um Genius (aquele brinquedo de memória), walkman, gomas de mascar e clássicos da música da época. Ainda assim, fica difícil reclamar de um filme tão simpático.

E é por isso que Meu Malvado Favorito 3 é um filme razoável, mesmo não tentando fazer nada de novo. Ele simplesmente é entretenimento que não pisa muito na bola. Não espere mais nada que o primeiro e um pouco menos que o segundo e estará bem.


# A Ópera de Paris

Caloni, 2017-11-24 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Eu não entendo muito o conceito de ópera. Nem de balé. Representações caríssimas de uma história que nos faz voltar a uma época antes do Cinema, da TV e da internet pelo bem da manutenção de uma cultura considerada erudita já há muito tempo é um gasto desnecessário de recursos públicos. E claro que são recursos públicos. Ou você achou que alguém pagaria de livre e espontânea vontade por um espetáculo desses? E como em um momento é dito em A Ópera de Paris, há um jogo de interesses por trás da decisão de flutuar o preço entre cerca de 300 euros ou 150. E quando a discussão gira em torno de um ingresso mais "barato" de 150 euros, talvez seja a hora de abrir uma nova discussão: a de prioridades nos gastos do dinheiro dos outros.

No entanto, se você gosta dessas duas representações musicais e artísticas, e nunca entendeu como as coisas se desenrolam por detrás das cortinas, A Ópera de Paris é o documentário que você precisa assistir. Desde a administração, até a gerência e a condução, treino, assistência, maquiagem, figurino, limpeza, fotografia, música, canto e dança, todos os elementos preparatórios de um espetáculos são destrinchados aqui, neste filme do diretor Jean-Stéphane Bron, que observa astutamente momentos-chave de todos os envolvidos na produção e condução de um investimento imenso de tempo, recursos e pessoas.

Estamos falando de uma nova temporada que se abre da casa de shows que leve o nome do filme. Dirigido por Stephane Lissner, essa casa de espetáculos tem que lidar com sua viabilidade financeira e os inúmeros conflitos entre os trabalhadores e artistas. Além disso, tudo abaixo de Lissner meio que funciona de forma independente. O diretor de uma ópera parece um mero espectador, que se prepara para agir apenas quando é necessário, quando ele pega o telefone. Enquanto isso acompanhamos a escolha do novo jovem tenor, um garoto de um vilarejo da Rússia que sabe muito bem alemão e que se esforça para aprender francês e admira o trabalho de colegas mais experientes. Também observamos diferentes artistas, como bailarinas, professores de dança, condutores, coreografistas, etc.

Porém, os grandes astros dessa produção acabam sendo os trabalhadores mais comuns, que fazem a coisa acontecer. Direto da coordenação dos espetáculos, vemos o controle de horário, de script, de entradas e saídas no palco, e de treinos repetidos à exaustão para breves momentos performando de fato para um público pagante. É curioso como Jean-Stéphane consegue dividir o tempo com uma proporção realista entre o tempo que essas pessoas vivem atrás das cortinas em relação ao pouquíssimo tempo cantando, dançando e tocando para um público de fato. Todo o mecanismo que faz a casa de shows funcionar é observada em seus pequenos detalhes. Eventos pontuais, como atentados terroristas ou greves nacionais (dois eventos bem comuns hoje em dia na França) são levados em conta conforme a ópera dança de acordo com o ritmo das coisas lá fora. Tudo gira em torno de antecipar cada problema e cada situação antes que ela se torne grave demais.

A consequência disso é que existe pouca tensão no filme, pois apesar de acompanharmos o caos de perto, tudo estranhamente está sob um controle mágico, invisível. E essa figura invisível, descobrimos no começo e vamos redescobrindo em momentos pontuais, é o diretor da casa, Stéphane Lissner. É por isso que o filme o situa em uma posição de observador atento e detrás das cortinas. E é por isso que ele nunca se sentará no camarote ao lado de políticos e celebridades para acompanhar um show. Ele precisa estar sempre conduzindo, como um maestro-mor, sua trupe de artistas e funcionários.

Iniciando como um trailer e se alongando desnecessariamente para conseguir agrupar todos os eventos e shows da temporada, A Ópera de Paris é um passeio simples e despretensioso pelo funcionamento de uma casa de ópera e balé. Mas muito informativo. E possui alguns momentos de distração com boa música e excelentes artistas. E quando digo artistas aqui incluo até o pessoal que é responsável por adestrar um imenso touro para o centro do palco. Os heróis invisíveis dessa vez aparecem dentro da cena.


# Liga da Justiça

Caloni, 2017-11-24 cinema movies [up] [copy]

Há alguns bons minutos no começo de Liga da Justiça onde eu gostaria muito de voltar a ser criança e vibrar vendo Mulher Maravilha, Batman e Flash juntos! Esses bons minutos, no entanto, passam logo, e no lugar vemos exatamente 120 minutos de uma obra sem começo nem fim, visualmente e narrativamente confusa, barulhenta e com uma miscelânea de cores que não combinam muito bem juntas. A colagem de Mulher-Maravilha dentro de um cenário, ambos com cores bem díspares, é o que representa para mim a união entre milhões sendo gastos em uma produção sempre barata demais.

Continuando a história vista em Batman Vs Superman (que já tinha o sub-título A Origem da Justiça, já entregando o ouro), Batman (Ben Affleck) resolve reunir uma galera de heróis porque uns monstros muito bizarros começam a aparecer em Gothan City, e ele teme por não ter super-poderes e não conseguir lidar com essa ameaça como seu amigo criptoniano faria. Para os que já assistiram e os que não assistiram ainda o filme anterior (spoiler alert!), saiba que Superman nesse momento da história está morto. E quando digo "nesse momento" me refiro à máxima de que não existe morto permanente em filmes de super-heróis que não possa ser revertido, como chegaremos a testemunhas antes da metade da projeção, ou no final de qualquer trailer desse filme.

A questão é que o diretor Zack Snyder precisa ter o time todo junto para conseguir mostrar como eles lutam tão bem quando estão juntos, embora cada um deles tenha objetivos diferentes. Para uni-los a história tem três cubos que eram guardados pelos três povos da Terra Média (ou algo assim), as Amazonas, os Molhados e os Seres Humanos. No grupo dos Molhados há o Aquaman. E para finalizar a equipe tem um rapaz que está se tornando andróide aos poucos. Pensei que ele fosse se tornar Brainiac, a IA de Krypton, um dos vilões do homem de aço; ou pelo menos seria responsável pelo seu surgimento. Mas não, ele é apenas um rapaz aleatório negro para prencher cota. Com ele e com Flash piadista está completa (mais ou menos) uma trupe que pode servir como uma versão DC de Guardiões, X-Men, Vingadores ou qualquer outro dos inúmeros grupos criados pela Marvel.

Só que com as cores drenadas.

Zack Snyder volta novamente à direção depois de BvS e volta a fazer aquelas introduções com câmeras lentas, dessa vez explorando a intolerância contra imigrantes e a violência irracional que tomou conta do planeta depois que Superman se foi. A linha histórica aqui é meio vaga e as alegorias são meio óbvias. É também de Snyder a atualização de Diana, a Mulher-Maravilha, cuja bunda ainda não havíamos o prazer de testemunhar em planos-detalhes desde que seu filme solo dirigido por uma mulher e com tons feministas estreou. No filme solo é impossível ver este plano-detalhe. Agradeço à conhecida misoginia de Snyder (Sucker Punch, 300) por conseguir negociar um plano-detalhe lento com ela andando de calças e um ou dois momentos em que vemos uma minúscula saia por baixo.

Esta combinação de bons atores protagonizando uma história sem pé nem cabeça e com uma gostosa estilizada para completar o time é estranhamente coincidente com outro filme horrível: Esquadrão Suicida. Aparentemente as peças começam a se encaixar no universo DC. A lógica funciona mais ou menos assim: quando um grupo de heróis (ou "vilões") se reúne para combater uma ameaça ainda virtual, ela se torna real graças a este mesmo grupo. Aqui a história não foi exatamente essa, mas ao escapar mais uma vez da fórmula clássica "vilão surge primeiro, equipe se forma depois" o filme de Snyder se confunde com o de David Ayer, criando um padrão-DC.

A parte mais triste deste filme é observar como os atores e personagens são até interessantes, mas eles estão inseridos em uma computação gráfica de muito mau gosto, protagonizando cenas de ação escuras, confusas e desnecessárias, e participando de uma história que não chama a atenção em nenhum momento. Quero dizer, o vilão precisa gritar toda hora para chamar a atenção para ele mesmo. E o que ele grita não faz sentido nenhum. "Eu sou a destruição do mundo!". E bla bla bla. OK, uma motivação tão aleatória como esta não é sequer uma alegoria do terrorismo ou do capitalismo opressor, vilões da moda: é uma alegoria da estupidez (o "herói" da moda).

A capacidade de fazer piadas com seus heróis tem crescido na Marvel, mas precisa de sérios ajustes no universo DC. O Flash interpretado por Ezra Miller não é um escape cômico, mas um escape idiota. A história é muito densa, cheia de subterfúgios irônicos e sarcásticos e dark para que exista qualquer sinal de esperança. Quanto mais de piadas. Praticamente nenhuma piada funciona, ou funciona no nível da risadinha.

Até Henry Cavill, um ótimo Homem de Aço, surge aqui estranhamente plastificado, em um resultado gráfico que lembra o ator Peter Crushing em Rogue One. Porém, Peter Crushing está morto. Ou seria essa mais uma alegoria?

Além disso, o universo criativo de Snyder, que também assina O Homem de Aço, é confusa e aos poucos se perde nas referências que cria. Utilizando a mitologia alienígena para recriar o conceito de Superman diferente do visto com o ator Christopher Reeve, e recriando um novo tema para o super-herói, Snyder resolve voltar a tocar o tema icônico de John Williams em um momento deste longa, evocando ecos do passado ao mesmo tempo que evoca a eterna questão: que universo de super-heróis é este, afinal de contas?

Talvez ninguém ainda saiba. Experimentando conceitos até tentar acertar o ponto, Liga da Justiça termina como começou: mais um episódio narrativamente confuso que não leva a lugar algum e que finge ser algo tão interessante quanto o universo já estabelecido da Marvel. Talvez esse começo da Liga seja o exato momento para desfazê-la. E começar tudo de novo.


# Capitão Fantástico

Caloni, 2017-11-25 cinema movies [up] [copy]

"Poder para o povo. Abaixo o sistema." Essas duas frases tipicamente anarquistas resumem a filosofia de mais este filme sobre uma família disfuncional. A virtude deste filme é que ele nos faz enxergar a sociedade atual do ponto de vista de uma outra forma de viver. E se todos nós fôssemos criados para sermos filósofos e seguir a razão? Bom, se isso fosse possível seria o paraíso na Terra.

Porém, o que Capitão Fantástico convenientemente ignora nessa equação é que existem dissidências argumentativas em torno das questões mais primordiais do convívio humano. A chave para ignorar essa realidade está em aceitar apenas um ponto de vista: o do pai daquelas crianças.

Porque, imagine, só, se uma delas discorda do que o pai ensina, ele abre a questão para debate com todos presentes. E a criança não consegue bolar um contra-argumento. Por quê? Porque só existe um argumento aqui: o que o pai direcionou durante toda a infância delas.

Então esse "debate" é inócuo. Não é de verdade. É só encenação. Assim como quando a esquerda clama por diversidade de ideias, se esquecendo de mencionar que a diversidade só deve acontecer se todos os participantes concordarem com algumas ideias prévias.

Dessa forma o filme de Matt Ross se torna genial desde sua concepção, pois apresenta um microcosmos que revela a hipocrisia e os valores artificiais por trás de movimentos totalitaristas. (E lembrando que, ainda que você seja um anarquista, não deixa de ser totalitária a concepção de que todos devem seguir aquele modelo.)

Por fim, a história ainda acerta diretamente no alvo ao conceber que aquele pai chegou a todas as respostas sobre a vida, o universo e tudo mais, e apenas repassa através de livros esse conhecimento para suas crianças, que é justamente a premissa de todo intelectual afogado em seu próprio ego.

Agora vamos ao filme de fato.

A grande sacada para o espectador comum de Capitão Fantástico é lhe dar uma oportunidade de enxergar a realidade em que ele vive sob os olhos de pessoas que vivem de uma maneira radicalmente diferente. Elas plantam, colhem e caçam seu próprio alimento. Elas leem livros não porque está no currículo escolar, mas porque elas querem (elas vão além do programa concebido pelo pai). Elas correm riscos absurdos em meio à natureza porque, de acordo com a concepção desta família, esta é a forma do homem se relacionar com o ambiente onde vive.

Mas tudo o que o pai dessas crianças faz é por um bem maior: seguir à risca o plano de sua mulher, que começa o filme hospitalizada, mas logo decide se matar. O pai não poupa seus filhos, sempre dizendo a verdade a todo momento, e não censurando conhecimento que elas iriam, em nossa sociedade, adquirir depois de adultos (como explicar o que é ter relações sexuais para um garoto de 8 anos). O personagem de Viggo Mortensen, Ben, é um homem absurdamente bem-intencionado, pacífico e ponderado. Ele segue seu objetivo maior movido pelo amor que sente por essa mulher. Seus filhos compreendem a força desse sentimento e estão irremediavelmente juntos na missão maior de suas vidas: se tornarem seres humanos completos e independentes.

O que gera alguns problemas explorados pelo filme, principalmente na visão do filho mais velho, Bodevan. George MacKay simplesmente mata a pau quando a família pousa em um acampamento e conhece uma adolescente americana padrão. Seu conhecimento erudito está em cem e seu conhecimento da "vida real", ou da sociedade como conhecemos, está mais próximo do zero. Isso reflete em seu primeiro beijo, onde automaticamente em sua visão ela se torna a esposa ideal, e onde ele não poupa comentários honestos com sua futura sogra a respeito de sentimentos e uma eventual penetração em sua filha.

Bodevan passou em todas as melhores faculdades do país. O que revela também que o sintoma de falta de vivência de Bodevan também existe no mundo acadêmico (e talvez por isso quase todos intelectuais deste mundo sejam mais ou menos comunistas/anarquistas/etc).

Por outro lado, as virtudes da educação em casa não apenas demonstram a óbvia decadência do ensino estatal nas escolas, mas a inerente alienação a que todas as crianças são submetidas. Em mais uma cena icônica, os sobrinhos de Ben, de 12 e 13 anos, são incapazes de sequer dar uma definição clara do que é a Declaração dos Direitos dos Estados Unidos, enquanto seu filho de 8 não apenas sabe de cor as emendas, como consegue pensar a respeito delas e expressar sua própria opinião. Note que isso está mais longe da ficção do que na vida real, em todo o dito mundo civilizado.

Tudo isso você encontra em Capitão Fantástico além de suas virtudes técnicas, que não são poucas. O filme possui uma invejável trilha sonora e um diretor que cria enquadramentos belíssimos (como o reflexo de Ben pelo vidro de Steve, o ônibus que leva todos eles por este road movie) e com um conceito que o roteirista (também Matt Ross) explora de todas as maneiras possíveis em diálogos sutis e reveladores. Não precisamos de narração alguma para entender o que está acontecendo.

O resultado é um filme que faz pensar em várias questões, ao mesmo tempo que não nos dá resposta para nenhuma delas. E esse é um traço de um grande filme, além do traço da própria vida: caótica, injusta e sem respostas prontas. E apenas nesse quesito a vida é ligeiramente maior do que o filme em si explora.


# A Mosca

Caloni, 2017-11-27 cinema movies [up] [copy]

Poucos filmes da época de infância traziam tantas cenas marcantes quanto os filmes de David Cronenberg. E entre eles com certeza A Mosca é o que sintetiza o horror de seus filmes em um formato clássico e ideal. Porque se trabalhos como A Hora da Zona Morta, Um Método Perigoso e Cosmópolis são mais psicológicos e internos aos seus personagens, A Mosca traz o velho dilema e a velha maldição do homem e dos caminhos que a ciência pode tomar de uma forma mais universal.

Veja a história deste cientista, por exemplo. Por ficar enjoado em andar em qualquer meio de transporte (carros, avião e até seu triciclo quando criança), e sendo um gênio, ele cria uma máquina de teletransporte. No momento ela só funciona com objetos inanimados, pois existe algum erro de tradução do computador para nossa inconstante carne, fruto dos desejos mais loucos. Como criar uma máquina dessas.

A história é minimalista, se focando apenas nos personagens necessários. Basicamente três. E a narrativa caminha facilmente por eles, desde uma feira de ciências onde uma jornalista conversa com um inventor de algo que irá revolucionar o mundo até ela acompanhando o projeto em sua reta final: transportar o próprio cientista de um canto a outro canto do seu sujo, bagunçado, clássico laboratório em um prédio abandonado.

O que mais vem à mente por todo o filme é sua trilha sonora evocativa, clássica, que transforma os acontecimentos como se eles fossem inerentemente trágicos ou parte de algo trágico. O peso que a música de Howard Shore confere à história é importante para que ela não seja confundida com uma comédia de erros. O que ela não é. Se trata de um cientista bem-intencionado e do que acontece quando uma mulher entra em sua vida.

Jeff Goldblum mantém a sua persona incômoda do gênio incompreendido. Curiosamente esta sua persona será reciclada em forma de humor em Jurassic Park, mas aqui o humor é muito de situação. E Geena Davis, de Thelma & Louise, bom... é Geena Davis. Não é um filme de atuações, aqui. Como, aliás, todo sci-fi geralmente não é. Exceto se for um drama.

Mas não há dramas aqui. Apenas gore misturado com um horror psicológico inquieto. Conseguindo tornar os efeitos de maquiagem mais impressionantes que a própria música, e apesar de erros bobos nos efeitos visuais, o filme envelheceu muito bem. O conjunto da obra consegue ser impactante nos momentos certos, e acompanhamos a evolução do acidente do filme como algo natural, mas tragicamente inevitável.

Este é um filme puro, de sensações, que não possui muita lição de moral. É o horror pelo horror. E Cronenberg faz tudo muito bem. Depois que a transformação do que era um doce cientista empenhado começa se torna impossível desgrudar os olhos da tela, embora os espectadores mais sensíveis devem ter tentado fazer isso a todo custo. Mas a nossa luta interna entre o terror e a curiosidade mórbida é imbatível. E por ser algo natural talvez seja a que mais ecoa pelo nosso inconsciente.


# Visages, Villages

Caloni, 2017-11-27 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Visages, Villages é um filme fácil de assistir. Se trata de um documentário road-movie com um artista jovem cuidando do projeto de uma artista experiente. Ambos se respeitam e estão juntos pelo mesmo objetivo: viver.

E viver para um artista é botar o pé na estrada e sair fazendo arte. A arte dele são colagens. A dela é fotografia. Passando de vilarejo em vilarejo ele e ela tiram fotos das pessoas da paisagem e as expandem, fixando-as na mesma paisagem e nos mesmos muros, paredes e mentes dessas pessoas. Elas viram famosas por estarem destacadas do cotidiano.

Os vilarejos do filme e do título não são exatamente o que nossa imaginação pode trazer à tona. Em vez daquelas casinhas e camponeses temos fazendeiros fabricando queijo, estivadores cuidando de um porto e funcionários de uma fábrica. Existem histórias inspiradoras do passado, como um casal que se casou via um sequestro de amor e uma única moradora que resiste se mudar de uma antiga vila de mineradores.

Para essa jornada eles usam um furgão com uma enorme lente de câmera desenhada. O estilo deles é a soma dos clichês. Mas isso só porque se trata de um documentário, onde a vida deveria ser maior que a arte. Não é o caso. Há alguma coisa barrando a arte e a vida. Um roteiro manipulador demais torna a experiência inofensiva. E mesmo que existam surpresas pelo caminho elas não são suficientes. É preciso conhecer quem são esses artistas para respeitá-los e ter uma ideia da importância do que fazem.

Agnès Varda dispensa apresentações. A diretora belga de mais de 89 anos demonstra, apesar da idade, estar sob o controle de suas criações ao mesmo tempo que se torna protagonista de suas histórias. Dirigindo e escrevendo filmes desde a década de 50, Varda está em constante movimento e não se limita em definir o que faz com palavras simples. Suas observações enquanto vai entendendo o projeto durante a própria viagem são perspicazes demais para entendermos de primeira, o que torna a experiência rica e complexa.

Já JR é um cineasta-incógnita. Sempre de óculos escuros e tendo estreado com um longa documental ("Women Are Heroes", em 2010), talvez seu curta mais conhecido seja Ellis (2015), onde Robert de Niro revisita sua origem de imigrante. JR também demonstra estar em constante movimento e faz sentido ele ser fascinado em fazer colagens. Seu objetivo é arquivar o mundo em paredes ou películas. Embora nunca faça muito sentido vê-lo junto de uma senhorzinha minúscula e cheia de estilo, aos poucos a combinação da "dupla dinâmica" vai fazendo algum sentido. Mas não muito.

A questão é que "Visages, Villages" se mostra um trabalho em andamento que foi filmado como um documentário de si mesmo. O que aquelas pessoas significam no todo do filme? Tudo é muito vago para encontrarmos alguma linha de raciocínio aí. Se trata de um filme itinerante, mas doce, tranquilo, com um pouquinho de tratamento narrativo e muito improviso.


# Apenas um Garoto em Nova York

Caloni, 2017-11-29 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

A sensação de Apenas um Garoto em Nova York é parecida com tantos outros. Uma mistura de drama social com romance misterioso. Com uma femme fatale mais realista. E uma relação familiar problemática. Relações de poder que são fachadas sociais... e no topo de tudo isso, um garoto tentando fazer a coisa certa. Quer dizer, pelo menos enquanto ele acredita existir a coisa certa. Ah, e o seu narrador, que o conhece tão profundamente que "seu" garoto se torna o personagem para o qual seu livro foi criado.

E tudo é narrado como um livro. Os acontecimentos são pincelados com uma trilha sonora que mistura o drama dos pseudo-apreciadores de arte com o imediatismo dos acontecimentos. Esta história pede violinos, batidas rítmicas e de vez em quando Bob Dylan. Tudo se ajusta à iluminação sóbria dos mais ricos e seus problemas de primeiro mundo.

E o problema do garoto que pertence aos 1% é não saber o que fazer com sua vida. Não é um problema incomum para um adolescente se descobrindo adulto. Ele se acha podado pelo pai e sente-se responsável pela mãe, que sofre de complexo bipolar e depressão. Possui um quase-relacionamento com uma garota que tem namorado. Quando descobre que seu pai está saindo com uma jovem estonteante, sua tendência inicial é tentar fazer aquela família voltar ao que parecia ser. E ele falha justamente por conta de nosso narrador. E, a despeito de nosso narrador ter feito uma descrição acurada no começo sobre como a cidade que respirava arte nos anos 70 foi perdendo sua alma aos poucos, transforma seu garoto em um clichê. Nova York não tem nada mais clichê que seus personagens do cinema virarem comparativos de um roteiro de Woody Allen.

Esta trama irá se desdobrar por um caminho que não é novo de uma forma ligeiramente diferente. E metalinguística, o que nunca deixa de ser interessante. Porém, para assistir de acordo este filme cabe dar uma olhada melhor em seus personagens, e nessas atuações.

Pegue Pierce Brosnan como exemplo inicial. Ele fez sua carreira compondo personagens canastrões. Seu perfil limitado e talento idem o tornou um dos piores James Bond da história, mas também serviu para que usássemos sua persona quando este envelhecesse. E hoje ele é especializado em posições de respeito a despeito de não ter talento algum. E logo surgem filmes como Mamma Mia!, O Escritor Fantasma, Invasão de Privacidade e quase faria O Jantar (Oren Moverman, 2017) se Richard Gere não fosse mais talentoso e não estivesse disponível. Seu Ethan Webb, pai do garoto, é um fracassado bilionário. Ele pega seu status e usa como a única ferramenta que tem. E por algum motivo isso o torna uma criatura digna de pena.

Já a de fato estonteante Kate Beckinsale e sua Johanna ("ah, as visões de Johanna!", como diria nosso narrador) é seu exato oposto. Sempre mantendo tudo sob controle mesmo quando não está, ela é humana, e bela, mas mais inteligente ainda. E seu único ponto fraco está na imaginação cativante, embora ainda oculta, de um simples garoto, filho de seu amante.

Kiersey Clemons e Jeff Bridges são coadjuvantes iniciais, e quando ambos possuem mais ou menos o mesmo tempo de tela a pseudo-namoradinha do garoto e o vizinho misterioso do garoto estão no mesmo nível de relevância... não. Bridges logo na primeira fala já deixa claro, mesmo sendo o caos em pessoa, que não está jogado ali ao acaso. Sua dicção e seus trejeitos o tornam parte integrante do cenário, de seu apartamento sem móveis e como o conselheiro ideal daquele garoto. Clemons, apesar do rosto bonitinho, é sim, a coadjuvante que consegue se colocar no lugar sempre (que é de lado).

E, por fim, o garoto, Thomas Webb (em uma brincadeira igualmente metalinguística com o diretor, Marc Webb), é interpretado por Callum Turner de uma maneira convincente até demais. O garoto faz o papel de ingênuo, mas sabemos que está blefando pelos seus micro-movimentos de rosto, de olhos, de mãos e de cabeça. Quando a estonteante Beckinsale o olha bem nos olhos e começa a lê-lo com a simplicidade que seu narrador nunca teria, ela ganha um pouco de poder. E entrega para ele, que usa mais tarde. Esse jogo de poder não era bem o que pareceria existir em um drama familiar como esse, mas são esses detalhes imprevisíveis que tornam "Apenas um Garoto..." um trabalho tão fascinante.

Igualmente fascinante, ou curioso, é o status de seus criadores, que brinca também com metalinguagem. Marc Webb, vindo dos curtas e da televisão, ganha fama com (500) Dias com Ela, volta para a televisão e é escolhido para o segundo reboot do Homem-Aranha. Este é seu terceiro drama, se contarmos O Espetacular Homem-Aranha 2: A Ameaça de Electro e Um Laço de Amor como os dois primeiros. Webb se sente uma versão pobre de Adaptação, o roteiro de Charlie Kaufman que explora sua própria persona.

Já o roteirista, Allan Loeb, foi se especializando em drama aos poucos. Vindo da comédia (exceção: Wall Street: O Dinheiro Nunca Dorme), seu timing dramático se alia ao status cômico de seus momentos, que nunca se definem. Seu humor aqui é ocasional, sutil, e serve apenas para tornar seus personagens mais reais. Todos buscam serem melhores versões de si mesmos. E todos falham. O "todos falham" é o drama, o "todos buscam" é o romance, e no meio existe o tal do meio-termo: quando cedo ou tarde todos entendem que viviam fora da realidade.

E a maior distância do mundo é a que existe entre a realidade que achamos que vivemos e a realidade de fato. E quem disse isso não foi nenhum desses neuróticos personagens. Adivinhar quem é se torna um passatempo divertido se você for ver o filme.


# Maníaco

Caloni, 2017-11-30 cinema movies [up] [copy]

Estou em uma sequência foda de gore. E estamos apenas no segundo. Depois de Cronenberg e seu clássico techno-obscuro A Mosca, este bem mais recente Maníaco, também uma espécie de remake, e estrelado parcialmente por Elijah Wood e parcialmente por sua voz, nos apresenta o ponto de vista mais fascinante de toda história de serial killers: o ponto de vista dele mesmo.

O fato do diretor Franck Khalfoun saber muito de enquadramento e de cinema ajuda. Rebuscando suas origens conceituais no primeiro terror da história -- O Gabinete do Dr. Caligari -- o filme nos apresenta o personagem de Elijah do ponto de vista de seus olhos. Dessa forma, a câmera são seus olhos. Mas não é um plano-sequência, pois há cortes (como na vida real, aliás, quando piscamos). E o que vemos são suas vítimas e a forma com que ele se aproxima delas, de como respira ofegante quando se aproxima, de como sua voz é vulnerável e doce, e de que por isso ninguém desconfiaria de um rapaz bonito e pequeno como um assassino sanguinário.

Obcecado por manequins, ele possui elementos em sua traumática formação que obviamente fazem ecos de Psicose. Os detalhes vamos descobrindo aos poucos, mas estes vão sendo preenchidos organicamente. O filme faz uma espécie de homenagem aos filmes do gênero, pois não tem muito o que inovar em sua narrativa. Apenas em sua estrutura.

E sua estrutura é cativante. Com essa técnica de mostrar a primeira pessoa ainda podemos ver os delírios do personagem de Elijah, que confunde suas manequins com suas vítimas, e vice-versa. Seu trauma de infância é uma contundente mensagem de como o abuso infantil pode tornar as pessoas prisioneiras eternas da objetificação das pessoas.

Ainda sobre a estrutura, a câmera vez ou outra faz um giro em 180 graus, saindo da primeira pessoa para a terceira, o que é uma jogada inteligente para mostrar que a criança aprisionada no corpo deste maníaco apenas observa enquanto ele, a figura paterna que busca incessantemente ter a maior quantidade de mulheres possível, guardadas em seu saguão do terror.

O gore do filme é uma mistura de trash com psicótico. Ele não é gratuito. Assim como os espelhos não são gratuitos, pois oferecem uma maneira de olharmos de vez em quando para as expressões no rosto do psicopata que vamos levando como nós mesmos dentro do filme. A sensação é estranha quando ele se encontra pela primeira vez com Anna, a belíssima Nora Arnezeder. Ela é o amor perfeito e ao mesmo tempo a vítima perfeita. É trágico e tocante ao mesmo tempo.

Elijah consegue dar sua interpretação fascinante graças parte em sua voz, e parte em sua expressão de aterrorizado, petrificado ou fascinado. Ele é um lunático, e a único aspecto estranho na história é como as pessoas não percebem isso. Talvez seja a forma como nós mesmo conseguimos sobreviver neste mundo cheio de regras sociais. Somos malucos por dentro e temos uma certa proteção enquanto as pessoas não desconfiarem. Espero que não desconfiem. Assim posso ganhar a confiança delas e me fazer passar por alguém normal. Agora sei como o espectador comum se sente. É mais ou menos como eu me sentia quando ligava para essas coisas.


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