# Cats

Caloni, 2020-01-04 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Este foi o primeiro filme que vi no cinema este ano. Fui para acompanhar um amigo, e hoje não estou certo se meu motivo mais forte foi a amizade ou o masoquismo. Para me ajudar a tirar essa dúvida há uma música que não me sai da cabeça desde então: a apresentação de um dos gatos do filme, o Mister Mistoffelees. O refrão repete este nome milhares de vezes até onde eu lembro, e isso me lembra agora que este é um musical muito mais infantil do que adulto, mas em uma época em que adultos são criaturas mais infantis que crianças (isso me deprime em um nível irremediável). Agora está certo: já me decidi o motivo mais forte de ter vindo ver este filme: masoquismo, sem dúvidas.

Não há história aqui que consiga ser descrita fazendo algum sentido, já que o filme musical baseado na peça musical de sucesso da Broadway não tem de fato uma história. É um fiapo de ideia: uma gata é abandonada e encontra um bando de gatos que dançam e cantam para que a gata anciã decida quem vai ser o gato a subir em um balão para fugir daquele inferno que é ficar ouvindo toda vez gatos e mais gatos se apresentando com uma música. Ah, e tem um vilão, considerando que o resto dos gatos sejam do bem, mas desconsiderando que ficar miando essas músicas é de extremo mau gosto na vizinhança.

Os gatos do filme são atores e atrizes vestidos com computação, o que poderia sugerir que há algo de erótico no design de produção. Mas não, nem a atual alta do Furry Fandom conseguiu adaptar Cats para que pelo menos ele seja excitante. O resultado não é erótico nem infantil nem qualquer outra coisa senão patético. Dá pena de ver alguns membros do elenco como Judi Dench e Idris Elba gaptados para esta cat-ástrofe. Eu começo a ter auto-piedade de ter que criar trocadilhos para tornar este texto interessante, e depois eu novamente terei que revisar esta história de um filme feito de gato e sapato.

A escalação de atores e atrizes leva em conta as necessidades físicas dos gatos, e a produção coloca Francesca Hayward, principal bailarina do The Royal Ballet, como a protagonista de Cats, dada sua flexibilidade e corpo fino e esbelto, mas se esquece que filmes exigem personagens, e Hayward é uma péssima atriz, se limitando a encarar os outros gatos do elenco com seu olhar vazio e seus lábios paralisados. Isso nos faz buscar algum outro personagem no meio da história, mas todos não passam de pessoas envergonhadas demais para entender o que tudo aquilo significa para sequer arriscar algum estereótipo. Apenas a rápida visão de Rebel Wilson (do excelente Missão Madrinha de Casamento) em alguns segundos nos gera o alívio de ver uma atriz atuando no meio de tanto CGI e textos gigantescos que pretendem contar algo sobre esses montes de pelos dançantes. Wilson se vira bem, pois é divertida e dispensa personagens para nos entreter.

Sem história, sem personagens, com péssima música e textos gigantes que não estamos interessados em prestar atenção por causa dos elementos já citados, Cats poderia ainda assim ser um êxito fosse este um filme unicamente para nos extasiar com as cenas de dança, as coreografias, as luzes e as cores. Porém, tudo isso é igualmente sabotado pelo capanga por trás deste projeto insalubre: o "diretor" Tom Hooper, de Os Miseráveis. Hooper não apenas continua sem melhores ideias de como enquadrar suas cenas e sem a mínima noção de quando e quanto cortar números musicais para evitar que tenhamos ataques de epilepsia, como também é incapaz de utilizar sua equipe para nos impressionar com cores e luzes. O vídeo em Cats é escuro e dispensável, e o som, seja música ou letras, é irrelevante ou irritante. E Hooper consegue nos entregar este pacote demoníaco cinematográfico com sua incompetência ímpar: sem saber o que fazer nem como fazer, sua presença consegue ser sentida como uma piora do que já era ruim. Este é um dos poucos filmes onde demitir o diretor, e deixar a função vaga, melhoraria o conjunto da obra.

A grande felicidade de Cats é entender que filmes não podem durar para sempre, e suas quase duas horas que parecem vinte finalmente chegam ao fim. Não sem antes nos roubar a alma e a esperança de um ano melhor. Cats no cinema parece a antítese da versão nos teatros. Quem for ao musical na Broadway ou equivalente e se sentir satisfeito, feliz e extasiado em exagero, entre em uma sala de cinema para ver sua versão cinematográfica, e entenderá que a morte é uma alternativa muito mais sensata do que algumas sessões de cinema.

PS: Porém, seja sensato, e não saia chutando gatos por aí. Os humanos são o problema, não os felinos.


# O Doce Amanhã

Caloni, 2020-01-04 cinema movies [up] [copy]

Exaltado em Cannes e pela crítica, este drama desestrutural adapta o livro homônimo que utiliza a fábula do Flautista de Hamelin, o que leva todas as crianças de uma cidadezinha embora porque a cidade se recusou a pagar por ter eliminado a praga dos ratos da região, ambos usando sua flauta. A fábula é curta e poderosa, e o filme é confuso e ambíguo. Há muitos momentos que não temos certeza por que houve uma transição de um certo personagem para o outro, e a mensagem de um advogado clamando por justiça enquanto sua filha se acaba nas drogas é brega demais para pensarmos a respeito. Nem a seriedade de Ian Holm (o Bilbo Bolseiro de O Senhor do Aneis) consegue nos convencer de que este é um drama inteligente com múltiplas camadas e crítica social. Para se convencer disso você terá que ouvir o que Cannes tem a dizer, não o diretor Atom Egoyan.


# Okja

Caloni, 2020-01-04 cinema movies [up] [copy]

Este é o primeiro filme vendido de Joon Bong Ho. Comprado por justiceiros sociais, onde se inclui aí o veganismo insalubre, o diretor coreano se fez conhecido pelo excepcional O Hospedeiro, onde une drama e comédia em um trabalho que escancara os exageros teatrais dos filmes-catástrofe ao mesmo tempo que desenvolve um drama intimista familiar. Entregando sempre filmes tensos que revelam mais camadas por trás das que já conhecemos nos gêneros que explora, há momentos de belíssima composição em Okja, um filme ecologicamente correto e didaticamente errado que consegue nos divertir enquanto deixa de levar a sério todos os grupos de interesse que lutam por seus ideais, e que começa a desabar no exato momento em que resolve tomar um lado, descartando as fascinantes e hilárias interpretações do mundo contemporâneo em troca de dinheiro e fama. A mensagem que finaliza Okja já não faz pensar nem divertir. Apenas lamentar por mais um talento que Hollywood coloca no bolso.


# Suspiro

Caloni, 2020-01-04 cooking [up] [copy]

Esta é uma receita aprendida por um artigo do programa da Ana Maria Braga onde minha amiga chef confeiteira Silvana Oliveira dá dicas de como fazer este doce tão famoso.

Ingredientes: uma parte de claras para o dobro (em peso) de açúcar. Limão (raspas e suco), ou qualquer substância ácida para estabilizar as claras.

Preparo do Merengue Francês: bater as claras em neve adicionando açúcar aos poucos, colocando também um pouco de raspas de limão e o suco.

Preparo do Merengue Suíço: derreter o açúcar na clara em banho maria até 57 graus ou não ver mais o açúcar, podendo mexer com o fouet, colocando durante um pouco de raspas de limão com o suco. Bata no liquificador na velocidade máxima para esfriar e dar o ponto por cerca de 10 minutos.

Preparo do Suspiro: divida em colheradas de tamanhos à sua escolha (quando maior mais lento o processo) e leve ao fogo pré-aquecido a 120 graus (se não puder ser tão baixo deixe a porta levemente aberta) por entre meia-hora e uma hora e meia. Cuidado: após secar no forno com a porta levemente aberta não se deve fechar para secar mais, pois pode queimar e ficar seco demais. O melhor resultado se obtém mantendo a porta aberta até a superfície poder ser tocada com os dedos. Seguindo essa regra por dentro deve ficar úmido e depois de um dia ou mais grudento.

Armazenamento: recipientes completamente fechados para não pegar umidade.


# O Labirinto do Fauno

Caloni, 2020-01-05 cinema movies [up] [copy]

Este é um drama político no final de uma guerra. Os perdedores são perseguidos pelos vilões e uma garota que muito lê enxerga uma versão diferente dessa realidade. Ela escapa através de sua imaginação para um mundo onde será uma princesa porque sua vida se transforma em uma fábula onde os caras maus vencem no final.

O design de arte nos envolve por completo como se estivéssemos lendo um livro infantil cheio de descrições. Note uma simples ampulheta, com terra correndo por dentro e detalhes externos que lembram raízes de uma árvore. Após vermos esse objeto primordial segue uma das sequências mais apavorantes do cinema, porque é descrito em cada visceral detalhe, como se os contos infantis voltassem a conter detalhes sangrentos da época em que eram criados.

Os pensamentos da pequena e jovem Ofelia são transmitidos ao espectador pelas micro-expressões de Ivana Baquero e pela montagem impecável do diretor e roteirista Guillermo del Toro. É dessa forma que compreendemos a intuição de uma criança a guiando para encontrar as melhores respostas para os desafios impostos pela criatura mágica do título.

O Fauno das lendas antigas greco-romanas ganha uma roupagem castelhana e sombria através da produção de arte conduzida pelo artista mexicano Eugenio Caballero. É a combinação perfeita entre arte e computação. Ele falar em espanhol apenas colabora para a riqueza de detalhes, mas é nos seus movimentos fabulescos de mão e tronco que ele conquista nossas memórias do filme para sempre.

Esta é uma produção que sabe usar seus efeitos com economia e persistência. Cada pequeno detalhe que é preciso mostrar está contido em um plano fechado fruto da produção de computadores e artistas digitais, mas o conjunto completo dos cenários, mostrado em planos abertos, mistura tecnologia com arte.

O fundo histórico pós-guerra não é gratuito. Os militares subordinados à ditadura de Franco estabelecem um regime autoritário e violento, e as castas sociais são representadas de maneira superficial como em um conto de fadas. É como se ambos os mundos, da fantasia e da realidade, passassem pelos mesmos conflitos, mas a cada um é dada sua própria interpretação.

Que fotografia maravilhosa Guillermo Navarro, colaborador habitual do diretor, nos entrega neste filme. Ainda que cercado de trevas, os cenários possuem cores vivas o suficiente para impregnar nossos olhos com identidade. O melhor contraste ocorre entre a sala vermelha e o azul sepulcral da casa usada como moradia de Ofelia e sua mãe, grávida do capitão.

O Capitão Vidal, o vilão que poderia ser cartunesco de tão unidimensional, é salvo tanto pelo roteiro de del Toro, que explora as nuances desse personagem, quanto pelo próprio ator Sergi López, que apesar da fachada psicopata demonstra um medo aterrorizante dentro de si, seja por ser na verdade um covarde ou por acreditar que nunca chegará próximo da bravura de seu pai, morto em batalha. Vidal carrega o relógio de seu pai, com o vidro quebrado, o lembrando que sua hora pode estar para chegar, o que seria um misto entre heroísmo e derrota.

O Labirinto do Fauno é um filme que equilibra tão bem seus elementos que a narrativa flui sem vermos o tempo passar. Os detalhes da história seguem sutis. O principal dele é se os adultos sabem que Ofelia está vivendo uma aventura paralela em um mundo mágico de fadas. Nós temos essa resposta próximo do final e ela não soa simplória, mas arrebatadora.


# Uma Juventude Como Nenhuma Outra

Caloni, 2020-01-06 cinema movies [up] [copy]

Um drama sobre a falta de um. Essas jovens meninas judias trabalham para o exército e precisam anotar as identidades dos árabes pela cidade de Jerusalém. Elas trabalham 12 horas por dia em um regime de quase escravidão, mas no fundo não estão fazendo mais nada além de tentar fugir do trabalho. Uma delas quer se livrar deste emprego e partir para algo mais excitante, mas precisa trabalhar direito, só que sua companheira não deixa. Sua família tem influência o suficiente, mas como toda jovem privilegiada, ela pretende provar seu valor. Até desistir, é claro. As atuações desse filme são mornas, na maior parte do tempo perdidas. Exceto pelos diálogos que marcam ritmo, mas não chegam a valer ouvi-los. É simplesmente texto demais para pouca substância.


# Ameaça Profunda

Caloni, 2020-01-07 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Ameaça Profunda é um candidato a "Alien: O Oitavo Passageiro" embaixo da água, só que em uma versão alternativa onde todas as grandes sacadas do filme de Ridley Scott deram errado ou sequer foram cogitadas. Este é um exemplo de filme de terror que, diferente dos outros filmes da década deste gênero, não evoluiu. Irá passar despercebido nos cinemas e será visto ocasionalmente em canais por assinatura às três da manhã ou em serviços de streaming que vão acabar o recomendando no final de um outro filme porque pagaram barato e alguém precisa assistir para justificar a compra.

Sua estrela é Kristen Stewart, que está idêntica à época em que a Demi Moore queria ser levada a sério e raspou a cabeça. Muitos se lembram hoje de Até o Limite da Honra por ser um filme simpático e temático, mas provavelmente ninguém vai se lembrar de Ameaça Profunda o ano que vem. E olha que Stewart tenta com muito esforço, mas sem muitas chances, trazer humanidade para uma protagonista em um filme que lembra mais o roteiro de um vídeo-game. Ela passa a impressão correta de uma pessoa fragilizada que transforma suas últimas forças em um movimento vital, mas este filme de sustos e gore não está se importando muito com isso.

A história nunca convence desde o início por partir de pressupostos econômicos que não fazem o menor sentido. Começa descrevendo uma corporação que supostamente se blinda com propaganda (deslocada, tirada de outros filmes) enquanto realiza perfurações no solo mais profundo do oceano. O que eles procuram? Minerais valiosos? No lugar mais inacessível possível? Quem é o CEO brilhante desta companhia? Eles também tentam abafar casos de mortes e desaparecimento nas instalações a 10km de profundidade como se toda obra faraônica como essa já não envolvesse ambos. Ignorando que a descoberta de seres vivos visíveis a olho nu neste local poderia trazer investimentos fáceis de órgãos de pesquisa para continuarem explorando, pelo menos a única decência do roteiro de Brian Duffield e Adam Cozad é nunca afirmar que uma empresa dessas está tendo lucros exorbitantes. Na verdade, a única verossimilhança com a vida real é que eles parecem ter várias instalações abandonadas.

Por mais brilhante que seja o elenco, é impossível acreditar em qualquer uma das seis pessoas que formam o grupo que tenta sobreviver e fugir para a superfície depois de um acidente. Uma dessas pessoas é um fã de anime que usa como mascote uma ovelha de pelúcia. Outra é uma bióloga que decide cutucar com vara curta uma espécime animal encontrada que é uma total incógnita, o que junto de Prometheus faz lembrar como os biólogos são retratados como verdadeiros estúpidos nesses filmes de sci-fi horror. Apenas Kristen Stewart e Vincent Cassel possuem o privilégio de se levar a sério como a engenheira com um passado traumático e o capitão responsável, mas nenhum deles possui um destino à altura da carnificina que está para acontecer.

Se há uma coisa que você irá notar durante o filme inteiro é que ele é muito barulhento. Sua trilha sonora já começa barulhenta, e os sustos, além de previsíveis, usam um som alto que apenas irrita quem já conhece o truque. Cheirando a um catálogo Fundo do Mar e Explosões Aleatórias, não parece haver nenhum som desenhado especialmente para este filme. E a trilha sonora, orquestrada à parte, não consegue nem comentar o momento nem se manter sutil. É como se junto do grupo houvesse alguém carregando um alto-falante não-relacionado com a aventura.

Os efeitos visuais são bem feitos, e a arte em cima dos monstros não é nada criativa, mas bem executada. Porém, é difícil acreditar que um filme dessa escala gastou 80 milhões de dólares tão fácil, e está prestes a não recuperar nem metade dessa quantia. Além disso, por melhor que seja o visual, o diretor William Eubank não nos deixa ver muita coisa, pelos dois motivos consideráveis de estarmos no fundo do oceano e porque mostrar demais no terror pode causar o efeito contrário. Entretanto, há uma diferença entre ocultar para gerar medo e ser incapaz de conduzir cenas de tensão sem que a câmera trema tanto que não conseguimos ver nada exceto borrões.

Nós sabemos que a maioria dos personagens irá morrer, cada um de sua forma horrível concebida para o filme, mas essas pessoas estão tão alheias a tudo nesta luta pela sobrevivência que não sentimos a falta de ninguém. No final são seres humanos genéricos escolhidos pela diversidade étnica e de gênero, mas nunca intelectual. No final das contas todas elas se parecem na única dimensão que apresentam: querem sair vivas, embora estejam paralisadas de medo para conseguir.

A reviravolta final, envolvendo escolha de quais vidas salvar e monstros de um calibre maior, é de uma imbecilidade que se torna o momento climático em que você pensa se tudo não passa de uma piada. Mas a trilha sonora dramática está aí para nos fazer crer que não é, que tudo aquilo é para ser visto como trágico e arrebatador.


# 8 1/2 Mulheres

Caloni, 2020-01-09 cinema movies [up] [copy]

Este trabalho do diretor e roteirista Peter Greenaway é um inventivo e desleixado trabalho de metalinguagem e tão poucas ideias que é como se tivéssemos adentrado na mente masculina de seu idealizador e não conseguíssemos mais sair. O único pensamento fixo desta odisseia de pai e filho que imita o tom onírico do filme referenciado de Felini (8 e 1/2) é conseguir ter essas nove mulheres (uma é anã). Após a morte da esposa ambos partem para esta redescoberta da vida, que envolve tirar a roupa em público e alimentar o vício de dizer esquisitices sem sentido. É um cansaço acompanhar a prepotência do cineasta, que se torna a pedra no sapato de boas atuações e um bom roteiro, que escolhe subverter a lógica de história fechada e ir delineando as relações entre seus personagens mais ou menos como a vida ocorre. É um filme-sonho que não atinge a dualidade que costuma acontecer em filmes-sonhos bem-sucedidos. Greenaway não deve ter nenhum sonho muito interessante para contar.


# Cells at Work!

Caloni, 2020-01-09 cinema animes cinema series [up] [copy]

Uma ideia fascinante ensinar o comportamento das células do corpo humano como se o organismo fosse o cenário de um anime onde se travam batalhas épicas em torno de um acontecimento que do ponto de vista macro se trata apenas de um arranhão. No decorrer da história placas são levantadas, explicando a função de cada tipo de célula que corre pelas veias (e provavelmente nos episódios seguintes acompanharemos outras partes do corpo humano). O uso de bactérias como monstros não poderia ser melhor, já que elas observadas pelo microscópio já se parecem com monstros. Esta é uma série de animação japonesa que contém um escopo fechado e histórias didáticas, mas ao mesmo tempo pode entreter. É um dos poucos trabalhos de ficção em que nós queremos aprender mais em vez de nos preocupar com o destino de seus personagens.


# Você

Caloni, 2020-01-09 cinema series [up] [copy]

As boas ideias do mundo estão condenadas a se tornar séries medíocres de streaming. Este é o caso de You, que narra a história de um stalker que utiliza os mecanismos online que qualquer um de nós poderia utilizar, observa seu alvo pelas janelas e vitrines do mundo real, e que nutre um certo fascínio em conhecer a pessoa a distância. Esta é a única explicação para que o bem apessoado Joe Goldberg não se aproxime em definitivo da vida de Candance Stone, já que no primeiro encontro entre eles já ficou clara a conexão afetiva, e até uma certa tensão sexual. No entanto, os criadores da série Greg Berlanti e Sera Gamble colocam suas ideias à frente da lógica e desenvolvem a possibilidade de um relacionamento entre um stalker e sua vítima como se fosse uma alternativa ao convencional, e no processo vamos acompanhando como é estar na mente de uma pessoa que só consegue observar sua vida em volta. Se pensarmos em ironia o espectador deverá agora sorrir para si mesmo.


# Antologia da Cidade Fantasma

Caloni, 2020-01-11 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Antologia da Cidade Fantasma é um terror psicológico que flerta com questões sociais sem conseguir desenvolver com sucesso nenhuma delas. Porém, a atmosfera opressiva que o clima de inverno exerce sobre essas pessoas é quase um personagem à parte, e isso vale a pena acompanhar.

A fotografia escura, quase a apagar as casas e as pessoas que vivem em torno de toda aquela neve, as ventanias que correm pela estrada e pela planície deserta, os ambientes fechados com pouca luz. Tudo isso colabora para esse clima claustrofóbico que começa quando vemos toda a cidade reunida em uma casa para velar pela morte de um de seus habitantes mais jovens, Simon. Todos concordam que ele cometeu suicídio ao jogar seu carro em um muro. Concordam porque todos já pensaram em fazer o mesmo alguma vez em suas vidas.

Este é um filme que cria um ambiente depressivo coletivo e o sustenta como tema principal. Há uma prefeita que adota seus cidadãos como uma mãe possessiva e ciumenta que evita ajuda externa. O isolamento no inverno vai se tornando menos geográfico e mais psicológico, e aos poucos alguns de seus habitantes vão sendo apresentados através da dinâmica do dia-a-dia.

Mas sem se aprofundar em nenhum deles, a história se move apenas em função de sua reviravolta sobrenatural, que pode até ser criativa, mas não consegue causar um impacto por muito tempo, já que é uma arma que só possui uma bala. Quando atirada, refletimos por alguns momentos, e logo nos acostumamos com a visão de uma nova cidade onde o incrível é visto com desdém.

Há possibilidade de enfiar uma alegoria política e social, como qualquer filme onde a fantasia e o sobrenatural são usados para chamar a atenção. Porém, ou o livro de Laurence Olivier é fraco em suas metáforas ou a adaptação solta do cineasta Denis Côté não nos fornece pistas suficientes para que esta vire uma camada extra do seu universo fantástico em que fantasmas e seres humanos parecem estar convivendo.

Josée Deschênes faz uma prefeita possessiva que recebe uma psicóloga em seu gabinete com arrogância, a dispensando como se essas funções fossem abalar a unidade que se formou nessa cidadezinha do interior do Canadá. Ela não é uma caricatura, é humanizada até o limite do estereótipo por Deschênes, e em vários momentos você desconfia ser essa a personagem forte que irá resolver algo no terceiro ato, assim como cada um dos personagens que vão sendo apresentados podem parecer essa solução mágica, sendo que nenhum deles de fato é. "Antologia" aposta nessa receita de não existir protagonistas, nem personagens, apenas pessoas, em um desdém cinematográfico pelas fórmulas que vem produzindo cada vez mais filmes inertes, sem energia e identidade.


# Dont Fuck With Cats Hunting an Internet Killer

Caloni, 2020-01-11 cinema series [up] [copy]

Esta minissérie documental narra uma investigação sobre um serial killer desde um vídeo dele matando gatos. Sua principal virtude é mostrar uma comunidade ativa na internet realizando descobertas impossíveis de serem feitas pela polícia por falta de tempo e recursos, mas quando os dois mundos se encontram é como se os investidores fossem incompetentes, sendo que na verdade eles não têm tempo de verificar todo e qualquer maluco que poste vídeos suspeitos. No final das contas, a série escrita e dirigida por Mark Lewis perde seu propósito e vira uma mera descrição dos eventos, terminando rapidamente. É um trabalho exploratório, sem muita opinião, que se disfarça de ambiguidade, mas que eventualmente em seu final soa sem criatividade nem paixão pela narrativa, apesar de ser uma direção poderosa e intrincada e um trabalho de recortes fascinante em alguns momentos.


# The Witcher

Caloni, 2020-01-12 cinema series [up] [copy]

Henry Cavill fazendo voz grossa estilo do Batman e personagens que soam como NPCs de jogos de computador, The Witcher é de dar sono em seus primeiros quinze minutos. Introduzindo Geralt of Rivia, um bruxo bonitão, forte e com vestimentas de RPG, Cavill e seu comportamento robótico é a síntese dessa série baseada em uma série infindável de livros do escritor polonês Andrzej Sapkowski, além da síntese da maioria das séries que começaram na literatura e foram encomendadas por mega-corporações produtoras de conteúdo em massa para streaming. Se você gosta de assuntos medievais talvez seja melhor ir ler os livros antes de dormir.


# Pacto de Silêncio

Caloni, 2020-01-13 cinema movies [up] [copy]

Gérard Depardieu faz um padre/médico louco para "salvar" Sarah, uma freira carmelita com lábios carnudos. Sarah, que tem constantes dores no abdómen, não consegue esconder sua sensualidade em seu hábito, mas seu alter-ego, ou devo dizer, irmã-gêmea, com seus cabelos longos e um estilo vagamente sexy, é um caso sem salvação. Este é um filme confuso que lembra o trash e que deve ser assistido junto com o horrendo País do Desejo. Ambos coincidentemente usam o Brasil como seu antro do pecado e das religiões oriundas de matizes africanas e cristãs salvadoras da alma pelo uso de ervas e rituais. Ambos entregam uma visão deturpada desse país e seu povo, e ambos não fazem a menor ideia da história que desejam contar. O diretor Graham Guit investe em sequências que lembram um filme trash, mas logo depois voltamos para um drama/thriller intimista. É como assistir a um filme onde nem o diretor tem muita noção do tipo de filme que é este.


# A Pequena Jerusalém

Caloni, 2020-01-14 cinema movies [up] [copy]

A Pequena Jerusalém é filme de judeu para judeu. Ele demonstra como é difícil para nós, gentios, infiéis, entenderem o que se passa na cabeça e nos corações desse povo que segue rituais arcaicos e valores bizarros dissociados da vida moderna em plena Paris. Um não-judeu que o assista não terá a mínima empatia sobre a cultura e as pessoas que a seguem, o que por si só já explica o sentimento anti-semita de todo o resto do mundo civilizado.

Isso quer dizer que não nos importamos com o drama principal, que gira em torno de uma paixonite da caçula de uma família de judeus por um colega árabe. Ela trabalha como faxineira e estuda filosofia, mas é incapaz de limpar a mente e seguir sua auto-determinação de se tornar kantiana.

Este é um filme que deseja ardentemente desconstruir a ideia dos judeus como um povo atrasado e moralista. Portanto veremos esta linda atriz nua algumas vezes, mas os motivos pelos quais ela faz isso são ritualísticos, e mais uma vez ficamos de fora dos ensinamentos da sinagoga. Sua irmã mais velha sofre por não poder satisfazer o marido na cama, que arruma uma amante não-judia. Ela quer consertar o casamento conseguindo tocar a genitália de seu marido, desde que isso não fira os preceitos da Torá. Se você está captando as contradições dessa história está no caminho certo.

A Pequena Jerusalém é um filme lento e reflexivo que se esquece de desenvolver a empatia pela sua protagonista. Sua vida não parece tão complexa, pois apesar da paixão, a única coisa que ela perde são seus estudos. No meio termo aprendemos mais alguns rituais judeus durante o jantar em família, além dos ensinamentos da avó e os dramas internos do casal da casa. Não há algo para se focar, mas a mera observação serve como passatempo.


# Instinto

Caloni, 2020-01-14 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

A imersão tensa e crescente de Instinto, estreia da atriz Halina Reijn na direção, possui suas bases nas atuações de Carice van Houten e de Marwan Kenzari, que fazem uma psicóloga e seu paciente, e ambos estão sem controle. Ela foi e é abusada pela mãe; ele é um estuprador em série em habilitação. Incapazes de tomar as rédeas de suas vidas, ambos caminham por essa tênue linha entre as regras de convívio social e uma intimidade física brutal.

O trabalho de criação do roteiro por Esther Gerritsen passa pela história concebida por Halina e a assinatura que ela deixa na direção. Não é uma história fácil, pois possui sutilezas que se entendem mais pelo visual que pelo verbal. E não se trata apenas de uma troca de olhares ou entonações de voz, mas a postura física e a observação impotente. Halina em certo momento usa um espelho fragmentado e reflexos em seu quarto para representar uma mulher multifacetada, mas mais do que isso, sem controle nenhum, ela age como uma autômata, seguindo um protocolo apenas porque este é o esperado por todos.

Mas Nicoline desconfia de algo que o resto da equipe do instituto de reabilitação ignora. Assistimos a uma reunião em que ela defende seu ponto de vista a respeito da psicopatia, mas além de sua visão aguçada para fatos que fogem à intuição, como o fato de psicopatas nunca mudarem independente da idade, ela é a única com as cicatrizes certas para saber que Idris, seu paciente em recuperação que estava há cinco anos em tratamento e prestes a ganhar a liberdade gradual, é no fundo um grande manipulador. Porém, nas conversas de corredor e nas próprias entrevistas dirigidas por Nicoline não é possível descobrir nada além de um homem que fez as pazes com seu passado e se mantém socialmente neutro, embora curioso a respeito de sua terapeuta.

O que a faz chegar nessa conclusão está além da observação neutra. Ela observa a alma. Entre as brincadeiras dos pacientes, Idris nunca se mete em brigas, e consegue com que um detento concorde em sofrer violência física "porque ele aguenta". Ela percebe a aproximação lenta e gradual entre ele e sua estagiária, que a acompanha nas entrevistas. Até que Nicoline vê ambos de flerte, experimentando uma comida, que Idris coloca na boca da estagiária. Quando a psicóloga se aproxima, ambos se afastam. E Nicoline está se sentindo excluída do jogo de sedução. Agora reimagine essa cena não entre seres humanos, mas entre chimpanzés. Uma fêmea recebe comida de um macho, mas este macho não compartilha a mesma comida e afeto com outra fêmea. Boa parte de Instinto trabalha com as diferenças entre informalidades sociais e o que realmente acontece por trás de nossas máscaras, em um nível físico.

Carice van Houten entrega para sua Nicoline um olhar que diz muito mais quando se espera que ela diga algo. Passiva em todas as relações de sua vida, Houten adota um olhar melancólico e lábios retraídos que buscam chances de se humilhar. Seu momento amoroso com um colega é o mais icônico do filme, pois nos entrega o que se passa realmente na mente dessa complexa protagonista. E Houten brilha nessa e em outras cenas, pois entende que para a personalidade de Nicoline menos é mais, e o menos que ela constrói dói o coração, apesar de não entendermos exatamente por quê.

Já Marwan Kenzari, que fez o vilão Jafar na versão live-action de Aladdin, realiza aqui um trabalho muito mais corporal com seu Idris, cuja comunicação parece sempre partir de avanços na zona de segurança dos outros. Narcisista sem perder o charme, Idris é uma figura a ser estudada em tempos de #metoo, pois enquanto os casos de abuso psicológico se alastram pelo mundo enxergados do ponto de vista das vítimas, cada vez menos se conhece sobre os monstros por trás disso. Kenzari nos oferece essa chance, pois apesar de Idris estar longe de uma figura que dê medo ou intimide, o espectador ou espectadora conseguirá reconhecer a manipulação que o detento realiza, quase que como parte de seu ser. É fascinante e aterrorizante ao mesmo tempo. Depois de entender um personagem como Idris e o que ele deseja das mulheres, o mundo lá fora parece mais perigoso mesmo sem violência física na maior parte do tempo.

A diretora Halina Reijn maturou bem sua história com a ajuda da roteirista Esther Gerritsen, a ponto de hoje ser possível entendermos melhor como se desenrolam as relações de dominação que não são tão escancaradas quanto fetichistas sexuais. O problema é que hoje ninguém mais quer falar sobre isso. Somos seres ultraconectados pelos nossos dedos, mas esses mesmos dedos não podem mais relar em ninguém sem a prévia autorização verbal ou contratual. Viramos robôs que tentam esconder sua origem biológica. Os instintos dos personagens no filme estão quebrados, mas uma questão mais interessante emerge do universo concebido para o filme: não estaríamos todos nós quebrados?


# Açúcar

Caloni, 2020-01-16 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Açúcar é o novo filme de ficção da dupla de diretores e roteiristas Sergio Oliveira e Renata Pinheiro (Sangue Azul, "Amor, Plástico e Barulho"). Dentro de suas capacidades de extrair metáforas do cotidiano, aqui estão dois cineastas viciados nisso. E se essa característica pode gerar bons momentos nesse e em outros filmes, é ao mesmo tempo o que impede seus trabalhos de atingir a maturidade necessária para que parem de ser apenas isso e atinjam a fase adulta.

Sofrendo enormes influências da temática de Kleber Mendonça Filho com a questão da terra e do ser coletivo, o filme conta a história de Maria Bethania Wanderley, em que seu próprio nome, misto de referência brega e genérica ao MPB e ao nome do engenho que herdou, já denuncia o desdém sobre o individual, sobre a personalidade e sobre pessoas em geral. O ódio direcionado à classe que Bethania representa pode ser visto de todos os ângulos, mas o mais icônico é quando ela faz chapinha em seu cabelo, o que representa, na visão do filme, a negação de suas origens étnicas, portanto coletivas. Bethania é uma pecadora da ideologia presente no longa porque se recusa a usar a identidade escolhida como heroica.

Porém, ao mesmo tempo, a cantora Maria Bethania não só é baiana de nascença como irmã de outro cantor, Caetano Veloso, associado à resistência artística, a Tropicália, em tempos de intervenção militar. A Tropicália, ou Tropicalismo, foi um movimento que buscava unir vertentes musicais completamente diversas, como os ritmos brasileiros e africanos com o pop rock. Seu objetivo era abrir um campo para reflexão sobre a história social, e não há nada mais arredio à realidade e adorador de palcos do que usar a expressão "história social".

É com esse caráter de fusão de origens que Açúcar deve ser entendido e resumido. O filme não vai muito além disso, e com o tempo vai lembrando cada vez mais os filmes de Mendonça Filho, como Aquarius e O Som Ao Redor, mas aqui há a problemática de conectar o espectador usando personagens caricatos, como a madrinha classe média alta de Bethania, ou estereotipados, como a faxineira negra ligada a rituais africanos Alessandra. Até manter o nome associado ao local onde o dono do engenho morava na época dos escravos, Casa Grande, é caricato, e vulgar.

Bethania e sua madrinha são fantasmas de um passado de conflitos entre os donos da terra e os que nela trabalhavam, mas agora os antigos donos estão falidos e os trabalhadores estão unidos, com terras compradas e com uma parceria estrangeira para transformar a região em uma zona turística e histórica. E mais uma vez voltamos para a história social, o tema eterno dos filmes da elite esclarecida, martelado várias vezes para atingir o contorno perfeito que entregue ao espectador as curvas e nuances exatas sobre esse sistema de exploração eterno.

Infelizmente o retrato, ou melhor dizendo, a escultura que representa essa visão, prefere ser caricata e parcial em vez de buscar um relacionamento mais próximo dos seres humanos. A escultura vem com partes faltando, convenientemente escondidas para debaixo do tapete. E mesmo que a exploração em si seja o tema fundamental, o cinema exige vilões e mocinhos, mesmo que eles troquem de papel daqui a pouco. Por isso a turma da cidade abraça essa vilania. Eles chegam como forasteiros em terras que não mais os pertencem. Não entendem nada da nova dinâmica, da nova ordem social, e se agarram fortemente ao passado glorioso que tornou possível suas vidas mesquinhas, mas confortáveis. São fracos, ainda por cima, mas é uma fraqueza explicada em cada milímetro do rolo deste filme. Está no lustre central, tão celebrado e tão cheio de poeira. Está na antiga senzala, tão nauseante e tão carente de significado.

Os símbolos da cultura dos mocinhos vão sendo utilizados para narrar uma história sem bússola moral. Sonhos em noite de lua minguante, transes ritualísticos que recebem mensagens dos antepassados, figuras animalescas surgindo ao fundo, indissociáveis da própria natureza. Esses elementos no filme são esteticamente impecáveis, abertos para serem processados pela nossa mente inconsciente e coletiva. Porém, mais uma vez atingindo a frustração, a beleza de um filme não sustenta um filme sem valores, e os ditos heróis são mera consequência do impessoal processo histórico. A história social, olha ela aí, sem significado, apenas dentro dela mesma.

Maeve Jinkings não por acaso participa do elenco dos filmes de Mendonça Filho citados, mas principalmente, de "Amor, Plástico e Barulho", dirigido por Renata, escrito por ambos os diretores deste filme. Jinkings é uma incógnita a ser desvendada, e a cada novo filme da atriz se torna mais difícil encontrar a resposta para sua atuação. Ela cria e recria momentos eternizados pela sua expressão impassível, transitando entre eles pelo palco mundano dos diálogos fáceis. Nessa dinâmica entre os dois, surge uma energia ainda inexplicável para sua atuação, que permanece em nossa memória o tempo necessário para percebermos que já nos esquecemos.


# Sedução

Caloni, 2020-01-16 cinema movies [up] [copy]

É um filme saudosista filmado nos anos 90 sobre a queda da ditadura espanhola dos anos 30. Ele celebra o amor livre, o laicismo e todas as esperanças do que ainda acham que a República é a solução de todos os males da humanidade. Mas ele o faz de maneira charmosa, sensual e verdadeiramente humanista. É uma comédia sobre amor e sexo, e por isso mesmo está infestado de comentários políticos. Não é na propaganda que se esconde o inimigo, mas nas entrelinhas. Mas não se preocupe, leitor de extrema direita, há mulheres para todos os gostos aqui.

O material dos roteiristas Rafael Azcona e José Luis García Sánchez possui todas as dúvidas honestas que comentários políticos e sociais bem-humorados merecem. Assim como Barcelona, o roteiro se aproveita do momento histórico para tecer sua narrativa sem ferir os valores dos espectadores. É besteira se importar com filmes ideologicamente contrários a você quando a visão de mundo de seus idealizadores brinca de igual para igual com a igreja, o exército e a família, três instituições fadadas à ruína de qualquer forma. Enquanto o patriarca moderno recita poesias espirituosas e se diverte na cama com sua esposa recém-chegada da viagem com seu amante, observamos como o inverno espanhol é frio, mas há maneiras deliciosas de se esquentar enquanto não chega o verão.

Há quatro beldades espanholas neste filme, e Penélope Cruz está longe de estar no topo da lista. Clara, Violeta, Rócio e Luz são as filhas desse senhor espirituoso que comentei. Elas visitam o pai durante as férias em um desses vilarejos esquecidos no tempo, ainda que próximos de Madrid, e encontram Fernando, um belo jovem que fica perdidamente apaixonado pelas quatro beldades, a ponto de "perder o trem" e passar mais tempo naquele agradável fim de mundo.

A história é inteligente o suficiente para separar as quatro moças em personalidades bem distintas, mas é a Fernando que elas serão apresentadas. Nunca a vemos interagindo entre elas para entendê-las, pois elas são meros estereótipos: a virgem, a sapatona, a gostosa e a viúva; e apenas sendo interpretadas por um elenco talentoso essas personagens conseguem se desvencilhar de seus unidimensionais destinos. Cada uma delas terá cenas de sexo com Fernando, mas cada uma à sua maneira. Aos homens resta ter inveja desse rapaz, mas seu jeito é tão carismático que o perdoamos logo após cada trepada.


# Sensual Demais

Caloni, 2020-01-16 cinema movies [up] [copy]

Segundo filme da trilogia iniciada por Lovers, que é o quinto filme do Dogma 95, este filme do ator e diretor Jean-Marc Barr ainda possui as influências do movimento artístico iniciado por Lars von Trier de quando o ator participou do Dançando no Escuro: sem edições de fotografia e iluminação, cenários praticamente ou muito próximos do real, sons diegéticos, câmera na mão. O que o dogma não cobre é a parte boa: atores fingindo estarem em um filme amador, se divertindo loucamente com uma história estapafúrdia e divertindo o espectador, incerto se está vendo um soft porn caseiro ou um trabalho de apelo ao cinema íntimo e pessoal, longe das grandes avenidas dos estúdios de Hollywood.

Apesar das técnicas pedestres, a história não perde seu ritmo, e os atores são todos conhecidos e fizeram vários filmes, embora este soe totalmente amador e digno de comparação com The Room, o novo clásico dos filmes ruins. No entanto, ele é coerente, apesar de inchado, mas seu inchaço e suposto amadorismo é o que torna ele adorável, impossível de não gostar, porque ele apresenta um protagonista cativante e um diretor despretensioso empenhados. Várias cenas parecem mal feitas, mas cumprem o que um filme precisa para fluir. Isso o torna um ótimo filme ruim.

A história envolve um casamento em ruínas porque o marido nunca pode tocar em sua esposa. Fruto de uma peça pregada ainda na adolescência, a pequena cidade está de olho nos bons costumes para garantir que aquela vida pacata e sem graça continue assim para sempre. O que muda a rotina de cabeça pra baixo é quando surge uma francesinha com "sexo livre" estampado em sua testa. Um prato cheio para Lyle, que garantia o funcionamento adequado dos seus hormônios se masturbando no meio do milharal. Agora ele pode sempre pedir a ajuda da sexy Juliette.

Os segredos por trás do passado de Lyle vão se desvendando conforme a cidadezinha vai acordando para a presença de Juliette. Enquanto isso acompanhamos várias cenas de sexo entre os dois, mas apesar da nudez gratuita não são cenas picantes. Jean-Marc filma tudo como se não soubesse ao certo o que torna uma cena picante, mas a cadência na edição e no movimento da câmera dá a impressão de que o filme vai piscar a qualquer momento para o espectador e dizer: "pensou que fosse um filme ruim, mesmo, né"?

Mas o ator Jean-Marc abraça a causa, e dança no bar da cidade de uma maneira que não consigo descrever em palavras, mas que é exagerado demais para fazer sentido, ao mesmo tempo que é exagerado demais para ser fingido. Esta é uma atuação que está sempre na corda bamba entre o amadorismo e o controle absoluto de uma coleção de vídeos caseiros. E Lyle é o epicentro dessa bagunça organizada. Ele sorri quando vê a francesinha. É incapaz de se chatear com qualquer coisa. Ele é burro demais para isso. E pessoas burras demais são as mais felizes.

Há várias pontas somadas de Rosanna Arquette, que faz a esposa de Kyle. Ela também se masturba às escondidas, pois a penetração com o marido é impensável. Ela também participa de cenas de nudez, porque no fundo este filme precisa se pagar. A sobrinha de Rosanna, Patricia, é a atriz mais conhecida da família, mas Rosanna aqui desenvolve a performance mais crível de todas. Ela está muito à vontade na posição de uma viúva que encontrou a única maneira de encontrar outro partido e se manter viúva. Sua hipocrisia é a mais deliciosa do longa.

Eu não sei bem o que motivou a atriz Élodie Bouchez em fazer a francesinha Juliette nesse filme, mas ela é tão descartável que parece estar de férias da profissão. Nos faz pensar em o quê define o cinema como indústria, e em que momento nós perdemos esse contato mais íntimo com a arte de contar histórias pelo audiovisual. YouTubers contemporâneos abusam da edição e da qualidade de vídeo enquanto um cineasta como Jean-Marc Barr regride décadas para tentar buscar a resposta. E Bouchez se diverte no processo. Há algumas questões interessantes nesse filme, mas poucas são desenvolvidas. Quero mais filmes como esse.


# O Caminho Para Casa

Caloni, 2020-01-21 cinema movies [up] [copy]

Este é um filme de um momento só. Um professor de um vilarejo na China morre e sua esposa insiste em realizar um antigo ritual onde o corpo é levado de volta para sua terra envolto em um xale feito à mão. A música é bonita e usada à exaustão conforme acompanhamos a narração do filho do casal de como eles se conheceram, ou melhor, de como eles lutaram para ficar juntos desde o primeiro momento que se viram. É um apelo ao tradicionalismo, usa p&b no presente e colorido no passado, mas mais chato que os próprios tradicionalistas. Sua mensagem está formatada desde o começo e apenas nos resta ver o jeito engraçado que a esposa ainda novinha andava pelo vilarejo, desesperada para conseguir um homem professor que nunca conhecemos de fato, pois ele é um símbolo, de algo que valia mais do que vale hoje: tradição.


# Testemunha Invisível

Caloni, 2020-01-24 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

O filme se chama Testemunha Invisível, tanto aqui quanto na Itália, o que já nos diz mais do que o necessário sobre as diferentes reviravoltas deste thriller psicológico de mistério, que lida com adultério como se vivêssemos nos anos 80 ("se descobrirem que ele tinha uma amante acabou sua vida") e que pune os ricos e poderosos como se vivêssemos no mundo de Parasita ("ele aprendeu que não podia contar com a polícia comprada para ajudá-lo"). Esta é uma mescla ruim que acaba funcionando no final porque, como todo filme de mistério, queremos com todas as forças nos ludibriar sobre qual a versão real dos fatos.

Ao nos apresentar a advogada de sucesso Virginia Ferrara, ou algum outro sobrenome de respeito, chegando três horas antes do combinado para a reunião com seu cliente, o multimilionário Adriano Outro Sobrenome De Respeito, sozinha e com uma postura autoritária, a ambiguidade senta junto de sua personagem e nunca mais vai embora. Ela é uma farsa? Ou apenas temperamental? Mas esse seria um golpe esse tão fácil de ser aplicado? Ou advogados que cobram três zeros por hora se comportam dessa forma? Há tantas perguntas sobre Virginia que é impossível que ela não esconda algo, e o filme deixa quase às claras que é justamente isso que irá acontecer. Qual o truque aqui?

Com ela própria não acreditando em suas falas, a atuação de Maria Paiato é o primeiro problema do longa, pois coloca em xeque toda a verossimilança que precisamos para comprar a ideia de um julgamento prestes a ser armado em questão de horas a partir do surgimento de uma nova testemunha. Esperto o suficiente, Adriano imagina qual seja essa pessoa-coringa, descarta seu testemunho original, e começa a narrar o que realmente aconteceu em sua vida para que fosse encontrado com sua amante morta em um quarto de hotel isolado pela neve e altura. Este basicamente é o filme que será assistido, ou pelo menos a parte boa. A parte ruim repousa em seu núcleo, nessa conversinha clichê de filme da meia-noite entre advogada e cliente.

Entendo que para este gênero vale tudo pelo segredo e mistério, mas não há maneira que um adultério entre adultos que não são pessoas públicas a ponto de suas vidas dependerem disso possa ser tão importante em um filme. Adriano é um empresário milionário do ramo de tecnologia, Laura é uma fotógrafa. Ambos já possuem sucesso em suas carreiras e é esperado que no século 21 eles tivessem uma relação saudável como amantes, para o bem de ambos os casamentos. Dessa forma, a premissa básica, que é a possibilidade disso vir à tona, não se conecta com as consequências de maneira tão dramática a ponto de justificar as ações dos personagens quando surge esse risco. Se a premissa não funciona, pelo menos nos divertimos com o que esse roteiro apronta em termos de reviravoltas.

Só que para isso temos que passar a acompanhar pessoas desprezíveis como Adriano e sua advogada discutindo em uma impecável e gigantesca sala sobre um julgamento que está no fim das contas totalmente sob controle, então essa reunião soa desde o começo exagerada. Sem existir um princípio de trama que faça sentido, a forma com que os detalhes da história do caso são misturados é fascinante na medida em que analisamos não a mente dos personagens, mas a dos roteiristas, já que ao menos sabemos que eles são os culpados pelos seus personagens pertencerem a um filme de mistério, mas longe de soar realista, se aproxima de uma telenovela.

Oriol Paulo, Massimiliano Cantoni e Stefano Mordini, o diretor, pertencem ao mundo real. Estão sob a influência do cinema pseudo-revolucionário da década, que une a ficção da luta de classes com a atitude descarada da alta sociedade de desprezo e arrogância para gerar drama e tensão. Eles assinam um roteiro que consegue nos fazer ter antipatia pelo réu desde o começo, pois suas ações e reações à entrevista com sua advogada sugerem que ele possui traços de psicopatia e que não deve ser confiável. Porém, a antipatia pelos personagens do trio de roteiristas é contagiosa, e próximo do final do filme não há heróis para abraçar, apenas o cinismo do universo ressoando ao fundo.

Além disso, a fotografia e direção de arte de Testemunha Invisível, quase sempre escura em tons azuis, nos sugere um clima de assepsia que suga toda e qualquer humanidade que essas pessoas possam demonstrar. O único momento que a paleta de cores muda dos tons azuis e pálidos para se tornar minimamente quente e acolhedora é quando a amante de Adriano é ajudada pelo simpático casal que mora nas montanhas. Por outro lado, essa decisão possui ela própria sua ambiguidade, pois unida às falas antinaturais de seus personagens nos faz lembrar das telenovelas onde os vilões não são nada sutis, e disparam a realidade nua e crua do que pensam, doa a quem doer. O "ponto alto" da história é sempre nos lembrarmos que aquela advogada fala coisas na cara de seu cliente que não falaríamos para nossos espelhos.

A atuação de Riccardo Scamarcio como o magnata de tecnologia acusado de assassinato precisa ser ambígua do começo ao fim pelo bem da história, mas apesar do ator conseguir com sucesso viver uma versão mais gentil dos acontecimentos, as reinterpretações que seguem são apressadas e evitam dar a chance para que Scamarcio seja desmascarado no terceiro ato. Não dando essa chance, o diretor Stefano Mordini furta do ator a possibilidade de uma atuação memorável. Ou isso ou Scamarcio não está à altura de seu personagem.

Já o que ocorre com Fabrizio Bentivoglio como o senhor simpático das montanhas é que lhe falta o momento da transição para o pai injustiçado que se torna obsessivo e usa de todos os meios para encontrar a verdade e punir os culpados. Essa energia que move o personagem de Bentivoglio não é vista em sua versão inicial, mas estamos falando de uma versão narrada pela amante de Adriano, então tudo pode ser fruto da imaginação de um canalha compondo um personagem, mas se este fosse o caso não haveria tanto esmero em detalhes para um personagem que, como sua própria advogada afirma tantas vezes, nunca se atenta aos detalhes do que fala.

A única autocentrada nessa farofa de mistérios é Miriam Leone, que faz a madura amante de Adriano, que vira uma femme fatale genérica na mente de seu suposto assassino, e isso faz sentido porque estamos analisando uma mente masculina. Sem a possibilidade de trazer a verdade de sua personagem à tona, a proposta de Leone é viver uma incógnita do começo ao fim, incluindo suas próprias reações ao inesperado. Não há vida na interpretação da atriz, e é justamente esse o tom exigido por uma personagem que é um mero estereótipo (embora seja erroneamente adotado pela advogada de Adriano, pois esta sim, está presente na história, e não na mente do protagonista).

São curiosas as idas e vindas de Testemunha Invisível próximo do seu final. Ao mesmo tempo que elas são esperadas, pois este é o gênero, mas o próprio filme desiste de tornar qualquer reviravolta empolgante ou surpreendente. Usando o mesmo tom do começo ao fim, este é o retrato cínico de um cineasta que não se importa com os valores de seu trabalho ou com a resposta de sua plateia. É como se ele fosse o Adriano do filme, completamente alheio ao que o júri, nós, os espectadores, iremos achar das mudanças ou das não-mudanças de temperamento das pessoas envolvidas em um caso tão sério quanto assassinato. E o veredito é: ninguém mais se importa com filmes deste gênero. Nem seu diretor.


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