# Entre Irmãs
Caloni, 2017-10-02 cinemaqui cinema todo movies [up] [copy]Entre Irmãs é um filme de época feito também em outra época. Uma época mais ingênua, onde filmes como esse não seriam tão clichês, tão bregas. Infelizmente, para o público de hoje, clichê e brega é exatamente o que ele se propõe.
E longo. Muito longo.
A história você já conhece. Duas irmãs separadas pelo destino, cada uma delas vivendo uma vida diferente e oposta. Órfãs desde pequena, elas vêm de uma infância dura, criadas pela tia. Tornam-se costureiras como ela, e como uma delas diz, "costureira não é uma coisa que você pode deixar de ser". E assim o são, cada uma a sua maneira. Uma vira mulher do cangaceiro mais procurado do Nordeste. Outra vira membro da alta sociedade de Fortaleza.
Elas perdem a comunicação por muito tempo, e o tempo do filme corre muito bem, em lapsos, pequenos saltos que vão dando a impressão de meses e anos. A única forma de uma saber da outra é lendo o jornal. E ambas aparecem nele. Em seções diferentes, claro. Uma nas fofocas da burguesia e outra é manchete junto de seu marido, Carcará, o cangaceiro sanguinário que tem fama de arrancar os olhos de suas vítimas.
Mas na história você vai ficar sabendo, se já não descobriu, que Carcará tem seus motivos para fazer o que faz. Afinal de contas, ele e sua gangue são os mocinhos, e como todos mocinhos sempre têm seus nobres motivos para derrubar sangue. E quando lhes falta um motivo, ainda resta a desculpa da necessidade da dureza de seu exército, em briga constante com o coronelismo do Sertão, vivendo sua liberdade sofrida com pouca água.
O Sertão, aliás, é filmado com um tom sépia escuro que favorece a dramatização acima do realismo, o que faz todo sentido neste drama romântico e teatral. Parece que estamos assistindo a uma reconstrução estilizada do livro onde foi baseado o filme. Do outro lado, na cidade "grande", Fortaleza carece de cenários que a estabeleça como metrópole da época, se mantendo sempre sob fachadas que sabemos que é papelão cinematográfico. A qualidade de produção de uma novela.
Ainda nos detalhes técnicos, é curioso notar como a irmã que vira burguesa embranquece sua cara assim que adentra o teto da família Afonso Coelho. O uso inspirado da iluminação nos figurinos o tornam mais dignos, assim como a maquiagem. Note como fica o rosto da irmã cangaceira depois de lutar por muito tempo, sujo e cheio de sequelas do castigo solar.
Se a direção de arte faz valer cada centavo -- embora fique claro que são poucos centavos -- o mesmo não se pode dizer da trilha sonora. Não que ela seja barata. Muito pelo contrário. A música de Gabriel Ferreira é atordoantemente expansiva. Seu entusiasmo sem limites em pontuar cada cena, cada sorriso, cada choro ou batalha a torna supérflua e irritante. E paradoxalmente ela é responsável por aumentar o sono das quase três horas de projeção.
Já quem, de maneira alguma, prejudica o filme é seu elenco. Afiado, harmonioso e com alguns bons momentos desperdiçados pelo roteiro, o trio formado por Marjorie Estiano, Nanda Costa e Julio Machado mereceria material melhor. Se Julio, que faz Carcará, convence desde a primeira cena (e a estende) como um homem que vive a única opção de sobrevivência que o destino lhe ofertou, as irmãs, vividas por Marjorie e Nanda, reafirmam suas personalidades através das expressões no rosto e no olhar que são muito mais sutis que os diálogos expositivos, que já revelam todos os pensamentos e sentimentos dos personagens antes que seja dada a chance disso ser revelado simplesmente olhando para eles. Como quando a irmã que fica cuidando da tia comenta que ela anda doente, apenas para que na cena seguinte ela volte para casa e a tia comece a tossir copiosamente.
Esse é apenas um dos primeiros exemplos de um roteiro burocrático, que apenas segue o que lhe é esperado. Como dividir as atenções entre as irmãs (como o título sugere) e fazer rimas previsíveis com o que vai acontecendo com ambas. Como o filme é longo o espectador tem a chance de aprender durante o filme. Se uma coisa acontece a uma irmã, pode apostar com seu vizinho de poltrona que algo parecido (ou idêntico) irá acontecer com a irmã. E logo na próxima cena. No terceiro ato, quando acontece o esperado (a essa altura você já sabe), a narrativa soa ainda mais preguiçosa, pois vai apenas jogando os eventos em uma ordem simples e sem emoção. Exceto, claro, a já citada trilha sonora estridente.
O diretor Breno Silveira também mereceria material melhor. Sem conseguir aplicar o seu golpe de sorte de estreia em longas com o milagre "2 Filhos de Francisco", cambaleia um confuso "Gonzaga: De Pai pra Filho" e agora entrega este "Entre Irmãs" como sua descida derradeira. Aparentemente lhe falta história à altura, e um roteiro menos criativo. Mas não técnica. O filme é um prazer visual desprovido de alma. Se "2 Filhos" é pura emoção e técnica competente, "Entre Irmãs" é pura técnica com emoção competente. E você já viu alguma vez na vida uma emoção ser "competente"?
# Steins;Gate
Caloni, 2017-10-05 cinema animes cinema series [up] [copy]Não é fácil contar bem uma história de viagem no tempo. Mais difícil ainda é conseguir fazer ela ter sentido. E mais difícil ainda é conseguir que o espectador sinta o movimento espaço/tempo dos personagens, a apoteose de todo criador de sci-fi desta linha. Poucos devem ter chegado a essa proeza: De Volta para o Futuro (a trilogia), A Máquina do Tempo, Os 12 Macacos, Efeito Borboleta, O Predestinado, Primer, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban. E Steins;Gate, que se esforça em homenagear todos os exemplos citados e ainda superá-los em inventividade. Uma viagem e tanto.
A história da série começa no seu episódio 1, entitulado "Prologue to the Beginning and End" (Prólogo para o Começo e Fim), o que deve servir de dicas para os mais atentos e aviso para os mais incautos que me acusarem se cometer o "sacrilégio" de soltar spoilers sem avisar. Bom, a série já começa com vários deles. Incluindo a primeira viagem no tempo, inexplicável, onde uma garota vista como assassinada pelo auto-entitulado "cientista louco" Rintaro Okabe, que é um moleque de 18 anos de jaleco, em seguida ao envio de uma mensagem de texto pelo seu celular, é vista viva novamente. Paradoxal. Isso junto de uma série de eventos que só farão sentido no episódio final, o vigésimo-quarto, constituem a estrutura geral de uma longa história que percorre personagens criados para anime.
No entanto, a história não é original. Baseada em um uma "visual novel", um video-game onde os jogadores escolhem a sequência da história, esta adaptação utiliza a mesma ideia construída para o jogo, que é também um fiapo de uma das possíveis teorias científicas a respeito da realidade que vivemos. A ideia é de que existem diferentes linhas do tempo. Infinitas. Umas são mais próximas que as outras, mas basicamente todas seguem uma sequência definida pelas leis da física. A menos, é claro, que você volte no tempo e altere variáveis, no melhor estilo efeito-borboleta, onde uma minúscula informação sobre o tempo, como o bater de asas de uma borboleta, pode gerar drásticas mudanças no futuro, como um tornado do outro lado do mundo.
A ideia por trás de "Steins;Gate" é muito boa, e pode ser melhor explorada em outros trabalhos. Ela permite uma flexibilidade incomensurável aos roteiristas, que a extrapolam para simplesmente contar uma história de anime (onde chegamos no primeiro defeito da série), com reviravoltas feitas para alongar a história, mas que não servem para mover os personagens (como a mudança de sexo de certa personagem), ou eventos que recebem explicações quaisquer, mas que no fundo não explicam nada (como Okabe consegue realizar as diferentes manobras de viagem no tempo para alterar certo evento no futuro, já que está sob ameaça de morte?). Você se acostuma com o ritmo desequilibrado da primeira metade e o lenga-lenga eventual da "moe" permanente da série, Mayuri, que repete o nome Okabe dois milhões de vezes. Você se acostuma porque vale a pena. Afinal de contas, olhe como o figurino de Mayuri é lindamente estilizado como de época, com detalhes como babados e um chapéu recortado, que rementem diretamente ao fim trágico que é referenciado em A Máquina do Tempo (H. G. Wells, 1895).
Ao mesmo tempo, é impossível não se deixar levar pelo tom jocoso e adolescente de Rintaro Okabe, mesmo sabendo que ele representa provavelmente algo mais complexo do que a série tenta mostrar. Novos membros se acumulam rapidamente em seu "centro de pesquisa", onde um inusitado micro-ondas consegue fazer uma banana voltar no tempo, embora em estado gelatinoso e imprópria para consumo. Ao mesmo tempo, mensagens de SMS de 36 bytes conseguem ser manipuladas para viajar no tempo, graças à ajuda da assistente Kurisu Makise, a mesma que é vista morta no episódio piloto. Juntos eles tentam entender e manipular uma descoberta em seu estágio-larva. E de maneira brilhante, esta vai se parecendo, cada vez mais próxima do fim, uma referência invertida de Os 12 Macacos, onde um futuro distópico poderia ser revertido entendendo qual foi o primeiro voo que gerou tudo isso.
Você vê, há detalhes demais que vão se emaranhando durante a longa série para conseguir despertar no espectador, bem aos poucos, a noção de física que os criadores querem passar, além do gosto por obras do gênero. Inteligentemente os personagens da série consegue descobrir algumas coisas, como o criativo e conveniente "efeito Reading Steiner" do protagonista, mas não conseguem descobrir tudo, como funciona a consciência das mesmas pessoas em outras linhas do tempo. E com um pequeno toque de magia, pequenas coincidências ocorrem para que os roteiristas consigam focar nos sentimentos em vez da trama, que é fraca e cheia de furos e incongruências. Às vezes essas falhas são feitas apressadamente para conseguir imprimir mais ritmo à história (como as repetidas voltas de Okabe para evitar um acontecimento trágico), e outras vezes elas apenas existem para gerar humor (como as brincadeiras em torno da inusitada filha de um certo personagem).
Apesar do evento trágico que divide "Steins;Gate" entre comédia/drama, a mudança não acontece com competência, e o diretor Yuzuru Tachikawa (um dos 12 da série) não realiza uma transição que é difícil por natureza, assim como não consegue manter a suspensão de descrença após mostrar a facilidade com que o cientista maluco consegue voltar várias vezes ao tempo, além da conveniente revelação sobre a inevitabilidade de certos eventos de acontecerem.
Seja como for, é na segunda metade que a série brilha, e brilha ainda mais nos três últimos episódios (efetivos, não estou contando o episódio bônus da viagem a Las Vegas). Como os trabalhos mais ambiciosos do gênero, a história parece ter sido criada apenas para seu clímax, que brinca com os mesmos conceitos (mais uma homenagem) vistos na trilogia De Volta para o Futuro. Este clímax parece corrido demais, e se para os criadores tudo faz sentido, para o espectador não há pistas/recompensas o suficiente que nos faça voltar ao episódio piloto com certa confiança. De certa forma, esta acaba sendo uma referência mais que apropriada de Primer, um filme que te fará dar nós na cabeça para compreendê-lo.
Ainda que apresentado de forma atribulada, o universo de "Steins;Gate" consegue deixar seu charmoso traço com o detalhe mais poético do "longa" e do próprio conceito de viagem no tempo que eu me lembro: as memórias/sonhos das diferentes linhas do tempo. É aberta a narrativa do amor represado apenas para ter esse efeito visto em seus personagens, e é uma aposta certeira. O momento mais marcante para mim na série não é a morte de determinada personagem, mas uma conversa virada para a janela, inconsequente, mas que termina em um beijo. Um beijo que será refletido na imaginação do espectador que se deixar levar pelo romantismo e pela catarse de fã do episódio-bônus (25). A última cena e a última fala nesse caso merecem destaque.
Não, não é fácil contar bem uma história de viagem no tempo. E difícil também é consegui-la ter sentido. E dificílimo é conseguir nos fazer sentir o movimento quântico de seus personagens, o ápice de todo filme sci-fi que se respeite. Quase nenhum deles deve ter conseguido chegar nesse nível. Ainda bem que "Steins;Gate" conhece o seu lugar, e homenageia as obras certas, enquanto tenta alcançá-los em inventividade. Percebeu a referência?
# Inscrições para o 14o. CCPPBRSP
Caloni, 2017-10-06 ccppbr [up] [copy]Como já foi avisado anteriormente (mas agora com local definido), nosso próximo encontro acontecerá em São Paulo (capital) dia 25 de Novembro de 2017 (sábado), no Station Vila Olímpia. Teremos uma sala equipada para palestras e coffe-break de manhã e de tarde. Mais detalhes no hot site do evento.
As inscrições pagas estão abertas! O valor único por participante é de R$ 50 reais, o que lhe dará direito a:
Você pode efetuar o pagamento por PagSeguro ou Bitcoins. Para o primeiro apenas efetue o pagamento e seu email será cadastrado como participante. Para mais de um participante efetue quantos pagamentos for necessário. Para o segundo efetue o pagamento com o preço de venda em reais do BTC equivalente a R$ 50 reais no dia da transação e envie seu nome, email e link da transação para wanderley@caloni.com.br. Para mais de um participante efetue o valor equivalente e nos informe os nomes e emails dos participantes.
Basicamente isso é o que temos de informação. Em breve a programação será divulgada. Fique de olho!
E nos vemos lá =)
# A Guerra dos Sexos
Caloni, 2017-10-11 cinemaqui cinema todo movies [up] [copy]Guerra dos Sexos é uma viagem leve, mas não inconsequente, pelos fascinantes anos 70. Nessa viagem achamos um episódio na História igualmente fascinante que envolve tênis e feminismo. E se tênis é um embate de egos, o feminismo é um embate de forças. Forças essas que, se hoje encontramos um certo equilíbrio entre gêneros, naquele tempo eles ainda estavam por se formar.
A heroína desta história é Billie Jean "King", a tenista no topo das competições e que lidera junto de sua agente um movimento contra a gritante diferença dos prêmios entre as categorias masculina e feminina no torneios. Iniciando uma nova liga com ajuda de patrocínio (e uma das aberrações da época era uma fábrica de cigarros patrocinar esportes) elas logo percebem que não precisam mais se sujeitar à visão do establishment (o establishment no caso são homens anos 60 fumando e bebendo em uma sala escura). Mas há questões ainda mais profundas, como a posição da mulher na sociedade e como a orientação sexual era um problema imensamente pior do que é hoje.
E o que cativa em Guerra dos Sexos é o uso de seus personagens para com isso estabelecer um mundo diversificado, onde não existem apenas dois lados. Enquanto Billie Jean representa a mulher independente, que sustenta sua família com sua profissão, há uma outra tenista que serve de exemplo oposto, é casada, moralista e com direito a um bebê no colo. E enquanto Bobby Riggs, o seu tenista "rival", ou o que ele representa no plano geral das coisas, se proclama o clássico porco chauvinista, em casa ele é sustentado por sua esposa, insatisfeita com sua maneira aventureira de viver.
Aos poucos vemos que as tentativas em dinamizar a narrativa clássica de "elas contra eles" cria uma atmosfera convincente e divertida. Isso em partes se deve a uma excepcional direção de arte, que usa e abusa das referências da época. Junto do saudoso tom granulado da fotografia, somos apresentados a pequenas revoluções ou contra-revoluções, como o uso de uniformes coloridos das tenistas ou um uniforme nada confortável de "sugar daddy", destacando de maneira eficaz as forças conservadoras ainda agindo na era do amor livre.
Mas a maior parte da diversão fica mesmo por conta desses dois atores extremamente à vontade em suas personas estilizadas. Assim, a escolha de Steve Carrel de uma pessoa que diz barbaridades machistas apenas por diversão funciona porque conhecemos o ator, e ele consegue convencer como ser humano, e aqui está mais do que provado, com seu personagem fazendo parte de um estereótipo horrível. Mas isso funciona também porque, no final das contas, vemos que ele é apenas um coitado em fim de carreira, mas que acaba virando um instrumento para as mudanças sociais que acontecerão, queira ele ou não. E Carrel carrega uma empatia essencial para que não odiemos o sujeito pelo seu modo egocêntrico de se divertir. Dessa forma, entendemos seu papel na História, e mesmo que discordemos desse tipo de ser humano é inevitável que ele fizesse parte das transformações sociais que viriam. Sem figuras como ele talvez não houvesse mudança alguma. Afinal de contas, qual o incentivo?
Ao mesmo tempo, e do lado oposto, a personagem de Emma Stone representa um desafio na carreira da atriz, que tenta sair de sua zona de conforto. Conhecida como a queridinha, ou a vadia bem comportada, dependendo do ângulo que você olha, a atriz expulsa sua beleza para o papel (tarefa ingrata e impossível, ainda mais comparando com a verdadeira Billie Jean). É interessante notar como ela também aos poucos se torna um instrumento de mudança, direta ou indiretamente. No decorrer da história percebemos que ela inclusive é a única capaz deste feito. É o destino, como alguém profeticamente brinca. E Stone está focada e transformada. Olhe para o modo dela curvar seus ombros, em um misto de vergonha e dureza ao carregar o peso de quem ela verdadeiramente é. Olhe como ela se esconde timidamente por um fiapo de franja, ou até seu novo modo de mover seus lábios, franzindo sua testa. Ela não está brincando. Talvez seja a pessoa que está levando este filme mais a sério. É sua postura no filme inteiro que sintetiza seu momento de catarse, sozinha no vestiário. É quando diálogos são desnecessários que sua metáfora da mulher independente que quer realizar o impossível para provar um ponto se faz mais presente. E inesquecível.
Quem embala tudo isso em um formato palatável ao grande público -- e o que dá impressão inquestionável deste ser um "filme de Oscar" -- é uma trilha sonora insossa, convencional, que apenas se libera quando auxiliada pelas sempre ótimas escolhas de músicas da época. E Stone e sua cabeleireira/amante na discoteca se torna a música e o momento mais marcante da discografia.
Já quem enquadra esse mini-retrato de uma época de uma forma mais humana, realista e intimista são os diretores, Jonathan Dayton e Valerie Faris (Pequena Miss Sunshine), que concebem belas transições de cena -- Como de uma máquina de costura, símbolo da submissão feminina, para uma vitrola em uma rádio, símbolo que agora elas têm uma voz. Eles também conseguem uma sensação curiosa de estarmos presenciando a História e ao mesmo tempo histórias de pessoas reais, em um misto de quadros próximos de Billie Jean, câmera tremida, e o frenesi da imprensa, das rádios, TVs e do grande escalão de senhores poderosos em salas opulentas (e não apenas homens, como notamos no hilário quadro da esposa de Carrel, que como ele diz para o filho, "está sempre de olho em nós").
E essa sensação das pessoas em uma sociedade estarem sempre de olho nas celebridades é bem presente. E necessária. Só assim para percebermos o verdadeiro desafio daquele dia naquela quadra. É assim com os melhores filmes de boxe e tênis. Quando o confronto final começa, é mais importante o que aprendemos sobre os adversários, seus medos, desafios e dramas, do que a luta ou a partida. Guerra dos Sexos consegue ser leve até o final, mas nunca deixa isso de lado.
# El Pampero
Caloni, 2017-10-11 cinemaqui cinema todo movies [up] [copy]Um homem cansado de sofrer com sua doença aceita seu destino e parte para o mar. Uma mulher acuada diante das circunstâncias tenta fugir do destino. Quando um policial entra na história o que está flutuando em águas calmas vai aos poucos se agitando, conforme a tempestade vem chegando. El Pampero, ou "O Mimo", é o encontro tenso e dramático em uma paisagem entre duas fronteiras (Argentina e Uruguai), e onde as regras são frouxas o suficiente para questionarmos se tudo aquilo não é uma metáfora para a vida.
Talvez não seja. Dirigido por Matías Lucchesi e escrito por ele e Gonzalo Salaya, El Pampero utiliza pouquíssimos elementos, como as figuras já citadas da doença e da mulher misteriosa, além do policial mau-caráter, e os repete para tentar extrair daí um relacionamento que vai se formando por compaixão e um certo companheirismo universal quando encontramos pessoas que precisam de ajuda.
Claro que o filme é sobre todo esse desenvolvimento, o que quer dizer que assisti-lo irá se tornar uma atividade muitas vezes enfadonha se você está em busca de algo mais agitado. Há poucos diálogos, e eles sequer são necessários, já que os olhares e os movimentos dentro de um barco são suficientes para entendermos o que está acontecendo (ou ao menos desconfiar).
Julio Chávez faz Fernando, um homem que toma remédios constantemente mas não consegue afastar a dor do seu corpo que anuncia seus últimos dias. Sua atuação é ritmada, lenta, compassada. Sentimos a dificuldade até do sujeito respirar para conseguirmos assim imaginar como deve ser difícil para ele ir buscar dois galões da água. Sua decisão de guardar sua bússola em uma caixa e partir para o mar, deixando as mensagens do filho na secretária eletrônica (alguém ainda tem isso?) não-respondidas é de um simbolismo tocante, mas nunca dramatizado para fazer chorar. É um fato, simplesmente.
Já Pilar Gamboa como a misteriosa Carla é também puro realismo. Ela se sente acuada e tenta analisar qual a melhor saída. Entre dois homens no meio do nada, ela precisa decidir astutamente onde conseguir apoio, e estando do lado de uma pessoa seriamente debilitada por uma doença desconhecida não facilita para ela.
E César Troncoso (Elis) faz Marcos, a parte mais caricata da história, e a mais simbólica: quando uma autoridade (surpresa!) se acha no direito de mandar nas pessoas. Policial de fronteira, se espanta quando o amigo deixa de cumprir o ritual de passar um tempo com ele, quando logo vemos pelos olhares de Fernando que Marcos é menos seu amigo do que uma passagem obrigatória para seguir em paz. São os diálogos entre Marcos e Fernando os mais tensos, e são eles que conseguem dinamizar um pouco a narrativa.
Porém, perdido em mesmices, El Pampero nunca de fato consegue dizer a que veio, ou se mostra decepcionante quando revela seu clímax. Sacrificando a sutileza mostrada até agora, com a câmera balançando no ritmo de um barco praticamente inerte e um ambiente fechado e claustofóbico (seja dentro do barco ou em meio a um estreiro rio cercado de árvores), o filme não sabe dosar com propriedade sutilezas e exageros, preferindo se manter como o bom e velho thriller que estamos acostumados a ver, com uma simples história, um simples objetivo e uma simples conclusão.
Não que isso seja ruim. É simplesmente mais do mesmo embalado em uma história simples demais para ser parte de um longa.
# Uma Razão Para Recomeçar
Caloni, 2017-10-14 cinemaqui cinema todo movies [up] [copy]Uma Razão Para Recomeçar, se você ainda não sabe, vou te poupar um tempo ou te dar uma dica: ele tem aquele formato que te faz chorar em alguns momentos e que te dá esperança no final. Agora, dependendo de você, a esperança pode ser uma mensagem otimista sobre a vida ou a esperança que o filme acabe. No meu caso foi para que o filme acabasse. E, adivinha só? Minhas preces foram atendidas!
Agora, se você gostaria de sair um pouco mais feliz da sala de cinema do que como entrou, este filme pode te ajudar a ver as coisas sob outra perspectiva. Eu não o chamaria de filme fofo, exatamente. Mas ele flerta com a possibilidade de ser. Mas também pode ser que dê vontade de vomitar. Desculpe. Este filme, assim como a vida, pode ser um pouquinho difícil de classificar como exatamente bom ou ruim.
O motivo disso para mim é que ele se esforça muito para que tudo saia perfeitamente. E esse esforço me deixa sem jeito de criticá-lo. Ele tem bons momentos? Na verdade não. Mas ele finge bem. Ele quase entrega um sentimento acima dos básicos "ficar triste" ou "ficar feliz". Ele tem um narrador bem intencionado e de bom humor que não se incomoda com o fato de suas palavras apenas verbalizarem o que vemos na tela. Ah, sim, fora o prólogo, em que ele termina dizendo que a coisa mais importante da vida é... prestem atenção aqui... "vivê-la". Profundo, não?
Ainda assim é difícil dizer o quão horrível este filme é quando tudo o que ele faz tenta mostrar o quanto ele é legal. Ele tem piadas manjadas meticulosamente engraçadinhas. Como aquela do amigo que é gamado na melhor amiga da sua mulher e sempre recebe gelo. Por anos. E ele também tem aqueles momentos especiais na vida de qualquer um que do nosso ponto de vista de espectador soa como um álbum de família ao vivo. Como quando o mocinho vai dizer ao seu pai que ele vai ser avô. A felicidade e tristeza dos personagens está contida em pequenos momentos que vão resumindo anos da vida deste casal que se conheceu quando era criança.
Ops, já revelei pelo menos uma surpresa. Sim, ela vai ficar grávida. Essa e outras surpresas o esperam neste romance que começa como a vida: clichê, tem umas reviravoltas e caminha para o previsível. Não se preocupe: não vou revelar as outras surpresas. Seria pesado demais você assistir ao filme já sabendo os únicos eventos que dão a impressão de estar vendo algo inesperado. Tudo bem que o inesperado é mostrado da maneira mais padrão possível, mas calma lá. Há acontecimentos que você já viu na vida que talvez nunca tenha visto sendo filmados.
"A vida é irônica". Esta seria uma frase melhor para nos introduzir à história. Já dizer que "a coisa mais importante da vida é vivê-la", pra ser sincero, me embrulha o estômago. E esse não é um bom sentimento para começar um filme.
E nesse momento você deve estar se perguntando: "onde está a crítica?". E os detalhes sobre direção, atuações, roteiro, direção de arte? Fotografia? Sim, ela fica mais pálida nos momentos mais tristes. Tons de um azul congelante. Chuvas fortes também acompanham momentos de virada dos personagens, para o bem ou para o mal. E pode apostar que pelo menos uma vez você verá um deles indo pra chuva só pra se molhar.
Mas não vou criticar mais nada. O diretor estreante (o ator encomendado Drew Waters), os roteiristas (também estreantes), a equipe e o elenco estão dando o seu melhor. Foi uma boa ideia escalar um casal jovem e desconhecido para esses papeis. Pelo menos as caras são novas. Convencem.
Até o criador desta história não merece ser apunhalado. Ela é triste o suficiente para nos lembrar que possivelmente várias pessoas já passaram por agrúrias parecidas na vida real, e tentar dar uma guinada feliz no meio da vida acontecendo é uma decisão corajosa. Então vamos lá, eles merecem algum crédito! Imaginei até algumas boas frases de auto-ajuda para resumir o que é "Uma Razão para Recomeçar". "Desconhecemos o poder do destino", "Deus dá o frio conforme o cobertor". Ah, e "A vida é um mistério". Quer chorar no cinema?
# My Little Pony: O Filme
Caloni, 2017-10-16 cinema todo movies [up] [copy]"My Little Pony: O Filme" continua sendo tudo que os fãs de My Little Pony poderiam querer mais um pouco. E estou falando até dos fãs adultos da série de animação. Applejack, Rainbow Dash e suas amigas continuam usando o poder da amizade para enfrentar todos os perigos e transformar seus inimigos em leais aliados.
Tudo isso, contudo, não faz muito sentido na narrativa épica onde as princesas são congeladas, para que ao juntar todas, elas transformem um cajado de um vilão das trevas que irá lhe dar todo o poder para fazer maldades. No caminho para a solução as poneizinhas que já conhecemos encontram pilantras, piratas e até míticos hipogrifos para salvar o reino de Equestria (e todos os outros reinos). Apenas com o poder da amizade esses cavalinhos em miniatura conseguem transformar todos os corações. Talvez meu coração esteja duro demais, mas não se engane: eu também entendi o poder da amizade durante o filme =)
A questão é que não há muito suspense, nem sustos, em uma versão em longa metragem do que já vimos no seriado. Todos os conflitos são rapidamente resolvidos, para que as crianças não tenham medo de dormir à noite. Apenas um bebê chorou durante minha sessão. As crianças estavam entretidas com as piadinhas espirituosas dessa turma divertida.
E como não se entreter? Elas vão narrando o que vai acontecendo na história de maneira bem-humorada. O uso de metalinguagem é a desculpa de My Little Pony para não precisar se esforçar muito e contar alguma história original, mas apenas deixar as meninas seguir um roteiro de video-game e... adivinhem: voltar para casa sãs e salvas. Ao bom som de uma Sia transformada em pônei.
# Human Flow
Caloni, 2017-10-20 cinemaqui mostra cinema todo movies [up] [copy]Human Flow é um documentário em seu formato clássico. Provavelmente as 300 horas de filmagens do projeto servirão de acervo sobre a grande imigração de nosso tempo. E provavelmente as pouco mais de duas horas de filme serão lembradas dessa forma, também.
Isso porque o diretor Ai Weiwei, homenageado desta quadragésima-primeira Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, não está dirigindo através de um filtro autoral. O que é curioso, já que Weiwei é ele próprio, podemos dizer, um imigrante. Foragido de seu país natal, ele é um refugiado na Alemanha, que ironicamente é o destino final de milhões de refugiados que chegam na Europa todos os anos pelo Mar Mediterrâneo. Mas infelizmente as fronteiras estão fechadas para esses povos.
Human Flow trata bastante sobre refugiados, mas seu núcleo tenta ser mais amplo. É sobre migração humana. A larga escala em que ela acontece hoje em dia, seja por guerras, fome, miséria, ou até melhores oportunidades, foi o elemento-chave que fez com que Weiwei se aventurasse em contar essa história em escala global, em mais de 20 tribos temporárias espalhadas em áreas neutras do globo.
O filme vai capturar seu senso estético desde o começo. Usando uma fotografia límpida de regiões com paisagens diversas e estonteantes, o filtro da realidade aqui é quase nenhum. Pelo menos no que diz respeito às cores. Elas são vivas vindas de um trabalho que lembra programas da National Geographics e possui tomadas que lembram os noticiários do dia-a-dia. Isso até atrapalha um pouco a dramatização, já que a beleza dos lugares por onde passamos não contrasta com a realidade humana por aqueles lados, mas a complementa. Isso porque muitos fogem de um mal invisível. As pessoas possuem abrigos, dizem, de má qualidade. Mas apenas dizem. Nunca vemos nada de fato alarmante.
O que nos leva para a investigação de quais seriam as reais intenções de seu criador. Filmado muitas vezes com o diretor dentro do quadro, segurando sua câmera, ele vira uma persona, ou se personifica, contando uma história que arrisca ter um herói (o diretor refugiado dirigindo bravamente um filme), o que soa como o exato oposto de uma brincadeira no filme, quando ele propõe a um refugiado anônimo de trocarem passaportes. "Respeito", ele diz, como se respeitasse a situação dessas pessoas. Mas as histórias não batem aqui. Weiwei se enxerga como figura pertinente na paisagem dos refugiados mais do que os próprio refugiados.
Outro fator estético marcante deste filme é sua trilha sonora. Naturalmente minimalista, nunca tenta exaltar os acontecimentos na tela, mas acompanhá-los de maneira reflexiva, solene e perene. Juntos, som e imagem realizam um passeio por cima e em torno de pessoas. Vê-las de cima frequentemente as transformam em curiosidades do planeta, meros adornos cuja função é exaltar a poesia da situação, ainda que trágica (e o filme sugestivamente usa diversos trechos de poetas de origem no Oriente Médio).
Excessivamente longo para um filme que possui um fiapo de narrativa, Human Flow é um filme necessário. Se foi a melhor maneira de fazê-lo, não se sabe. Há um desafio implícito quando se diz "vou fazer um documentário que envolve lugares isolados em várias partes do mundo". Esse desafio foi transposto com elegência e leveza. Tanta leveza que talvez o peso da migração precária dessas pessoas ficaram no caminho. Mas quem sabe esteja no resto do material que não foi para o filme.
# O Motorista de Táxi
Caloni, 2017-10-20 cinemaqui cinema todo movies [up] [copy]O Motorista de Táxi é um filme feito para grandes públicos, mesmo com cenas fortes, mas necessárias, pela frente. Em troca há doçura, aventura, emoções fáceis que estão meticulosamente manipuladas para aquele espectador que vai sair do cinema pensativo, mas realizado.
Isso porque a história, baseada em fatos, consegue entregar uma conclusão onde não há. Aliás, o próprio tema, mal utilizado, poderia convergir para um universo mais realista e mais próximo do radicalismo político e suas pesadas conseqüências. Como os dias de hoje.
Ou até a própria história da outra Coreia, a do Norte. Sabe aquela que deu errado, e continua dando errado? Nada disso. Aqui estamos no Sul, já completamente alienada de sua irmã radical, e a morte de um ditador dá origem ao processo de preenchimento de um vácuo de poder com outra ditadura. Os universitários, já educados o suficiente, vão às ruas protestar. Repórteres, locais ou internacionais, estão proibidos de pisar nas regiões mais quentes do conflito entre população e as irracionais forças do Estado.
E é nesse momento que um taxista acidental irá brilhar perante a História.
O grande público adora isso. A moral emerge das pessoas mais simples. Elas são massacradas pelo sistema, mas ainda assim descobrem no caminho a fazer a coisa certa. E ninguém mais alheio aos protestos de manifestantes que um velho taxista viúvo, quebrado financeiramente e tendo que sustentar sua pequena filha com os esparsos trocados que consegue de uma população que não tem mais dinheiro rodando em ruas que já não possuem mais segurança.
E, apesar de tudo, ele começa o filme rindo. Cantando. Ele gosta de música. Anotado. Isso será interessante mais pra frente. E durante o filme, note como a trilha sonora convencional tenta arrancar emoção do espectador à força. Lembra um filme antigo de fato, e não um atual que nos leva para 1980.
Nosso amigo taxista não entende a falta de cuidado das pessoas, correndo pelas ruas sitiadas de Seul, fugindo do exército e suas bombas de gás. E fazendo ele quebrar seu retrovisor. Há violência, mas não muita. Iniciamos o filme sem armas de fogo, de ambos os lados. Isso também é importante. Vamos anotar.
A impressão inicial de nosso amigo taxista é que ele não se importa com as pessoas. Quer apenas conseguir pagar o aluguel atrasado para poder dar um sermão no filho da senhoria, que frequentemente provoca sua filha. Mas o vemos ajudando, meio a contragosto, uma grávida a chegar ao hospital.
Quando ele encontra seu passageiro especial, um repórter alemão que resolve ir até o epicentro das revoltas em Gwangju, uma cidade fechada pelo exército, ambos começam um relacionamento conturbado que irá colocar à prova o que acreditamos sobre o caráter desse taxista. Também irá nos inspirar pelo espírito de comunidade, que dá gasolina "de graça" para a frota local de taxistas. Eles se revoltam com a ganância de um pai que precisa voltar para rever sua filha. O uso dos idiomas inglês e coreano também aponta para o que está acontecendo todo o tempo no filme: seus personagens não conseguem comunicar seus valores facilmente. Você precisa entender que há uma luta ideológica acontecendo, e não apenas um taxista tentando ganhar seu dia.
Mas o inevitável ocorre: ele se envolve demais. E o repórter alemão comunica seus valores para o taxista coreano através de ações, não palavras. Ambos, aliás. Enquanto o repórter filma tudo que vê, não importa o caos onde a ação ocorre, o coreano quebra uma lente da câmera do repórter tentando fazer ele desistir de mostrar a verdade e ir embora pra casa.
E é quando as armas de fogo aparecem (lembra que elas não existiam?) que descobrimos o que está acontecendo: um drama político exacerbado, exagerado e maniqueísta. O que eu quero dizer com isso é que veremos vilões do governo vestindo terno, chapéu e nunca sorrindo. Soldados irão atirar em civis, e civis irão cair da maneira mais espalhafatosa possível. Em câmera lenta. Os taxistas vão se unir em uma perseguição impossível, e até pequenos milagres humanos estão reservados próximos do final.
Este é um filme que acredita na luta entre o bem e o mal, pintados de cores diferentes e dispostos em dois lados distintos do tabuleiro. Infelizmente ele se recusa a apontar para o Norte, onde o mal prevaleceu e prevalece. Ele é um filme moralmente míope, que prefere olhar para o próprio umbigo e usar uma bela história que já seria eficiente se contada sem floreios. Tudo para fazer chorar. E até consegue. Mas a que custo?
# Uma Verdade Mais Inconveniente
Caloni, 2017-10-20 cinemaqui mostra cinema todo movies [up] [copy]Se você já viu Uma Verdade Inconveniente, Oscar de melhor documentário de 2006, provavelmente vai se sentir em casa com essa continuação. Ela é espalhafatosa, desinformativa e um apelo à emoção. Mas isso não é nenhuma novidade para você. Conhecida por jogar números estatísticos como forma de combate, o folheto de propaganda na forma de documentário continua balançando ao vento para quem quiser e quem não quiser ver. E como os voluntários de programas sociais que vemos na Avenida Paulista, há a sensação que mais do mesmo não irá resolver o problema. Exceto que agora a calçada ficou um pouco menos agradável de se andar.
Quem segura esse folheto firme nas mãos é Al Gore. Há quarenta anos. Ele fala efusivamente para quem estiver disposto a ouvir. Ele levanta o tom, usa diversas formas de dizer a mesma coisa, apresenta gráficos, fotos e vídeos de desastres naturais. Nada convence, exceto pelos rostos da plateia, capturadas em harmonia com seu discurso alarmista. Os rostos sorriem, choram, balançam as cabeças e se inclinam nas cadeiras de mais algum auditório ao redor do globo. Quando Al Gore se exalta um pouco seguem os aplausos. A ode à emoção é linda de se ver quando não precisamos pensar muito a respeito.
Os diretores Bonni Cohen e Jon Shenk não possuem aqui uma maneira de conduzir a narrativa como na história original, onde alguém sensato estava disposto a ouvir mais sobre ciência e como conseguimos provar que o aquecimento global não apenas é verdade incontestável, como também sabemos que sendo causado pelo homem pela emissão de gases provenientes de combustíveis fósseis. O uso de gráficos, de imagens e de vídeos é mais para impressionar do que informar, com algumas raras exceções (como as temperaturas médias dos anos extrapolado em décadas, em um crescente preocupante). Na verdade, os diretores estão no piloto automático, pois repetem a mesma dinâmica do anterior como se este fosse o segundo episódio de uma saga que provavelmente vai terminar com o fim da vida na Terra como a conhecemos.
Al Gore não é o melhor garoto-propaganda para espalhar mensagens ecológicas. Ex-político, seu jeito simplório de falar conquista, mas apenas a parte menos poderosa da equação. Em um claro descompasso com a atual presidência do retrógrado Donald Trump, o vice-presidente da era Clinton consegue se comunicar muito melhor com donos de grandes corporações, e negociar propostas excelentes que modificam lentamente estruturas geopolíticas -- como repassar uma tecnologia de energia solar para a Índia -- do que convencer Washington a voltar para a sanidade.
Ele, assim como o diretor homenageado da Mostra esse ano, Ai Weiwei, concluem a mesma coisa: se há uma luz no fim do túnel, ela não será acesa por políticos e burocratas. Somos nós mesmo que teremos que levar adiante o farol da esperança. Ou como ele diz, se referindo aos painéis solares: acima dos telhados.
# As Aventuras Do Capitao Cueca O Filme
Caloni, 2017-10-21 cinema todo movies [up] [copy]As Aventuras do Capitão Cueca prova que no Cinema, dado qualquer conceito, ele pode ser explorado e se tornar um ótimo filme. Mesmo que este conceito envolva duas crianças criativas e zoeras que falam com o espectador, pregam todas as peças da escola e criam um super-herói em seus quadrinhos que não usa uma cueca por cima das calças, mas apenas a cueca.
Dirigido por David Soren, que já tinha feito o subestimado Turbo, Capitão Cueca é um trabalho adaptado pelo roteirista Nicholas Stoller (Cegonhas), mas cuja origem vem do autor de epic novels Dav Pilkey. Pilkey, diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção e dislexia, é dono de uma mente tão atribulada quanto criativa. Seu personagem de cueca aparece em vários de seus trabalhos e é um best seller.
A transição disso vai para uma história em que dois garotos, George (Kevin Hart) e Harold (Thomas Middleditch), amigos inseparáveis, vivem pregando peças na escola, parando na sala do diretor e criando histórias mirabolantes. Uma dela é do Capitão Cueca, cuja origem traz bastante referência de Super-Homem. Exceto que quando chega na Terra o garoto é criado por um casal de golfinhos fazendeiros. Golfinhos são temas recorrente nos desenhos dos garotos, e uma das inúmeras eficientes piadas recorrentes do longa.
Como aquela em que para despistar a secretária da escola eles ligam dizendo que ela ganhou um prêmio bilionário de uma rádio e a coloca em espera. Pelo filme inteiro. E isso ainda é usado como gancho para uma outra aventura. Isso não é menos do que genial.
E genial aqui não é uma palavra exagerada se tivermos em conta que estou falando das duas mentes dessas crianças. Elas falam com o espectador, quebrando a quarta parede, dando dicas de por que os acontecimentos no filme seguem uma sequência, e até desenhando momentos muito caros para serem produzidos (ou momentos muito lindos que merecem uma segunda arte, como arte com meias!). Conseguindo unir diversos elementos em torno da mesma história de maneira fluida e criativa, o roteiro de Nicholas Stoller captura a sagacidade e ingenuidade da mente de uma criança no mesmo nível. Não há exageros de nenhum dos lados, e esta é uma aventura 100% segura para qualquer criança acompanhar. Não há sequer ironia ou sarcasmo além do que uma criança consegue entender.
E ao mesmo tempo temos a direção de David Soren, que além de compor várias inspiradas músicas para o filme consegue replicar a fluidez do roteiro no filme, com transições extremamente elegantes entre os quadrinhos, a "vida real", as memórias dos dois garotos e muitos outros elementos. Sua câmera giratória não é gratuita, e até uma divisão de tela é apropriada, e recebe uma das melhores sacadas do longa envolvendo uma privada e um encontro inesperado no banheiro. Parece não haver nada de fora ou sobrando neste filme.
Tudo isso só funciona se o espectador se convencer do universo onde o filme se passa. E graças a uma direção de arte competente, empenhadíssima em utilizar a física dos cartoons em um 3D verossímil, o mundo de Capitão Cueca é cheio de referências aos quadrinhos e permite que o espectador navegue neste mundo sem parecer que os elementos são jogados aleatoriamente. Claro que não há muitas regras a serem seguidas, mas quando elas são quebradas, são pelos motivos certos: é assim que uma mente de criança construiria essa sequência.
Menos engraçado do que fofinho, Capitão Cueca é um conjunto que possui um pouco de tudo na medida certa. Seu jeito inocente e até inconsequente de contar uma história cativa por fugir de um mundo cinza, que abandonou a inocência poderosa da nossa imaginação onde super-poderes ainda existem, vilões possuem seus motivos além de fazer maldades, e onde o bullying não é visto como algo negativo, mas problematizado na medida certa.
Aguardo ansioso pelo próximo volume dessa aventura.
# O Diabo Veste Prada
Caloni, 2017-10-21 cinema todo movies [up] [copy]Meryl Streep em um dos melhores papéis de sua carreira (o que não é pouca coisa). Olhe sua entonação entediada, sem levantar a voz, sem sequer olhar para os olhos de seus funcionários. Olhe como enumera de maneira apática e precisa de onde veio o azul que sua nova secretária está usando. O azul dela tem um nome específico, a secretária não se liga pra moda, e Streep simplesmente a coloca em seu lugar.
"That's all."
O brilhantismo da escalação de Streep é que o roteiro nunca a coloca em posição de protagonismo, o que poderia ser perigoso para a magnética atriz, que rouba os holofotes de Amy Adams em Julie & Julia. Aqui cada participação de Streep é magnética na medida certa, pois ela se resume a interações com a personagem de Anne Hathaway.
Dessa forma Hathaway tem a oportunidade de ouro de construir um personagem convincente graças à sua vilã. Ela é a gata borralheira (aqui jornalista idealista) que precisa do emprego para se manter, e aos poucos simpatiza pelo mundo da moda, ou pelo menos entende as motivações de sua chefe, a megera odiada e aclamada e que todos possuem um exemplo em suas áreas de atuação. Afinal de contas, este filme é baseado em um livro homônimo escrito por um funcionário, descontente ou não (essa parte da minha crítica é ficcional). De qualquer forma a mensagem faz sentido: chefes rudes e implacáveis é uma regra de empresas bem-sucedidas; não exceção.
Porque o fato é: se você tem mais de trinta anos e já passou pela fase humanista ao extremo, em que você sonha e acorda com unicórnios, sabe que a vida real funciona assim. Os mais obstinados com excelência prevalecerão, pelo menos enquanto forem úteis para o sistema. O sistema não tem coração, mas tem paixão. Ele não ama as pessoas que fazem parte dele, mas adora como as roupas, os adornos e as cores combinam com a construção de identidade dessas mesmas pessoas. Fútil? Me fale mais como a maioria das mentes humanas é tão fascinante. Spoiler: não é.
Então se a beleza interior é pura invenção para que ninguém saia se matando por aí, o universo da moda gira em torno de sacrifícios, de fazer o que se odeia, de ser uma masoquista disfarçada de sádica. E essa posição, essa condição, nem a editora da revista mais famosa de moda de Nova York consegue fugir.
Afinal, ela é capaz de manter um jantar após um evento traumático e escolher uma pessoa que detesta para promoção, se isso for relevante para seus planos. E seus planos giram em torno de continuar sendo a mesma para sempre.
No extremo oposto, a secretária original, do filme, uma das mil garotas que se matariam para estar no seu lugar, faz um trabalho em que é ignorada. Ela é a outra ponta nessa equação, mas se trata da mesma fórmula. Seres humanos glorificam seres humanos acima deles para que o ser humano alfa enfim faça uma reverência, e um sacrifício, para o deus moda. A continuação temática do que estou falando está em um filme mais recente, Demônio de Neon.
Com uma trilha sonora passada, ainda que divertida, com músicas da moda, e os cortes com carros passando enquanto vemos nossa heroína com diferentes conjuntos de roupas estonteantes, Diabo Veste Prada usa sua sua linguagem visual da maneira mais visceral possível, o que o torna ainda mais convincente em sua mensagem sobre futilidades.
Além disso, ele ainda é um filme adulto de Hollywood, onde namorados podem se separar e na mesma semana fazer sexo com outras pessoas (e sem arrependimentos mortais). Mas ao mesmo tempo a ingênua mas competente secretária começa a notar como está se parecendo com sua chefe, no momento em que ela se toca no que vai se tornar. Este, portanto, não é um filme de mudança de personagem, mas de aprendizado. E por mais piegas que pareça, aprender quem nós somos ainda é um desafio à altura. E Diabo Veste Prada o faz de salto alto, para o bem e para o mal.
Isso é tudo.
# O Jovem Karl Marx
Caloni, 2017-10-21 cinemaqui cinema todo movies [up] [copy]É muito comum fãs de quadrinhos e livros ficarem ansiosos em ver o resultado das histórias retratadas nesses formatos transpostas para o cinema. E o resultado que mais os agrada geralmente é o mais fidedigno ao conteúdo original. Pois bem: eis que surge este O Jovem Karl Marx, que direto dos livros de escola, retrata um período da História de maneira formal e burocrática, o que não é um defeito se você gostar de História, economia, política ou até filosofia.
O filme retrata os primeiros anos de criação do escritor Karl Marx (August Diehl), assim como o princípio da duradoura e vital amizade com Friedrich Engels (Stefan Konarske). No reencontro pessoal entre os dois um elogia o trabalho do outro, no que lembra uma bajulação mútua. Não é uma forma muito positiva de demonstrar que ambos se tornaram amigos massageando o ego um do outro.
No começo do filme há um letreiro que indica o momento histórico em que se passam esses eventos. Basicamente aristocracia absolutista mais Revolução Industrial igual a camponeses se tornando uma nova classe de trabalhadores na cidade: o proletariado. O surgimento de Karl Marx no cenário de pensadores, de acordo com o letreiro, irá culminar em suas teorias a respeito do capitalismo, luta de classes, relação de exploração e, ainda de acordo com o letreiro, "mudar o mundo para sempre". Este não é um exagero se considerarmos todos os volumes de O Capital, mas é um exagero no filme se considerarmos que a história nele acaba antes mesmo de Marx pensar em escrever seu primeiro volume de sua obra magna.
O que temos, então, é de fato o que o título do filme afirma. Este Marx ainda é jovem e ingênuo. Mas foi através de sua mente na época, vivendo o início da Revolução Industrial, que ele irá obter a matéria prima para seus pensamentos posteriores, além da influência de seus contemporâneos. E há vários deles. Era um momento de fervura intelectual, com diferentes lados tentando interpretar o que estava acontecendo nas cidades. Vemos aparições mais ou menos relevantes na história dos anarquistas como Proudhon e Bakunin (aliás, um Bakunin politicamente correto, que até tomava banho). Vemos a Liga dos Justos, o grupo que se formou entre essas vozes dissidentes que irá dar origem à Liga Comunista. Vemos todos os detalhes e referências abundantemente documentadas em livros de História.
A única coisa que não vemos é algo de novo. Exceto, talvez, a visão de um Karl Marx mais humano, menos idealizado, com esposa, fazendo sexo, tendo filhos, fumando charutos baratos e sendo sustentado pelo seu melhor amigo e discípulo. Porém, fora da curiosidade mundana de ver o filósofo no corpo de um ser humano, assim como o filme que veio dos quadrinhos ou dos livros, O Jovem Karl Marx é um retrato fidedigno do material que o precede, e portanto vazio de alma. Ele não diz nada mais do que já é conhecido, e se o diretor Raoul Peck (do documentário indicado Eu Não Sou Seu Negro) achou relevante trazer a figura à tona, é porque acredita que essa visão retrógrada da realidade ainda faz sentido nos dias atuais, como ele bem aponta no início dos créditos finais ao fazer uma colagem de décadas ao som de Bob Dylan.
Porém, relevante ou não, o filme é vivo, caminha empolgado entre as diferentes passagens históricas de Marx e Engels, seja em sua vida pessoal ou militante. Isso torna o trabalho minimamente interessante de acompanhar, mesmo que não tenha nada de novo a dizer. É uma releitura idêntica, clássica e didática. Pode informar algumas pessoas dispostas a entender o quê Marx viu quando se referia a relações de exploração, assim como Engels. Pode ajudar pessoas não-habituadas a esta fase da história a entender melhor as sementes que foram responsáveis pela construção de uma das obras mais ambiciosas da literatura histórica que um único indivíduo já teve a ambição de realizar.
# A Filosofia de Rick And Morty: Primeira Temporada (anotações)
Caloni, 2017-10-21 cinema series [up] [copy]Reassistindo a Primeira Temporada de Rick & Morty para revisar alguns pontos filosóficos fascinantes da série. Acabei vendo a Segunda Temporada e, como já acabou, a Terceira também. E a terceira é provavelmente a melhor de todas. Vejam! Eu sou Pickle Rick!!
# A Leoa
Caloni, 2017-10-22 cinema todo movies [up] [copy]A Leoa é um filme norueguês que passaria despercebido não fosse sua produção cara e sua característica peculiar: ser um filme sobre um caso anormal que no fundo é a história da vida de uma pessoa que, independente de sua situação física, está muito bem, obrigado. Dessa forma, a grande "atração" do filme é servir de isca para o grande público comprar a ideia de acompanhar a vida de uma mulher que sofre de uma anomalia genética que a faz crescer pelos por todos os poros de sua pele, tendo a feição de uma leoa e digna dos bizarros shows que existiam até na primeira metade do século passado. E agora nós, espectadores de um filme de 2016, somos a plateia ainda interessada nessa história. Isso de certa forma resume como as pessoas continuam as mesmas, apesar de novas regras de conduta.
Porque veja bem: esta é basicamente uma história comum. Baseada no romance de Erik Fosnes Hansen, o diretor Vibeke Idsøe narra os anos de Eva do dia do seu nascimento até sua fase adulta de maneira burocrática e sem maiores atrações. Ela sofre alguma humilhação em uma aparição em público, é mantida de castigo no armário debaixo da escada de vez em quando pelo seu pai, é criada por uma madastra amorosa e por um pai ressentido, cujas ações podem ser boas ou más, dependendo da maneira com que o filme nos manipula para torcer ou temer pelo próximo resultado das ações da menina.
O que o filme ignora é que Eva é uma garota forte. Ela resolve o problema de sofrer bullying na escola rapidamente, consegue estudar muito melhor sozinha no lago e arruma amigos que são dignos de serem seus amigos, como o rapaz do telégrafo do negócio do seu pai, chefe da estação ferroviária. Eles moram na estação, e isso não tem qualquer significado especial, exceto a posição financeira privilegiada da família de Eva, que pode bancar uma viagem a um congresso de epidermologistas que se transforma em um circo de horrores.
Os eventos de "A Leoa" são tirados como de uma biografia semelhante a O Homem Elefante (David Lynch, 1980), e a referência é óbvia: ambos são pessoas extremamente inteligentes, dadas as oportunidades de se educarem. No entanto, O Homem Elefante de fato existiu, e Eva é apenas fruto de um romance, que foi mutilado para mostrar um drama genérico em formato de novela e sem qualquer narrativa minimamente interessante que passe de um momento na vida da corajosa garota para outro. Tudo são instantes colhidos por conveniência.
Dessa forma, este é um filme passável e esquecível desde o primeiro momento que ele acaba. Nenhuma imagem fica das aventuras da leoa, pois não há espaço para a construção do personagem. Apenas a construção de um filme que irá mostrar uma das atrações favoritas dos seres humanos: a bizarrice dentro de nós mesmos.
# Bem Vindos Ao Mundo
Caloni, 2017-10-22 cinema todo movies [up] [copy]Kristen Wiig é uma mestre da comédia física. Aqui ela faz uma protagonista bipolar que ganha na loteria e escala rapidamente seu distorcido mundo em uma versão com muito dinheiro. É possível dar boas risadas de sua performance, que consegue não apenas convencer, mas deixar uma pulga atrás da orelha: esta é uma comédia ou um drama?
E é justamente essa pulga que diminui os resultados do filme do diretor Shira Piven, que através do roteiro de Eliot Laurence realiza um filme de humor negro que nos faz a todo momento buscar alguma moral nisso tudo. Qual a bússola moral ao vermos a personagem de Wiig se humilhando em público e demonstrando seu egocentrismo exarcebado e todos os seus traumas da infância e adolescência, se sabemos que ela já possui sérios problemas psicológicos?
A pegada do filme é fazer-nos crer que essa história é possível de acontecer, quando um estúdio de televisão em apuros aceita o cheque milionário de Wiig, que, morando em um cassino, não tem nenhum outro objetivo na vida senão uma versão egocêntrica de Oprah para se exibir. O problema é que um programa ao vivo não seria uma necessidade, ou não há motivos para tal, o que torna suas premissas fracas demais para comprarmos a ideia.
Ainda assim, as ideias bizarras de programas consegue entreter por mais tempo do que normalmente deveria graças à performance física de Wiig. Ela possui expressões que ainda precisam ser estudadas, e movimentos de mão com uma falta de sincronismo simplesmente hilária. O filme é dela, e ela é o grande trunfo. Todo o resto é de morno a pior.
# 24 Frames
Caloni, 2017-10-24 cinemaqui cinema todo movies [up] [copy]Eu sei, eu sei. 24 Frames pode não ser o melhor entretenimento para o espectador médio... não, "pode não ser" é um senhor eufemismo. Ele não é um entretenimento. Ponto. O novo filme de Abbas Kiarostami (Cópia Fiel, Um Alguém Apaixonado) vai além da própria linguagem cinematográfica começando do começo: o que é um frame? Você vai descobrir. Em 24 deles.
E através de 24 frames, ele irá ensinar o espectador que tenha a paciência de acompanhar os 114 minutos deste filme sobre o que é o exercício mental ao assistir um filme, e como nosso processo criativo, ou da imaginação, é quem de fato constrói mais dados do que imaginamos construir.
Porque uma coisa é certa: o espectador médio espera que lhe contem o que ele deve pensar e sentir. E Kiarostami está fazendo o exato oposto aqui. Em 24 quadros, onde a grande maioria é praticamente estática, veremos, na maioria também, pássaros, ou outros animais menores, se comportando como animais. Cada quadro dura em média 5 minutos (se você não fez a conta), e ao seguirmos pacientemente um a um irá sugir algo mágico em nossas cabeças: a criatividade.
É a criatividade que irá lhe dizer para onde vai esse filme, sobre o que ele é, qual a moral da história. Você pode pensar que este é um simulacro da realidade, já que os animais não soam reais, mas computações muito bem desenhadas em cima de um matte paiting belíssimo, com uma fotografia tão deslumbrante, minimalista em cores (na maioria preto & branca) e que não cansamos de olhar.
Você pode também pensar que tudo não passa de uma maneira de observarmos, com calma, como a realidade é uma espécie de simulacro, mas que nunca nos damos conta porque... bem, porque a vivemos todo santo dia! E se tudo que estivermos vivendo não for um filme que se passa em nossas cabeças. O que vemos no mundo se confundem com os frames de Kiarostami, ou são os frames dele que se se confundem com a vida real? E esta é a vida real, mesmo?
# Favela Olímpica
Caloni, 2017-10-24 cinemaqui cinema todo movies [up] [copy]Favela Olímpica é um documentário feito sobre um evento específico que acaba colocando em debate todo um sistema injusto. Ele é o novo Cabra Marcado Pra Morrer ou o novo Aquarius? Quase. Ele tem muitos elementos desses dois filmes, especialmente o primeiro. E um dos elementos mais vitais para seu funcionamento é a impunidade tão gritante que ela se torna visível, palpável e até apontável.
O tema é propriedade. A propriedade, nos termos da Constituição Brasileira, é protegida. Porém, e aqui vamos para o principal "porém" de toda a Carta Magna, é dito que a propriedade deve cumprir a sua "função social". Você sabe o que é isso? Saberia definir exatamente quando uma propriedade cumpre e quando ela não cumpre a tal função social?
Pois é. Ninguém consegue. Ou melhor dizendo: consegue de acordo com seu ponto de vista. E no caso da Prefeitura do Rio de Janeiro, a função social da Vila Autódromo é menor que a função social da Vila Olímpica, que começa a ser construída do seu lado, e cujos acessos passam necessariamente pela comunidade presente ali há décadas. E com a devida posse das propriedades registrada desde 1998, dado o direito de uso dos terrenos por 99 anos.
Só que nada disso importa quando as obras começam. Liderada por grandes empreiteiras, logo fica claro o real motivo da desapropriação/compra dos terrenos dos seus legítimos moradores: um condomínio de luxo, do lado da lagoa, com um enorme espaço verde que será a Vila Autódromo. Assim que os funcionários do governo e sua força policial conseguir enxotar todos de lá.
O trabalho do documentarista Samuel Chalard é de vital importância, para que as informações não pareçam parciais ou incompletas. E a "Favela Olímpica" brilha nesse quesito, conquistando várias medalhas. Logo no começo nos acostumamos a ver infográficos e notícias "pixados" nos muros da comunidade, uma forma de usar o próprio mecanismo de protesto dos moradores, que pixam durante todos os anos de construção para o evento, diferentes formas de chamar a atenção para o desmantelamento de uma vila até então pacífica.
O primeiro gráfico mostra a irrelevância do espaço ocupado pela vila de moradores comparado com o espaço destinado à construção da vila olímpica. No decorrer dos anos e fases do projeto, a negociação feita com os moradores para deixar suas casas em troca de apartamentos e compensação financeira aos poucos se torna o que no fundo sempre é o final de qualquer lei vaga ou injusta (como a tal "função social" da propriedade): conflito entre as forças armadas do Estado e a população, vulnerável e desamparada.
O filme acompanha também os testemunhos de diferentes moradores e seus diferentes destinos. É curioso acompanhar a mudança gradativa da opinião de cada um no decorrer dos anos, seja dos moradores ou do prefeito da cidade. Enquanto o prefeito vai se tornando mais hipócrita e com discursos mais abstratos, os moradores precisam racionalizar suas decisões, desde as mais corajosas às mais conformistas, já que eles não possuem a força das armas para fazer valer a sua opinião (como a tropa de choque carioca).
Dotado de uma trilha sonora apavorante, pois usa o estilo brasileiro de música com notas dissonantes, revelando o descompasso entre a teoria e a prática de uma nação, Favela Olímpica é um trabalho robusto, completo e ritmado. Os anos que passam são sentidos pelo espectador conforme o cerco entre os moradores se aperta, casas começam a sumir, tratores começam a operar. De uma maneira torta, este é um filme que aponta na cara do brasileiro o que é essa brasilidade do comodismo, do egoísmo e da malandragem. E aponta também como as coisas poderiam ser diferentes se as vozes íntegras e honestas fossem ouvidas no lugar do som do dinheiro.
# Otherlife
Caloni, 2017-10-24 cinema todo movies [up] [copy]A protagonista de Otherlife é bem bonitinha. Tem olhos claros. Ela coloca um líquido negro nos olhos das pessoas, e muito mais nela mesma. É um composto de nanotecnologia que apresenta um programa que te leva aos sonhos mais malucos. Por que malucos? Porque tem bugs, seu bobinho!
Dirigido por Ben C. Lucas de uma maneira igualmente louca e desproporcional -- ele quer usar várias referências de si-fi ao mesmo tempo, sem controle algum -- este filme tem o roteiro assinado por algumas pessoas que se basearam em um romance chamado Solitaire. E, infelizmente, a mesma ideia do romance aqui dá origem a várias pataquadas sem sentido.
Felizmente Ben C. Lucas, além de gostar de referenciar sci-fi dos outros, consegue nos manter entretidos de verdade. Mesmo com reviravoltas fracas, o thriller funciona razoavelmente bem, pois tudo é um grande sonho, e em dado momento não sabemos mais se estamos em um sonho ou não. A ideia inicial é bem explicada, e os lapsos no tempo dão uma boa pista de quão perdido o espectador pode ficar na cornucópia mágica de memórias.
Boa parte do mérito do filme também vai para a atriz Jessica De Gouw, que se sai acima da média para um trabalho desse tipo. Ela é intensa além do necessário, o que dá um ar de sobrevida ao projeto. Nos convencemos que ela está em uma solitária por um ano inteiro. Por incrível que pareça!
Curiosamente narrado como se fosse o begins de uma série de filmes (ou uma série mesmo), Otherlife como conceito é pouco interessante, como thriller fica bem interessante, mas como roteiro... um pouco confuso demais. E desnecessariamente. Não nos importamos tanto assim com os personagens. É um thriller sci-fi, afinal de contas. Se todos morrerem não vai ter a mínima comoção.
# Thor Ragnarök
Caloni, 2017-10-25 cinemaqui cinema todo movies [up] [copy]Você já sabe: todos os filmes de super-heróis são iguais. Pelo menos os da Marvel são. Mas ultimamente alguns têm se tornado mais iguais que outros. Sempre que um filme é lançado temos uma horda de apreciadores e detratores, e ultimamente a horda de apreciadores tem elogiado muito o clima despojado de Dead Pool e Spiderman, além da atmosfera cartunesca e divertida de Guardiões da Galáxia em seus dois volumes. E eis que surge Thor: Ragnarök, repetindo alguns conceitos de sucesso desses trabalhos anteriores e se tornando com isso um dos filmes mais iguais dos últimos anos. E isso, ao falarmos da Marvel, é um senhor elogio.
As histórias envolvendo Thor como protagonista possuem a desvantagem de Chris Hemsworth, que não caracteriza um Deus do Trovão tão fanfarrão quanto gostaríamos, embora esteja mais grande e musculoso (e, pela proporção, com uma cabeça ridiculamente pequena). Chris consegue fazer isso muito bem em "Rush: No Limite da Emoção", logo não é sua culpa. O mais provável é que a censura comercial infanto-juvenil proíba exageros, e é por isso que em todo o filme ele bebe apenas um pint de cerveja. Um pint! Cortesia do Dr. Estranho (Benedict Cumberbatch, abraçando seu papel), que realiza uma pequena participação especial aqui que faz jus ao seu nome.
A personagem que ganha o direito de beber até cair (literalmente) é uma nova, linda, reluzente coletora de lutadores. Valquíria é o título dela. Tessa Thompson (da série Cara Gente Branca) acumula a energia que o longa precisa. E deuses não são muito bons em ação; gostam de falar o tempo todo e se vangloriar. Valquíria não. Ela faz o que tem que fazer, geralmente com um sorriso cínico no rosto. Ela é o preenchimento de cota padrão da Marvel, também, mas nem por isso faz feio.
E por falar em cotas, vários personagens secundários possuem participações pequenas que elevam o filme a um novo patamar. Pelo menos em atuações. Dessa forma, Jeff Goldblum faz o divertido mafioso, com o nome de "grão-mestre", que comanda lutas de gladiadores no dito planeta sem sentido Sakaar (esses nomes ficam bem ruinzinhos lido em português). Acho essa ideia de "planeta sem sentido" desculpa esfarrapada dos roteiristas (aqui temos três) para não ter que explicar muito. Lá encontramos um prisioneiro feito de pedra que, com uma voz fina e falas engraçadas, é uma tentativa de recriar criaturas fantásticas inusitadas justamente como em Guardiões da Galáxia. A dublagem funciona, assim como as piadas. Este casting realmente tem qualidade. E até a ponta de Stan Lee dessa vez é engraçada sem ser gratuita, pois está tão bem inserida na história que podemos considerá-la metalinguística.
E a vilã da vez é Cate Blanchet, que vive seu personagem na mesma altura de seu pai no filme, um Anthony Hopkins sempre necessário. Blanchet leva a sério seu papel, mas não o suficiente para soar caricata. Quando ela quer mete medo, como a forma trivial com que mata o primeiro exército a se opor em Asgard. Ou o único, já que a terra dos deuses nórdicos não é muito populosa, tendo um povo que caberia em um metrô de São Paulo fácil. Em horário de pico.
Trabalhando em conjunto com seu irmão adotivo Loki (Tom Hiddleston) e, quem diria, Hulk, as referências ao primeiro Vingadores são muitas, mas a melhor delas se passa na arena de lutas. Mark Ruffalo também é uma escalação de peso. Tudo para dar substância a mais uma história de Thor sem Natalie Portman.
A direção de arte de Ragnarök impressiona, mas lembra um combinado de estilos. Tanto as brincadeiras temáticas com cores e a trilha sonora lembrando o techno evocam o lado nostálgico visto em Guardiões, mas em uma versão menos inspirada. De qualquer forma, melhor que as trilhas enlatadas dos filmes de heróis (como a ouvida aqui nos créditos finais). O figurino acaba sendo o que mais se destaca, já que há tantas pessoas bem vestidas nesse filme, e com estilo. O pessoal das vizinhanças de Asgard sabe se vestir bem e impressionar. Não se trata apenas de pele pintada de verde, azul ou amarelo como em Guardiões. Os chifres de Cate Blanchet ou os babados do Grão Mestre são únicos na galáxia.
Já o roteiro é completo, redondo, com gosto de trabalho feito. Tudo exigido pelos fãs consta no projeto, com a exceção de algo original, talvez (mas sabemos que os fãs não pedem isso). Ainda assim, exibe a insegurança que tem dos seus espectadores, temendo que o público mais fiel desses filmes, quase geralmente olhando para o celular durante a sessão ou tendo déficit de atenção, não irão notar quando certo personagem comenta que Asgard não é um lugar, mas o seu povo. Só isso para explicar que a mesma coisa é dita mais três vezes no espaço de 20 minutos. Pelo menos uma vez essas crianças vão ter que ouvir isso para entender o que acontece no final.
E por falar em final, é preciso sempre lembrar que esses filmes não entregam um final de fato. Se trata apenas de mais um episódio na interminável série de filmes sobre o universo dos heróis. Todos se interconectam, seja por referências ou pelos créditos finais (aqui há dois). E todos no longo prazo disputam pelo título de filme de super-herói mais igual de todos. Qual a sua aposta?
# Terra Selvagem
Caloni, 2017-10-27 cinemaqui cinema todo movies [up] [copy]Terra Selvagem é o melhor filme da carreira de Jeremy Renner, que já possui alguns trabalhos bem interessantes, mas nunca tão intensos como esse. E isso dentro de um filme redondíssimo, que atravessa eventos que poderiam render vários clichês e desvia de todos eles pela sua qualidade narrativa e construção de atmosfera. E, claro, por Jeremy Renner.
Este não é um filme que tenta a todo momento soar politicamente correto, mas tenta algumas vezes, o que já soa enjoativo por natureza. Mas ainda assim, seu núcleo é animalesco, instintivo, e não depende muito dos detalhes da história para universalizar seu tema. Basta ver o início, em que vemos o caçador Cory Lambert (Renner) abater um dos lobos que ameaçava um rebanho de ovelhas. Vemos o lobo levar um tiro, sangrar, morrer e ser arrastado pela neve, deixando um rastro. Este é o tom que deve pautar todo o resto da história.
Baseado em eventos reais e se passando quase todo o tempo em uma neve espessa, os acontecimentos viscerais do longa não permitem que não encontremos o filme Fargo como seu irmão mais velho, e ainda assim o filme se distancia do trabalho tragicômico dos irmãos Coen para abordar temas mais sérios. Entre eles está o descaso e o desrespeito histórico aos índios nativos que ali dominavam a região por séculos. Hoje eles vivem à margem de uma sociedade que não reconhece sua cultura e nem há a possibilidade de adaptação.
Porém, o pior mesmo é o desrespeito. Não serem tratados como seres humanos. E isso o filme consegue um exemplo perfeito de como a hipocrisia americana de direitos individuais, seu pilar patriótico, não vale para certas etnias. Não na prática, pelo menos. A maneira velada com que vamos descobrindo isso chama mais a atenção do que se fosse dito palavra por palavra. É o luto de um pai pela filha e o forte laço entre amigos que desperta a sensação de solidariedade entre os que sofrem em silêncio.
Renner faz um caçador de predadores que busca desde a morte de sua filha uma forma de conviver com a dor. Quando a filha do seu melhor amigo também é assassinada é como se suas preces fossem ouvidas, e mesmo que o sujeito seja inabalável vemos que ele se dá o direito de viver intensamente à sua maneira. Note sua composição de personagem. À vontade, sem forçar seu lado interiorano porque no fundo ele é essa pessoa de fala mansa, com sotaque natural (em vez de forçado, como é comum em atores menos habilidosos), e que observa todo o tempo em modo de caça. Nada abala Renner e sua sniper.
A inexperiente agente do FBI, que vem em primeiro nos créditos, serve simplesmente como o elemento que irá explicar como este caçador é muito bom, e como seu conhecimento e sua vontade de ajudar serão importantes para uma investigação no meio do nada com quase nenhum suporte externo. São vários elementos que justificam a história que irá se desenvolver. A atuação e o papel de Kelsey Asbille não justificam seu destaque. Mas, como já havia avisado, este é um filme com doses leves de politicamente correto. Traduzindo: um filme que fala da violência contra a mulher precisa ter uma protagonista mulher, embora saibamos que sua posição no roteiro, apesar de flertar com uma Clarice Starling (Silêncio dos Inocentes), nunca chega a ficar próximo de ser comparável.
Embora exista o desejo claro de realizar discursos sociais, o roteiro de Taylor Sheridan, que aqui estreia na direção, evita cair no lugar-comum e através de sua narrativa e seus inspirados diálogos se manter firme em estar inserido no modo de viver daquelas pessoas, e assim como seu roteiro anterior, A Qualquer Custo, dar uma sensação muito nítida do espírito americano.
# O Amante Do Dia
Caloni, 2017-10-28 cinema todo movies [up] [copy]O Amante do Dia é um filme francês da atualizade em preto e branco e com ideinhas liberais. É de um diretor liberal com alguma ideia de que tudo aquilo de ter casos extraconjugais seja algo muito moderninho em 2017. E algo me diz que ele viajou no tempo e foi teletransportado diretamente dos anos 60.
Mas não julguemos sua moral, e sim seu conteúdo. A história envolve um pai cuidando de sua filha que acabou de se separar do namorado por quem está perdidamente apaixonada. Enquanto isso ele namora uma mulher com a mesma idade de sua filha, que gosta de sair com outros rapazes, ainda que apenas uma vez (em um caso dela ela escreve no espelho do cara: "nunca jamais").
Essa história vai sendo desenvolvida aos poucos e a direção tenta emular os filmes dos anos 60, com cenas onde demora o corte ou até atuações desajeitadas, com falas incidentalmente engraçadas. É um exercício de estilo vazio, que oblitera qualquer tentativa sofrida de realizar um trabalho que queira dizer alguma coisa sobre o cinema da época ou sobre nossos costumes atuais da moda, como poliamor e sexo casual.
A Ariane como é construída pela atriz Louise Chevillotte lembra uma femme fatale que não tem a idade que diz. Enquanto isso, a infantilidade da filha de seu amante, conduzida por Esther Garrel, é de uma ingenuidade quase tocante.
Com pouquíssimos momentos inspiradores, O Amante do Dia é apenas uma visita rápida pela França nos anos 60 em um passado alternativo onde existiam celulares. E uma película melhor. Bonito preto e branco, aliás.
# Meu Primeiro Amor
Caloni, 2017-10-29 cinema todo movies [up] [copy]A morte pode ser um catalisador de emoções. Através dela passamos por uma transformação dentro de nós que ao mesmo tempo que nos enfraquece pela dor insuportável também nos fortalece pela nossa capacidade de sobreviver. E no fim de um processo de luto algo maravilhoso acontece: voltamos para a vida mais fortes. De vez em quando iremos mexer nessa ferida do passado, e certamente irá sangrar. Mas é através desse sangue que fazemos novos pactos com os que ainda estão vivos. Porque no fundo de todos nós não há muitas diferenças. Somos humanos; estamos condenados a viver sabendo que um dia iremos morrer. Ou pior: os que nos cercam também irão.
Essa história de férias chega exatamente como o verão: inocente, despretensioso. Gostoso de viver. Acompanhamos estes dias através dos olhos de Vada Sultenfuss (Anna Chlumsky), uma menina de pouco mais de onze anos que amadurece mais rápido que suas colegas de escola. Também, pudera: ela está acostumada a conviver com a morte desde que nasceu. Seu pai (um contido e competente Dan Aykroyd), viúvo, cuida de uma funerária em sua própria casa, e Vada inicia sua narrativa falando de todos os seus sintomas para o pai, que prepara seu café da manhã. No final ela conclui: "pai, isso só quer dizer uma coisa: estou morrendo". Sua resposta: "querida, me passe a maionese da geladeira".
Os primeiros cinco minutos do filme já introduzem a hipocondria de Vada, sua amizade improvável com Thomas J., um garoto "alérgico a tudo" (Macaulay Culkin, mais fofo do que em Esqueceram de Mim) e a vinda de uma potencial madastra, ou seja, um conflito (Jamie Lee Curtis, muito bem por sinal). Ah, e também sabemos que Vada está perdidamente apaixonada pelo seu professor, Mr. Bixler. Ela quer ser escritora quando crescer e frequenta seu curso de poesia nas férias.
Os passeios de bicicleta entre Vada e Thomas J. evocam uma nostalgia poderosa pela cidadezinha onde moram, pela linda árvore próxima ao lago e por como tudo isso é melhorado pelo diretor de fotografia Paul Elliott (Bravura Indômita), que usa aqui um filtro que mescla o onírico (que mistura as cores dos cenários e dos personagens) com o calor gostoso do verão e as cores que surgem pelo escaldante sol. Tudo isso é acompanhado pela seleção de músicas que beira o clichê, mas que certamente hoje se transformou em uma trilha de clássicos do cinema, e que fazem parte de um elegante passeio por uma época.
E Meu Primeiro Amor flerta a todo momento como um filme piegas, o que seria a coisa mais arriscada que um filme de verão poderia fazer. Porém, a presença de tela de Anna Chlumsky e de Macaulay Culkin, capturados em seus melhores ângulos das melhores tomadas, conseguem fortalecer a poderosa ideia de que este trabalho do diretor Howard Zieff (em seu penúltimo trabalho) não está brincando em serviço. Esta não é uma comédia inconsequente passando nos cinemas, mas um drama intimista sobre o amadurecimento de uma criança atingindo a puberdade cheia de conflitos internos.
Note como Zieff não permite que sua direção fique no caminho do roteiro da estreante Laurice Elehwany porque ele é bom demais. Ele tem falas que capturam a essência das cenas sem revelar muito: "cansei de bingo, acho que podemos tentar o tal do drive-in", "saia daqui! e só volte em cinco ou sete dias!". E eu nem vou dizer que a passagem onde Vada explica como ela acha que deve ser o paraíso é um dos grandes momentos do cinema. Não porque ele seja particularmente tocante ou inteligente, mas porque ele entrega dois personagens que todos nós já fomos um dia em um daqueles momentos que se lembra a vida inteira.
Isso porque o filme em si é sobre a própria vida, e o processo de vivê-la mesmo sabendo que a morte dos entes queridos, ou a despedida, é uma realidade que tivemos ou teremos que lidar. "My Girl" tenta enxergar a beleza onde pode haver muita dor e sofrimento. Não é possível criticar um filme que abrace essa ideia com tanto afinco. Não enquanto estivermos todos aqui, empenhados em tornar nossa condenação de viver o mais próximo do paraíso possível.
# True Detective: Primeiras Impressões do Piloto
Caloni, 2017-10-29 cinema series [up] [copy]True Detective, em sua primeira temporada, é uma série que apresenta Matthew McConaughey e Woody Harrelson em papéis principais em uma narração dupla baseada em depoimentos e flashbacks. Ao final do piloto percebemos que o assunto em que ambos estavam sendo investigados continua à tona, o que gera um dos ganchos mais impressionantes em uma série. Ambientado em Lousiana com locações em lugares pobres e isolados, esta é uma série que por estas pistas já deveria chamar a atenção de quem está procurando por algo acima da média. Mas deixe-me explicar como se chega a essa conclusão assistindo apenas ao primeiro episódio.
Recentemente meu amigo me convidou a assistir um vídeo, "How to Recognize a Great Anime (in just one episode)", onde o piloto de Steins;Gate era escrutinado. O argumento do autor é que a qualidade de qualquer anime pode ser analisada apenas através do seu primeiro episódio. Mesmo polêmico, a "fica melhor depois" série de animação de viagem no tempo "Steins;Gate" segue de fato essa regra. Fiquei interessado se isso seria possível de extrapolar para séries em geral, ou até filmes mais longos. De fato, já havia ouvido falar de críticos que afirmam que os primeiros cinco minutos de um filme já são suficientes para pelo menos julgar se você irá ou não gostar do resultado completo.
Pois bem. Resolvi fazer isso com True Detective. Observei sua estrutura narrativa, suas atuações, sua fotografia, seus ângulos e seu roteiro. O primeiro enquadramento, assim como "Steins;Gate", mostra o ponto de vista de uma câmera caseira filmando um dos protagonistas, o interiorano, boa gente, mas preocupado Detetive Mary Hart (Woody Harrelson). Repare suas pausas, seu modo de falar, sua escolha de palavras. Ele está dando um testemunho sobre seu antigo parceiro, o Detetive Rust Cohle, e embora se sinta incomodado com isso, ele bate na tecla mais de uma vez de como ele era inteligente e um "bom detetive". Em certo momento ele move as duas mãos, como que para cunhar o termo especialmente para seu parceiro: "ele é um bom detetive". Note seu modo pausado de afirmar isso.
Hart está devidamente vestido, arrumado, e parece ainda exercer a profissão. Ao mesmo tempo acompanhamos o testemunho de Cohle, cujas roupas surradas, cabelo, barba e seu hábito de fumar e beber parecem dizer o exato oposto. Mas entendemos o futuro desses dois de imediato quando, após três meses de parceria (no passado), Hart pede enquanto estão no carro que Cohle se abra um pouco a respeito de si. E o que ouvimos já nos diz de imediato que esta será uma série niilista -- como é de praxe nesses dias -- mas que torna tudo mais interessante quando olhamos pelo filtro mais humano do personagem de Harrelson.
A dupla de detetives parece clichê, mas estão inseridos em um universo realista, onde prostitutas podem lhe dar as resposta que você precisa. Não há aquela dinâmica "ninguém confia nos tiras" de tantas e tantas séries, réplicas umas das outras. Mas há a mesma atmosfera, sob uma vestimenta melhor, com atuações que dizem muito pela caracterização de uma ótima dupla de atores, e há um roteiro cativante pelos saltos no tempo, uma direção competente em realizar raccords curiosos, e uma fotografia pálida que nos impregna de névoa e pessimismo.
Na primeira cena olhamos para Hart através de uma câmera de testemunho, mas logo saltamos para "o tempo presente" de ambos. Os investigadores cuidando do caso estão sentados frente a Hart e Cohle ao mesmo tempo, o que indica mais uma separação temporal. Em cada uma das salas os parceiros que os entrevistam estão sentados de forma invertida, o que dá uma certa pista de para onde cada um deles está olhando. O velho clichê dos detetives veteranos e/ou aposentados que voltam à ativa aparece nos momentos finais, mas com uma propriedade narrativa que a favorece em vez de desanimar.
Sim, True Detective é uma série que pede mais do que apenas seu piloto.
# Your Name
Caloni, 2017-10-31 cinema todo movies [up] [copy]Para os que estão acostumados com os média-metragens do diretor/roteirista Makoko Shinkai, como O Jardim das Palavras, vão perceber uma característica marcante em seu novo trabalho, Your Name: não há aqui uma história completa a ser contada; mas sensações. É a jogada de uma miscelânea de ideias cativantes, como se colocar no lugar do outro, que dá origem à sua essência, que é explorada inúmeras vezes em lindas sequências de animação.
Isso é cinema? De certa forma, sim. Cinema não é apenas utilizar uma história onde de fato existem personagens (mais tarde sobre isso) e coisas acontecem, interligadas de maneira coerente. Vimos nessa Mostra o novo (e último) filme de Abbas Kiarostami onde existem apenas 24 frames, não necessariamente conectados e onde não há personagens que continuam no tempo. Entre esse tipo de cinema experimental e o consagrado drama em três atos idealizado por Aristóteles há um enorme degradê. Não existem regras. Apenas o que funciona melhor.
E como experiência estética Your Name funciona maravilhosamente bem, pois ele usa um conceito simples e vai explorando em sequências deslumbrantes. Note como o giro em 3D de um cenário inicialmente em 2D coloca um dinamismo na narrativa. E como as rimas de portas se abrindo e se fechando no meio, assim como vermos os personagens frequentemente com as mãos apoiadas em uma parede de vidro dão a ideia de separação, isolamento. Pois seja a porta do metrô ou as paredes de um elevador, o que vemos é um apanhado de pessoas juntas, "presas" em um lugar, e cada uma solitária à sua maneira.
Solitárias e desconhecidas. A pergunta mais relevante deste longa não é "qual o seu nome?", mas "quem é você?", escrita em um caderno e no corpo da própria pessoa que se quer conhecer. Note que apesar de um ocupar o corpo do outro por um dia nenhum deles consegue de fato entender quem é seu receptáculo, mas apenas imprimir cada um seus próprios traços de personalidade, e gênero. A masculinidade e feminilidade dos dois interfere na vida do outro de diversas maneiras. De certa forma o filme quer nos mostrar um pouco também da forte estratificação cultural dos gêneros na cultura japonesa.
Tudo isso me lembra da historinha. Esqueci de contar. É porque ela não é tão relevante, nem tão grande. É sobre uma garota do interior e um garoto da cidade grande. Ambos trocam de lugar durante alguns dias, mas apenas suas mentes. O corpo permanece o mesmo. Há uma jogada muito esperta a respeito das memórias de ambos se confundir, pois do contrário a nossa vai ficar. Afinal de contas, eles lembram de si mesmos, um pouco do outro, mas convenientemente nada que permita que eles se comuniquem no mundo real. No dia seguinte tudo é esquecido, mas de vez em quando um deles lembra de algo para efeito dramático.
A história em si segue seus próprios passos e é esperta o suficiente para jogar detalhes que tornem tudo mais ou menos amarrado. Assim, detalhes do dia-a-dia de ambos são usados para a passagem do tempo, como o garoto e seus amigos sempre tomarem café no mesmo lugar. E ambos, é claro, mantém diários onde trocam impressões. E fazem até acordos de como devem se comportar.
É preciso dizer que praticamente não conhecemos muito sobre eles. Apenas detalhes genéricos. Eles são muito mais conceitos do que pessoas. Ideias. É como contamos histórias como essa quando somos adolescentes. "Imagina trocar de lugar com uma pessoa." E quando temos alguns detalhes eles são estranhos, jogados. Como a garota ser filha do prefeito. Que faz campanha eleitoral em uma cidade com 1500 habitantes e faz ela passar vergonha em público. Tudo gratuito ou conveniente para o terceiro ato.
Não. A história de Your Name não é seu ponto forte. Os conceitos e a estética são. Um cometa que passa apenas em 1200 anos. Lendas desconhecidas sobre os deuses do passado. O cometa se divide em dois. Ele continua sendo apenas um? O filme divide os seus protagonistas em dois. São eles apenas um? Somos nós todos apenas um?
Shinkai, além de dirigir e escrever a história, assina a fotografia e a edição. Tantas funções acumuladas lhe dão um controle absoluto de cada quadro que pretende retratar no filme, mas ao mesmo tempo lhe dá uma visão uníssona, monopolizadora de ideias. Tudo gira em torno dos mesmos conceitos. Não nos livramos da psique do seu criador em nenhum âmbito que valha a pena observar. E tudo isso cansa, é repetitivo, não leva a muitos lugares, o que é um grande pecado para um filme que possui tantos simbolismos embutidos...
Your Name não é toda essa profundidade. Ele gostaria, fica claro. Mas no caminho há ótimas músicas selecionadas para o filme, tocadas em momentos aleatórios. Bom, quem se importa? Aprecie a viagem e observe a beleza de uma poesia transformada em animação pop.