# Memórias de Ontem
Caloni, 2020-02-02 cinema movies [up] [copy]Memórias de Ontem é um filme excepcional dos Estúdios Ghibli sobre personagens da vida comum. Feito nos anos 90 e lançado internacionalmente em 2015, somos levados pelo passado da criança Taeko através da mente da adulta Taeko, que usa suas férias no trabalho como desejaríamos fazê-lo se fôssemos corajosos a esse ponto, tal como a máxima do filósofo Henry David Thoreau: vida a vida que você sonhou.
O que torna as memórias do filme em algo agridoce é a interpretação sensorial e racional da Taeko adulta por trás de suas passagens tragicômicas de quando criança, ao finalmente viver o que não teve quando criança nas férias do seu trabalho. Enquanto somos levados pelo embalo psicológico de suas lembranças, Taeko repensa em como todos os nãos que recebeu poderiam significar uma mudança radical em sua vida no presente.
Este é um filme de "e se" maduro e lindamente desenhado pelos estúdios. A paleta de cores monocromática e quente das lembranças, seus contornos que lembram poesia e fascinação, e sua falta de bordas que nos remete diretamente às nossas próprias percepções de quando nos lembramos de algo vagamente e distante no tempo, além da música de fundo tímida que cresce na proporção com que o passado se torna mais forte. O resultado é arrebatador e emocionante. Arrebatador porque somos levados junto dela através de um passado muito característico, desenhado com paixão, do Japão na década de 60. Emocionante porque a trilha sonora vem no momento certo. Este é um filme com o timing emocional quase perfeito. Suas virtudes estéticas nos permitem enxergar uma história madura se configurando em tornos desses inúmeros "e ses".
Apesar de possuir um roteiro episódico e a separação didática de uma passagem por memória, sua edição fluida não reflete isso, pois pula entre presente e passado como partes indivisíveis do processo. É a magia da animação que não precisa da técnica para funcionar, mas com ela ganha um ar universal mesmo se tratando de uma história local. E seus personagens são tão vivos em seus movimentos e expressões que poderiam ser atores de carne e osso. Seus trejeitos tão bem equilibrados entre o caricato e o característico que dos traços emerge personalidade.
# Conto de Inverno
Caloni, 2020-02-04 cinema movies [up] [copy]Um dos filme da quadrilogia do proficiente Éric Rohmer (As 4 Aventuras De Reinette E Mirabelle), Charlotte Véry está leve e tresloucada em um papel de mãe solteira dividida entre três amores: dois presentes não lhe bastam, um ausente é sua razão de viver.
Este é um filme moderno, de relacionamentos abertos e uma mãe que, diferente das de hoje em dia, não vira serviçal de sua criança. Rohmer adota uma postura quase que relapsa na condução dos seus atores e das próprias tomadas, mas com isso ganha um certo charme e simplicidade que remetem à vida cotidiana da capital da França ou da visão bucólica e vazia de uma cidade do interior. Com a narrativa em cortes rápidos a história pode avançar em cinco segundos, e com uma verborragia típica de intelectuais pode nos levar a discussões filosóficas cheias de conclusões a la francesas, vazias de substância, mas que soam profundas quando ditas. Duas formas diferentes de passar o tempo.
Charlotte faz Félicie, uma mulher que viveu o grande amor e o perdeu por um lapso de memória. Este é o filme para descobrirmos com quem ela vai ficar no final, e a comédia surge quando descobrimos que ela toma grandes decisões depois de refletir por dois minutos.
# The Cave
Caloni, 2020-02-04 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Atraso de vinte minutos. Sala lotada em uma tarde chuvosa. Quando acho que finalmente vai começar The Cave, um dos documentários indicados ao Oscar esse ano, percebo o nível de promoção ao filme quando somos introduzidos a um historiador da PUC que irá nos mostrar um gráfico no tempo das tomadas de território em torno da região onde se passa o filme e falar por alguns minutos para nos dar o panorama histórico do que ocorreu e está ocorrendo no Oriente Médio naquela região. Ele possui descendência libanesa e o conflito se passa próximo das fronteiras com a Síria.
A promoção ao filme continua durante o filme. O diretor Feras Fayyad aceita efeitos dramáticos e estéticos em uma introdução comercial de uma área onde pessoas apenas sobrevivem em meio a disparadas de mísseis russos durante o dia em uma cidade já completamente destruída. O que estamos prestes a testemunhar na sala de cinema é um espetáculo, e isso incomoda depois que começamos a ver crianças machucadas entrando na sala da Dra. Amani Ballour.
Ela é pediatra e diretora de um hospital que ainda existe em solo sírio por estar abaixo dele. Através de um sistema de túneis essas pessoas mantém uma sala de cirurgia, uma cozinha e provavelmente muito mais. Cento e cinquenta funcionários possui o hospital, mas mal podemos entender a geografia do local mostrado; o que dirá do resto do abrigo. As imagens capturadas possuem a fúria da guerra e a devida homenagem aos seus heróis invisíveis, mas não é um documentário muito rígido no que diz respeito a informação.
O objetivo de Fayyad é gritante desde o começo: preciso divinizar esta mulher de trinta anos que hoje controla um hospital onde está sitiada há cinco. Ele prepara sua câmera de antemão para os momentos-chave e seleciona as cenas gravadas com uma pauta nas mãos. Vemos sua autoridade como diretora sendo desafiada por um paciente, por ser mulher. Vemos a morte de um filho pela reação da mãe e a esperança dos funcionários ir abaixo. Vemos Amani dizendo toda frase clichê sobre a humanidade espalhado pelo filme. Fayyad faz todo o serviço de horas de filmagem parecer fácil, mas seus objetivos estão tão destacados daquela realidade horrível que a história desta verdadeira mártir soa como promoção.
Para proteger o anonimato da família que espera por seu retorno apenas ouvimos as gravações no celular, além da imagem constante das suas flores, que a aguardam. O celular neste mundo de opressão possui a função bizarra de nos relembrar a todo momento que estes são os tempo atuais, apenas distante no espaço, muito longe de nossos lares. O celular também é usado pelo cirurgião para ouvir música clássica, e o filme, em um dos momentos mais brilhantes, transpõe essa música da sala de cirurgia para as ruas da cidade, cheias de entulhos e sobreviventes correndo como ratos.
A maior virtude deste documentário e dos tempos atuais é a captura de imagens impossíveis de saírem daquele local sitiado. The Cave nos entrega isso em um formato comercial e agora sua visibilidade é imensa. Mesmo destituído de qualquer virtude cinematográfica, apenas a sua exposição já compensa toda promoção de cenas horríveis. Pelo menos isso é o que imaginam seus idealizadores.
# A Chance de Fahim
Caloni, 2020-02-05 cinemaqui cinema movies [up] [copy]A Chance de Fahim chega como um drama preguiçoso em que a notícia de jornal acaba sendo mais empolgante do que um filme inteiro. Fahim Mohammad, um garoto de Bangladesh, chega com sua família em Paris foragido de sua terra natal e suas habilidades em jogar xadrez o ajudam a se estabelecer no novo país. A versão cinematográfica diminui seus personagens para que eles se encaixem no único interesse do diretor e roteirista Pierre-François Martin-Laval: uma mensagem social sobre refugiados.
Eu jogava xadrez frequentemente na minha adolescência, voltei a jogar quase todos os dias há mais de um ano e recomendo que você comece hoje. É fácil depois que se aprendem as regras básicas. E, dado o devido tempo, as táticas e estratégias viram apenas o pano de fundo de uma auto-análise profunda sobre a vida e como encaramos nosso dia-a-dia. Nem todos podem lutar boxe e aprender alguma coisa com isso, mas todos, independente do seu nível de inteligência, podem encontrar no xadrez um espelho de sua alma.
Filmes sobre este esporte (está nas Olimpíadas, inclusive) costumam ser fascinantes porque o que está em jogo não são peças em um tabuleiro, mas personalidades e vidas. Entre os exemplos mais vitais estão dois filmes dos anos 90, Lances Inocentes (Steven Zaillian) e Fresh (Boaz Yakin). Enquanto o primeiro nos apresenta essa metamorfose na personalidade necessária para dominar o nosso eu psicológico, o segundo vai pras ruas e demonstra o que acabei de afirmar sobre a universalidade do xadrez, mesmo que você seja um garoto vivendo sob a asa de gangues em Nova York.
O roteirista Martin-Laval com certeza assistiu esses dois filmes e aplicou alguns de seus elementos em sua história, mas não conseguiu mesclar o jogo com a vida real. Regras e táticas no jogo é praticamente tudo que o instrutor de Fahim lhe ensina durante sua jornada, mas não é nada do que vemos no filme, que usa o contexto do tabuleiro para referenciar grandes mestres (campeões mundiais) e nomes de aberturas famosas (lances iniciais de uma partida), enquanto a história de Fahim e sua família segue em paralelo, sem conexão.
O formato deste filme é frustrante para fãs do jogo do cavalo porque ele nos entrega tanta previsibilidade que se torna uma análise post mortem de uma partida que já sabemos o resultado. Para acrescentar um pouco de reviravolta o roteiro omite os acontecimentos que levaram Fahim e seu pai a fugir do país, mas quando descobrimos é como se isso não importasse mais. Soma-se a isso todos os momentos em que Fahim dramaticamente se atrasa e todas as coincidências que convergem para uma partida crucial que decidirá algo que o filme com ambivalência deseja e não deseja contar, ignorando que já sabemos tanto o que será decidido quanto qual será o desfecho.
Os percalços linguísticos do pai de Fahim ocupam tanto tempo de tela e fazem tão pouco para enriquecer a trama que o personagem vai desaparecendo aos poucos. Desde o começo sem qualquer ideia do que fará em uma terra onde mal sabe dizer frases básicas de convívio social, o papel de Nura na história é ser um personagem inacreditável, pois enquanto consegue as conexões necessárias para fugir do país com o filho é incapaz de buscar ajuda a partir daí, transformando sua família em estatística, como mais vítimas da crise de refugiados políticos.
Enquanto isso, entre as pautas mais irritantes na cartilha social vigente, o feminismo de check list é o mais odiável. Ele não entrega nada para o público feminino além de condescendência, e distorce a realidade de uma maneira nunca antes vista. Tome por exemplo o papel de Sarah Touffic Othman-Schmitt como Luna, a segunda melhor enxadrista do clube de xadrez de Gérard Depardieu, atrás apenas de Fahim. Esta é uma personagem da vida real que nunca existiu (a equipe original do clube de xadrez não tinha uma garota) e é notório não apenas que ainda é minoria as jogadoras no meio enxadrístico, mas também a posição no ranking sempre as coloque em desvantagem em relação aos homens. Mais proveitoso seria se o filme, no meio de suas inúmeras referências aos grandes mestres, citasse Judit Polgár no lugar de Gary Kasparov. Polgar figura entre as melhores jogadoras do mundo, independente de gênero. E, diga-se de passagem, tão ou mais agressiva quanto Kasparov.
Já entre as convenções mais irritantes nos filmes comerciais, a cereja do bolo é enfiar algum relacionamento amoroso porque Hollywood entende que isso abre espaço para o público feminino. E por isso os personagens de Depardieu e Isabelle Nanty (você irá lembrar dela em Amélie Poulain) sofrem dos sintomas dessa doença cinematográfica que precisa aproximar todo casal que trabalhe junto. Uma relação completamente gratuita para a história, diga-se de passagem.
Gérard Depardieu está envolvido em todo filme em que um urso gordo e raivoso é permitido atuar, mas isso não o torna o melhor ator para o papel. Aqui ele apenas repete trejeitos, como socar a parede ao ensinar seus alunos, e sua face melancólica é vazia, como se ele estivesse pensando em qual será seu próximo ursídeo papel.
Além disso, este é mais um filme envolvendo xadrez ou outro tipo de luta em que o treinador possui um trauma em que poderia ter sido o campeão. No que voltamos às inspirações de Pierre-François Martin-Laval, com Lances Inocentes, onde a atuação invisível de Ben Kingsley já imortaliza seu personagem para esta e as próximas gerações como o treinador acadêmico/frustrado Bruce Pandolfini. Gérard é uma mera sombra socando as paredes frente ao trabalho de Kingsley.
Por outro lado, a energia de Assad Ahmed mantém a única coisa em foco no filme que vale a pena acompanhar. Seu Fahim é, diferente de todos no set, exceto o elenco-mirim, um personagem focado. Econômico, Ahmed demonstra a personalidade de Fahim apenas nos momentos onde ela poderá ser percebida pelo espectador, quando por exemplo ao sugerir que seu treinador se veste mal, dizendo de uma forma brincalhona e assertiva ao mesmo tempo. Sua postura física nos campeonatos que participa é de um auto-controle ímpar, pois ele está de fato fazendo mímica com o Fahim original, mas ao mesmo tempo acrescentando sua dose de empoderamento nos tabuleiros. É Fahim levantando a mão após o final da partida para o árbitro recolher as anotações, mas a energia de Ahmed que sabe como esta mão deve ser levantada.
Esta é mais uma história que dá uma cara aos seus vilões para justificar os seus heróis, mas você não irá se lembrar quem são porque eles de fato não importam. O mal como o conhecemos no século 21 não possui caras, mas ainda há os que fazem filmes como se estivéssemos nos mais lúdicos e simples anos 90.
O público sairá da sala de cinema emocionado pelos motivos errados e perderá mais uma vez a chance de entender o drama por trás de uma partida de tabuleiro. Por isso volto a fazer a recomendação do início do texto: jogue xadrez. E comece hoje. Daqui um ano estará analisando melhor a si mesmo e aos filmes que assiste.
# Martin Eden
Caloni, 2020-02-06 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Martin Eden... Martin Eden... Martin Eden. Ouvimos esse nome tantas vezes neste filme que ele se torna inconfundível. Um nome que pode significar tantas coisas acaba se tornando indecifrável. No final ele se confunde com a espuma do mar. Nunca existiu este escritor, e nunca existirá, mas ele é a síntese de todos os que já existiram.
Jack London, o mais vendido, mais bem pago e mais popular escritor norte-americano de seu tempo, era um homem de mente rápida e que escrevia romances como correntes de pequenas estórias, e este filme italiano que adapta uma de suas obras mais conhecidas possui um pouco desse emaranhado de sentimentos e momentos. De caráter semi-biográfico, este é um estudo de personagem que se universaliza pelas dores humanas. A história de Martin sugere que ele viu a mesma miséria que Jack, e ela é tão profunda que sequer a enxergamos no filme.
Luca Marinelli e Pietro Marcello escrevem um roteiro que mistura elementos literários dramáticos que Pietro Marcello dirige como elementos cinematográficos teóricos. Há cenas belíssimas em um filme com uma fotografia feita para um épico e que não encontra a personalidade com que sonha. Da mesma forma a música, a produção, e seus personagens. Há montagens lúcidas que Marcello conduz que são sutis em suas mensagens, mas que aos poucos se tornam um berro inaudível, pois são incompreensíveis pela racionalidade.
Esta é a história de um homem de origem humilde, um marinheiro que navega pelo mundo, e que decide ao visitar uma família burguesa que deseja ser como eles. Porém, nós sabemos que isto não é verdade, pois Martin está apenas apaixonado por Elena, a deusa da beleza, a queridinha do brasão Orsini. Sem completar sua educação formal ele inicia sua jornada para se tornar escritor, pois se apaixona pelas palavras. Acompanhamos, então, a velha batalha dos que decidem ter sua voz publicada, ao mesmo tempo que este romance que une plebe e realeza nos tempos do capital nos entretém ao fundo.
Não é possível evitar se apaixonar por Elena. Jessica Cressy é a coisa mais bela na tela em toda cena em que aparece, tanto que o filme sabiamente retira todo o cenário em volta nas cenas em que apenas ela aparece. Quando Martin está longe de sua amada a imagina em um fundo de cor primária, e apenas ela, com seu sorriso, seu olhar e seus lábios repete a fala que ele acabou de ler em uma das inúmeras trocas de correspondência que surpreendentemente eles conseguem trocar, já que é óbvio que a família desde o início não considera este um relacionamento sério.
Quem também está apaixonado é Pietro Marcello, pelo autor do livro que dirige. Ele mistura ficção e realidade, mesclando imagens de arquivo da época em que Jack London era vivo, para ilustrar o que o autor supostamente viu e imaginou quando estava inspirado. Marcello deixa Martin de lado em alguns momentos, pois quer mostrar imagens que decifrem seus pensamentos sem precisar de palavras, e por isso faz de tudo para inseri-lo no contexto histórico adequado, seja uma cena de crianças dançando quando ele se lembra da infância com a irmã ou um barco de velas antigo quando se lembra de sua origem humilde de marinheiro. O resultado é mil vezes mais fascinante do que a história de Martin. Sua trajetória como escritor já vimos muitas vezes em outros filmes, mas essa mistura de referências soa a poesia, e poesia no cinema é coisa rara.
Se Jessica Cressy é de fato, como o nome de sua personagem denuncia, a deusa grega da beleza, Luca Marinelli como Martin é um frescor de hombridade, um heroi no sentido mais clássico possível. A virtude da atuação de Marinelli é como ele se desvincula de sua beleza quando necessário, na pós-fama e à beira da loucura e solidão, e a usa quando convém ao seu momento de "evolução", como quando é parte da burguesia, ainda que um invasor, mas se sente, ou quer se sentir, um deles. O ator é verdadeiro em cada momento, mais verdadeiro que a incógnita que surge das páginas escritas por Braucci e Marcello.
"Martin Eden" viaja através da sociedade e da política como a dizer coisas muito importantes, mas como seu protagonista é um individualista convicto seu discurso é inatingível tanto pelos socialistas quanto pelos liberais. Disposto a caçoar de tudo e de todos, este é um filme que não deve ser levado a sério em suas mensagens ideológicas, pois ele de fato não as possui, usando apenas o que é necessário para construir uma figura polêmica e contraditória. Mas o mais engraçado será acompanhar as rodinhas de discussão em torno do que ele diz, ou ver alguns tuítes raivosos.
Eu, particularmente, prefiro me manter firme e forte como acompanhador de memes. E gifs animados.
# O Diário de Uma Camareira
Caloni, 2020-02-06 cinema movies [up] [copy]Meu primeiro Luis Buñuel, este maluco surrealista (como deve ser todo surrealista) que abdica da razão para conseguir atingir a emoção freudiana. Com medo de se tornar o tipo mais comum e surrado das teorias do psicanalista, o neurótico, o cineasta escreve errado por linhas apagadas e conta a história de uma camareira deliciosa de Paris e como todos os homens do interior adorariam fazer qualquer coisa com ela.
A fascinação canina dos homens pelas mulheres no filme chega no nível psicótico, mas o filme é dos anos 60 e, portanto, mais bem comportado do que nós poderíamos esperar hoje em dia de um filme falado em francês. Mas o que ele insinua é senão pesado muito atípico. O sexo é tratado como gostaríamos que fosse tratado se os americanos não tivessem institucionalizado o pudor como patrimônio do cinema ocidental, mas ao mesmo tempo a violência contra a mulher e as crianças atinge um nível alarmante demais até para o mais apaixonado pelos ideais libertinos.
A violência do crime, mesmo sem ser totalmente explícito, impacta o resto da produção. Após esse momento esperamos por mais lógica, e Buñuel nos entrega justamente o contrário, com personagens que mudam de ideia a todo momento, fugazes em seus valores. Acontecimentos podem ser reinterpretados após o final, e mesmo que o fossem nada muda. O truque de uma história sem pé nem cabeça é iludir o espectador como se ela de fato fizesse sentido.
Igreja e Estado ridicularizados juntos. Como deve ser. Mas há tanto nonsense em uma história simples que é como se, alvos de escárnio ou não, não fizesse muita diferença, pois não existem modelos do certo neste filme. Apenas modelos de como a vida pode ser bizarra, mesmo que no melancólico campo.
Esses movimentos de câmera do cineasta espanhol, desejando ser inovadores, mas terminando por chamar atenção para si, hoje vira uma atração, ainda que na época pudesse ter seu valor. Porém, não durou como Cidadão Kane. E nem deveria. O surrealismo acabou mais rápido que o Dogma 95. E no cinema sua única marca lembrada é um olho sendo cortado por uma navalha. Bons tempos. Só que não.
# Maria e João - O Conto das Bruxas
Caloni, 2020-02-07 cinemaqui cinema movies [up] [copy]"Maria e João - O Conto das Bruxas" nos conta a que veio já na inversão dos nomes dos heróis no título, e até mesmo no seu subtítulo tacanho e revelador. Assim como o divertidinho "João e Maria: Caçadores de Bruxas", de 2013, protagonizado por Jeremy Renner e Gemma Arterton com energia de sobra, esta é uma subversão da história original, já que todos sabem que ninguém será processado por uma fábula de domínio público.
Diferente do conto documentado pelos Irmãos Grimm, aqui Maria é uma adolescente e João é uma criança que precisa de seus cuidados o tempo todo. O diretor Oz Perkins gostou do tratamento ao enredo dado pelo roteiro de Rob Hayes, que assistiu à Bruxa, filme de 2015, empolgadíssimo com a temática feminista. Infelizmente nem Hayes nem Perkins é Robert Eggers, e as possíveis mensagens sociais que o filme pudesse conter se perdem em uma narrativa pra lá de preguiçosa.
A estética dark fantasy do longa brilha no seu lado dark, deixando escondido no porão o seu lado fantasy. Há uma certa tentativa de harmonizar magia com realismo, mas a magia é tão limpinha e pontual que o filme vai se tornando um drama fantástico. Apesar de belíssima, a estética das cores mortas e iluminadas de "O Conto das Bruxas" possui um grave defeito: é belíssima. Ela faz os espectadores adorarem olhar para a tela em vez de se segurarem nas poltronas aterrorizados. Os únicos sustos aqui são forjados pelo som, e mesmo assustados o filme nos indica que tudo estará bem a todo momento.
A temática mais realista coloca cogumelos alucinógenos no chão no lugar de doces espalhados pelo caminho de Maria e João, e as poções de bruxa serão feitas e bebidas sem nenhum efeito imediato. Aliás, sem efeito algum, já que a história apresenta seus conceitos sem ligar muito para as funções que eles terão na história. O exemplo é a poção do sono, que é usado de maneira boba como que para enganar o espectador mais atento que acredita ter descoberto alguma reviravolta.
Sem mistérios que agucem nossa curiosidade, seus poucos personagens são livros abertos desde o primeiro momento que aparecem. O único com um certo mistério é o que menos aparece: um lenhador interpretado por Charles Babalola que acaba salvando os dois irmão de sabe-se-lá qual criatura. Babalola não desperdiça a oportunidade de fazer as honras como um legítimo, puro e honrado mensageiro de jogos de RPG. Envolto em sombras, ele nos dá vontade de sair da sala e entrar em outra. Sabe como é, ver um filme diferente, que não esteja passando um revisionismo histórico de uma fábula de bruxas.
Enquanto isso, Sophia Lillis é uma atriz que possui presença de tela, mas aqui não lhe deram uma personagem para se sentir à vontade como em "It: A Coisa". Seu olhar é genuíno e atento. Maria está sempre prestes a tomar a melhor decisão para seu irmão, o seu protegido e parasita, e para isso qualquer detalhe da rotina da bruxa acaba passando pelos seus sentidos. Os sonhos que ela tem dentro da casa convencem melhor por sua atuação internalizada, um medo cauteloso, que mistura sofrimento na vida com o imediatismo da situação.
Já Alice Krige como a bruxa é uma decepção de desenvolvimento, pois o roteiro de Rob Hayes não lhe dá a oportunidade do desequilíbrio. Tudo está balanceado em uma trama macabra que espera-se que as coisas dêem errado em algum momento. Krige começa dizendo suas falas com um certo entusiasmo, mas logo ela passa ao tom monótono e assim permanece o filme inteiro, aguardando o cheque do cachê ser descontado. Nem é demérito da atriz, que está corretíssima como uma velha ermitã dona de seu próprio destino, mas seu destino é ficar eternamente dizendo frases de autoajuda para Maria.
A dinâmica entre as mulheres do filme é ótima e tal, dando um sentido literal ao adjetivo empoderada que até então estava nas mãos apenas das heroínas da Marvel e DC. Porém, mesmo passando no Teste de Bechdel, isso não basta para tornar os diálogos entre a bruxa e Maria como algo além da situação que vivem. É preciso que exista uma conexão entre as duas que justifique o estado de espírito da irmã de João no terceiro ato, mas isso nunca ocorre. Como a maioria dos filmes, joga uma boa ideia no começo para se esquecer do que estava fazendo todo o resto do percurso, para nos minutos finais voltar para o que nem estávamos mais interessados em saber.
Este é um filme cheio de símbolos e que flerta com o gnosticismo, mas não estamos assistindo a um trabalho de Darren Aronofsky, onde elementos vistos em A Fonte da Vida ou Noé são facilmente capturados pelo espectador, mesmo que ele não conheça muita coisa fora do circuito pop. Aronofsky domina o conhecimento em seus filmes pela sugestão visual. Neste filme de Perkins o que indica conhecimento são ícones jogados na tela, sonhos enigmáticos, um galpão misterioso e um porão sugestivo. Eles são espalhados no chão com a esperança que nós espectadores peguemos e nos deleitemos com seu sabor, independente de como ele se relaciona aos outros ingredientes da história.
Pegue aquele triângulo, por exemplo, usado no início da história e no formato da casa da bruxa. É um símbolo batido e genérico. Não está ligado com nada em particular. Se trata de uma alusão a três elementos, como início, meio e fim; ou corpo, alma e espírito; entre outros. Três pontos que se ligam e temos a letra grega delta, que representa mudança, ou um circuito que volta ao princípio. Isso tem lá seus significados na conclusão da história, mas o espectador provavelmente irá adivinhar muito antes. Perderá sua função após a primeira ida ao banheiro.
A trilha sonora é assinada por Rob, ou Robin Coudert para os menos íntimos. E Rob, francamente, as suas escolhas são acertadas, mas sua fonte de inspiração é visível. Você trata a única cena de ação como "Mad Max: Estrada da Fúria". Você pontua a distopia social catártica como se estivéssemos em "Mr. Robot". Rob, nós estamos vendo a sua colinha, bem no canto da partitura. Não se usam músicas tão marcantes na memória do espectador como combustível para criação de novas músicas, Rob. Faça como a Marvel, que pega uma música genérica que ninguém irá se lembrar e repete uma variação a cada novo filme. Pelo menos não saberemos de onde veio (provavelmente a mesma origem dos cenários; uma versão sonora do fundo verde).
A imagem de uma floresta seca e mística é poderosa, nos abraça desde o começo, com suas ramificações infinitas de galhos que racham o céu, dia e noite. A lua sobre a casa à noite evoca a mudança de humores. Eu adoraria ver um filme cuja história tem a potência que os elementos simples de uma floresta revisitados evoca, mas este filme não se chama "Maria e João - O Conto das Bruxas", e sim "A Bruxa", de Robert Eggers. Agora vá assisti-lo. Irá tirar o gosto das poções desse filme.
# As Coisas Simples da Vida
Caloni, 2020-02-08 cinema movies [up] [copy]O cineasta Edward Yang é grande conhecedor da natureza humana e realiza durante as três horas de As Coisas Simples da Vida uma incursão por muitos assuntos que giram em torno dos detalhes mundanos de nossa própria vida, seja nosso passado ou presente. Ele orbita uma família, iniciando por um casamento (e um nascimento pela gestação; a noiva está grávida), e termina em um funeral. Os relacionamentos neste filme são ligeiramente exagerados entre os jovens e docemente amadurecido entre os mais velhos. Como deve ser. Nada sobra nem falta neste universo que Yang usa a ótica do espectador que olha de longe, através das vitrines e janelas, como é o dia-a-dia de pessoas comuns. E dessa forma nos faz lembrar e relembrar como é a nossa própria vida.
# O Oficial e O Espião
Caloni, 2020-02-12 cinemaqui cinema movies [up] [copy]O Oficial e O Espião é mais um filme do diretor Roman Polanski que, muito semelhante a O Escritor Fantasma, caminha por becos tortuosos e claustofóbicos para que se encontre a verdade. Nos faz pensar se a verdade vale tanto assim.
Iniciando com um aviso, ou alerta, de que todos os personagens vistos nesse filme são reais, o roteiro escrito por Polanski adaptou o livro do escritor Robert Harris para botar em foco o processo de desmoralização de uma nação, iniciando pelo seu exército. Para isso ele narra o caso do capitão francês Alfred Dreyfus (Louis Garrel), acusado injustamente de ser um espião e condenado a ter suas vestes oficiais degradadas em público e permanecer isolado em uma ilha por sabe-se-lá Deus quando.
Pontuando a passagem do tempo de maneira claustofóbica, pois parece que ele luta para não andar, em seguida acompanhamos a vinda do coronel Georges Picquart (Jean Dujardin) no batalhão de espionagem francês, que busca descobrir traidores e onde em seu escritório, do seu predecessor, está enquadrado o bilhete que incriminou Dreyfus. E é curioso e sintomático que a fonte da futura humilhação francesa esteja sendo exibida como um exemplo de investigação.
Dujardin como Picquart está imóvel. As reações de seu personagem são reflexo do que o espectador está achando da história e suas reviravoltas. Nossos valores morais se espelham no caráter desse oficial francês porque este é um ator que não sustenta suas reações como suas, mas apenas como um animal reage, por instinto, quando sabe que está sendo atacado. Mesmo assim sua noção de honra reside justamente em sua resiliência em evitar fazer o mesmo jogo de seus colegas. Curiosamente o papel de Dujardin não é muito diferente do de Adrien Brody em O Pianista, do mesmo diretor, pois ambos observam de maneira impassiva o mundo se radicalizar, e essa maneira de olhar as coisas é de certa forma um protesto silencioso.
As músicas de thriller de Alexandre Desplat são úteis, pois sabemos que se nos esquecermos de qual filme estamos vendo sua música estará pronta para nos recordar. Desplat adquire o cacoete do diretor para quem está trabalhando e cria uma atmosfera angustiante pela beleza de se deixar imerso nela. Tanto a música de Desplat quanto as montagens idealizadas pelo seu diretor nos afogam em um pesadelo de desesperança. E ainda por cima este pesadelo soa contemporâneo, pois a qualquer momento o fanatismo de um povo pode o levar para marchar em direção ao abismo em um ritmo sem volta.
Este é um filme escuro do começo ao fim, mas ele vai se tornando cada vez mais escuro durante suas duas horas e 12 minutos. A fotografia é áspera, feia, e de propósito. Não gostaríamos de viver em um momento tão delicado da história humana, onde o antissemitismo será usado como ferramenta política por meio século até o seu trágico final conhecido. Imersos nestes tons acizentados, até a cor vermelha soa desbotada. Mas sabemos que o vermelho também será usado como ferramenta política, por mais de meio século, até o seu trágico final conhecido.
Os fatos narrados são tão complexos, atuais e depressivos em suas nuances que faz bem o espectador que apenas presta atenção na historinha principal. Esqueça essas lições de moral sobre como ideologias podem não apenas matar, mas desestruturar sistemas inteiros como os países pós-impérios, mas pelo menos observe a imensa rede de influências entre cada patente militar e note como o Coronel Picquart luta contra uma correnteza inescapável de fé nos ideais errados.
Para acompanharmos a mensagem sobre os erros que um país pode cometer e ainda ser aplaudido, já que Picquart não encontra suporte algum em uma massa uniforme, mecânica e anencéfala de ação que é o exército, cuja crença em sua infalibilidade chega a níveis doentios, "O Oficial e O Espião" lidam com a questão de como patriotismo e nacionalismo podem se tornar doenças coletivas, verdadeiras epidemias, se levadas como regra, e não consequência, das atitudes morais de um povo. Isso lhe soa familiar?
# Amor à Tarde
Caloni, 2020-02-13 cinema movies [up] [copy]Este é um daqueles filmes do diretor que é uma coletânea de outros filmes? Não sei. Autor dos contos da estação e das 4 Aventuras de Reinette e Mirabelle, a franqueza com que o cineasta Éric Rohmer discute assuntos cotidianos, como o amor conjugal, traz empatia, realismo e paz no coração. Os cenários reais encantam por seres documentários de uma época. As situações que seus personagens se encontram são capazes de acontecer com qualquer um. Rohmer nos apresenta à femme fatale da vida real, uma conhecida que acaba virando sua amante. Quem nunca?
# As Invisíveis
Caloni, 2020-02-13 cinemaqui cinema movies [up] [copy]As Invisíveis é uma dramédia alto astral com momentos comerciais que fez com que ele contratasse um batalhão de atrizes em moldes semelhantes à série Orange is The New Black, onde cada personagem tem suas idiossincrasias, enriquecendo e humanizando a história. Dirigido por Louis-Julien Petit, que já trabalhou na segunda e terceira unidades de vários filmes de Hollywood, este é um filme que mescla bem seu drama de "filme de arte" com seu lado mais blockbuster. E é isso o que fez com ele fosse um sucesso de público na França, não o fato de ser protagonizado por mulheres.
Cada uma de suas personagens tem algo a acrescentar nesta coleção de pequenos dramas, e você com certeza conhece ou já ouviu falar de uma pessoa com pelo menos alguns dos problemas das mulheres retratadas neste filme, e isso tem muito a dizer sobre humanização. Apesar deste ser um filme sobre sem-tetos, a empatia surge ao percebermos que seus problemas não estão tão distantes do nosso próprio dia-a-dia. É revigorante olhar para essas mulheres e ver que elas lidam melhor com as dificuldades do que nós dentro de nossas casas. Todos somos seres humanos, mas os humanos deste filme são mais fortes e resilientes.
Não é possível destacar uma ou outra do elenco porque este é filme de protagonismo coletivo. Apesar do roteiro esboçar uma ou outra personagem com algum arco dramático, principalmente na equipe de assistentes sociais que estão prestes a perder seu espaço de convívio, este é um trabalho de expressão coletiva. As histórias se misturam, e muitas vezes é difícil se lembrar quem é quem, enquanto é mais fácil saber quem pode o quê.
O roteiro foi escrito por Julien Petit e Marion Doussot baseados no livro de Claire Lajeunie "Sur la route des invisibles - Femmes dans la rue" (em tradução livre: "Na estrada do invisível - Mulheres na rua"). Lajeunie chegou a dirigir e escrever um documentário uma década atrás sobre as mulheres de rua. Situação calamitosa nas ruas, 40% dos sem teto atualmente são mulheres na França, e embora o longa evite mostrá-las sendo vítimas de violência e abusos, apenas a insinuação por diálogos soa ambivalente, pois enquanto parece uma piada nos lembramos que infelizmente pode ser verdade.
Ao usar o nome de celebridades femininas em vez de seus nomes reais, este universo onde mulheres ajudam mulheres se torna mais suportável das conhecidas mesquinharias do mundo feminino. Elas estão cientes das humilhações por trás da velhice, do desemprego e do gênero, e umas ajudam as outras sem lembrá-las que suas chances de seres felizes é mínima. Elas aprenderam a se suportarem em um mundo que lhe dá as costas.
A figura mais icônica é uma senhora que conserta qualquer eletrodoméstico. Aprendeu em um curso enquanto estava presa por ter matado o marido que a batia. Ela coloca a honestidade acima da chance de ter um emprego, e com isso mantém para si a sua honra e dignidade. É um exemplo invisível em um filme que dá mais voz ao empoderamento do que ao mérito dos que se mantém vivos apesar de.
Se há uma protagonista é uma moça que vive com o irmão e que se desdobra para encaminhar cada uma de suas órfãs da vida. Ela as segue quando vão procurar emprego e monta um workshop para que se provem suas habilidades em fazer algo da vida. Essa é uma pessoa que não tem outra vida exceto a de ajudar às outras, e sabemos que ela irá despencar sem ter alguém para ajudar.
Recheado de momentos vergonhosamente deliciosos onde um bando de mulheres vive apesar de muitos percalços, As Invisíveis é uma ode às pobres anônimas que sequer possuem endereço no mundo. Muitas não pediram para estar nessa situação, mas a abraçam como seu verdadeiro lar. Este não é um filme com a solução para elas, mas um atestado de sua existência.
# Tolerância
Caloni, 2020-02-13 cinema movies [up] [copy]Este é o filme em que aparece na capa Maitê Proença, duas vezes capa da Playboy, de lingerie. A chamada de marketing é que ela está sensual como nunca antes. Foi lançado na mesma época da Playboy? De suas duas edições recordes de vendas? Como a visão que temos da internet dos anos 2000 é jurássica, com esses barulhinhos para ligar o modem. E como o Brasil reconquistando o espaço de cinema é hilário. Ainda entre dois mundos: o da arte francesa com crítica social e a pornochanchada com cenas picantes e direito a nudez feminina. Não estou reclamando.
# Entre Realidades
Caloni, 2020-02-14 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Entre Realidades tem cara de independente e hipster. Foi escrito pela atriz Alison Brie e pelo diretor Jeff Baena, que ficou conhecido pelo ótimo Vida Após Beth, com Aubrey Plaza. Filmado pela Netflix em Los Angeles, faz pensar em como qualquer tipo de espectador hoje em dia é um espectador de streaming. (Essa frase foi escrita antes da pandemia do Corona Vírus, mas agora é sério e literal, pelo menos nas próximas semanas: todo espectador é um espectador de streaming. Por favor, fiquem em casa.)
O conceito é vago, quase inexistente. Mexe com o consciente de uma pessoa cujo inconsciente navega por experiências que estão no imaginário popular, mas que nunca sobem à superfície como um discurso realista. Quem o faz é chamado de maluco, e este é um filme sob o ponto de vista de uma maluca.
Essa maluca é Alison Brie, que não usa quase nada do seu já esgotado charme da série Community. Brie protagonizou recentemente a série de luta livre GLOW (também pela Netflix) e anda perdendo uma espontaneidade meticulosa que a tornava pelo exagero uma persona única. Esta persona seria útil aqui.
Cores leves e um tema pesado acompanham a rotina de Sarah, que trabalha em uma loja de tecidos e não tem amigos. Ela tinha uma égua, mas algo aconteceu que a fez perdê-la. Ela tinha um namorado, mas já faz um tempo. E ela tinha uma mãe depressiva que se matou no ano passado. É, as coisas não andam muito boas para Sarah.
O plot acaba sendo que todos sabem que ela é maluca e isso é usado como a muleta para entendermos todo o filme de outra maneira, ou pelo menos sob outro prisma: o prisma dos insanos. Porém, essa insanidade, quando vem, chega atrasado, quando já estamos preparados para o inevitável: essa história não terá respostas fáceis. Mas pior que isso é não nos importarmos mais com o destino da heroína.
Lutando contra a malucofobia em tempos em que é necessário tolerância até para quem crê que o planeta é plano, Entre Realidades abraça todas as formas de enxergar o mundo. Inclusive em como os alienígenas estão envolvidos com a humanidade, desde a construção das pirâmides até o uso de clones como termômetros humanos.
Mas tanta tolerância tem um custo: este não é um filme engraçado, mesmo que em uma finada locadora fictícia ele possa ser colocado na prateleira de comédia. Filmes sobre pessoas que criam unicórnios não são mais engraçados a partir do momento que precisamos respeitar a maluquice alheia. Porém, veja pelo lado bom da vida: torcemos para que Sarah consiga finalmente o que quer, mesmo que saibamos de fato se o que ela quer é verdade, nem se vale a pena.
# Eu Posso Ouvir o Oceano
Caloni, 2020-02-16 cinema movies [up] [copy]Os Estúdios Ghibli criam personagens realistas em cada trabalho porque há um pluralismo nas características desenvolvidas nas personalidades e nas situações que eles vivem e interagem. Ao longo do tempo da narrativa eles alcançam um nível de quase-vida. Somos quase capazes de reconhecer um ser humano completo, ou pelo menos seus anseios, ambições, medos e lembranças. O tempo e as memórias são elementos tão vitais para a equipe de desenhistas e roteiristas que eles criam uma linguagem especial apenas para expressá-los da melhor maneira possível.
Esta é uma história simples de pouco mais de uma hora sobre dois garotos amigos de uma escola do interior. Surge uma garota da capital cujo temperamento é um misto entre problemas na família e incapacidade de confiar nos outros. Nenhum deles enxerga a garota real porque essa é a adolescência e também porque a história é incompleta. Faltam pedaços que nos impedem de entender a real profundidade deste drama adolescente.
Dessa forma, ficamos apenas na superfície, observando os lindos cenários e movimentos desenhados pela equipe de produção, e como até nos rostos desses jovens já adultos percebe-se um afinco pelo detalhe. Não um detalhe técnico frio, automático, mas um detalhe sensível, que emula a natureza caótica da vida. Nós não sabemos com certeza como será o rosto de crianças que conhecemos hoje. Há programas de computador que fazem isso por diversão e para reconhecimento de pessoas perdidas. Porém, aqui é a natureza em ação. E a natureza está nas mãos dos desenhistas deste estúdio.
# Fim de Festa
Caloni, 2020-02-17 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Fim de Festa é uma guerra declarada contra a lógica opressora burguesa, dessas que abominam o Carnaval e exige que lindas mulheres cubram os seios em público, mas ao mesmo tempo é uma diversão acompanhar essa aventura investigativa sob os olhos de quem pensa diferente: os subversivos. Que de subversivos não têm nada. É a elite brasileira que é careta, mesmo.
Tudo começa no final do Carnaval no Recife. Wanderlei, investigador de polícia, retorna mais cedo para sua casa por conta do assassinato de uma francesa. Ele encontra sua filha nua indo tomar um copo d'água e ele se lembra de como era sua esposa. Assombrado por um tempo que não volta mais, o clima melancólico do personagem de Irandhir Santos já está estabelecido em pouco menos que dez minutos de tela e a postura acertadíssima do ator, que com o olhar distante e para sempre estupefato vendo sua vida passar cria um protagonista de filme noir em clima tropical.
A francesa era esposa de um brasileiro, filho de uma mãe que escapou do país há muito tempo e que hoje olha para seus conterrâneos com o nojo que apenas brasileiros conseguem ter deles próprios. Vociferando palavras de ordem, ela é a caricatura que serve de base para praticamente todos os filmes da turminha da Ancine. Mas é divertido olhar para esta figura mais uma vez, pois ela aponta dedos para Wanderlei, que não está se divertindo nada e está cansado dessa gente lhe dizendo o que fazer.
Este é um filme antiestablishment, da turma "tem que mudar tudo isso aí" contra os "tem que manter tudo isso aí". Eu já nem sei quem é quem nessa dicotomia dilacerante que nasce nos porões de Brasília e chega como mais um meme de alarme para os tiozinhos de zapzap conseguirem se informar. A única coisa que eu sei é que este é um filme anti-establishment. E por que eu sei disso? Porque ele mostra garotas nuas, de peito de fora, sendo coagidas a se cobrirem pelo pudor e bons costumes. E é anti justamente porque não se vê muitas garotas nuas pelas praias de Recife. Se você vir, me avise.
Porém, o pudor do seu diretor (Tatuagem) e roteirista (A Febre do Rato), Hilton Lacerda, aumenta bastante quando ele aponta sua câmera para o corpo masculino. Vai entender. Essa é uma das razões pelo qual a nudez precisa ter o seu motivo justificado nos filmes. E nesse caso a explicação é que esta é uma nudez política, feminista. Quando as mulheres são coagidas a se cobrir os homens a imitam, pois "estão juntos nessa luta". É tão clichê em 2020 que chega a doer os olhos ao ver essa cena.
Melhor acompanhar Wanderlei. Pelo menos este quase xará fala minha língua, com a sua quase descrença na humanidade. É compreensível que jovens sarados possuam pautas sociais mais descoladas, com seus discursos prontos como a letra da música dos Titãs (Comida). Mas é inadmissível que homens adultos continuem se comportando como meninos. É por isso que Wanderlei já não tem mais esperança no futuro e se concentra na única fonte de curiosidade que lhe resta: investigar crimes violentos.
A brutalidade com que uma gringa foi asfixiada é o que une os diferentes pontos de vista dos brasileiros sobre o que é o Brasil. O marasmo nas investigações se contrapõe aos diálogos paralelos, que nada têm a ver com o assunto principal, mas que justamente por isso ganham uma vida extra. Este não é daqueles filmes chatos que insiste em bater na mesma tecla por duas horas seguidas. Ele é tarantinesco, no sentido que às vezes as pessoas querem apenas sentar e jogar conversa fora.
No entanto, aqui ele soa mais teatral e mentiroso que o necessário. É na falta de naturalidade com que a dinâmica dos diálogos se desenvolve que você percebe que não há uma real pluralidade de visões neste filme, mas, como quase todo filme sobre o assunto, se destaca a visão uníssona de "tudo que está errado aí". Os filmes andam muito unilaterais, fontes do ódio e ressentimento já há alguns anos.
# Doce Entardecer na Toscana
Caloni, 2020-02-19 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Parece haver infinitas maneiras de abordar o tema dos refugiados e terrorismo de nossos tempos. Isso já deixou de ser novidade há mais de uma década, mas agora está sendo usado à exaustão pelas artes e pela mídia. Encontraram o filão dramático que precisavam no momento certo, quando faltam pobres até na China para que as artes se aproveitassem daquela miséria lírica tão bem explorada no século passado. E eis que surge Doce Entardecer na Toscana, um trabalho fantasioso e de interpretação aberta cujo objetivo mais nobre é fazer pensar, e o menos nobre é não saber exatamente sobre o quê.
Seu núcleo dramático gira em torno de Maria Linde, poetisa ganhadora do prêmio Nobel e que está prestes a receber um outro prêmio na cidadezinha da Itália onde se estabeleceu após a imigração causada pelo antisemitismo e pelo comunismo. Ela é a matriarca da família, já é avó e repete mais vezes que o necessário o quanto seu corpo é velho. Comenta mais sobre isso quando está pensando em seu amante, um lindo (e jovem) egípcio. Ah, a paixão dos imigrantes de diferentes gerações...
O motivo pelo qual Linde fugiu da Polônia é inversamente proporcional ao motivo de seu amante. Enquanto ela foge para sobreviver de um sistema desumano e abjeto, ele saiu do país porque... bem, estava afim de novos ares. E de italianas matronas ganhadoras do Nobel de literatura.
É importante notar a diferença de perspectiva de todos os personagens deste filme que impacta mesmo sem entendermos muito bem por quê. Estamos falando de uma família com avó, avô, mãe solteira e um casal de filhos, uma quase adolescente e um caçula ainda bambino. E cada uma dessas pessoas, exceto o bambino, que não tem idade para isso, está em uma fase distinta da vida, o que altera radicalmente as percepções da sociedade em que vivem. Enquanto o marido, caseiro, está alheio a tudo que a cidade grande exagera, sua filha, que mora em Roma, é esse exagero dramático do filme. E a poetisa, que pode estar à beira da senilidade, sobretudo mental, aproveita para entrar no modo "me processa", dizendo e fazendo o que quiser em público porque qualquer processo jurídico que incorra contra sua pessoa tende a ter a vida mais longa do que os anos de vida que lhe restam.
E enquanto esses adultos tentam manter uma unidade familiar apesar de tantas diferenças em como enxergam o mundo, a neta descobre através da nonna um cantor chamado Frank Sinatra. E as esporádicas músicas de "Doce Entardecer" são efusivas, ultrapassam a comunicação verbal indo direto para o coração. Que época maravilhosa, tecnológica e permissiva que vivemos. É impressionante como mesmo vivendo pequenos milagres no dia-a-dia muitos ainda se prendem na televisão, na mídia, e se preocupam com questões alheias à sua vida como terrorismo e refugiados.
Alheias para muitos, a maioria, esses assuntos poderiam ser. Menos para escritores. E Maria Linde sente que precisa se expressar sobre isso. É sua responsabilidade. Porém, ela o faz na mais pura das inocências: considera seus ouvintes e leitores como iguais, capazes até mesmo de interpretar suas palavras sobre terrorismo, logo após um atentado em Roma, de maneira racional. Maria pode não ter medo do que diz, mas o resto do mundo responde de maneira reativa, automática e agressiva. E isso já diz mais sobre o mundo em que vivemos do que qualquer palavra jamais dirá.
A atriz Krystyna Janda é quem interpreta a poetisa, e entrega a ela um desprendimento das tensões sociais que é admirável e desejável em qualquer ser humano decente. Ela toma café no cais e cheira os peixes recém-capturados pelos pescadores logo após o crepúsculo, quando o filme inicia. Cumprimentando-os, um deles exclama "finalmente o sol chegou!". Ele se refere tanto ao sol quanto à imagem de uma bella donna caminhando pelo cais. É simples e tocante, porque não existem controvérsias e o sol acabou de nascer. Apenas um café matinal entre seres humanos decentes.
Virando o filme do avesso, o que se segue é um longo e tortuoso entardecer. Não um entardecer literal, o sol se pondo, mas a escuridão metafórica que a sociedade vive. É o anti-iluminismo, quando as pessoas param de pensar. O diretor Jacek Borcuch capta esse sentimento de maneira visual, e com a ajuda de seu fotógrafo, Michal Dymek, realiza tomadas que lembram filmes do Terrence Malick, mas apenas se Malick estivesse em depressão depois de tomar um café com Lars von Trier.
São cenas escuras, drenadas de beleza. Deveriam estar jorradas de grãos mais brutos, mas nossos olhos não estão acostumados a ver tanta feiúra de uma só vez. Então Dymek coloca a sua câmera na mão, alucinada e ao mesmo tempo mesmerizada. É o sentimento de urgência, de quem acredita ser este o apocalipse. Não quer dizer com isso que são cenas rápidas, mas apenas o efeito psicológico sufocante entre a falta de luz e os enquadramentos ligeiramente defeituosos, cambaleantes.
O mais triste de "Doce Entardecer" é que muitos espectadores sairão da sala de cinema ainda sem entender por que a poetisa disse aquelas palavras. Claro que eles não são ignorantes: estão cientes das consequências que aquelas palavras podem ter no mundo globalizado. Mas ao mesmo tempo eles inconscientemente zelam pela estabilidade do status quo. E não percebem que artistas existem para derrubar muros e construir pontes. Agora imagine um mundo onde pessoas como Maria Linde sejam tratadas como na última cena, e entenderá até onde tudo isso pode chegar.
# Identificação de Uma Mulher
Caloni, 2020-02-19 cinema movies [up] [copy]Antonioni é aquele diretor italiano que junto com Fellini e outros realizou trabalhos de neo-realismo, um período em que a Itália convive com seus fracassos políticos bem de perto, olhando para a população. Abandonando tudo isso nas décadas seguintes chegamos neste soft porn com cara de filme de arte. Temos a estonteante Daniela Silverio nua em vários momentos, e quando ela some é claro que Tomas Milian vai atrás.
Este é um filme com várias ideias interessante e uma direção extremamente competente. O que dá errado é que não adianta juntar várias ideias boas em um conjunto onde nenhuma delas colabora para algo em comum. O resultado é que podemos nos entreter por todo o trajeto, mas no final fica a sensação que era melhor ter ficado em casa. Por quê?
Porque Antonioni não consegue encontrar nesta obra algo que seja diferente do que fazer um filme. Cineastas contemporâneos famosos estão andando nesse mesmo círculo que Antonioni percorre perdido. Tarantino, Almodóvar, Lars von Trier. Apenas Woody Allen parece se salvar, mas a sociedade em que ele sobrevive já não entende/pensa mais a respeito, o taxando de pedófilo machista.
Quando um cineasta decide que irá fazer um filme porque não consegue evitar, as chances de sair um grande filme são grandes, e as chances de alguém pará-lo, mínimas. Contudo, depois que um cineasta tem seu nome consagrado e pode fazer o que quiser, a ideia que não sai mais de sua cabeça é escrever e/ou digirir um filme sobre ele mesmo e seus percalços até a fama. E agora que veio a fama, a dificuldade de entrar na rodinha dos milionários.
O protagonista desse filme é Niccolò, um diretor de cinema que está em busca de um rosto feminino para seu próximo filme. Enquanto isso se enamora de uma cliente de sua irmã ginecologista e frequenta as rodas de amigo da bela e lascívia Mavi. Ele não se encaixa com ela nessas rodas, apenas na cama. E quando ela some toda a construção da trama em boa parte do filme desanda de uma vez.
# Cem Quilos de Estrelas
Caloni, 2020-02-20 cinemaqui cinema movies [up] [copy]A cabine de imprensa teve convidadas ilustres que nunca apareceram antes: mulheres obesas interessadas na temática de Cem Quilos de Estrelas, estreia em longas-metragens de Marie-Sophie Chambon, protagonizada por uma adolescente com o peso e inteligência acima da média. Antes de iniciar a sessão ouvimos a introdução da assessora sobre o filme, que mencionou em algum momento a palavra "gordofobia". Iniciado o filme, duas das convidadas ilustres ficaram mexendo no celular o tempo todo, e três delas chegaram atrasadas e conversando em um tom de voz que parecia estar em uma praça de alimentação.
Vivemos na Era do Individualismo, onde cada um olha apenas para seu próprio umbigo e ainda clama pela atenção dos outros desesperadamente. A melhor forma de fazer isso é com o desrespeito em lugares públicos, pois ele atinge o maior número de pessoas presentes. A segunda melhor forma é instituindo direitos e campanhas que conscientizem as outras pessoas de que estas pessoas merecem consideração. Merecem mesmo?
Uma coisa que eu sei é que garotas como a Löis do filme com certeza merece. Inteligente e dedicada, de dia ela se empenha em seu projeto de ciência, um lançador de sonda interplanetária, e de noite ela sonha com as estrelas, em se tornar astronauta e viajar para outros mundos. Se uma adolescente querer ser astronauta quando crescer soa clichê, isso nunca parece um lugar-comum em Cem Quilos de Estrelas, porque sua protagonista é intensa demais para entendermos como mero capricho da idade. Löis sabe exatamente o que quer da vida.
Claro que seus motivos não são saudáveis. Vindo de uma família onde a mãe é obesa e o pai não, a dinâmica feminina em casa sempre tem sido de autocompaixão alta e autoestima baixa. Não cabe ao filme explicar os julgamentos da sociedade contemporânea em cima dos que estão acima do peso, pois isso sim é lugar-comum. Todos sabemos os pilares da indústria da beleza e de todo o marketing pessoal dos dias de hoje: seja impecável, por dentro e por fora. As tentativas da militância para questionar os parâmetros de beleza empurrados goela abaixo pela mídia e pelos comerciais não avançaram muito.
Isso se desenvolve como uma falta de pertencimento de Löis, que cresce dentro de si a ideia constante de fugir para o lugar mais inóspito, o espaço, e assim "corrigir" seu "problema" da maneira mais inversa possível: se isolando do mundo que a rejeita como ela é. Por outro lado, essa mesma ideia a fez se tornar uma criança tão focada em seus objetivos que ela acaba se tornando uma figura admirável para o espectador. Podemos questionar sobre o nível de mal estar que preconceitos geram às pessoas, mas o que não se discute é o quão poderoso é termos exemplos de vida para nos espelharmos.
O filme conduzido por Marie-Sophie Chambon descamba para uma aventura condescente que mistura road-movie com amadurecimento de Löis e dessas três jovens desajustadas, todas internadas em uma clínica psiquiátrica, cada uma com um problema diferente (diversidade o nome). Amélie é bulímica. Stannah é cadeirante. Justine é eletrossensível. E se digo o nome delas de memória é porque o filme as torna memoráveis, mesmo com relativo pouco tempo para cada uma das três coadjuvantes. Isso ocorre porque o elenco jovem está extremamente entrosado e sua diretora mais ainda com sua câmera, nos presenteando com sequências teen de música pop com batida forte e video-clipes que dinamizam o drama ao mesmo tempo que o diminui. Este não é um filme para chorar, mas para celebrar: sim, elas são capazes.
Marie-Sophie investe em quadros bem fechados, onde os cenários importam menos do que os momentos íntimos que essas garotas passam, descobrindo a confiança que uma deposita na outra. A fotografia de Yann Maritaud oscila de maneira elegante e harmoniosa as cores presentes em um universo adolescente como o roxo e o azul (note a introdução do filme), com os momentos mais drenados de esperança, onde apenas é permitido cores mais neutras sob uma luz externa mais acizentada. É curioso como o interior de uma caverna se torna aconchegante através de um aumento no contraste puxando para mais dourado e cor de terra.
Enquanto isso, o roteiro se dá muito bem com esse universo misto, pois se trata de um trabalho desenvolvido com naturalidade e sem exageros, e ainda que previsível em todas suas reviravoltas, nós entendemos que a vida na maioria das vezes é assim. Há algumas facilidades que Marie-Sophie e a roteirista Anaïs Carpita utilizam para permitir que a história continue sem muitos percalços, como o momento onde elas precisam sair de um hotel sem pagar a conta. Porém, é pela urgência que o espectador é fisgado, e como elas têm pouquíssimo tempo para chegar à feira de ciências são perdoadas alguns pouquíssimos dei ex machina (o plural de deus ex machina). Você mal percebe, compenetrado nas personagens, e não nas situações.
A presença de tela de Laure Duchene, apesar de marcante, está ofuscada por um filme ágil demais para momentos de atuação. Duchene consegue mostrar a que veio na primeira metade do longa, pois é lá que reside mais drama e um ritmo mais contemplatvo. As suas expressões de indignação pela família que tem são um misto de hormônios da adolescência com falta de experiência. Sua única ferramenta de sobrevivência em um mundo que não a deseja é sua inteligência e sua obsessão pelo espaço. Infelizmente não vemos muito disso no filme.
# Jojo Rabbit
Caloni, 2020-02-27 cinema movies [up] [copy]Hitler está de volta. E está com tudo. Ele dança, voa pela janela e recruta um garoto de 10 anos em pleno final da segunda guerra mundial. Seu nome é Jojo Rabbit, e ele é um covarde. Filho de pai e mãe liberais no sentido progressista, é um mistério como ele chegou a idolatrar a suástica em uma família como essa. E por falar em mistérios, Taika Waititi, o diretor e roteirista do filme, foi criado com leite com pera e acha que nazismo é sinônimo de malvadões patéticos.
Mas estamos no século 21, em plena ascenção do fascismo e de golpes de Estado pelo mundo (como aprendemos na escola). Trump e Bolsonaro dividem o posto de anticristo para ateus aqui na América do Sul, enquanto nos EUA e na Europa é Trump e Brexit (seus ingleses malvadões traíras, quem pensam que são rompendo o movimento e querendo ser livres?). A geração nascida nos anos 90 e 2000 possuem a noção martelada por gerações de que qualquer coisa que seus pais e educadores não gostem é de extrema direita (e de extremo mal gosto, diga-se de passagem). Ironicamente utilizando o mesmo exemplo das proféticas palavras de George Orwell sobre o declínio da língua inglesa através da política, vivemos uma época em que a palavra "fascismo" vira sinônimo de tudo o que o outro lado não gosta. Ou seja, brócolis e jiló possuem tendências claramente fascistas.
Jojo Rabbit é fruto da imaginação dessa galera, que passou a infância empinando pipa no carpete da sala. Não que a autora do livro adaptado por Waititi, Christine Leunens, fosse uma delas. As ideias do livro por trás do filme podem ser vistos na abertura e fechamento do longa-metragem, momentos que deixarão o espectador extasiado e compenetrado pelas poderosas mensagens sobre a vida e ideologia, sobre como combater as adversidades que passamos, ainda crianças, como lidar com a perda e todo o roteiro humanista admirável. É o recheio o problema fundamental de um filme que não sabe o que fazer para chamar a atenção do público.
Ele quer falar mal do nazismo, isso ficou bem claro no começo. O Hitler caracterizado pelo próprio diretor é risível, embora não cause risadas literais, já que é uma tentativa patética de descaracterização, que não admite nos causar a mínima empatia. Waititi até hoje deve molhar a cama tendo pesadelos com nazistas/fascistas vindo roubar o seu leite. É como se de fato um garoto de 10 anos que quisesse falar mal do adulto de bigodinho ridículo usasse tudo que ele tem em mãos para ridicularizá-lo. Ou seja, historicamente nada. Para um adulto assistir a Jojo Rabbit é um exercício de futilidade muito próximo de ouvir meninos do ensino fundamental xingando um a mãe do outro.
A coisa é pior do que isso, aliás, já que o Hitler amigo imaginário de Jojo quase não aparece. As figuras proeminentes, elencadas como verdadeiros heróis do filme, como não poderia deixar de ser, é uma mãe solteira (pois o pai militante não volta mais) e um capitão com tendências homossexuais (apenas Sam Rockwell sabe que este é um filme em que os personagens precisam chamar atenção para si mesmos). Nada contra mães solteiras e homossexuais serem heróis de um filme, mas a falta de sutileza é tamanha que chegamos a pensar que Roberto Benigni conseguiu fazer os dois personagens em um só sem precisar ser mulher nem homossexual. E o filme inteiro de A Vida é Bela é uma mensagem humanista, diferente de "Jojo", onde apenas as mensagens insinuadas o são. E pelo menos no filme de Benigni, que se passa na Itália fascista, as pessoas falam italiano. Aqui o modelo comercial do filme exige um inglês europeu tacanho, o que já diminuiu em 50% o interesse por esse filme por pessoas dotadas de bom gosto.
Mas não basta que a heroína seja uma mulher independente. Ela precisa ser feia. Mas temos um problema: Scarlett Johansson é estonteante de bonita. Então a solução é torná-la feia, com roupas coloridas e bregas, cabelos nunca penteados, tendências alcoólicas e uma interpretação vazia de Johansson que por comparação torna sua Viúva Negra dos Vingadores quase uma personagem shakesperiana. Nem a voz de Johansson é atraente neste filme. Ela sabe do seu destino e entrega ao espectador em vez de uma figura memorável uma mártir esquecível. Sua cena-Oscar, tão patética quanto todo o filme A Forma da Água (também oscarizado), envolve ela sujando sua face com carvão para imitar seu marido e dançando com seu filho enquanto bebe mais vinho. Johansson mudou muito desde seus momentos inesquecíveis ao lado de Bill Murray. E não foi para melhor.
Melhor se sai novamente Sam Rockwell, que com seu Capitão Klenzendorf acaba sendo a melhor coisa do filme, mesmo que apareça por alguns minutos. Rockwell está à vontade em um filme cheio de contornos politicamente corretos. Ele traz uma persona com traços do pirata Jack Sparrow de Johnny Depp (porque Depp está banido de Hollywood por denúncias de ameaças de violência), o que é interessante, mas mesmo Rockwell se mantém no palco de um teatro. Ninguém do elenco está verdadeiramente no filme. São sombras de algo maior que evita aparecer para não jogar muita luz dos holofotes dos heróis em cima do canto escuro que queremos manter sobre o que é o nazismo.
Este é um filme infantil? Infanto-juvenil? A indicação diz 14 anos. Levei minhas sobrinhas de 12 e elas acharam OK (menos os trailers, um pouco pesados demais). A sala cheia de adultos. Alguns murmurando detalhes históricos do nazismo. Provavelmente eles sabem muito mais que o diretor do filme. Então me pergunto: para quem é esse filme? Adultos com a mente de uma criança de 10 anos? Progressistas, então. É um filme de autotapinhas nas costas. "Vencemos o nazismo, quer dizer, nós não, nossos bisavôs, mas vamos manter a propaganda sempre viva para que não se repita; sem dizer uma palavra sobre o que é nazismo; somos muito heroicos, não?" Agora entendi.
Para ter uma ideia de como Taika Waititi desperdiça seu elenco, nem a gloriosa Rebel Wilson, que foi a única coisa boa no fatídico Cats, consegue um momento engraçado sequer em suas pontas. Wilson é uma pérola de inventividade e espontaneidade, mas Waititi está tão compenetrado em seu roteiro e nas questões do politicamente correto que ele não consegue sair dos trilhos uma vez sequer, e nunca a comédia surge deste drama. As pessoas que participam dele não estão à vontade. Este é um projeto que já nasceu morto, mesmo que as diferentes cores quentes usadas pelo fotógrafo Mihai Malaimare Jr. indiquem o contrário.
O próprio Michael Giacchino, responsável pela trilha sonora, é sabotado. Sua música comenta momentos que não existem no filme. Fora isso, a escolha de duas músicas americanas traduzidas para a abertura e o fechamento do filme são boas ideias, e seria de muito bom gosto se nos lembrássemos do meio como um momento de transição. Começamos o filme com "I Wanna Hold Your Hand", ou "She Loves You", não me lembro mais, dos Beatles, que fez tanto sucesso em Munique que eles gravaram uma versão alemã. E terminamos da mesma maneira que começamos: sem ter uma pista sequer de por que entramos nessa sessão. Acho que para falar mal do nazismo, talvez. Uau, que revolucionário.