Avançando no futuro e no passado, eis que chegamos ao momento que Jimmy se torna Saul. E não é nada glamoroso. Causa uma estranheza um advogado com ternos coloridos de tamanhos inadequados aparecer de repente, como uma borboleta defeituosa, com uma asa faltando, que surge do casulo.
Mas a vida real é assim, e Better Call Saul eventualmente nos esfrega mais realidade do que a série de onde ele surgiu, Breaking Bad. Em meio à estética criada pela equipe do criador Vince Gilligan, a história se desenvolve aos poucos o que soa diferente, menos glamoroso, do que um homem comum se tornar um gênio do crime. É depressivo, melancólico. E humano.
Ver que Kim Wexler quer seguir o caminho correto da justiça ao mesmo tempo que percebe que seus clientes são tão imorais quanto seu namorado é de cortar o coração. Onde reside essa justiça senão no senso que as pessoas possuem dela? Qual a verdade? Estará ela confinada nas mentes geniais de pessoas problemáticas, incapazes de um ato de compaixão por retitude de caráter (ou de ciúmes), como seu irmão, que terminou com uma fobia completamente irracional?
E a dor de Mike e o garoto latino, que seguiram a carreira do crime e são obrigados a olhar para o espelho do passado a todo momento? Better Call Saul aborda diferentes personagens com receio de seus passados, que os condenam e os transformaram para sempre.
Não é nem na estética impecável da série que a originou que reside a beleza deste spin-off, mas do arcabouço místico desses personagens, que existem acima dos rótulos convencionais de heróis e bandidos, vilões e mocinhos. São personagens fortes demais para conseguirmos categorizá-los em esquemas teóricos de narrativa. Sempre há algo novo que emerge no universo de Breaking Bad. Pode soar mais do mesmo, mas sua hipnose continua funcionando tão bem quanto o primeiro episódio quando somos apresentados a um pacato professor de química que desejava algo além do que morrer de uma doença terminal e ter sua mente esquecida pelos outros mortais. Saul Goodman não é tão épico, mas é isso o que nos aproxima mais ainda dele, nesta epopeia do homem comum que desejava ser algo além do que estava condenado.
Estreia do filho de Hayao Miyasaki na direção, esta animação dos estúdios Ghibli carece de provocações. Se trata de um épico sobre vida e morte em um mundo medieval em que o equilíbrio da natureza foi perdido pelo Homem. Evocando sentimentos já imortalizados por Senhor dos Anéis, Contos de Terramar cria um tema musical e um mundo detalhado com viajantes, feiticeiros, comerciantes, escravos e gangues. Apenas o necessário aparece para que a história seja contada, mas isso faz ela ser pobre e previsível.
Das profundezas do meu inconsciente trasheiro, eu esperava, sinceramente, ver zumbis cinematográficos em Zombi Child, um filme que não desiste de apresentar sua "revelação final" mesmo que depois de quinze minutos de tela nós espectadores já soubéssemos qual é.
Zumbis nos alegram desde George A. Romero e suas criaturas fantásticas que surgem na calada da noite. Este filme de Bertrand Bonello poderia reciclar sua ideia de reapresentar conceitos consagrados em uma nova roupagem e escolher não fazer nada disso, voltando para o bom e belo lixão da meia-noite. Não precisava ser nada plagiado dos clássicos anteriores, mas a julgar pela capa, com duas moças bonitas no elenco, poderia ser algo próximo de "As Strippers Zumbi" (Jay Lee, 2007) ou "Orgulho e Preconceito e Zumbis" (Burr Steers, 2016). Eu sairia mais feliz da sessão. Todos sairiam mais felizes. E pensando em moças zumbis. Não há divertimento maior dentro de uma sala de cinema.
Porém, nada disso. Este é um filme francês, e franceses têm o péssimo costume de estragar qualquer conceito minimamente divertido com críticas sociais e uma chata bagagem de eventos históricos envolvendo algum país subdesenvolvido. Nesse caso é o Haiti, onde iniciamos a história, que nos mostra um passado quando havia pessoas zumbificando outras por lá para trabalhar como escravos na lavoura de açúcar. Acompanhamos a história de um desses escravos e, em paralelo, a de uma garota haitiana recém-chegada em um colégio militar em Paris, nos tempos atuais.
É entre esses dois climas e épocas tão diferentes que brilha a fotografia de Yves Cape, que evoca o contraste entre a luz vista por um homem livre e a escuridão vista por um escravo, o mesmo homem, mas a sombra do que já foi, vagando pela terra. A analogia com escravidão de negros é óbvia, mas a fotografia acaba sendo mais poderosa, mais perene. Romero já nos havia apresentado a ideia de zumbi/escravo desde o começo, mas Zombi Child sugere uma perspectiva mais fascinante ainda, pegando carona em obras contemporâneas como a série Westworld, que já havia feito a inversão de papéis entre mocinhos e bandidos na adaptação de um filme homônimo, e que faz aqui uma pequena poesia sobre um homem sem vida e sem memória tentando resgatar o seu passado idílico.
Esse Haiti também é habitado pelas crendices e rituais dos que acreditam não apenas em zumbis, mas em espíritos e demônios. Os rituais são embalados com uma música penetrante, que hipnotiza pela sua beleza natural. São apenas batuques, tambores e a voz poderosa que emerge do povo, que anuncia com seu ritmo a súbita mudança de humor. São momentos mágicos no filme que nos tiram do marasmo.
Fanny, a bela garota haitiana da história contemporânea, também dança, ainda que timidamente, pois receia que sua música não seja bem vista na irmandade formada por francesas branquinhas ricas que agora faz parte. É curiosa a maneira banalizante com que elas enxergam as crenças do povo de Fanny. Uma delas quer usar os "poderes mágicos" para se livrar da dor por ter levado um fora do namorado. A falta de dramas reais nos transformam em zumbis afetivos em um ocidente rico e intelectualizado, encontrando pelo meio acadêmico sempre os mesmos motivos pelos quais a Revolução Francesa fracassou e continua fracassando.
Os elementos sociais em Zombi Child se somam, mas são apenas largados e deixados como exercício para o espectador. Este é daqueles filmes que a mensagem é óbvia se você tiver o viés político adequado, mas se não tiver, é chato demais. E errado. E não apresenta zumbis strippers. Quero meu dinheiro de volta.
Eis um filme biográfico dos que não entendem a loucura ou genialidade do seu personagem-tema. Quem o fez está obcecado pelas obras e pela vida do artista, mas impede que ele exista como um ser humano, mortal e mundano. A consequência é um trabalho teatral sem alma, confuso por definição. Não se entende Caravaggio, ou é uma tarefa muito difícil. E o diretor faz um filme provando que ele é um dos mais incapazes para cumpri-la. Com atores de língua inglesa e falado em inglês, assisti à versão dublada em italiano. Tilda Swinton fala muito bem este idioma, através de sua dubladora, e assim como o filme sem alma acompanhamos os atores sem voz. Filmado inteiramente em um estúdio, as paredes, as vestimentas e o sangue possuem o mesmo tom de suas obras renascentistas. O filme nos ensina que o autor dos quadros não consegue fugir de suas obras, pois ele é, em última instância, meramente um manipulador de seus pincéis. Sua vida de verdade se registra em suas pinturas, e o resto é uma peça de teatro de baixo orçamento sem público pagante e sem aplausos.
# Disforia
Caloni, 2020-03-08 cinemaqui movies [up] [copy]Não se pode negar que Disforia é um trabalho tenso e esteticamente chamativo. Contudo, ambientando naquele mundo revisitado tantas e tantas vezes pelo gênero do terror, habitado por psicólogos e casais traumatizados (aqui o filme tem ambos) e crianças amaldiçoadas, desde o começo sabemos que não se pode esperar muita coisa de ideias tão desgastadas e que aqui não fazem questão de ser contadas de outra forma. Até as frases parecem recicladas de algo já visto.
Se a tensão existe e é boa, o que é questionável, portanto, no primeiro longa metragem do cineasta Luca Cassales, é até que ponto tensão por si só é válida. Este é um filme que habita o mundo dos roteiros lado B, onde os diálogos são tão falsos que começamos a pensar que tudo não passa de um sonho. E mesmo assim ele insiste, como um enlatado de fim de noite esquecido na prateleira de alguma vídeo-locadora dos anos 90, a ser levado a sério. Se pelo menos fosse engraçado observar aquelas pessoas revivendo uma combinação de trash aleatório sem ter noção de que suas vidas não as pertencem, seria uma experiência menos anestesiante. Este, porém, não é o caso, e a cada minuto de projeção se torna mais óbvio que estamos apenas aguardando o momento da reviravolta final.
Mas há um senso estético sendo trabalhado, com sons afiados, cortes no momento certo, sequências que existem quando necessárias (destaque para uma cena de suicídio). O trabalho de produção prova que existe sensibilidade para lidar com temas delicados, mas seguindo as lições (erradas) de cineastas que tentaram estar por trás da direção e roteiro, Lucas Cassales não demonstra a mesma habilidade por detrás das câmeras na escrita de diálogos que nos permita entender qual a novidade por trás de conceitos batidos como crianças com sérios problemas de convívio social e traumas do passado de pessoas de classe média que não possuem problemas reais.
Sem saber o que fazer com a história, este filme bem produzido apenas alimenta um mistério sem sentido, um Babadook sem pé nem cabeça. É bonito de se ver e ouvir, mas não é adequado para se pensar. Falta aquele algo a mais para nos capturar a atenção do que um psicólogo traumatizado (e sua esposa) e uma criança que desperta sensações ruins com todos que com ela convivem. A única característica que se destaca é o regionalismo, algo completamente descartável para a história, mas que por algum motivo surge a todo momento. São coisas bestas, como o uso do "tu" porto-alegrense ou um anfitrião oferecendo chimarrão, a bebida local, mas esses detalhes chamam a atenção justamente porque o desenvolvimento da história principal não está fazendo seu dever de casa de ser relevante.
O máximo de atenção que Disforia consegue chamar, além do seu título chamativo que nos faz buscar no dicionário o significado da palavra ("mudança repentina e transitória do estado de ânimo") é saber se haverá alguma revelação no final que tornará o desfecho menos previsível. E, adivinhem: (spoiler) não há. E mesmo que houvesse, nem deve ser considerado spoiler, pois não faz parte desse filme. Esta é uma viagem de autor que não é comunicável. Os elementos vão sendo jogados como se apenas isso fosse fazer o espectador ligar os pontos. Mas há tantas peças faltando nesse quebra-cabeças que a única palavra que melhor descreve o terceiro ato é... bobo.
O elenco do filme não se sente à vontade em fazer teatro em um filme de cinema, e dizer aquelas falas soa particularmente doloroso para os personagens de Vinícius Ferreira e Isabela Lima, que fazem pai e filha na história. Se Ferreira desde sua introdução já soa canastrão ao ouvir música clássica e ter peças de estofado em sua sala de estar cafonas e antiquadas, Isabela Lima possui as feições certas para uma creepy girl, mas suas falas são ditas da maneira mais terrivelmente artificial possível. Se o objetivo era aterrorizar o espectador, conseguiu. Não me senti à vontade em nenhum momento vendo Isabela atuar. O preparo do elenco-mirim pecou em nos enganar de que aquela pode ser uma criança de verdade, e não um robô demoníaco (com defeito) disfarçado.
Ultimamente o que o Brasil mais faz de filme de gênero acaba sendo o terror, e eventualmente surgem trabalhos de destaque por estarem situados dentro da brasilidade esperada por uma obra local, que resgata o gênero, mas não perde sua identidade. Filmes bons dessa fase provam a máxima de que copiar Hollywood não é o caminho, como o mais antigo Trabalhar Cansa (da dupla Marco Dutra e Juliana Rojas), e os mais recentes A Sombra do Pai e O Animal Cordial (estes dois da escritora e roteirista Gabriela Amaral). São filmes de temática mais rebuscada que demonstram sua força na sutileza de suas ideias. Disforia por comparação é um grito de obviedades em um vazio de signficados. Mas um grito bonito. Bem feitinho.
A música dos créditos finais é um exemplo, e um charme à parte. Composta de maneira gutural, que evoca os efeitos sonoros que estamos acostumados a ouvir nos filmes do gênero, adoraria ver no próprio filme a cantora que executou esta performance, que é fascinante na mesma medida que angustiante. Fica a dica para cenas extras ou making off. Apontem os holofotes para quem merece e cortem o cordão umbilical que nos asfixia: os enlatados norte-americanos.
Um retrato fidedigno, e portanto apaixonado, de uma família de sicilianos de um século atrás, e o contraste inevitável entre a cultura do Velho Mundo e o processo otimizado e mecanizado dos americanos enxergarem o mundo. Os americanos, esses malucos, organizam uma ilha para realizar um experimento social: selecionar os mais aptos a fazer parte da sociedade americana. Vemos a odisseia até chegar a esta ilha do ponto de vista de uma família italiana da ilha de Sicília. O sotaque é maravilhoso, suas vestimentas possuem uma vivacidade impressionante. Não nos esquecemos jamais daqueles homens subindo uma montanha de pedras fragmentadas e rodeadas de verde, com uma pedra na boca e nada em seus pés, escalando passo a passo até depositar a pedra da boca diretamente em um monte de pedras semelhantes para poder pedir ao santo um sinal: devem ou não partir para o Novo Mundo? E a resposta dos céus são fotos falsas onde se vêem galinhas e cenouras gigantes. Uma trucagem que vende a ideia de um paraíso do outro lado do oceano. O poder do visual neste filme é inserir ideias sem verbalizar. Para isso seu diretor utiliza a mecânica dos sonhos, que funciona para qualquer cultura.
Terremoto é sobre o sensível balanço entre nossas vidas em ordem e o caos violento da natureza com que temos que conviver. Seria este um alerta ecológico ou um filme-catástrofe? Ele consegue ser os dois, e evita tomar um caminho ou outro por definitivo. E esse é o seu valor, que se mede pela quantidade de passos de distância dos filmes-catástrofe norte-americanos.
Isso porque, no fundo, se ele tentar se explicar demais o que pretende acabará por trair a própria premissa de sua história, que é abraçar a imprevisibilidade de nossas vidas, algo que nunca temos em filme de Hollywood, em que temos certeza que a família nuclear, apesar de passar por uns perrengues, sairá ilesa no último minuto. Em Terremoto essa certeza é posta em xeque de uma maneira brutal.
Não há lição de moral no final do filme. Não há provas de coragem que compensem a brutalidade dos eventos que veremos. Assim como um Elefante, o filme de Gus Van Sant, Terremoto não possui a pretensão de construir uma narrativa que funcione em cima de algo que foge ao controle humano porque isso nos daria o poder de descobrir motivos ou causas e resolver como se conserta um pneu furado. Aqui não há pneu furado. Não é um meteoro que irá colidir com o planeta e temos como evitar. Nada pode ser feito, pois ninguém está preparado para o que o filósofo economista Nassis Nicholas Taleb chama de Cisne Negro: "um evento imprevisível e incalculável, geralmente com consequências extremas".
Mas apesar de não obedecer à fórmula restrita de como fazer filmes de coragem, sua estrutura lembra muito o clichê do herói de um evento passado que não consegue se recuperar. Ele abandona a família que salvou, e nunca entendemos os motivos, pois nem ele mesmo consegue explicar e a atuação de Kristoffer Joner é enigmática demais para conseguirmos extrair algo de sua expressão. Todas suas tentativas no filme de verbalizar esse paradoxo fortalecem nossa convicção de que ele não tem a menor ideia de por que é um ser humano incapaz, apesar de confiar que é um excelente geólogo, capaz de prever melhor do que uma agência inteira de geologia.
E por isso o clichê do herói traumatizado não funciona como guia para o espectador, que terá que imaginar algo novo na cabeça. Algo mais realista. Nem sempre as pessoas sabem o que as afeta, e muito pior é tentar convencer os que estão em sua volta de que o apocalipse está próximo.
Este insight é maravilhoso, pois consegue se desvencilhar da fórmula americana de como "problemas" são resolvidos, geralmente com receitas de anti-depressivos. Esta obra norueguesa demonstra uma rara atitude humana em um filme com efeitos de nos fazer prender nas cadeiras e prender a respiração em pelo menos dois momentos muito pontuais, momentos esses que ficarão em sua memória após a sessão e que envolvem obviamente situações de vida ou morte. E diferente de um filme com uma explicação, sairemos da sessão sem saber o que pensar sobre o que acabamos de ver. Não estamos satisfeitos. Não houve a resolução do conflito interno do herói. Nos lembraremos disto para sempre, enquanto os heróis americanos repousam em nossa memória como uma cópia de uma cópia de uma cópia.
Esta é uma continuação do segundo filme-catástrofe roteirizado pela dupla norueguesa John Kåre Raake e Harald Rosenløw-Eeg. O primeiro filme foi enviado para concorrer ao Oscar como melhor filme estrangeiro. Para os que assistirem apenas este segundo (meu caso), a primeira cena, quando um geólogo anônimo for aplaudido efusivamente por uma plateia de uma programa de televisão, o significado será diferente. Para quem o vê pela primeira vez, este é um filme em que os heróis anônimos valem mais do que cientistas burocratas.
O diretor de fotografia John Andreas Andersen toma as rédeas da câmera pela terceira vez em sua carreira e realiza um trabalho original em cima de uma tonelada de clichês. É difícil perceber o que ele está querendo dizer por trás de um suposto blockbuster, mas no momento em que entendermos que este é mais um drama do que seus efeitos, as coisas começam a fazer mais sentido.
O desenho original da Disney foi escrito na época de revitalização dos estúdios, com praticamente uma produção saindo do forno a cada ano. Isso fez com que filmes secundários como Mulan fossem mais curtos e simples, o que é bom se lembrarmos em como hoje filmes comerciais são trabalhos inchados de duas horas ou mais que não acrescentam em nada à história. Mas por outro lado algumas ideias, e isso inclui também em Mulan, criam universos que poderiam ser melhor explorados na primeira aventura, e não em continuações lançadas direto para DVD (você lembra ainda o que é home video das antigas?). Explorar o universo histórico chinês seria uma dessas ideias, pois da maneira com que a trio de roteiristas concebeu esta história, ela é teatral e meramente focada em uma protagonista feminina desafiando o status quo e milagrosamente conseguindo isso sem matar ninguém, ganhando a honra de sua família em troca de sua fértil imaginação para estratégias de batalha. Ainda assim, bem melhor sucedida que Valente.
Chegamos na vigésima-quinta edição de É Tudo Verdade, um festival internacional de documentários criado em São Paulo nos anos 90 e que hoje é referência mundial, sendo o único a tornar elegível para o Oscar dois longas-metragens e dois curtas no mesmo evento. Sua seleção passa pela análise de mais de dois mil filmes do mundo todo. Estive na coletiva de imprensa antes de iniciar a sessão de um dos quase cem filmes selecionados este ano: Collective, de Alexander Nanau, sobre a corrupção estarrecedora que é descoberta na rede de hospitais na Romênia após um incêndio em uma boate ter matado mais jovens que foram hospitalizados do que no próprio local.
O filme vai de encontro ao exame clínico que artistas de todo o mundo vem realizando sobre os governos nos tempos atuais, mas diferente do "senso comum" de hoje em dia, este não é um governo de extrema direita com tendências fascistas, mas um governo populista, social-democrata, que faz no sistema de saúde um cambalacho amparado pelo Estado de dar inveja às maracutaias reveladas desde o início da Operação Lava Jato. Porém, este é um trabalho quase apartidário, embora não esconda sua frustração próximo do final, ao perceber que sua população completamente alienada sobre quem são os reais culpados da tragédia do filme vota mais uma vez, e com mais ênfase, no "lado errado".
O herói desta odisseia em busca dos fatos é um jornalista do jornal de esportes mais lido no país, a Gazeta Sporturilor, que você nunca deve ter ouvido falar, mas que passados quinze minutos de filme você se pergunta por que nunca ouviu falar (dica: não é um governo de extrema direita). Quando ele e sua equipe investigativa descobrem que os desinfetantes vendidos para o hospital onde os jovens vítimas do incêndio ficaram internados está sendo diluído na razão de 1 para 10, causando infecções por bactérias letais em todos que passaram por cirurgias, a imprensa se torna a principal força contra os abusos do poder, derrubando o governo e mantendo a confiança da população em suspenso até as próximas eleições em seis meses, quando existirá uma luta entre discurso e fatos.
O diretor romeno Alexander Nasau, que também é diretor de fotografia, editor, produtor e roteirista, realiza aqui um filme tenso, que joga novas informações após as anteriores terem sido mastigadas parcialmente pelo espectador. A sensação de descrença vai sendo alimentada conforme somos apresentados ao completo descaso das autoridades políticas frente a esta crise governamental, em que a população em geral se torna vítima de um sistema mafioso completamente alheio à democracia, onde não se pode acreditar em nenhum lado: nem nos diretores dos hospitais, elegidos como cargo de confiança pelo governo, nem nos laboratórios, que realizam testes para se defender das acusações de por que morreram tantos pacientes com queimaduras médias, mesmo que em qualquer outro lugar do mundo isso não deveria acontecer.
Este é um filme de eventos, embora Nasau arrisque criar uma dicotomia entre seu herói, o jornalista Catalin Tolontan, e todos os representantes do sistema estatal ou seus aliados pertencentes ao esquema de suborno e corrupção. Mas ele não faz isso propositalmente. Nem é necessário. Basta observar os esforços hercúleos dos jornalistas em conseguir levantar suas fontes, comparar os dados e esfregar na cara das autoridades os inegáveis fatos sobre o estado deplorável do hospital onde a maioria dos jovens faleceu semanas depois por causa do tratamento após a noite do incêndio, incluindo larvas passeando pelo rosto de um paciente (ainda vivo, diga-se de passagem).
Não, este definitivamente não é um filme de personagens. Nanau perde a oportunidade de enfocar o novo ministro da saúde como um jovem despreparado criado no exterior. Ele nem precisa, pois nós vamos aos poucos percebendo a sua realidade. Percebe como a manipulação é desnecessária, e mesmo sem o mínimo esforço em ficcionalizar este drama ainda assim somos levados a comprar essa história da vida real como se ela fosse esculpida na sala de montagem, e roteirizada nos porões mais sujos e fétidos do sistema estatal.
As filmagens são conduzidas como que em tempo real, e depois montadas com uma fluidez impressionante. É como se tudo estivesse acontecendo em um espaço de tempo de uma semana, e cada novo evento está exposto em diálogos rápidos compostos com cortes precisos. Nada está sobrando nem é posto por acaso neste filme. Sua longa duração é a tentativa mais que merecida em explorar junto do espectador as sensações do cansaço mental quando se tenta dar murro em ponta de faca. Esta poderia ser uma ficção da luta contra o sistema, mas é muito real e muito imediato para ser apenas fruto da imaginação de um autor. Ele não perde nada para outros trabalhos ficcionais recentes, como o ótimo Segredos Oficiais, com Keira Knightley e Ralph Fiennes (ainda inédito no Brasil, passou na Mostra do ano passado), justamente por entender que os olhos de quem assiste deve estar sempre amparado pelas pessoas comuns que tentam tornar este mundo um lugar melhor. Ou pelo menos mais justo.
Uma animação dos Estúdios Ghibli recente, com distribuição Warner e Netflix. Os animadores juntam algumas cenas com computação para aumentar a resolução e construir exércitos de clones. O resultado é pavoroso. Felizmente são apenas alguns momentos.
Este filme é baseado em um vídeo game. Sua história é confusa e sem sentido, mas podemos ver suas origens em um Sword Art Online para adolescentes agitados. Também lembra e referencia o clássico D&D, ou Caverna do Dragão para os brazucas, com seu vilão que realiza morph com criaturas horrendas.
É um conceito que distrai mais do que sua história. Na meia-hora final há umas reviravoltas e a resolução de um enigma que ninguém percebeu que seria melhor que ninguém tivesse percebido, mesmo. É tanta vergonha que você desejará não ter assistido. É teen até o osso, é inconsequente e inocente no mal sentido. É um jogo de criança nas mãos de animadores competentes.
A vaga ideia de que existem dois mundos conectados pelas suas vidas se torna mais vaga ainda no final, e a pouca simpatia que tínhamos pelos adolescentes genéricos e estereotipados do começo irá passar rapidamente. Há violência e morte como forma de chamar a atenção, mas chega uma hora que nem isso funciona mais.
Ghibli pós-Miyasaki vira uma pastelaria de animações que não amadureceram para começar a ser desenhadas. O resultado se torna pior com experimentos em computação para agilizar o que não se deve nunca apressar: o desenvolvimento natural e orgânico de uma obra de arte.
Valerio Zurlini é um cineasta existencialista que se tornou resistência italiana na segunda guerra, em grupos antifascismo que se ergueram após Mussolini se tornar marionete de Hitler. Ele começou com curtas e eventualmente fez alguns longas de prestígio que ganharam prêmios europeus. O pessoal que preparou o DVD no Brasil é seu fã, e o texto que o introduz o apresenta como um artista da altura de Felini. Os trailers dos filmes do DVD são dele ou de sua época, um presente de muito bom tom.
Em Mulheres no Front as mulheres estão em foco e enquadradas das mais diversas formas e de diferentes ângulos. Os roteiristas a colocam em um caminhão militar e vai distribuindo pelo percurso. Elas são gregas e estrangeiras na Grécia que estão vivendo em um país ocupado e que não lhes dá o que comer. A solução é se prostituir e aceitar o racionamento italiano. É difícil imaginar tanta protuberância e desnutrição na mesma cena, então sabemos que essas garotas fazem bem o que antes faziam de graça.
Em suma: que prostitutas belíssimas! O filme as exibe não como uma vitrine, mas como vencedoras de concurso de beleza. Suas peles e a luz que incide sobre elas nos mostram como o Zurlini não quer comprometer em nenhum momento o empoderamento daquelas mulheres. Elas são vistas em diferentes momentos, e são muitas, não sendo permitido que criem personagens muito destacadas da massa feminina. No máximo são exemplos de como reagir em um clima de constante perigo, embora a hospitalidade italiana pareça sempre ser uma máxima. Todos se divertem em Mulheres no Front; não há discursos politicamente corretos.
Este é um filme dos anos 60 sobre os anos 40, quando a Itália invadiu a Grécia em uma campanha desastrosa. Dezenas de milhares de mortos depois o inferno estava instalado entre os irmãos gregos, e italianos já não mais tão fascistas como antes lutam para permanecer vivos até a guerra acabar. Conseguir voltar para a terra natal é um desejo em comum, e assim o Sargento Castagnoli bola um plano: se voluntariar para distribuir essas belas moças pelos alojamentos em torno do centro fascista. Então ele recebe um caminhão de beldades de presente. É difícil não se empolgar se colocando em sua pele, mas por algum motivo ele está sempre muito sério.
O italiano falado neste filme é simples e fácil, e serve bem para aprendermos palavras e frases simples. A dicção dos personagens é quase teatral, mas o preto e branco e a iluminação nos lembra sempre o realismo dessa história. Os diálogos não são dramáticos, mas pé-no-chão. Aquelas pessoas existiram de fato. Pode não ser na mesma encarnação, mas em algum momento da História. A virtude do filme é não se colocar entre nós e elas. A mensagem do diretor é: se divirta com essa comédia da vida real.
A mesma música-tema, de Mario Nascimbene, é tocada à exaustão, mas ela não é memorável. É uma mistura do estilo grego e italiano, e uma mistura entre o drama e a comédia. Olhem a situação absurda que chegamos: não há comida para todos, mas a prioridade é que não falte mulher em cada front. E a homenagem da música de Nascimbene é sobre esse absurdo. Se torna cansativo da metade para o final, contudo.
O Tenente Gaetano Martino, que segue viagem com o comboio como convidado, não quer tomar as rédeas do comando do oficial responsável pela jornada, mas seus motivos são mais egoístas do que formais. Ele só está interessado nas mulheres e viver a boa vida. Podemos estender esse objetivo para o motorista da caminhoneta. Quem pode culpá-los em pensar no paraíso quando há tamanho carregamento?
Já o sargento, o mocinho indiscutível, o rapaz bonito que carrega todas essas moças lindíssimas, está também interessado em uma delas. Há uma tensão no ar sempre que se encontram em cena, e o filme mantém essa tensão evitando cenas em que eles fazem o que estamos esperando eles fazer. A atuação de Mario Adorf é dura, impenetrável. A de Tomas Milian, como o bon vivant, já é mais agradável, porque é mais natural. Assim como a do ator que faz o motorista (não achei o nome), que divide com uma das mulheres as cenas mais humanas e inesquecíveis, quando ambos planejam uma vida juntos depois que o inferno acabar.
Embora não haja cenas picantes de fato, isso não quer dizer que este é um filme casto. Há momentos mais calientes, embora não explícitos, mas mais eróticos que a maioria dos filmes norte-americanos consegue. Há uma falta de pudor muito bem-vinda, que permite que Zurlini nos abençoe com a natureza humana como ela é, ainda que exagerada pelo bem da história. Mas sabendo que estão em guerra, talvez não sejam tão exagerada suas reações. Nunca saberemos, mas ao menos gostaríamos que essas mulheres tivessem sido tratadas com a mesma dignidade vista no filme.
Mas dignidade não significa falta de contato, e é isso que a geração atual não percebe. Ao impor barreiras de comunicação corporal entre homens e mulheres com o intuito de proteger essas últimas, a geração do não-me-toque cria uma fronteira intransponível, e com ela terminam as possibilidades pós-guerra dos sexos de qualquer debate produtivo e de igual para igual de como um casal irá ser feliz. E é por isso que é tão importante revivermos filmes como este, que mantém a dignidade alcançada pela mulher nos anos 60 e 70, mas também a mesma dignidade de uma época em que existiam homens de verdade.
É lugar-comum pisar nas conquistas das outras pessoas quando elas se tornam bem-sucedidas demais. Uma maneira clássica e bem-vista de se fazer isso é colocar os "valores humanos" acima das virtudes individuais da pessoa atacada. Usando um malabarismo dialético joga-se fora ou minimiza-se todas as adversidades pelas quais a pessoa passou para chegar onde está, e se exalta as dificuldades da vida de outra pessoa que se quer defender por comparação. Essa outra pessoa é a chamada vítima. Em O Chão Sob Meus Pés essa construção dialética ganha um contorno tão sutil que o filme precisa da ajuda do espectador para interpretar e descobrir quais seriam esses "valores humanos". Mais difícil ainda, porém, é constatar que eles seriam de alguma forma superiores às conquistas e à felicidade de uma pessoa.
A história é o enredo clichê da protagonista tentando conciliar sua vida profissional com a parente suicida que vira um incômodo. A parente no caso é a irmã mais velha, que após a morte da mãe desenvolve um transtorno psicológico que a impede de ter uma vida independente. O filme nos coloca na história no momento em que fulana teve a mais recente recaída, tomando seu recorde de calmantes de uma só vez ("120 comprimidos!") e indo parar novamente na ala psiquiátrica que se acostumou a habitar, de onde desenvolve narrativas paranóicas sobre persequição e maus tratos que compartilha com sua irmã mais nova. Como iremos observar de maneira tragicômica, quando um dos pacientes malucos a aborda se apresentando como o doutor responsável pela irmã, a loucura genética que ambas provavelmente compartilham possuem similaridades que nossa sociedade tende a selecionar por pura convenção.
E a irmã mais nova, a escolhida pela sociedade como normal, Lola, é a bem-sucedida da família, sendo que a única família que lhe restou é essa irmã. A história do filme a coloca no momento em que sua participação é vital em um projeto onde trabalha, e ela precisa pegar inúmeros voos para visitar rapidamente a irmã e voltar para o trabalho. Sua chefe e ela são amantes, e ela tenta compartimentar sua vida em profissional, pessoal e outros, pois faz questão de manter o profissionalismo no escritório ao mesmo tempo que mantém sua relação e a existência de sua irmã em segredo. Deve ser muito difícil habitar a mente de uma pessoa como ela, e um dos objetivos do filme é demonstrar como dadas as devidas ressalvas é muito fácil confundir uma executiva de sucesso completamente normal e uma esquizofrênica paranóica.
Este é um filme austríaco, dirigido por uma mulher, Marie Kreutzer, em seu quarto longa para o cinema que será o primeiro a ser lançado no Brasil por ter sido indicado ao Urso de Ouro em Berlim. A visibilidade das diretoras mulheres vem aumentando em todo mundo, mas este é um filme que mostra como o machismo no mundo executivo não retrocede jamais; apenas muda de formato. Uma das frases que comprova isso é quando um cliente começa a dar cantadas em um restaurante e, finalmente contrariado ante às negativas de seu "alvo", finaliza: "você sabe, outros homens já colocariam a mão em suas pernas por debaixo da mesa".
Acuada por todos os lados e incapaz de conseguir 5 minutos de paz, a percepção é de que toda a vida de Lola está fragmentada porque ela se acostumou a tratar de todos os seus desvios de normalidade como aberrações que precisam ser escondidas do resto do mundo, e essa mesma percepção se torna combustível para que ela alimente a sua própria esquizofrenia, quando passa a receber ligações fictícias da irmã.
A diretora Marie Kreutzer é uma mestre dos espaços. Ela nos convida a observar o mundo sob ângulos nunca vistos, e estou falando no sentido literal, de como ela coloca sua câmera em cena, gerando uma sensação de incômodo através da claustofobia invisível dos ambientes naturalmente opressivos, como o prédio de um hospital psiquiátrico velho, representando a definição de loucura clássica que é incapaz de se curvar, mesmo que um pouquinho, ou as infinitas paredes de vidro do mundo corporativo, que se erguem como labirintos verticais cuja única saída é pular da janela. Kreutzer logo no início, meia-dúzia de cortes depois, e nenhum diálogo expositivo, já nos apresenta tudo que é preciso saber sobre essa personagem solitária, vista como desumana.
Valerie Pachner vive Lola através de um raciocínio lógico que não se pode negar e a ausência completa de humanidade. Não é algo que você perceba de cara, mas vai se desenvolvendo conforme nós, espectadores, vamos através da compreensão, ou empatia, de por que sua vida pessoal é gerida como um negócio. Pachner consegue ganhar nossa confiança sem nunca ultrapassar uma certa distância de segurança para nos apaixonarmos por ela. Nós entendemos o seu desespero interno quando ela acorda no susto pela manhã, mas este é o único momento que ela se revela. São décimos de segundo de um filme de quase duas horas. A atuação de Pachner é um exercício de autocontrole de quem está liderando uma criatura quase autômata e cujo único desejo é se tornar este robô à prova de adversidades.
Por isso que as cenas de sexo com sua companheira e chefe são tão assépticas. É como se ambas tivessem limpado suas mãos com álcool gel antes e depois do ato, mas não por questões de higiene, mas para não se aproximar demais de um ser humano. O relacionamento entre as duas é estéril, mas não apenas no sentido literal. Como tudo no mundo corporativo, a relação entre elas é uma mera questão de dominação. Ou você é dominante ou é dominado.
E por isso a presença de tela de Mavie Hörbiger é quase ausente. Ela está interessada e Lola unicamente para seu prazer. É como um pet que ela adquiriu por um bom preço, mas é a própria Lola que deseja essa impessoalidade. Ainda assim, é importante notar que todas as decisões que a personagem de Hörbiger toma no filme a respeito da empresa nunca levam em conta a felicidade da parceira, o que seria visto em outra situação como um ato louvável por evitar nepotismo. Porém, é justamente essa a dualidade cruel que está exposta: espera-se que Lola conquiste seus objetivos por ser capaz e não por namorar sua chefe, mas justamente por ter um caso com ela isso nunca acontecerá com legitimidade, pois os lobos do escritório estarão sempre prontos para lembrar o quão privilegiada ela é.
O Chão Sob Meus Pés está brincando a todo momento sobre as dualidades da vida, mas é uma brincadeira séria demais para levarmos a sério. É como se fosse uma mensagem definitiva e real sobre esse chão de realidade sob nossos pés, e não apenas um devaneio sobre a vulnerabilidade de nossas convenções sociais. Mas é necessário que as ideias do filme se vendam como definitivas para que o espectador compre a ridícula mensagem de que é importante levar em conta as dores do outro antes que sejamos felizes.
# Comunicação em Prosa Moderna
Caloni, 2020-03-15 books self [up] [copy]"Comunicação em Prosa Moderna", escrito por Othon M. Garcia em 1967, foi um dos livros de referência de quando iniciei a faculdade de Letras na FFLCH da USP. Adquiri uma cópia velha em um sebo com uma diagramação absurda, sem margens e com cheiro de mofado. Li de cabo a rabo. Atualmente eu encontrei a versão digital graças à comunidade do LeLivros, totalmente reformada para o formato digital após várias edições. A versão Kindle dá até gosto de ver, com suas inúmeras e famosas referências bibliográficas com que foi escrito, que ocupam pelo menos a quinta parte do livro, junto dos inúmeros exercícios no final.
O livro é dividido em dez partes, mas podemos dividir essas partes em dois montantes. No primeiro montante temos o conteúdo sobre a escrita de fato: a frase, o vocabulário, o parágrafo, a argumentação, a ordenação. O montante final se concentra nos formalismos e disciplina para trabalhos mais densos: pesquisa, planejamento, redação técnica, preparação e exercícios. Vou falar brevemente sobre as quatro primeiras partes, que considero as mais importantes, e as que sempre me foco na hora de elogiar este livro atemporal.
Frase é todo enunciado suficiente por si mesmo para estabelecer comunicação.
A parte dedicada à frase nos dá o sabor da língua portuguesa, através de algumas categorizações e exemplos que permeiam o caminho entre a gramática formal (e sisuda) e as descobertas linguísticas sobre a comunicação de fato. Desde o uso da língua escrita ou falada em diferentes âmbitos até a análise de textos, nesta parte há um pouco de sintaxe e de reflexão, mas a sintaxe vira ferramenta para a busca semântica, que é o tema constante do livro, e a reflexão incita o leitor a manter em sua cabeça o questionamento: qual a melhor forma de se expressar uma ideia?
Cada qual é livre para dizer o que quer, mas sob a condição de ser compreendido por aquele a quem se dirija.
Muito se frisa a respeito do ensino formal nas escolas, e como o principal problema dos alunos não é fazer a análise de uma frase ou parágrafo, mas a falta do pensar claro sobre o que se quer expressar na hora de colocar esses pensamentos em palavras escritas. E na hora de ler, estes mesmos alunos terão dificuldade de entender a mensagem nos textos, mesmo que consigam eventualmente analisá-los sintaticamente, sabendo qual o sujeito, o predicado, etc.
Essa questão é a das mais atuais no livro, pois mesmo décadas depois não apenas os alunos são incapazes de entender a dinâmica da língua como já formadas, mas pessoas sofrem para conseguir expressar suas opiniões na internet. Falhas de comunicação se reproduzem como pragas, gerando discussões infrutíferas e descabidas. A democratização do acesso à informação gerou através das massas a impressão de que hoje em dia há mais desinformação do que conteúdo, o que reflete como a má qualidade do pensamento da sociedade como um todo.
Para combater esse mal Othon M. Garcia usa lógica argumentativa básica, fundamental, e bate nessa mesma tecla em todas as quatro primeiras partes do livro. É através do pensar que ele esmiuça os exemplos. A análise sintática também é feita, mas fica em segundo plano e esvanece conforme vamos aprendendo o raciocínio através do estilo.
A análise lógica pode ser de muito préstimo, se a praticarmos como aprendizado da estilística (Barreto, 1954:61)
O autor vai aos poucos destrinchando as diferentes formas de estruturar uma ou mais frases, merecendo destaque os exemplos e as explicações sobre os processos de subordinação e paralelismo. É com esses dois elementos que praticamente toda essa parte do livro ganha vida. Graças, claro, à dedicação do autor em encontrar exemplos dignos de cada uso, em meio a centenas de obras literárias de todas as épocas.
Na subordinação (também chamada hipotaxe), não há paralelismo, mas desigualdade de funções e de valores sintáticos. É um processo de hierarquização (...) O princípio do paralelismo tem, como se vê, implicações não apenas gramaticais mas também estilísticas e — como se mostrará mais adiante — igualmente semânticas.
Eu preciso frisar essa busca do autor pelos exemplos, pois eles são a melhor forma do leitor aprender de maneira definitiva o que se quer dizer com processos estilísticos com nomes obscuros. Sobre paralelismo, por exemplo, há diferentes maneiras de se expressar, e o autor vai buscar inspiração, mesmo em prosa, até mesmo na métrica das sílabas usadas. Essa fascinação pelo estilo é contagiosa, e logo nos acostumamos a apreciar o uso de contraste do Padre Vieira, de quem o autor extrai muitos ótimos exemplos. Ao mesmo tempo, ele não se esquece dos clássicos mais populares, como ao mostrar a deliciosa ruptura de paralelismo semântico de Machado de Assis. E, por fim, incapaz de dar por encerrada a questão, até seus devaneios em busca das imprecisões da comunicação, como no exemplo de ruptura semântica que "não soa certo", mesmo sem saber por quê, o autor nos conquista por sua humildade e pela busca das respostas como mais importante do que tê-las para nos satisfazer por completo, demonstrando com isso que a língua é muito mais um processo do que um projeto finalizado.
Mas, às vezes, a falta de paralelismo semântico configura-se como incongruência de tal ordem, que a frase se revela agramatical (ou, pelo menos, de gramaticalidade discutível). É o caso, por exemplo, de frases do tipo da seguinte: "Fulano é cordial e alfaiate." Não é fácil explicar por que ela é inaceitável. Mas é certo que o "sentimento linguístico" — a "competência" do falante ou ouvinte — rejeita essa coordenação entre "cordial" (adj.) e "alfaiate" (subst.).
A gramática gerativa transformacional (GGT) diria (ou dirá): a coordenação está bloqueada porque "cordial" e "alfaiate" (i.e., X e Y) não têm a mesma estrutura interna, não são constituintes do mesmo tipo (X = adj., Y = subst.). Explica? Explica satisfatoriamente? E a elipse (essa panaceia retórico-gramatical, que, com frequência, escamoteia dificuldades mas nem sempre resolve todas) de "é também" — "Fulano é cordial e é também alfaiate" — explicaria? Também não, a nosso ver. Trata-se de questão relativa à lógica e à linguística, cuja discussão este tópico não comporta.
Note que o autor critica duramente os mecanismos de análise gramatical que são estéreis no âmbito da reflexão e raciocínio. Pertencem apenas a um segmento dos estudiosos da língua em se apoderar de um conhecimento inútil e com ele defender o monopólio do esclarecimento erudito, inalcançável para a grande maioria. Há um bom motivo pelo qual ele é inalcançável: ele é inútil.
Outro aspecto admirável dessa primeira parte do livro são os exemplos em que o mesmo conteúdo de uma frase pode ser reestruturado para dar mais ênfase a determinados elementos. O livro possui muitas páginas a respeito desse exercício, e todos eles serão úteis para escritores que estão em busca de maneiras de afiar suas habilidades estilísticas.
Uma dessas normas -- a que já nos referimos de passagem -- recomenda que se coloque, sempre que possível, nas extremidades do período, os termos ou orações a que se queira dar maior relevo.
A própria clareza das ideias (se é que as temos sem palavras) está intimamente relacionada com a clareza e a precisão das expressões que as traduzem. (...) Isoladas do seu contexto ou situação, as palavras quase nada significam de maneira precisa, inequívoca.
Misturado com os aspectos finais da frase, como os tipos de discurso, mas ao mesmo tempo dando ênfase necessária à busca incessante das melhores palavras para ser usado no texto, a segunda parte do livro já parte para explicar as melhores formas de se manter uma árvore etimológica rica em nossas mentes na hora de escrever. Nessas horas, e apenas nessas, é que nos sentimos agraciados pela origem latina de nossa língua, pois esta possui através dos radicais e flexões um campo vasto de possibilidades de descobrirmos ou até mesmo criarmos palavras através da lógica de sua construção que remonta aos romanos.
Chama-se circunstância (do lat. circum, em redor; stare, estar, o que está em redor ou em torno) a condição particular que acompanha um fato, o acidente que o atenua ou agrava. Em retórica, entende-se por circunstância a própria ação (o quê? lat. quid?), a pessoa (quem? lat. quis?), o lugar (onde? lat. ubi?), o tempo (quando? lat. quando?), a causa (por quê? lat. cur?), o modo (como? lat. quomodo?) e os meios (com quê? lat. quibus auxiliis?).
Além disso, o autor dá dicas de onde encontrar sinônimos, antônimos e palavras associadas às que se pretende usar em um texto. Não é apenas no dicionário usual que se encontram palavras. Existe um rico arcabouço de ferramentas que estão escondidas do público que hoje em dia, mais do que nunca, estão disponíveis ao clique de um botão. Mais do que a busca denotativa, no entanto, há uma necessidade quase obsessiva dele se debruçar sobre as figuras de linguagem, e através delas conseguirmos escapar da vulgarização do mundo objetivo. Algo louvável nos anos 60, mas primordial hoje em dia, em que a ciência é cada vez mais ferramenta opressora da narrativa, do humano, dos valores.
A existência de similitudes no mundo objetivo, a incapacidade de abstração, a pobreza relativa do vocabulário disponível em contraste com a riqueza e a numerosidade das ideias a transmitir e, ainda, o prazer estético da caracterização pitoresca constituem as motivações da metáfora.
Indo mais além dos elogios pela metáfora e outras figuras por sua expressividade, M. Garcia traz à tona, dentro do mesmo tema, um assunto de vida ou morte, sobre a diferença entre os valores denotativo e conotativo e como essa diferença se reflete em conflitos no mundo real. Nas palavras de Hayakawa, que os chama de sentido extensional e sentido intensional (com s, mesmo), respectivamente, a questão é como os esforços em se defender argumentos oriundos de sentido intensional (conotativos) levam a desentendimentos eternos entre pessoas, grupos, nações, que confundem como uma discussão a respeito do sentido extensional (denotativo). Merece destaque a citação abaixo, que diz tudo o que precisamos saber sobre os conflitos atuais de ideias.
A polarização e o sentido intensional tornam a linguagem ainda mais polissêmica, agravando os conflitos e os desentendimentos. Que se entende exatamente por nacionalista, por entreguista, por reacionário, por democrata, por imperialista, por comunista, ou socialista ou subversivo? Há 30 anos ou menos, nazistas e fascistas, que se opunham, e ainda se opõem, a comunistas, diziam-se, e ainda se dizem, nacionalistas; hoje os nacionalistas são com frequência tachados de comunistas, e aqueles outros, de reacionários. Os partidários da estatização eram antes fascistas, hoje são comunistas, mas eles mesmos se dizem nacionalistas. Quem defende a iniciativa privada é anticomunista para uns, reacionário para outros, embora se considere democrata e progressista. Para muitos, nacionalismo é amor à pátria, para outros, xenofobia... Polarização e polissemia de mãos dadas.
É inegável que Comunicação em Prosa Moderna é um compêndio estilístico não apenas imprescindível nos dias de hoje, como revelador de como a comunicação infelizmente não melhorou deste então, apesar de um mundo cada vez mais conectado. E as razões parecem mais filosóficas do que linguísticas.
É inútil ou, pelo menos, improfícuo tentarmos traduzir impressões ou juízos que a experiência, lato sensu, não nos proporcionou.
O parágrafo é uma unidade de composição constituída por um ou mais de um período, em que se desenvolve determinada ideia central, ou nuclear, a que se agregam outras, secundárias, intimamente relacionadas pelo sentido e logicamente decorrentes dela.
Elogiada pela maioria dos críticos e resenhistas, a parte dedicada ao parágrafo é a que consegue reunir todas as virtudes de Comunicação em Prosa Moderna de uma só vez: os exemplos literários, a busca pela melhor forma, o estudo estruturado e o pragmatismo de quem precisa urgentemente começar a escrever.
Dividindo a análise do parágrafo entre dissertação, argumentação, narração e descrição, o autor vai unindo os conceitos usando analogias e dividindo os elementos que cada tipo de escrita usa na questão de estruturar um ou mais parágrafos. Ele vai além da mera divisão categórica e faz um retorno para os princípios linguísticos pelos quais a forma que nós, ocidentais, organizamos nosso pensamento.
É provável que tal estrutura, predominante também em muitas línguas modernas, todas indo-europeias, todas marcadas pela herança greco-latina, decorra de um processo de raciocínio dedutivo.
As especulações históricas e filosóficas do autor visam apenas dar uma introdução fundamental ao que logo assume um formato mais pragmático e didático, permitindo que o leitor consiga ao mesmo tempo adquirir conhecimento sobre as bases linguísticas de como as coisas são e já parta para a ação, pronto para criar seus próprios parágrafos. Do lado pragmático da coisa, as dicas de composição são fundamentais. Eu mesmo as utilizei em alguns momentos nos meus textos durante a leitura e entendi que não apenas funciona, mas funciona sem exigir muita energia e tempo de quem as utiliza.
Aprender a escrever é, em grande parte, se não principalmente, aprender a pensar, aprender a encontrar ideias e a concatená-las, pois, assim como não é possível dar o que não se tem, não se pode transmitir o que a mente não criou ou não aprovisionou. (...) Nem sempre (...) temos consciência de se estar elaborando em nós mesmos um silogismo completo.
A quarta parte foi sendo anunciada nas três partes anteriores. Tem relação íntima com a lógica argumentativa. Aqui o livro parte para o desafio mais difícil: ensinar o leitor que aprender a escrever é aprender a pensar. Porém, M. Garcia está munido de ferramentas teóricas para explicar como funciona o raciocínio humano, e como deveríamos pensar para conseguir extrair nossas opiniões, impressões e experiências.
Distinguem-se primordialmente dois tipos de operações mentais na busca da verdade, vale dizer, dois métodos fundamentais de raciocínio: a indução (que vai do particular para o geral) e a dedução (que parte do geral para o particular).
Esta parte, como o autor próprio anuncia, não é um tratado de lógica nem de argumentação, mas apenas uma pincelada básica sobre algo que todo ser humano desde os gregos deveriam saber. A lógica, mesmo a mais básica, contida neste momento do livro, é o que menos se ensina nas escolas, e é fruto de todos os problemas citados quando se diz que alunos mal sabem escrever uma frase. Mais importante do que ensinar como se deve pensar, contudo, é como não se deve pensar. Os erros de raciocínio são muitos hoje em dia, e é fácil se deparar com a maioria deles em discussões pela internet ou até mesmo na imprensa, infectada pelo vírus da ignorância sistematizada.
Ainda que cometamos um número infinito de erros, só há, na verdade, do ponto de vista lógico, duas maneiras de errar: erramos raciocinando mal com dados corretos ou raciocinando bem com dados falsos.
Analogias, hipóteses, silogismos, definições. Todo esse arcabouço básico para quem está acostumado a discutir é explicado em detalhes, para que o leitor saiba utilizar cada ferramenta no momento certo. Um pouco de filosofia também é usado, quase que como um convite à reflexão.
A legítima argumentação, tal como deve ser entendida, não se confunde com o "bate-boca" estéril ou carregado de animosidade. Ela deve ser, ao contrário, "construtiva na sua finalidade, cooperativa em espírito e socialmente útil".
Comunicação em Prosa Moderna possui em seu núcleo as próprias ferramentas para refutá-lo como livro contemporâneo. Contudo, a maioria dos seus detratores são incapazes de explicar por que este é um livro ruim sobre comunicação em língua portuguesa, sendo a única constante nas críticas é a falta de uma didática em compasso com o ensino escolar. Oras, mas se é justamente a qualidade desse ensino que é atacado no livro, e sabe-se que a maioria das críticas provém do corpo docente do mesmo ensino, a ironia torna-se completa.
Deixo-os com o guia de Whitaker Penteado, citado por M. Garcia, de como refutar ideias ou argumentos.
1. Procure refutar o argumento que lhe pareça mais forte. Comece por ele.
2. Procure atacar os pontos fracos da argumentação contrária.
3. Utilize a técnica de "redução às últimas consequências", levando os argumentos contrários ao máximo de sua extensão.
4. Veja se o opositor apresentou uma evidência adequada ao argumento empregado.
5. Escolha uma autoridade que tenha dito exatamente o contrário do que afirma o seu opositor.
6. Aceite os fatos, mas demonstre que foram mal-empregados.
7. Ataque a fonte na qual se basearam os argumentos do seu opositor.
8. Cite outros exemplos semelhantes, que provem exatamente o contrário dos argumentos que lhe são apresentados pelo opositor.
9. Demonstre que a citação feita pelo opositor foi deturpada, com a omissão de palavras ou de toda a sentença que diria o contrário do que quis dizer o opositor.
10. Analise cuidadosamente os argumentos contrários, dissecando-os para revelar as falsidades que contêm.
Boa sorte.
# Deep Work
Caloni, 2020-03-15 books self [up] [copy]"Let your mind become a lens, thanks to the converging rays of attention; let your soul be all intent on whatever it is that is established in your mind as a dominant, wholly absorbing idea." - Antonin-Dalmace Sertillanges
Cal Newport é um professor universitário que, junto de outras pessoas, aprendeu que em épocas de distrações o trabalho profundo é o que merece toda nossa atenção. Em "Deep Work: Rules for Focused Success in a Distracted World" ele defende a tese de que a capacidade de realizar trabalho valioso se torna cada vez mais valioso em uma época em que somos levados a estar sempre interrompidos e vivendo de afazeres menores. O livro nos dá primeiro o argumento econômico; depois como podemos nós mesmos surfar a onda do trabalho totalmente focado e que renda frutos e realização.
Deep Work: Professional activities performed in a state of distraction-free concentration that push your cognitive capabilities to their limit. These efforts create new value, improve your skill, and are hard to replicate.
Shallow Work: Noncognitively demanding, logistical-style tasks, often performed while distracted. These efforts tend to not create much new value in the world and are easy to replicate.
Newport nos dá motivos econômicos no começo do seu livro de por quê seria interessante para o leitor se dedicar a deep work, já que ele será cada vez mais bem remunerado em um mundo de distrações. Porém, ele também nos dá um alerta para a época em que vivemos, sugerindo através de algumas evidências científicas de que viver sob distrações todos os dias pode danificar de maneira permanente de nos concentrarmos por longos períodos.
Ele cita uma substância rica em gordura que envolve fibras nervosas entre os neurônios chamada mielina. O motivo de sua existência em alguns neurônios é facilitar e agilizar a condução de impulsos nervosos. Fibras nervosas sem mielina possuem uma condução de impulsos mais lenta. O racional por trás dessa informação científica sobre neurologia e seu papel na melhora contínua é que habilidades, sejam intelectuais ou físicas, irão eventualmente ser explicadas ou reduzidas em funções do circuito neural.
Na prática o que isso quer dizer é que ao forçarmos circuitos relevantes do nosso cérebro a ser usados continuamente, eles desenvolverão uma capacidade maior de condução. O uso repetido aciona circuitos de células chamadas oligodendrocytes, que começa a formar camadas de mielina (myelin no inglês) em volta dos neurônios, o que na prática "coloca cimento" na habilidade sendo treinada. O motivo científico, portanto, pelo qual é importante se focar intensamente em uma dada tarefa, evitando distrações, é porque essa é a única maneira de isolar com mielina o suficiente os circuitos neurais relevantes. Por contraste, imagine que você está aprendendo algo que exija concentração e deixa o Facebook aberto, por exemplo, você está disparando muitos circuitos em paralelo, minimizando a capacidade de fortalecer e agilizar o grupo de neurônios que lhe interessa no momento (no caso, aprender essa habilidade nova).
Fora isso, também existem dados sobre a ineficiência do multitasking. Pesquisadores descobriram que a estratégia de trabalhar em uma tarefa A por um tempo e depois trocar para a tarefa B, sua atenção não troca totalmente para a tarefa A. Existe um resíduo de atenção que fica preso na tarefa A, pensando na tarefa original. E quanto menor a intensidade de concentração da tarefa A, mais atenção residual ela exige. É preciso frisar que mesmo que você termine a tarefa A há efeitos colaterais: sua atenção permanece dividida ainda por um tempo (o que exigiria um tempo de descanso entre tarefas).
"Who you are, what you think, feel, and do, what you love -- is the sum of what you focus on." - Winifred Gallagher
Ainda no campo das virtudes de controlarmos nossa atenção, temos o exemplo da cientista Winifred Gallagher, cujo livro Rapt descreve como ao passar por um tratamento de câncer em estado avançado ela tem o seguinte insight: essa doença quer monopolizar minha atenção, mas irei focar na minha vida sempre que possível. Foi dessa forma que, apesar de passar por períodos exaustivos e terríveis, Gallagher não pôde evitar observar que seu foco no que era bom em sua vida -- "filmes, caminhadas e um martini às 18:30" -- funcionou surpreendentemente bem. Sua vida naquele momento, que poderia ser pautada em medo e piedade, foi de certa forma agradável em vários momentos.
As informações subjetivas obtidas pela cientista nesse período de sua vida culminaram em uma conclusão que a humanidade já sabia desde o princípio, mas que precisa ser enfatizada hoje mais do que tudo: os melhores momentos usualmente ocorrem quando o corpo ou a mente de uma pessoa está sendo colocado no limite, em um esforço voluntário para atingir algo muito difícil e que vale a pena. Podemos colocar como a recompensa evolutiva pela sobrevivência.
Portanto, construir sua vida de trabalho em volta do fluxo produzido pelo deep work é um caminho comprovado de satisfação profunda e duradoura.
"I was less stressed about not knowing new things; I felt that I still existed despite not having shared documentary evidence of said existence on the Internet."
No livro The Pragmatic Programmer, de David Thomas e Andrew Hunt, os autores fazem uma correlação entre o artesão dos tempos medievais e a arte, ou a parte que compete à criatividade, criada por desenvolvedores de software. Há uma frase marcante de um grupo de trabalhadores daquela época: "nós que cortamos pedras devemos sempre visualizar catedrais". Daqui a cem anos nossos engenheiros serão vistos como tão arcaicos quanto as técnicas antigas usadas para se construir catedrais. Porém, nossos artesões serão sempre honrados.
Apesar de trabalhos artesanais não terem nunca sido valorizados, como a profissão de ferreiro ou fazedor de rodas, não é o trabalho em si que é relevante, mas o significado que surge dos esforços da habilidade e da apreciação do resultado de um artesão. Ou seja, não é a roda de madeira que é nobre, mas o formato que ela pode ter. O mesmo se diz hoje em dia de trabalhos intelectuais: não é a raridade do seu trabalho, mas uma abordagem que seja única.
Depois de uns meses usando essa estratégia ou modo de pensar, seu entendimento sobre o que significa focar irá se transformar conforme os níveis de intensidade alcançarem limites nunca vividos antes.
Newport desenvolve várias técnicas ao longo da segunda metade do livro que organizam sua vida em torno do deep work que ele realiza. O mais importante aqui é que existem resposta para praticamente todo tipo de atividade. Portanto, não há desculpas para quem lê o livro de que seu caso é especial.
Desde agendar todos os minutos do seu dia (e reagendar conforme ele avança) até abandonar as redes sociais e apenas voltar a usá-las depois que decidir que ela melhora sua vida, Deep Work é pragmático e previsível, e talvez seja esse um dos seus pontos mais decepcionantes: não há nenhuma novidade. Todos nós sabemos o que deve ser feito, sendo que a única coisa que resta ao leitor é colocar a mão na massa.
Até medidas objetivas do que é shallow e o que é deep o livro fornece. Ele faz uma pergunta muito sagaz para responder a essa questão: quanto tempo demoraria para treinar um colega graduado sem nenhuma especialização na minha área para completar esta tarefa? Se não for muito, é shallow. E é possível ter esse valor quantificado em meses. Genial, não?
Próximo do final há dicas valiosas sobre como responder emails que a maioria das pessoas provavelmente nunca se deu ao trabalho, tão alheias que estão hoje em dia com essa ferramenta que acaba sendo nociva no quesito consumo de tempo. O sistema de centralizar em processos de Newport é uma obra de arte. Alguns como eu já chegaram em algo próximo do que ele descreve no livro, mas o resultado descrito por ele serve para qualquer pessoa, famosa ou não.
"Develop the habit of letting small bad things happen. If you don’t, you’ll never find time for the life-changing big things." - Tim Ferriss
# Projeto Hu Cpp
Caloni, 2020-03-15 coding [up] [copy]Utilizo o Hugo como renderizador do meu saite já faz um tempo. Depois que juntei os posts do finado Cine Tênis Verde e do meu blogue técnico a soma dos textos ultrapassou a marca dos dois mil. Atualmente levo cerca de quinze segundos para renderizar todo o saite antes de publicá-lo.
Não é uma marca ruim, considerando que estamos com quase três mil textos, e embora o leiaute do saite seja muito simples, é justamente o que eu desejo para rápido carregamento e busca. Não tenho do que reclamar.
Porém, um programador C nunca fica satisfeito com uma solução Golang.
Sabe esses pensamentos que não saem da cabeça? Estava devaneando há uns dias sobre se não seria interessante renderizar meu saite usando uma solução em C ou C++ e ver qual seria o resultado. Claro que seria uma solução in house, cheia de bugs e completamente limitado. Mas quem liga? Meu único objetivo é a diversão, e não pretendo criar um produto genérico. Hugo já satisfaz até o mais exigente dos programadores (exceto o Elias), pois resolve vários problemas do interminável conflito entre conteúdo e design.
Por falar no dito cujo, me lembrei da nossa disputa no saite Os Programadores. Era uma resolução de exercício envolvendo leitura e parseamento de um arquivo json. Tive o insight de usar algo parecido com o que desenvolvi naquela vez.
O código que bolei lê um arquivo markdown e divide o header nos campos que eu utilizo e o texto em parágrafos. Esse é o começo mínimo para começar a converter os arquivos em html. Ele usa o mapeamento de arquivo em memória como no desafio do saite. Não precisaria, mas já que a diversão é fazer mais rápido que o Hugo, por que não?
Meu próximo passo é pegar esse parser e converter todos os arquivos para html, da maneira mais porca possível. Quer dizer, quase da maneira mais porca. Não estou usando Pascal.
Crianças, a maioria meninas, estão prestes a deixar o Irã e se mudar para o Afeganistão, em um ambiente controlado por forças extremistas, tradicionalistas e desumanas. Apesar de terem cerca de cinco a seis anos, um adulto as adverte para a falta de escolas como algo ruim, uma opinião que eu duvido que crianças dessa idade compartilhariam. Ele também dá um conselho: para momentos difíceis imaginem que são formigas. Dessa forma, por pior que seja o aperto, o ambiente onde estarão será amplo e grandioso.
Curiosamente um dos filmes que o cineasta Mohsen Makhmalbaf fará após Kandahar se chama "Scream of the Ants" (grito das formigas), uma análise sobre crenças e rituais. Mas é a cultura que está sendo escrutinada em A Caminho de Kandahar, em particular a cultura que oprime as mulheres. Uma jornalista feminista tenta a todo custo entrar na região para falar com sua irmã, que pretende se suicidar no último eclipse do século. São tantos elementos fantásticos em jogo que nos esquecemos de acreditar em tudo isso, mesmo que saibamos através de noticiários e documentários que tudo o que vemos no filme acontece de fato.
Esse contraste entre o que é real e o que é acreditável acontece o tempo todo nesse filme, que mistura teatro e drama com um realismo pesado. A mistura de cores e movimentos deixa uma impressão de exagero nas cenas. Os personagens nesta história não agem como personagens da História afegã, mas como atores em um palco montado para exemplificar como seria se eles estivessem realmente filmando no deserto. Para aumentar o desconforto, há belíssimas paisagens enquadradas pelo diretor Mohsen Makhmalbaf e fotografadas por Ebrahim Ghafori (do ótimo Osama). As luzes capturadas no Oriente Médio costumam gerar esse contraste entre o horror e a poesia, mas neste filme o que está em jogo são as pretensões do cineasta, que manipula a natureza humana de maneira desajeitada, apressada e relapsa.
A narração em inglês da jornalista canadense, a beleza de seus olhos e a brancura de sua pele ocidentalizam uma experiência exótica. Makhmalbaf fala com propriedade e experiência quando monta situações da história, como o garoto que tenta insistentemente vender um anel tirado de um cadáver para a mulher, mas sua forma de filmar corrompe a pureza dos causos, pois o cadáver é uma caveira meticulosamente arranjada para um corte rápido no filme. Enquanto conseguimos ver quem da produção arranjou esta caveira não conseguimos adentrar na história de fato, por mais real e imediata que ela nos pareça.
O roteiro mantém este único fio de tensão através das inúmeras experiências da forasteira nesta terra inóspita. Ela precisa encontrar a irmã, mas o tempo é curto. Isso gera uma urgência que faz com que o espectador preste muita atenção em por quê essas pessoas que ela encontra pelo caminho não a ajudam. Percebemos, então, que cada uma delas está imersa no inferno e vive como pode. Há um mercado paralelo de pernas postiças para os que a perderam pisando em minas pelo caminho. Esse é o nível do drama da região que as lentes ocidentalizadas de Makhmalbaf não conseguiram capturar com a pureza que merecem.
# Projeto Hu Cpp: Not Fast Enough
Caloni, 2020-03-17 coding [up] [copy]Continuando minhas aventuras em tentar ser mais rápido que o Hugo, fiz uma versão que gera um html porco com os parágrafos obtidos no parser porco de markdown, rodando em cima dos meus 2740 posts. Este é o resultado.
Hugo: 16.527 ms Hu-Cpp: 89.573 s
Noventa segundos para 2700 posts! É uma vergonha! Programadores C++/Boost/Asio, vamos nos matar.
# Better Call Saul: Rest in Peace?
Caloni, 2020-03-19 series [up] [copy]Os quarto e quinto episódios da quinta temporada parecem finalmente ter saído dos trilhos que mantêm a qualidade das obras de Vince Gilligan para TV. Vemos nossos personagens queridos falando mais do que deviam, em específico Mike, que parece não pertencer mais a ele mesmo e revela fraquezas de interpretação de Jonathan Banks que, assim como as de Dean Norris e seu Hank Schrader, poderiam ter ficado de fora sem ceder à pressão inócua dos fãs. Vemos no próprio roteiro o tradicional mistério do início da história que costuma ser revelado no final de maneira engenhosa aqui ser usado como quase um fetiche vingativo bobo e, se não previsível, é porque ele é bobo demais. Ele é a versão menor, mundana, da cena que termina com uma geral onde aparece uma placa de um carrão de certo personagem escrito "Namastê", que por si só já nos joga de imediato para várias críticas sobre como seres humanos resolvem suas contradições internas da maneira mais superficial possível, em um processo de auto-enganação sistêmico e doentio. E Howard Hamlin não precisou deixar de ser Howard Hamlin para isso.
Será que Better Call Saul dá sinais de cansaço em sua fórmula que exige tantos episódios por temporada? Gordon Smith e sua assistente de roteiro Heather Marion não estão acostumados a pisar na bola desse jeito. Eles têm levado a série para picos inimagináveis desde o começo. Mas aqui, essa dupla de roteiristas com essa dupla de episódios não funcionam quase que nenhuma vez. Eles pegam o embalo natural nas personas já criadas e a atmosfera do universo concebido desde o início na série anterior, mas após a leve descida encontram uma estrada reta e enfadonha, levando um carro na segunda marcha na pista do acostamento. Este não é um exemplo da série que me faz palpitar do começo ao fim. Este é um exemplo do começo do fim.
Uma produção fofinha dos anos 90, lembro que foi sucesso na época, assisti a primeira vez em VHS. É um filme feito para o Oscar e para as multidões. Mario Ruopollo é um italiano tão doce e falso quanto o Pablo Neruda do filme. Veja como Philippe Noiret, o ator que faz Neruda, se veste como um poeta, sorri como um poeta e fala como gostaríamos que falasse um poeta. Ele está atuando em um filme e isso é muito claro para o espectador, mas em nenhum momento ele consegue nos convencer de que quem estamos vendo na tela é de fato Pablo Neruda, diferentemente de sua versão como projecionista de um cinema em um vilarejo da Itália no inesquecível Cinema Paradiso.
Já Massimo Troisi participa da direção e faz aqui um italiano de uma vila de pescadores que mal sabe ler e que quer se tornar um poeta para conseguir que as mulheres se apaixonem por ele. Imediatamente após ele falar isso ele entra em um restaurante onde a estonteante atendente está jogando pebolim e coloca a bola que caiu várias vezes no chão sujo em sua boca. Maria Grazia Cucinotta é colírio para os olhos, e é justamente por isso que ela não poderia existir nessa vila de pescadores nem se apaixonar por um semi-letrado que não tem onde cair morto.
A virtude de Troisi como ator é nos entreter enquanto aguardamos a história escrita a seis mãos convenientemente nos entregar um pequeno conto que une Neruda, "crítica social", uma música forçosamente colocada como tema e uma fotografia da Itália feita para cartões postais. Este filme é um cartão postal em VHS. Agora em DVD. E agora em streaming.
Ele deve continuar agradando multidões, mas tendo como pano de fundo o saudosismo dos simples e doces anos 90. É um filme fácil de digerir pelas emoções que ele deseja transmitir, mas difícil de engolir por causa do seu formato feito para ser embalado em uma lata e vendido para Hollywood e para o resto do mundo.
Sempre que amigos se reúnem para aquela cervejinha básica e começam a conversar sobre zumbis e cinema é inevitável que surjam várias piadas que parecem muito boas de se colocar em um filme. Shaun of the Dead é esse filme, que o diretor Edgar Wright estreou nos cinemas, e que comprova sua energia em dirigir comédias, além de como seu talento será melhor exposto em trabalhos posteriores.
Aqui as piadas que a reunião de amigos fez brotar aparecem, mas quando as vemos em cena algo está errado. Não era bem assim que eu imaginava enquanto devorava salgadinhos tomando minha IPA. Sim, são as mesmas piadas que elaboramos, e elas continuam ótimas isoladas. Veja esta, por exemplo, quando o personagem de Simon Pegg escorrega em algo pegajoso no chão, e mesmo sem vermos, sabemos instintivamente que é aquele sangue nojento derramado de alguma vítima do apocalipse zumbi. Essa foi uma piada que funcionou no filme, mas que precisou de uma sequência inteira de outras piadas que sofreram para serem contadas. E que não funcionaram.
Mas enquanto as piadas não se esforçam para serem engraçadas, mas apenas fazer parte do repertório do filme, notamos com certa simpatia que o diretor Edgar Wright mantém a mesma energia que empregará mais tarde no espetacular Scott Pilgrim Contra o Mundo, mas está trabalhando com um roteiro bem inferior assinado por ele e Simon Pegg. É um trabalho a quatro mãos bem-humorado, quase informal. Lembra quando Adam Sandler se reúne com os amigos e "cometem" mais um filme, mas diferente de Sandler aqui há certos critérios que tornam o produto final minimamente assistível.
A própria sequência do personagem de Simon indo buscar seu jornal e alguma coisa para comer é um exemplo do que estou falando. Ela é a cena clássica do antes e depois do ataque zumbi. Ela funciona como cena, mas não como parte da história. Não há personagens para haver uma história. São estereótipos. Ele é um namorado relapso. Ele tem um amigo parasita (Nick Frost) e dois amigos dela (ela é Kate Ashfield) que fazem o papel de defendê-la contra o cara que está namorando que a leva todo santo dia ao mesmo pub.
Essa piada foi reciclada por Wright em um de seus trabalhos posteriores, quase uma continuação da vida de Shaun. Em Heróis de Ressaca, uma comédia sobre perdedores, vemos novamente Simon Pegg, Nick Frost e até Martin Freeman, que faz aqui uma ponta, juntos de novo, mas adultos e quarentões. É uma versão melhorada, onde existe ainda o charme da informalidade, mas junto das habilidades de um diretor mais maduro.
Lembra Zootopia, mas é muito mais adulto, embora se passe em um colégio, como muitos dos animes japoneses desse gênero de relacionamentos. Ele lida com a questão do instinto criando um universo onde presas e predadores convivem, e em meio a um grupo de teatro ocorre um crime da natureza. Poesia e potência são os ingredientes mágicos desta série com ótimas ideias de mixagem de técnicas e formatos de animação. Unindo 3D, computação e os traços típicos de desenho japonês, Beastars vai além tanto pela estética quanto pela argumentação, embora falhe em desenvolver ambos de maneira satisfatória.
Além do fato de ser falado em norueguês, o que foge do lugar-comum, esta produção Netflix não tem nada de novo. São ideias para filmes de terror condensadas em meia-hora por episódios. Eu assistiria alguns desses episódios no formato filme, mas consigo me divertir muito mais observando as ideias originais sendo lançadas no cesto de lixo em uma produção para TV. Espero que algum produtor olhe para elas e diga: "isso pode dar um filme". O terror na série é bizarro. Ele mistura trash com alta resolução e manipulação digital de péssimo gosto. Deixe sua mente devanear e observar as possibilidades. Só isso já é suficiente para meia-hora de diversão.
# Git Subtree
Caloni, 2020-03-22 coding [up] [copy]É a segunda vez que uso subtrees no Git. Não é algo que me acostumei usar por rotina, mas é uma técnica que eu recomendo que todo programador conheça para unir repositórios que não dependa dos pesadelos de configurar submodules.
Há vários tutoriais na internet sobre seu uso (como o da Atlasian), além do próprio manual do Git e sua ajuda. Só quero enfatizar neste post que ele existe, é fácil de usar, e pode resolver alguns problemas de gerenciamento de projeto:
O diretor David Lynch coloca à prova nossa capacidade de avaliação de um trabalho cinematográfico. A Netflix coloca no ar este curta experimental desse diretor experimental em que um macaco é interrogado por um investigador (o próprio Lynch) e sua boca se mexe através de um truque dos mais baratos de colocar uma boca humana falando em cima da boca do animal. Funciona? Eu não me arrisco dizer. Não há nada para se ver por aqui senão uma cópia barata digital que brinca com noir e diálogos que tentam fugir do comum. Mas não adianta: o trabalho de Lynch com o macaquinho é fofinho demais para sair algo além disso.
# Shaun o Carneiro – O Filme – A Fazenda Contra-Ataca
Caloni, 2020-03-23 movies [up] [copy]São tantos subtítulos neste filme da Aardman... ele é uma versão estendida de um episódio da série Shaun Carneiro. Não é o primeiro longa-metragem. O primeiro se chamava Shaun: O Carneiro e tinha a graça e a originalidade de contar uma história mais longa sem qualquer diálogo, muitas vezes referenciando as comédias no início do cinema.
Aqui, em parceria com a Netflix e com mais trucagens de computação, a equipe de animadores conduzida pelos diretores Will Becher e Richard Phelan está inspirada em referenciar obras de sci-fi clássicas, começando pela pizzaria H. G. Wheels e terminando por três momentos que se ouve as músicas icônicas da obra desse autor (se você não conhece, H. G. Wells o nome dele) para o cinema, 2001: Uma Odisseia no Espaço, é tocada. O primeiro desses momentos toca Also Sprach Zarathustra, um poema sinfônico de Richard Strauss, baseado na obra homônima de Friedrich Nietzsche (Assim Falou Zaratustra) onde foi cunhado o termo Übermensch, ou o que virá após o homem, depois que ele conclui em sua fatídica frase pós-iluminismo, "Deus está morto". Na obra cinematográfica de Kubrick a música toca em dois momentos de ascenção: primeiro dos primatas, depois dos humanos. Quando vemos o fazendeiro simples, mas obtuso, tendo uma epifania de como conseguir seu objetivo de ter um trator mais potente vendendo ingressos para um parque temático que pega carona em uma possível invasão alienígena na cidade mais próxima, as engrenagens referenciais quase se conectam, como que a juntar de maneira torta e original Nietzsche, primatas, Kubrick, Revolução Industrial e um fazendeiro se esforçando para pensar; tudo no mesmo parágrafo.
Esse é pano de fundo metafórico que é utilizado para uma história que referencia outras obras, como Enigma de Outro Mundo (de John Carpenter), Contatos Imediatos do Terceiro Grau e E.T.: O Extraterrestre (ambos os últimos do diretor Steven Spielberg). O ET desse filme é fofinho, seu comportamento é suficiente para gerar carisma automático ao mesmo tempo que nos mantém com a pulga atrás da orelha para tentar entender seus objetivos, mesmo que inconscientemente entendamos que se trata de um mini-remake do filme de Spielberg, onde um extraterrestre se perde de casa, em forma de animação com massinhas.
Como a maioria das animações cheias de boas ideias, o primeiro e segundo ato compensam pela criatividade e por entreterem como nenhum live action faria. Cheio de ação e detalhes vistos às vezes em frações de segundo. Um policial anota as palavras ditas por uma testemunha. Ela resmunga "glarg glarg blah", e é exatamente o que vemos escrito, de relance, no caderno do policial.
O terceiro ato, como a maioria das animações, peca pela repetição e necessidade de tramas e sub-tramas, sempre agarradas à sensação falsa que há mais algum perigo da missão do filme não ser concluída. É preguiçoso e automático. Dá vontade de rever o filme, mas só até a metade.
# Self Made: Inspired by the Life of Madam C.J. Walker
Caloni, 2020-03-27 series [up] [copy]Daquelas séries biográficas que pode ser lida em quinze minutos na internet. E de quebra você estará melhor informado sobre os fatos e não engolirá a cartilha social corrente. Por exemplo, é óbvio que a filha dessa milionária negra não era lésbica na vida real, assim como não existia uma vilã milionária mestiça para confrontar a pureza do sangue de uma afro-americana. Parece existir apenas uma verdade nessa mistureba roteirizada por Nicole Jefferson, Elle Johnson e a tataraneta da protagonista: no fundo todos gostariam de ser brancos.
O primeiro episódio é amador, com fotografia pedestre e que joga as cenas como o palco de um teatro. Octavia Spencer é a única coisa que nos convence a continuar assistindo os próximos episódios, pois Spencer pode interpretar um poste e esse poste ganhará o Oscar. Os diálogos e a narração em off, risíveis se não fosse pela atriz, nem chegam a se comparar ao teatro, mas de novela. Lembra o meme "cries in spanish" na versão "fala maldades em inglês sulista americano".
Após o desastroso piloto a fotografia se ajusta ao conteúdo: uma protagonista que enriquece e vira uma versão muito bem-vinda de Dagny Taggart, a heroína de A Revolta de Atlas, clássico absoluto de como empresários são figuras fascinantes mesmo em histórias caricatas como a da novelista filósofa Ayn Rand.
Octavia Spencer continua sendo a melhor coisa da série do começo ao fim. Sua presença sempre eleva a qualidade das cenas, a textura entre os personagens e a profundidade das emoções em jogo. Isso não é graças aos diálogos, que continuam muito ruins. São pedaços de texto genéricos, com quase nenhum momento digno. Exceto por um ancião, interpretado por Garrett Morris com uma dignidade que falta à série, quando ele dá um sermão em seu filho, lembrando o que era um relacionamento duro de verdade com sua esposa, na época que ambos eram escravos.
Estes são os EUA do início do século 20, em que os escravos livres ainda estão vivos, e os filhos mestiços com seus antigos donos são bem vistos por terem a pele clara. Ou pelo menos essa é a visão entregue pela série dirigida pela dupla DeMane Davis e Kasi Lemmons, escolhidas provavelmente por serem mulheres negras, e não por qualquer virtude narrativa que elas possuam, já que a série se desenvolve sem alma alguma.
Porém, a história de superação de C. J. Walker por si só já seria motivo da série, que busca de forma incessante criar uma vilã para essa heroína sem perceber que assim como no drama de Ayn Rand é o espírito do tempo que se torna o verdadeiro vilão de uma heroína como Walker, uma mulher que nunca se acostumou a pedir perdão ou licença. Ela faz o que deve ser feito, a despeito do que os outros achem.
Curioso como o mau gosto musical anda de mãos dadas em obras onde a heroína é uma empresária que move os motores do mundo. Aqui a mescla entre uma série de época com músicas pop contemporâneas é no mínimo desastrosa. É como se estivéssemos assistindo a uma versão com trilha sonora provisória e cuja escolha era o que estava passando no Spotify naquela hora. Esses dois mundos nunca se encaixam em "C. J. Walker", assim como a cartilha social vigente nunca se encaixará em uma história que enaltece uma mulher que se faz sozinha.
Essa poetisa é maluquinha. Ingrid Jonker o nome dela. Morreu aos 32 anos. Houve um pequeno hiato antes de sua morte em que ela conheceu Jack Cope, um escritor mais velho que só escreveu um livro e que se esforçava para focar em outro. Jack salvou sua vida no dia que se conheceram, e ele se apaixonou perdidamente por esta libertina que é o resultado mais que previsível de um pai autoritário.
Seu pai defende a superioridade branca em plena África do Sul e em pleno Apartheid. Ele é o censurador de livros em um período politicamente tenso da história. Nelson Mandela ainda seria um nome a ser lembrado, e é o único nome que vemos no filme.
Jonker é interpretada por Carice van Houten de maneira automática, mas ela vive esse momento compenetrada e nos convence. Ela é muito mais poetisa que Pablo Neruda de O Carteiro e o Poeta, um filme que parece de brinquedo frente à intensidade deste trabalho da diretora Paula van der Oest.
Os sentimentos da diretora holandesa a respeito do roteiro de Greg Latter flutuam no vácuo, mas sua tecnicidade controla por completo um filme que vai nos levando sem esforço algum. Não há significado, apenas emoções. Jonker é uma força da natureza que não argumenta, apenas segue seu final trágico. E ela serve de instrumento político em um filme que sobre esse assunto se torna monossilábico.
O final das pornochanchadas dá origem a este filme da diretora Ana Carolina, seguidora de Godard na linha de frente contra a lógica opressora burguesa. Ela abandona todo e qualquer sentido neste trabalho onírico que documenta as cantigas e brincadeiras de boca suja de um colégio de garotas e da insinuação de sexo a todo momento com todo mundo. Ela pode levantar a bandeira libertina enquanto não mostra nenhuma nudez nem sexo daquelas garotas com pessoas mais velhas, pois do fundo de um artista da contracultura há uma moral careta como qualquer outra.
Os devaneios do personagem de Antônio Fagundes fazem eco com os devaneios vindouros de uma nova democracia: a democracia impossível. Este é um filme 100% brasileiro que não consegue se desvencilhar de nossa incapacidade de conciliar a miscelânea cultural, para não dizer bagunça, que vivemos.
Ele é divertido em boa parte do tempo, e no resto dele enfadonho. Os exageros e os gritos se tornam repetitivos. No começo o absurdo encanta, mas logo depois se perde o interesse. Como uma criança birrenta que apronta o tempo todo, ela só merece atenção nos primeiros minutos até entendermos que se trata apenas de uma criança birrenta.
Eis um filme perfeito do início ao fim. Seu início é enfadonho e preguiçoso, mas no primeiro momento em que este milionário chinês e esta ninfeta europeia se encontram na cama de um quarto sujo de um bairro pobre e distante dos grandes centros, ele nunca mais volta a ser enfadonho.
Sua história é bem direta: é um Lolita realista, épico, mostrado do ponto de vista de uma garota de quinze anos e meio em uma situação completamente diferente. É uma obra quase autobiográfica de Marguerite Duras, que viveu no Vietnã no início do século na pobreza com seus irmãos e a mãe, e já revelando seu final no começo do filme, se tornou a escritora que tanto desejava no início de sua vida. Ao custo de, de acordo com suas palavras, "ter envelhecido completamente aos 18 anos".
A relação entre ela e o chinês é puramente sexual. E este só pode ser um filme biográfico, pois os detalhes com que eles fazem sexo só pode ter saído da cabeça de quem realmente teve essa experiência. Nunca um filme antes havia mostrado o ato conforme ele acontece, e agora, graças à ajuda do diretor Jean-Jacques Annaud e o roteiro de Duras, temos um exemplo concreto, paupável e inesquecível. Não há freios morais aqui como no Ocidente contemporâneo que pare essas descrições visuais.
O achado do filme foi Jane March, uma modelo que em seus dezoito anos protagoniza com propriedade a estrangeira ninfeta que faz o papel da estrangeira em um mundo exótico. Não há muitos personagens, e sequer há nomes para os dois principais. Há apenas a descrição visual e narrativa, um tanto brega, mas eficiente, e a percepção do espectador do que pensar sobre tudo isso. Nossa mente caminha livre pela beleza desse Império dos Sentidos adolescente.
Cinema é sexo, como já sugeria a crítica Pauline Kael, nos títulos dos seus livros e no prazer que lhe era proporcionado pelos anti-heróis que subvertiam a ordem moral. E O Amante é o filme que ela adoraria escrever sobre.
# O Serviço de Entregas da Kiki
Caloni, 2020-03-28 movies [up] [copy]Os animadores dos Estúdios Ghibli são sempre muito empenhados. Até este trabalho menor é encantador em seus detalhes e sua execução. Fala sobre uma bruxinha adolescente que sai de casa muito cedo para encontrar sua cidade e ser útil à comunidade. As dúvidas de uma jovem nunca são diferentes, e portanto o filme sai do comum ao nos mostrar as dúvidas de uma jovem que voa em uma vassoura.
Este filme tem cara de Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. É simpático, inofensivo até. Assistimos como quem não quer nada, imaginando os motivos pelos quais este filme foi produzido. É um encanto ver a atriz Esther Gorintin. Ela é realmente idosa. Nascida na Polônia em 1913, logo se tornou Esther Gorinsztejn no recém-criado Império Russo. Na época das filmagens desse filme estava com seus oitenta anos. Faleceu aos 87, em 2010, quando este blog de cinema começou.
Gorintin se comunica com o sorriso e com os gestos, curvada sobre a história de uma vida. A primeira cena é inesquecível, dela pedindo um bolo e o comendo com todo o prazer de quem ainda não está pronta para partir. Ela aguarda o sucesso do seu filho mais velho, Otar, que se mudou para Paris em busca de uma vida melhor. Sua neta observa o país onde vive desmoronando e também espera partir o mais cedo que puder, mas no momento ela precisa manter esse estratagema que mantém seu tio vivo aos olhos de sua avó.
O filme da diretora Julie Bertuccelli fala sobre conflito de gerações de uma maneira muito sutil, e sobre a decadência da União Soviética como os sonhos perdidos de uma geração, como se fosse possível viver essa mentira por mais algumas décadas. Estupefatos em torno das ruínas de um sistema burocrático, as escadarias da Georgia são muito íngremes para os idosos do Império Russo.
A França serve como exemplo. É a versão comunista mais bem sucedida do experimento do século 20, pois está amparada pelo capitalismo imperialista. Alheia a tudo isso, Eka é a vovó stalinista que quer viver de acordo com seus valores de adulta, quando a vida era mais simples, havia luta, mas junto dela um objetivo a ser alcançado.
Isao Takahata foi um gênio da sétima arte. Cada novo trabalho que ele empreendia nos Estúdios Ghibli gerava um novo avanço na animação. Se O Conto da Princesa Kaguya acabou sendo o mais conhecido pela indicação ao Oscar, Memórias de Ontem foi um verdadeiro achado na Netflix, e, como se não bastasse, ele também assina a direção de O Cemitério dos Vagalumes, número 1 de filmes de fazer chorar de várias pessoas, mesmo que conscientemente elas não saibam o poder ilimitado de Takahata e sua equipe, cuja imaginação e criatividade estavam a todo momento criando diferentes formas para representar o drama humano, sempre com muita sensibilidade.
"Meus Vizinhos, Os Yamadas" é uma diversão à parte. Dividida em blocos de pequenas histórias envolvendo uma família típica japonesa, as situações do dia-a-dia são comuns, mas se tornam imperdíveis com esses traços rabiscados emulando um movimento estabanado, um reflexo da vida percebida, e não a objetiva. Uma versão oriental de Snoopy com o charme dos desenhos japoneses.