# Better Call Saul e Metástasis (piloto)
Caloni, 2015-03-03 cinema series [up] [copy]Tive uma experiência no mínimo curiosa esta noite. Não, não é o que você pode estar pensando se você não me conhece. Quem participou da experiência comigo foi a Netflix. E Saul Goodman, ou James McGill. E Walter White e seu alter ego latino, "Señor Blanco".
E eu recomendo essa experiência.
Better Call Saul está em seu quarto episódio e já apresenta pelo menos dois episódios imperdíveis. Não estou falando do piloto. Esse peca por demais no preciosismo e na dramatização, além de ficar parado por muito tempo em um futuro que nós já conhecemos enquanto aguardamos pelo passado glorioso dos anos 70, quando Saul Goodman era James McGill, um advogado lutando para conseguir clientes fora o círculo do inferno conhecido como sistema jurídico estatal norte-americano.
Também não estou falando do terceiro episódio, esse intermediário que lembra por demais essas séries infinitas de investigação, policiais, FBI.
Estou falando em específico do segundo episódio dirigido pela fodástica Michelle MacLaren, uma das produtoras e que dirigiu episódios em nada menos que três séries atualmente no topo da literatura de internet: Breaking Bad, The Walking Dead e Game of Thrones.
Nesse episódio temos a primeira defesa de Saul -- não consigo chamá-lo pelo nome de batismo -- ancorado em um dos princípios morais mais primitivos e bárbaros: a lei de Talião. Olho por olho, dente por dente. Pelo menos essa lei faz mais sentido na cabeça oca do explosivo Tuco, o outro lado da negociação.
Através de um desempenho desajeitado, mas eficaz, Saul consegue salvar a vida de dois jovens pilantras. É seu primeiro "case" de sucesso, e significa o pilar moral de sua futura função que tanto nos divertiu em Breaking Bad, uma série que ainda merece muitas revisitas. Saul defende bandidos, mas arma uma arapuca mental para justificar seus atos. Ele age da mesma forma para justificar os atos de seus clientes. É um personagem discutindo acidentalmente a nossa moral enquanto torcemos por Walter White, um traficante e produtor de metanfetamina e uma lista de corpos que cresce a um ritmo exponencial. Agora Saul é o protagonista, o que nos permite analisar esse mecanismo mais de perto.
E onde chegamos no irretocável quarto episodio, quando aprendemos que o jovem Saul aplicava golpes que garantiam uma grana para garantir a birita da noite, mas que, principalmente serve de gancho para uma sequência que irá se desenrolar quase no outro extremo da história. Aqui a atuação de Bob Odenkirk começa a sair um pouco do arroz-com-feijão que estávamos acostumados (e que era ótimo) em Breaking Bad. Tenho bons pressentimentos sobre o desenrolar desse roteiro de Vince Gilligan e Peter Gould.
Não cansado daquele universo, resolvi dar uma olhada na nova série latina que estreou também na Netflix, Metástasis. E adivinha só? É do mesmo Vince Gilligan, ajudado por mais três roteiristas e dirigido por Andrés Baiz e Andrés Biermann, que não possuem nenhuma relação com a série original. Daí você me pergunta: "e daí?" Bom, se trata do mesmíssimo roteiro, com o mesmíssimo número de episódios. Daí você me pergunta (já impaciente). "OK, e daí?" E eu já vi que você não se interessa muito pela arte cinematográfica. O. Mesmo. Roteiro. Mas. Outra. Direção! Podemos comparar a mesma história, com praticamente os mesmos diálogos, mesmas cenas, mesmos personagens, e sentir qual o verdadeiro peso de uma direção em um filme/série.
Obviamente que não é apenas a direção que muda. Fotografia, figurino, direção de arte, atores... digamos que pelo menos o roteiro não muda. E a trilha sonora ainda está por conta de Dave Porter, que faz as trilhas de Breaking Bad e Better Caul Saul também.
A maior decepção talvez seja o ator que interpreta Jesse Pinkman no remake. Enquanto Walter White vira uma espécie de caricatura de si mesmo, Jesse é apático perto do desempenho de Aaron Paul desde o começo. Note como ele lembra o "Professor White" que ele não sabe de nada de química porque ele o reprovou.
https://www.youtube.com/embed/K-JvsP56zbk
Não é preciso dizer, claro, que não se pode esperar nada próximo do Walter White de Brian Cranston, que também oferece uma atuação digna de prêmios já no piloto da temporada. Não encontrei a sequência completa, mas o momento em que ele decide pôr fim à própria vida é hilário e tocante ao mesmo tempo. (A do remake também é, mas de uma maneira engessada e pausterizada.)
Ainda assim, a sensação geral foi que direções muitas vezes são supervalorizadas. Um roteiro bem escrito consegue milagres, como é provado nesse piloto de Metastasis. Um trabalho menor, de baixo orçamento, mas que se fosse o original, atrairia um público pronto para sensações diferentes do mais do mesmo (assim como eu fui fisgado alguns anos atrás por Breaking Bad).
# Guia de alocação (nos clientes)
Caloni, 2015-03-04 [up] [copy]Se você trabalha com T.I. (nem precisa ser programação) e mora em São Paulo (ou qualquer outro lugar com pessoas paranoicas) então talvez em algum momento da sua carreira teve que ficar alocado (como uma memória que contém um vírus) em algum de seus clientes (ou da empresa onde trabalha/ou). Usando seus apetrechos pessoais dentro de uma mochila para zarpar no final do dia sem deixar rastros.
Não é muito elegante deixar seus logins, seu perfil, seus favoritos e histórico no navegador que está usando, além de ser uma falha de segurança, já que trocar a senha de um perfil no Windows é procedimento natural ~~, além da própria segurança do SO deixar a desejar em alguns momentos~~. Por isso, segue algumas dicas que tenho usado e recomendo para quem também é essa memória corrompida, nem que seja por pouco tempo.
O TrueCrypt está aposentado graças ao Bit Locker. No entanto, ele ainda pode ser uma mão na roda. E portátil. Basta carregar seu executável e seus drivers em algum lugar e executar e poderá criar um novo volume facilmente.
Dentro desse volume devidamente encriptado com uma senha forte (ou talvez uma chave forte portátil) e algoritmos escolhidos fortes é possível colocar uma miríade de coisas. Eu gosto, por exemplo, de manter meus arquivos do Dropbox/Google Drive/One Drive dentro dele, escolhendo um drive fixo (adicionando aos favoritos). O jeito que meu DropBox se comporta é dar erro quando o volume não está montado, sendo que eu sou obrigado a me lembrar de montar o drive antes de começar a sincronização de arquivos de outros lugares que eu confio (meu notebook, por exemplo). Não que tenha nada muito relevante, mas a ideia é não deixar um rastro sequer, certo?
Por fim, outra possibilidade para o navegador é também usá-lo a partir do drive encriptado. Existem versões portáteis do Firefox e Google Chrome. O Chrome funciona razoavelmente bem, perdendo alguns logins de vez em quando. Mas, ei, perder logins não é exatamente um problema de segurança, certo?
# Risco Imediato
Caloni, 2015-03-05 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Esse é um filme bem violento, considerando que os heróis são um casal de estrangeiros tentando construir suas vidas em torno de uma casa caindo aos pedaços. Os bandidos parecem pouco interessados no dinheiro, fruto de um golpe, e na heroína deixada para trás pelo traidor da gangue, agora morto. E para piorar temos um francês buscando vingança da rede de corrupção instaurada por um bandido extremamente sanguinário. No pano de fundo de tudo isso reside um policial incorruptível e alheio à burocracia e política. Tudo que ele quer é compensação pela perda de sua filha para o mundo das drogas.
Aliás, todos parecem querer compensação em Risco Imediato. Até o jovem casal citado no início quer uma retaliação da vida por dar-lhes uma sobrevivência lastimável apesar de terem sido sempre corretos. Nem o "milagre" da fertilização eles parecem ter direito. Quem não criaria um motivo qualquer para ficar com mais de 200 mil libras? Uma das melhores partes é acompanhar seu processo gradual de relativização moral.
Isso não quer dizer que torcemos por eles. Ver a Kate Hudson com seu sorriso plástico enquanto admira as crianças dos outros não cria exatamente empatia; não conseguir engravidar logo se torna o menor dos seus problemas, mas ainda assim é usado como paninho dramático. Da mesma forma, James Franco faz o papel de um trabalhador braçal sem calo nas mãos que aumenta de inteligência rapidamente no final do filme. Se antes eles não tinham um plano melhor do que ficar com todo o dinheiro, de repente ele e sua mulher bolam uma armadilha ingênua para bandidos armados.
A participação de Omar Sy como "Genghis Khan" é espirituosa em um filme cheio de personagens desinteressantes. Seu diálogo explicando sua situação é a mais magnética. Tom Wilkinson representa a integridade da justiça, embora tenha um motivo pessoal. É uma pena que sua perspicácia não venha acompanhada da energia de Bruce Willis no interessante 16 Quadras, que também lida com a luta contra a impunidade alimentada pela própria polícia.
Mas o que acaba chamando mais a atenção todo o tempo é uma trilha sonora bem conduzida, que usa batidas de techno para ditar o ritmo da ação. Infelizmente a trilha dramática não é assim tão inovadora, se resumindo em forçar um clima que não necessariamente é o que está ocorrendo na tela. Eu gostaria de assistir a uma história melhor nesse universo sombrio e sem esperanças de uma Londres que olha para seus habitantes de cima. É preciso lembrar que a música de Serena Ryder nos créditos finais é um dos melhores momentos, apesar do tom erroneamente lembrar James Bond. Não a perca.
# Os Estagiários
Caloni, 2015-03-07 cinema movies [up] [copy]Não sei o nível de entrosamento de Vince Vaughn com os roteiros que participa, mas co-assinando a história do ótimo Separados pelo Casamento e os roteiros de Encontro de Casais e agora Os Estagiários me diz que pelo menos ele não se importa tanto quanto o egocêntrico Adam Sandler em proteger sua "imagem pública". Mas não se engane: seus personagens podem ser antipáticos em alguns momentos, mas sempre sairão por cima ou terão algo que ninguém tem. Nesse caso, a capacidade de ser um excelente vendedor.
Só que a Era de vendedores de relógio como Billy (Vahghn) e Nick (Owen Wilson) já passou faz um tempo, e agora que a firma para onde trabalhavam fechou as portas eles têm a ideia de se inscrever no programa de estágios do novo sonho americano: trabalhar no Google. Levando mais tempo do que deveria em sua introdução, finalmente somos levados às instalações e às pessoas que regem a internet. E, assim como Vaughn, a Google não se importa em ser caracterizada como arrogante e insensível durante o trajeto da história, desde que no final fique valendo a imagem deste ser o lugar dos sonhos.
Durante uma competição que envolve equipes de estagiários lutando por meia-dúzia de vagas o que vale é a inteligência dessa nova geração, às custas do fator humano cada vez mais ausente nas interações entre essas pessoas. Os jovens do programa de estágio não se importam se estão magoando alguém, desde que elas entreguem o que elas precisam: auto-afirmação em meio a uma multidão de mentes brilhantes. Aqui ser brilhante não parece ter valor para a sociedade, mas para a pessoa em si. Ela se sente bem em poder tratar o resto da humanidade como lixo (especialmente os mais velhos ou gordos), pois assim ela fará mais parte ainda do topo. É óbvio que essa observação vale para o "vilão" do filme, um jovem particularmente cruel com sua própria equipe (em cenas maniqueístas, lógico). No entanto, ela valeria para quase todo mundo naquele ambiente onde sobreviver implica em não ter tempo de olhar para a pessoa que está do seu lado, tentando entender o que vai fazer com a sua porção de peças do mesmo quebra-cabeças.
Maniqueísmos e vilões fabricados à parte, o bom do filme é que a equipe onde Billy e Nick estão não é apenas um amontoado de estereótipos, mas pessoas com suas histórias e seus dilemas. Dessa forma, apesar do jovem Lyle (Josh Brener) ficar com a equipe mais fraca sua empolgação em coordená-la é cativante. E se Neha (Tiya Sircar) é a mais julgada por fazer o estilo "vivida" -- mesmo que não seja verdade -- ela se torna vítima de seu próprio estereótipo. E até os fraquíssimos arco de Yo-Yo Santos (Tobit Raphael) e Stuart (Dylan O'Brien) entretêm na medida certa.
E a medida é um filme raso, porém moderadamente divertido. Faz pensar em coisas, especialmente se você é o tipo de que vive sua vida 90% em frente ao computador (como eu), seja no trabalho ou por diversão. Quer dizer, assisti esse filme pelo computador durante uma folga do serviço. E depois que ele acabou, onde foi que voltei a trabalhar? Exato.
# Kick Ass 2
Caloni, 2015-03-10 cinema movies [up] [copy]Tudo que o original tinha de divertido e tenso -- a violência exacerbada envolvendo crianças e a própria realidade da loucura que é ser um jovem vigilante -- foi retirado nessa continuação, que soa mais como uma produção Marvel. Afinal, é isso o que o público hoje se contenta em ver: baixos riscos, altas expectativas.
É impressionante como, teoricamente apresentado como um filme de comédia e ação, Kick Ass 2 nunca deixa de ser um dramalhão adolescente para adolescentes e, quando emplaca, logo termina. A moral da história é que, apesar de constantemente os personagens falarem que aquilo que estão vivendo não são quadrinhos, que aquilo é vida real e pessoas podem morrer, mais a morte é banalizada e menos efeito parece ter naquelas pessoas, e mesmo um casal de pais em busca do seu filho perdido não se importa em colocar em risco os filhos dos outros. Talvez porque, afinal de contas, a contagem dos corpos revela apenas adultos, e desde que nenhum jovem ou cachorro seja gravemente ferido, mais um dia a justiça (para sempre) foi feita.
Não que eu me importe com um filme que faz questão de matar quase todos os adultos relevantes. Deve haver alguma mensagem subliminar em algum lugar do roteiro do diretor Jeff Wadlow. O problema é quando os adolescentes que sobram e seus "dilemas existenciais" ficam insuportáveis, mesmo quando minimamente construídos como a de Mindy/Hit-Girl (mesmo que Chloë Moretz, muito melhor em Carrie, insista em dar aquele sorrisinho pelo canto da boca). E é um sintoma problemático quando a ausência de Nicolas Cage é sentida exatamente pelo seu peso dramático.
Mas não se desapontem. Existe violência em Kick Ass 2, e até um pouco de sangue. Mas ela é descarregada de maneira mecânica, automatizada e au passant. Quando vemos Mama Russa (Olga Kurkulina, uma fisiculturista) detonar com 10 policiais sozinha não ficamos impressionados da mesma forma que seus boquiabertos capangas, mas pensando se realmente esse comportamento condiz com um bandido profissional altamente remunerado (pelo menos os que mantém uma carreira de médio prazo sem serem presos). Da mesma forma, a morte de dois personagens importantes passa tão batido que ficamos em dúvida se já passou algum tempo na história e não ficamos sabendo, ou a atmosfera em torno dos "super-heróis" é tão fascinante que os torna sociopatas treinados.
Escorregando em quase todos os momentos, mas mantendo a ação acontecendo também, Kick Ass 2 não é uma experiência ruim, mas está longe de conseguir um simples momento memorável. Com alguns resquícios de ideias interessantes -- como o tubarão no aquário gigante que parece morto -- fica mais a saudade do universo do filme original. Esse sim, menos colorido visualmente e mais interessante tematicamente.
# Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)
Caloni, 2015-03-13 cinema movies [up] [copy]Antes de falar sobre Bidman, vamos aproveitar para tirar um elefante branco da sala: o plano-sequência. O que são? O que comem? Como se reproduzem?
Sem querer entrar no mérito do que é um plano e o que é uma sequência, vamos entender a técnica através do que falta em um plano-sequência: o corte. Cortar no cinema você já conhece: é quando o diretor está satisfeito com a duração da cena que estão filmando e grita "corta!". No caso da película isso é literal. Ela é cortada e depois colada com a próxima cena.
Como você faz para não cortar uma cena?
Existem várias técnicas hoje em dia no computador que não vêm ao caso. Apenas tenha em mente que não é fácil se não houver uma pausa no movimento da câmera ou um momento em que o que estiver sendo mostrado possa ser o início da próxima cena, como uma parede, por exemplo. No caso de Birdman repare que existem dois movimentos na câmera que funcionam muito bem como uma pausa sem ter que existir o corte:
1. Quando o protagonista entra ou sai do bar (e há um escuro entre o dentro e o fora do bar);
2. Quando a câmera enquadra o céu e a noite vira dia (a passagem do tempo acelerada é um efeito em si mesma).
Podem existir momentos mais elaborados para cortar, mas isso irá exigir mais aprimoramento técnico ainda dos produtores. Veja, por exemplo, a sequência memorável da perseguição em Filhos da Esperança, quando acompanhamos toda a ação de dentro de um carro que realiza as mais diversas manobras. Ou da perseguição do suspeito em um estádio de futebol em O Segredo dos Seus Olhos.
Birdman não foi o primeiro filme filmado como se fosse um gigantesco plano-sequência. Trabalhos muito mais desafiadores no sentido de não haver cortes foram feitos. A Arca Russa é um trabalho filmado todo em plano-sequência sem nenhum tipo de corte. Foi necessário produzir um sistema de gravação em HD para conseguir conter o filme inteiro em apenas uma tomada. Já Birdman, como vimos, possui diferentes formas de realizar o corte escondido. Porém, "puro" ou não-puro, a problemática da produção é algo que, assim como o filme original, fica na sala de edição. No fundo, ele nunca existiu. O que vale é o produto final, ou o que o espectador sente. E ele sente, tanto em Birdman quanto em A Arca Russa, que a ação não para nunca.
Agora, se isso tecnicamente é um desafio, artisticamente deve existir um bom motivo para ser feito. Do contrário, para que fazê-lo? E de fato, Birdman conta a história de um ator que não é levado a sério pela crítica -- nem por si mesmo -- por ter sido o astro de uma série de filmes de um super-herói que voa: o Birdman do título. O mais curioso é que o filme brinca o tempo todo com metalinguagem, um outro assunto fascinante a respeito de Cinema, que é usar o próprio Cinema como fonte da narrativa. Por isso é que faz todo o sentido o ator que interpreta Birdman, ou Riggan, ser Michael Keaton, o protagonista dos dois primeiros Batman de Tim Burton.
Porém, ainda não respondi à pergunta. A questão do plano-sequência é que Birdman trata desse ator em processo de construção de uma peça que pretende limpar para ele esse passado "não-artístico". Peças de teatro acontecem em tempo real, com os atores contracenando naquele momento em que o espectador está assistindo. Isso traz um realismo que o Cinema pode apenas emular através, por exemplo, do plano-sequência. No teatro não há cortes, apenas divisões em capítulos (ou atos). O plano-sequência emula essa falta de pausas na ação, e lembra também reportagens de TV em que há apenas uma tomada durante a ação, geralmente com a câmera tremendo (quando há movimento).
Além do mais, isso traz um sentimento de imediatismo. E para Riggan há um imediatismo claro: ele está ficando velho, o tempo está acabando para ele, e ele ainda não foi levado a sério como ator. Curiosamente, os personagens que o cercam são interpretados por atores que já fizeram parte desse mundo de super-heróis, só que mais atuais. Edward Norton, o ator de sucesso, fez O Incrível Hulk. E Emma Stone é o par romântico do mais novo Homem Aranha. Porém, mais significativo ainda é colocar Naomi Watts, que teve um começo em Hollywood de maneira semelhante ao filme Cidade dos Sonhos (David Lynch, 2001): uma garota fascinada pelas luzes. Aqui, Watts faz a "garota" que finalmente conseguirá estrear na Broadway.
De uma forma ou de outra, Birdman é uma gigantesca crítica aos filmes que exploram as sensações baratas dos efeitos digitais, mais notadamente os filmes de super-heróis. Na verdade, vai mais além e critica o próprio público que se acomoda em torno desses filmes e não procura nada além. Veja bem: o título do filme é Birdman, mas ele vai reconhecidamente ser refutado pelo público como um "filme de arte" (como se todo filme não o fosse). Maior estigma para ele será ter ganho o Oscar de melhor filme. A Academia tem se arriscado mais que o normal nesses últimos anos. Ledo engano: Birdman é um filme fácil. Apesar de suas esquisitices narrativas muito bem-vindas, ele é uma homenagem à arte e ainda constrói uma trama inteligível pelo público médio. Ainda assim, mantém diversos conceitos, argumentos e filosofadas em suas entrelinhas, de forma que ele pode funcionar de maneira eficiente para diferentes tipos de audiência.
Portanto, se há um "filme de arte" apenas que você pode assistir esse ano, tenho uma boa notícia: há duas ótimas oportunidades. Birdman ou Boyhood. Se você gosta de filmes com super-heróis e explosões, comece pelo primeiro. Há uma cena em que ele voa e tem um pássaro gigante. Pelo menos 2% do seu dinheiro será empregado em satisfazer suas emoções primitivas de ver luzes piscando. E quem sabe em todo o resto você não encontre um motivo ou dois para dar mais chances a filmes que tentam enriquecer nossa visão de mundo, na arte ou na vida.
# Branco Sai, Preto Fica
Caloni, 2015-03-13 cinemaqui cinema movies [up] [copy]"Branco sai preto fica" tem uma ideia promissora, consegue implementá-la, e ainda que se alongue desnecessariamente em vários momentos, consegue estabelecer um argumento no mínimo interessante. Passado, presente e futuro se combinam para convergir em um ponto no tempo: a invasão policial em uma danceteria na região periférica de Brasília que fez com que duas pessoas não conseguissem mais andar normalmente. Para nosso protagonista, Marquim, o mais trágico é não poder dançar. Marquim, além de ator, é um personagem da vida real.
O filme mescla o tom documental e futurista para enriquecer aquele universo produzido com baixo orçamento. Por inserir testemunhos como narração em off, causa realismo. Por envolver viagem no tempo e seu imediatismo, causa tensão. A correção de um sistema social injusto que puniu os negros por muito tempo ganha duas frentes nessa realidade: jogar uma bomba ou processar o estado.
E é essa a parte que eu mais gosto no roteiro. Não uma cena específica, mas a ideia de que as pessoas se cansaram e partiram para o ataque. Mas não contra um racismo brasileiro, onde a realidade nunca é muito clara, mas contra um inimigo invisível que finalmente foi rastreado em pelo menos um evento: o massacre na danceteria. A partir do momento que isso fica claro eles viram heróis. Meus heróis, pelo menos. Ainda mais por terem se tornado deficientes físicos e não vítimas do sistema, ainda que tenham motivos de sobra para tal.
Acompanhamos a vida dura de Marquim, vivendo sozinho em uma cadeira de rodas, através de sua rotina para sair e chegar de casa. A felicidade para ele pode ser resumida em relembrar seus dias de dança tocando (e cantando) seus discos de vinil em sua rádio clandestina. As músicas, além de servirem como uma ótima trilha sonora, são nostálgicas por natureza por resgatar o movimento hip-hop. Aliás, a história da noite fatídica é narrada através de um rap improvisado por ele mesmo logo no início da trama. "Sai branco" preza pela economia em contar sua história para manter a rotina como o núcleo de sua desesperança. Desesperança essa que nos leva a constatar que a "ex-ceilândia" é um lugar de tão poucos amigos que Marquim precisa se proteger através de câmeras circundando o local e uma entrada pelo segundo andar da casa que desce até o que seria o térreo, mas que lembra o subsolo pós-cataclisma nuclear.
Não é nenhuma novidade que Brasília seja rodeada de miséria, seja em um raio de cem quilômetros ou milhares deles. O que torna "Sai branco" empolgante é exatamente o seu distanciamento temporal, o que permite essa extrapolação pela realidade alternativa em que fanáticos religiosos chegam ao poder, tornando tudo ainda mais dramático. Ou será que todo essa dramaticidade não está presente nos dias atuais e é esse distanciamento que nos faz enxergar com um olhar mais crítico? Às vezes a ficção, científica ou não, é o caminho mais cru para a auto-crítica do tempo em que vivemos.
# Capote
Caloni, 2015-03-13 cinema movies [up] [copy]Espero que eu tenha entendido mal esse filme. Ele é bem feito, tem a atuação enigmática de Philip Seymour Hoffman, que foi um ícone de atuação até sua prematura morte. Porém, ele possui uma história e uma argumentação falhas demais. Transportando um assassinato bruto de uma família inteira para as ondas do destino e colocando em foco a história de vida de um dos assassinos, o roteiro de Dan Futterman baseado no romance de Gerald Clarke que busca exaltar a sensibilidade do antes escritor de ficção Truman Capote no escritor norte-americano de maior influência do século passado. Pior: ele transfere ainda a moral duvidosa para o próprio escritor, sendo que estamos falando de assassinos cuja biografia está sendo coletada com uma curiosidade inabalável de Capote que durou cerca de cinco anos.
Acompanhamos essa meia-década e a sua rotina de ir visitar o preso depois do julgamento e todas as apelações para evitar a pena declarada: morte. Mas não é um filme humanitário, não é um filme conservador. É um filme sobre o processo de biografia em si e sobre o cansaço de Capote durante esse processo. No entanto, ao final da experiência, acabamos sem saber como é o tal livro, como é o tal Capote, como é o tal assassino. Tudo que sabemos é como a família foi executada e como a voz de Capote inibia as pessoas em volta pela sua forma afetada.
Uma voz, aliás, muito bem executada por Philip Seymour Hoffman.
# Golpe Duplo
Caloni, 2015-03-13 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Os diretores/roteiristas Glenn Ficarra e John Requa têm um histórico interessante em O Golpista do Ano: um filme que envolve não apenas uma trama de reviravoltas, mas também interpretações e interações certeiras de seu elenco. Sendo assim, é compreensível que Golpe Duplo, apesar de construir uma trama cheia de virtudes, tenha que se render às fracas performances de Will Smith e Margot Robbie (O Lobo de Wall Street) e inserir muletas narrativas que enfraquecem o projeto. Felizmente, a qualidade no roteiro compensa os artifícios usados para tornar o resultado final mais palatável ao grande público (e, claro, aos fãs de Will Smith).
Smith interpreta Nicky, um golpista de alto escalão que tem várias pessoas trabalhando para ele em um grande esquema de pequenos roubos produzidos em massa e garantindo assim uma margem de lucros considerável. Seu primeiro encontro com a voluptuosa e inexperiente Jess (Robbie) é ágil e orgânica, pois envolve um tipo de golpe e serve como explicação ao espectador de como as coisas funcionam nesse universo, além de já estabelecer uma relação pupila/mestre que será usada em diferentes momentos da trama.
O grande problema em Golpe Duplo -- que nem é tão grande assim -- é mais uma questão de expectativa. Somos brindados com o melhor momento do filme na sua primeira metade, durante uma sequência de apostas extremamente bem arquitetada e que prende a atenção do espectador através de pequenos e relevantes detalhes combinados: um breve momento na cena anterior em que aprendemos que Nicky pode ser viciado em jogos, a música evocativa de Wall Street (2010), o uso de uma profundidade de campo que vai se reduzindo na mesma proporção que o foco, forçando o título do filme (originalmente "Focus") ao seu próprio limite. Dessa forma, não me admira que o final, por mais drama e adrenalina que ele tente arrancar, não irá surtir o mesmo efeito, já que nós, espectadores, fomos ensinados por completo a respeito da arte de engambelar as pessoas, mesmo que para isso arrisque uma certa dose de probabilidade.
Probabilidade, aliás, é o que não ajuda na segunda metade da trama, já que Nicky e Jess se encontram em um outro país em uma situação claramente forçada pelo roteiro que parece querer fazer propaganda de Buenos Aires e acaba não conseguindo explicar de forma convincente tamanha coincidência. Também não é possível explicar como Nicky muda completamente seu modus operandi, sendo que ele chegou a dizer na primeira metade que esse negócio de "grande golpe que vai nos levar à aposentadoria" não passa de ilusão. Da mesma forma a maioria dos momentos com o casal serve apenas para fazer o tempo passar e vermos o par romântico junto. Prova disso é que as inúmeras vezes que Jess bate a carteira de Nicky acaba virando mais uma muleta à parte.
Aliás, a interpretação, ou melhor dizendo, o uso de Will Smith é no máximo adequada. Não se pode dizer o mesmo de Margot Robbie, pois há uma diferença de tom entre enganar e fingir que está enganando, e a personagem de Margot não cresce devido a essa limitação de uma atriz que parece presa ao estereótipo de coadjuvante (melhor se saem os divertidos Adrian Martinez e BD Wong). Will não chega a ser tão melhor que Robbie em seu papel, mas sua persona pública faz o resto da interpretação funcionar, e talvez nesse sentido suas verborrágicas explicações sejam necessárias, diferente do impecável e mais visual Nove Rainhas. Pelo menos o filme com Ricardo Darin sabia a hora de parar com tanta didática. O público muitas vezes não gosta de ser enganado sem saber o truque, mas se sente mais desconfortável ao descobrir que o truque é ainda pior que a magia por trás.
# O Homem Duplicado
Caloni, 2015-03-13 cinema movies [up] [copy]Quando ouvimos o professor de história repetir a mesma fala a respeito de ditaduras controlarem o povo através de poucas informação e isso se repetir ao longo da história de forma cíclica é uma pista do que o filme irá falar. Porém, o mais fascinante em O Homem Duplicado é que, assim como as ditaduras, o diretor Denis Villeneuve, do excelente Os Suspeitos (2013), não quer nos revelar todas as informações por trás dessa história.
E ela fica bastante estranha sem essas informações. Jake Gyllenhaal interpreta tanto Adam, o professor de história, quanto Anthony, um ator que ele encontra casualmente ao alugar um vídeo. O que nos leva à grande primeira questão: quais as chances de uma pessoa que não costuma assistir filmes alugar justamente o filme que revela que ele possui um sócia que coincidentemente vive na mesma cidade que ele?
A resposta, como devemos presumir, está nos sonhos de Adam (ou Anthony? ou ambos?), sempre relacionados com aranhas, mulheres nuas e salas obscuras, assim como sua própria sala de estar. Adam vive nas trevas, decepcionado com sua profissão, e namora Mary (Mélanie Laurent), que vem a seu apartamento para jantar, ter sexo e ir embora. Sua rotina não é a das melhores, e seu interesse pelo seu sócia, compreensível.
Já Anthony, o outro lado da moeda, é uma incógnita. Ele é casado com Helen (Sarah Gadon), que está grávida de seis meses; eles são um casal feliz. Porém, sua moral é duvidosa, e Helen tem ciúmes fundamentado em casos passados de seu marido. O inevitável encontro entre Adam e Anthony não é tão estranha por serem idênticos -- até detalhes como uma cicatriz -- mas é mais ameaçador pelo que está passando em suas mentes naquele momento. Podemos até tentar adivinhar através de seus diferentes olhares, expressões e tons de voz. Por um ou dois momentos a voz dos dois é facilmente confundida, mas eu discordo. As palavras que saem da boca do instável Anthony são muito mais temerosas do que as que saem do receoso professor.
De qualquer forma, estamos trabalhando com poucas informações aqui (lembra?), mas isso não impede que O Homem Duplicado se torne um thriller que se aproveita da sua complexidade para tornar o espectador sempre boquiaberto para cada nova situação. Nos sentimos como Adam, mas depois do segundo encontro com Anthony, esse sentimento se torna estranho. Podíamos até imaginar o que faríamos em tal situação, mas nunca viver. E é essa sensação que Villeneuve, desde seu terrível (no bom sentido) Incêndios, entrega mais uma vez.
PS: Não fique encucado com a cena final. Ela faz parte de uma lógica interna inabalável, exatamente pela falta de informações. Resta saber qual é. Palpites?
# O Último Ato
Caloni, 2015-03-13 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Al Pacino é um dos grandes atores do nosso tempo e das décadas de ouro do Cinema norte-americano, com descobertas de grandes diretores como Francis Ford Coppola, Oliver Stone e Martin Scorsese. Esse fato não pode passar batido de O Último Ato, em que ele interpreta Simon Axler, um ator no início de sua decadência. Lá pelos seus 60 anos, Simon não consegue mais se lembrar de suas falas no palco e em uma crise nervosa se lança para a plateia, colocando um fim temporário em sua carreira.
O diretor Barry Levinson também fez alguns trabalhos de destaque nos anos 80, como Rain Main e Bugsy. Rain Main, com Dustin Hoffman como um autista com capacidades impressionantes de cálculo com números, lembra um pouco o personagem de Al Pacino no sentido de que agora que sua carreira está em pausa as pessoas apenas lembram de seus grandes trabalhos como ator, mas sua vida pessoal é um completo caos e não parece haver nada que Simon faça que a melhore. Na verdade, é no caos que ela começa a ficar um pouco mais interessante quando reencontra sua afilhada, Pegeen (Greta Gerwig, do ótimo Frances Ha), e desenvolve um esperado relacionamento amoroso (Pegeen nutria um romance platônico de longa data com seu padrinho).
Levinson não tem pressa em desenvolver a história de Buck Henry e Michal Zebede, baseados no romance de Philip Roth, e acaba tornando o que poderia ser uma grande farsa dramática em um romance quase leve. O que o impede são situações incomuns que são encaradas como bizarras, sendo que se o bizarro fosse o padrinho se enamorar da afilhada mais de 30 anos mais jovem, isso já aconteceu. Não é a ex-namorada que trocou de sexo que vai tornar as coisas piores. Nesse sentido, o roteiro tem passagens equivocadas que não acrescentam em nada ao filme, embora sirvam de estopim para a já esperada crise do casal.
É nessa fase que a participação de Greta Gerwig é primordial em realizar tudo o que uma de suas ex ameaçava por telefone para Simon, de forma que sua simples presença na casa praticamente intocada de Simon acaba se tornado um incômodo invisível, pois é apenas pelas sucessivas conversas de Simon com seu psiquiatra que conseguimos entender a influência que a moça vai tomando em sua vida.
O terceiro ato, contudo, consegue se destacar por completo do resto do filme, pois apresenta um interessante comparativo do romance de Simon com o que aconteceu com uma mulher que ele conheceu no instituto psiquiátrico (Kyra Sedgwick) durante sua recuperação e que desde então tem tentado persuadi-lo a matar seu marido. Na verdade, parece que a história inteira ganha novos contornos que não podem ser negados, e até os delírios de Simon, quando este não consegue distinguir realidade de ficção.
Quando chegamos no "Último Ato" do título brasileiro, que apresenta uma performance admirável de Al Pacino, que parecia se conter até o momento, e realiza uma rima interessante com seu contemporâneo Birdman. No fundo, o próprio conceito de Birdman e O Último Ato parece revelar uma preocupação atual com a dualidade entre o real e o imaginário na arte, principalmente o Cinema, e como o faz-de-conta enlatado do segundo muitas vezes enfraquece o primeiro. Felizmente, temos trabalhos como esse para nos lembrar que a arte muitas vezes transcende a vida e a enriquece.
# O Jogo da Imitação
Caloni, 2015-03-15 cinema movies [up] [copy]Todo ano existem trabalhos gêmeos no Cinema, ou seja, filmes que por uma razão ou outra estão intrinsecamente relacionados. O Jogo da Imitação é um filme que conta a história do projeto secreto do MI-6 -- o serviço de inteligência britânico -- em quebrar o código da criptografia dos nazistas em plena Segunda Grande Guerra. O projeto se confunde com um de seus idealizadores, Alan Turing, um matemático responsável por desenvolver a teoria que possibilitou a construção dos primeiros computadores digitais e que acreditava que apenas uma outra máquina conseguiria ser tão rápida a ponto de quebrar o código do inimigo durante a janela de 18 horas.
Esse filme é gêmeo de A Teoria de Tudo, que conta a história de Stephen Hawking, um físico teórico que elaborou uma explicação a respeito de buracos negros, ficou famoso, e desenvolveu uma deficiência congênita raríssima que o deixou a maioria da sua vida preso a uma cadeira de rodas e ausente de quase qualquer movimentos do seu corpo.
Turing e Hawking compartilham suas genialidades no mesmo ano, e ambos participaram de projetos importantes na evolução da ciência no século passado. Ambos também possuem seus dramas pessoais. Para Hawking, a doença que tem mantido sua mente presa a um corpo inerte. Para Turing, a incapacidade de lidar com seus sentimentos em relação a um interesse amoroso em sua infância e a repressão à homossexualidade que havia na época.
Ambos os filmes também compartilham a estrutura maniqueísta e previsível de todo o drama que evita arriscar demais: aquele momento em que o grupo inexplicavelmente se junta para defender um colega, os laços de amizade que -- inexplicavelmente? -- foram construídos em torno de um projeto (seja de vida ou de trabalho) e, claro, a sensação de injustiça quando vemos um ser humano ser impedido de seguir com sua vida só porque sua orientação sexual não combina com as regras vigentes em sua sociedade.
No entanto, no caso de The Imitation Game, há pelo menos um momento glorioso que deve ter feito todo programador vibrar -- mesmo que internamente: quando aquela grande sacada retirada do acaso serve para finalmente gerar os frutos que todos esperavam de um projeto ambicioso como esse. Sim: o programa rodou e imprimiu alguma coisa no final. A glória!
Pena que tanto para esse momento quanto para a intrincada rede de estratégias que se forma a respeito da não-revelação do segredo para os militares somos obrigados a acompanhar um drama como outro qualquer e sequer conhecemos melhor as pessoas envolvidas. Não há muito a ser revelado a respeito de Turing (Benedict Cumberbatch, da série Sherlock), e o pouco que existe é usado como gancho para idas e voltas no passado e sua infância traumática. Sua colega escolhida a dedo, Joan (Keira Knightley), sabe-se que é muito inteligente e mulher, e que por isso sofre constantemente pressão da sociedade para que deixe essa vida de trabalho intelectual. E isso é tudo. Sua equipe, antes liderada pelo campeão de xadrez Hugh (Matthew Goode), e até o detetive (Rory Kinnear) que vemos em meia-dúzia de momentos aleatórios procurando por pistas do real paradeiro de Turing são meras peças movidas convenientemente em cima de uma trama rasa perto da conquista obtida por esses matemáticos. Ou seja, até nisso o filme se parece com A Teoria de Tudo: um drama "comovente" em torno de um ser humano que construiu muito mais do que está sendo mostrado na tela.
Parece que um dos efeitos colaterais dos filmes-gêmeos é dividir a energia e gerar dois filmes medíocres de uma só vez.
# Rocky: Um Lutador
Caloni, 2015-03-17 cinema movies [up] [copy]O primeiro Rocky, o projeto de estreia de Sylvester Stallone, hoje poderia até soar piegas. Porém, a sinceridade em sua história o coloca acima de classificações. É um filme de sobrevivente. Um marco no Cinema e na vida. Sua luta final é coreografada, editada e ritmada de uma maneira a se tornar a "luta do século", mas não é isso o que a torna especial, mas toda a história que a carrega.
Rocky Balboa (Stallone) é um italiano pobre que vaga pelas ruas da Filadélfia. Ganha uns trocados por lutas semi-amadoras que são assistidas apenas pelos frequentadores da academia, um lugar que tem o aspecto de uma igreja (talvez seja) e que mantém a figura de Jesus Cristo estampada logo acima dos lutadores. Em determinado momento de uma luta inicial podemos ver uma sobreposição um pouco mais que sutil em que Rocky aparece logo atrás de uma luz, e Cristo, sendo iluminado o seu semblante icônico. Depois dessa cena, somos levados para a dura realidade. Para sobreviver ele precisa ser o capanga de um agiota no decadente bairro onde vive. Para conquistar uma moça faz piadas sem graça toda manhã quando a vê, em busca de comida para suas tartarugas. Talvez esse seja o primeiro filme a usar em sua coletânea de símbolos a figura do messias com tartarugas de aquário, mas que faz todo o sentido quando falamos de Rocky: um ser predestinado a ser escolhido pelo campeão peso-pesado a lutar com ele, e um ser casca grossa, que não arreda o pé do que decidiu fazer, por mais estúpido que seja.
Seu ídolo é o xará Rocky Marciano, também descendente de italianos, mas a luta emblemática foi baseada no desafio de Chuck Wepner para o até então campeão absoluto Muhammad Ali. Chuck teria sido esmagado por Ali se as previsões da mídia estivessem corretas, e de fato Ali foi o vencedor aquela noite. Wepner, porém, aguentou bravamente por todos os 15 rounds de duração até cair. A tartaruga volta de novo no imaginário de Rocky: alguém lento, meio abobalhado, se tiver a casca grossa e dura o suficiente, pode não vencer na vida, mas aguenta os socos que a vida lhe dá.
E o foco de Rocky é Adrian (Talia Shire), a moça da loja de animais. Ela possui uma beleza oculta em seus trejeitos tímidos e desconfiados. Na cena em que os dois se beijam, hoje Rocky certamente seria denunciado por estupro. Naquela época, ele foi o único ser humano que enxergou que Adrian é um ser humano, e que merece ser tratada como tal. O mesmo vale para o desengonçado lutador. Ela fornece a contrapartida e o equilíbrio para os dois: Rocky não se sente mais um lixo depois dos dois ficarem juntos. Enquanto ele mal subia as escadarias do museu de arte na sua corrida matinal do início, passa a socar os bois pendurados na casa de carnes onde seu cunhado trabalha. E como o rapaz da rádio disse: "quem em sã consciência acordaria o mesmo horário que ele, 4 da manhã?".
Bom, a nossa tartaruga-herói acordaria. E acordou durante todo seu treinamento. E disse umas boas verdades para seu treinador. E, mesmo diante de sua escalada física, manteve sua cabeça no lugar: é impossível ganhar de um campeão profissional. Mas, e apenas mas, se ele conseguisse o mesmo feito de Check Wepner, seria mais do que o suficiente para ter feito algo de sua vida. Quantos de nós, que nunca chegaremos ao topo, consegue aguentar tantos socos sem cair transtornado? Apenas Jesus, talvez... e algumas tartarugas de casco bem grosso.
# 12 Anos de Escravidão
Caloni, 2015-03-19 cinema movies [up] [copy]Parece algo repetitivo fazer filmes sobre a escravidão, não? Bom, depende da abordagem. A direção certeira de Steve McQueen (Shame) consegue adaptar as memórias de Solomon Northup com precisão. Solomon foi um afro-americano nascido livre em Nova York de 1853 e que foi sequestrado e vendido como escravo na capital do país que se formava. O que está sendo mostrado não é exatamente um registro genérico, mas uma reflexão profunda, bem ritmada e, sobretudo, um documentário de nossa época a respeito do que é ser um escravo.
12 Anos de Escravidão poderia facilmente ser acusado de ser um filme didático demais, pois acompanha a vida de Solomon (Chiwetel Ejiofor) em diferentes tipos de trabalho, como o cultivo da cana, do algodão e a extração de madeira, parecendo que essa estrutura foi montada para contar um pouco o que cada escravo sofreu da mesma forma que ele (só que uma vida inteira). Porém, esse é um ledo engano, já que o roteiro de John Ridley e as transições sutis e agradáveis de McQueen, mostrando lindas paisagens que mudam conforme as estações do ano e a época da nova colheita, consegue encadear um ritmo admirável e orgânico por 12 anos na vida do sujeito sem precisarmos das cansativas legendas que marcam a passagem do tempo.
Os poucos diálogos que permeiam a narrativa, geralmente entre os negros mantidos em cativeiro, servem para refletir sobre o ponto de vista das pessoas que não conhecem mais o que é ter escravos em sua sociedade, ou até mesmo como a escravidão está longe de ser um fenômeno gerado unicamente pelo racismo. Aliás, é fascinante observar os negros sendo usados, através de um sistema de débitos, como uma moeda de troca, sendo que até mesmo senhores mais aversos à violência -- como Mr. Ford (Benedict Cumberbatch) -- são quase que coagidos a manter a crença -- já alvo de críticas naquela sociedade, pelo menos a do norte -- de que é natural manter pessoas como sua propriedade e fazer o que quiser com elas. Não é preciso apelar para uma visão mais holística da economia da época quando conseguimos enxergar essa dinâmica diretamente nas pessoas com as quais Solomon é obrigado a conviver.
Por outro lado, é extremamente curioso perceber como o uso da religião e a cultura da escravidão não são causas por si só, mas usadas como desculpa para os atos mais cruéis. Dessa forma, apesar de tanto Ford quanto Epps, vivido por um irreconhecível Michael Fassbender, serem religiosos e costumarem ler trechos da bíblia para seus escravos, apenas Epps aproveita versículos como tábuas de lei para cometer seus crimes mais repugnantes. Não se pode nem comparar com o personagem de Paul Dano, já que este representa a sociedade não-pensante da época que desconta sua raiva em escravos como se estivesse tratando com cachorros.
Porém, quem procura apenas um filme bem feito, vai encontrar enormes motivos para se deliciar com a fotografia, a direção de arte e, principalmente, com a coletânea de atuações de um elenco de celebridades afiadíssimo. É o tipo de filme que não requer diálogos expositivos, pois tudo que está na tela é o suficiente para entendermos 80% da história. E até detalhes mais "obscuros", como o fato de Solomon aparecer em seus últimos momentos como escravo à esquerda da tela -- uma posição de menor destaque, portanto -- e logo depois, na próxima cena, preencher completamente o lado direito -- o lado dominante de um quadro -- poderá ser aproveitado por quem ama Cinema como uma arte.
Acima de tudo, no entanto, respondo minha própria pergunta inicial: não, não é algo repetitivo ficar falando sobre escravidão. Filmes refletem nossa visão contemporânea do assunto. E da mesma forma como é feito em filmes sobre o Holocausto, torcer para que a esmagadora maioria continue condenando atos tão selvagens que uma vez foram cometidos pela humanidade.
# 8 Mile: Rua das Ilusões
Caloni, 2015-03-19 cinema movies [up] [copy]Eminem não é um ator: é um rapper. Esse é o pecado original de 8 Mile, um filme que tenta reproduzir a história de vida do cantor através dele mesmo e de uma atmosfera inebriante nos guetos de Detroit. Usa um elenco inspirado -- Mekhi Phifer como o "paizão" Future e o hilário Evan Jones como o ingênuo Cheddar -- e uma fotografia sombria que aposta nos verdes e que ajuda a entrar no universo da fumaça, das gangues, das rimas improvisadas, do frio das ruas e do carro lotado. Há diversas cenas no carro da mãe de B-Rabbit (Eminem) e parece haver uma trocentas pessoas lá dentro. As câmeras responsáveis por filmar a cena são incríveis, mas melhor ainda são os cortes realizados que geram uma fluidez que te coloca como o enésimo passageiro daquele carro que pode falhar a qualquer momento.
Porém, se o universo funciona, sua história nem tanto. E não existe tensão nem drama o suficiente em 8 Mile. Para quem está acostumado à vida na periferia de grandes cidades do Brasil, por exemplo, a vida de Eminem como o garoto incompreendido que é obrigado a viver na casa da mãe vira um dramalhão conhecido como "classe média sofre". A título de comparação, o ambiente seco de Breaking Bad coloca a "rua das ilusões" parecendo Beverly Hills. Até o drama da mãe que vai perder a casa (uma equivocada Kim Basinger) empalidece diante dos diálogos forçados da lasciva Alex (Brittany Murphy), principalmente sua insistência em dizer para o garoto que ele terá um futuro brilhante pela frente.
Não há nada na vida de B-Rabbit que se poderia chamar de desastrosa, mesmo que 8 Mile tente de todas as maneiras nos fazer acreditar que é uma vida desgraçada. Não é. São apenas desilusões, fonte de inspiração de letras de jovens embebecidos com a droga da auto-importância seguida de depressão pós-revolta. Como todo adolescente, aliás. Não deixa de ser poético, entretanto.
# Mapas para as Estrelas
Caloni, 2015-03-19 cinemaqui cinema movies [up] [copy]O novo filme de David Cronenberg (Cosmópolis) quer falar sobre incesto, mas não de uma maneira direta, e não exatamente sobre incesto. Ele quer discutir através das celebridades de Los Angeles o que há de podre por trás de todo ser humano. Diferente do filme de Sofia Copolla, Bling Ring, ser um ator ou atriz famosa não tem relação com o comportamento dessas pessoas, pois elas já são problemáticas. A dinâmica tem mais a ver em como o fato delas serem famosas gera uma tendência curiosa da sociedade em fazer vista grossa para seus atos mais maldosos. Maldosos, porém, inerentemente humanos.
Uma das primeiras cenas envolve Benjie (Evan Bird), um ator-mirim que vai a um hospital visitar uma garota que é paciente terminal. Ele pede ao seu assistente que traga um iPad para a garota e diz que vai fazer um filme sobre sua vida. Sabemos que é mentira, mas uma criança saberá disso? O que está em jogo aqui é apenas o ego de Benjie, que só quer que a garota pense que ele é bom, falando qualquer coisa que a agrade com sua criatividade preguiçosa. É a regra do "enquanto você me der o que me deixa bem comigo mesmo, continuo fazendo o que tiver que fazer, seja lá o que for". Desde, é claro, que isso não envolva muito esforço. Esse parece ser o lema não apenas das crianças, mas como da maioria dos adultos nesse universo doentio.
O reflexo perfeito disso é sua vizinha, Havana (a cada vez mais supreendente Julianne Moore). Ela foi abusada quando criança pela sua mãe e agora faz de tudo para pegar o papel de um remake que um dia foi dela. Só que ela está envelhecendo, e seus cartuchos estão acabando. Servir de holofote para escândalos como seu trauma de infância é uma técnica das mais comuns entre celebridades, mas nem todos podem usufruí-la. Um exemplo é a família de Benjie, formada pelo pai psicólogo de TV (John Cusack) e a mãe depressiva (Olivia Williams). Eles escondem, como todos, muitos segredos. Porém, uma coisa que eles não toleram é que um de seus membros tente acabar com a reputação da família. O ego mais uma vez.
Aos poucos a trama de Mapas para as Estrelas vai se revelando, mas isso não é tão relevante quanto continuar acompanhando a linha de raciocínio daquele universo peculiar com seu hedonismo auto-destrutivo misturado de sadismo involuntário, onde matar um cachorro (ou uma criança) significa um pouco menos do que um incômodo. Às vezes destruir um planeta ou um satélite só ganha relevância em como isso afeta a figura celeste que este circundava. Costumamos chamar celebridades de estrelas (ou astros) pela referência ao seu brilho. Aqui a referência é a massa gigantesca da imagem pública construída cuidadosa e constantemente em um trabalho de manipulação incessante. Quanto mais massa (leia popularidade) um astro possui, mais gravidade sobre os outros "planetas" ele terá (leia influência ou admiração).
Porém, ao mesmo tempo que ter um ego poderoso parece ser vital naquele ambiente, este é que parece dirigir a vida de fato dessas pessoas, e tudo o que o afeta parece retornar como uma ameaça. Dessa forma, ter um papel negado em um filme é quase tão doloroso quanto ser apunhalado pelas costas. Cronenberg tece esse sentimento por todo o filme, mas soa espalhafatoso demais, jogando peças demais no tabuleiro. Quando a cena do assassinato acontece, já é muito tarde, mas mesmo assim ela funciona por tudo o que representa em metalinguagem. Não à toa, usar "Carrie" Fisher (a própria) como a amiga da perturbada Agatha (Mia Wasikowska) vira uma referência incidental ótima à personagem homônima do terror de Brian de Palma (incluindo o detalhe perturbador da "menstruação").
Referências ao mundo do Cinema, como os diálogos, e detalhes do dia-a-dia dessas pessoas infelizmente acabam apenas servindo de pano de fundo para o terror pretensioso do diretor. É um ótimo filme, tenso, que incomoda pelo senso comum, mas não constrói nada muito sólido em cima do seu próprio senso do que é existir naquela realidade.
# Life Itself - A Vida de Roger Ebert
Caloni, 2015-03-22 cinema movies [up] [copy]Life Itself é uma experiência divertida e monótona ao mesmo tempo. Divertida porque acompanhamos a vida de Rober Ebert -- um dos críticos mais famosos e conceituados no mundo, falecido em 2013 -- desde quando começou a escrever. E o sujeito era um... como dizer isso sem soar xulo? Porra-louca. Estava sempre no bar, saía com mulheres não-convencionais na maioria das vezes, e virou um alcóolatra crônico. Ou seja: o estereótipo de um escritor bem-sucedido.
A parte monótona são as inúmeras tentativas, na maioria das vezes frustradas, do diretor Steve James tentar entender a partir de testemunhos de seus amigos, conhecidos e colegas de serviço quem era o profissional Roger Ebert. Sem ter um roteiro definido, Steve começa a filmar quando Ebert já está internado pela sexta vez em decorrência de complicações do tratamento de um câncer. Sabemos que não há muito tempo, então a câmera apressadamente dá seus pulos para o passado, mas logo volta para o iminente presente e suas consequências. A impressão geral é a de que não faz sentido um filme sobre um crítico de Cinema, e que agora é tarde demais.
Por que não faz sentido um filme sobre um crítico? Porque críticos no mundo real são irrelevantes. Tudo o que poderíamos sugar da mentalidade de um crítico está em suas palavras já ditas ou escritas. Acompanhamos pequenas passagens de seu livro auto-biográfico que dá nome ao filme e pequenas passagens em suas críticas dos filmes mais conhecidos. Vemos o crítico na televisão com seu companheiro de longa data -- também crítico -- Gene Siskel. Juntos eles conseguiram popularizar a crítica cinematográfica nos mesmos moldes da lendária Pauline Kael (embora Kael, na visão do documentário, e apesar de seus textos fluidos e de fácil assimilação, fosse articulada demais para se auto-denominar popular). Claro, televisão aberta é a coisa mais popular onde poderemos encontrar dois críticos de Cinema falando das estreias da semana. O fato de ambos serem dois dos melhores críticos norte-americanos ressalta o enorme abismo entre arte e entretenimento que os dois tentaram diminuir por duas décadas.
O que é fascinante em Life Itself é perceber as tentativas de Ebert em se aproximar da sétima arte e aproximá-la do público e dos próprios artistas. Dessa forma o vemos formando laços de amizade com cineastas conhecidos e amadores (incluindo um certo Martin Scorsese), realizando eventos onde as pessoas iam assistir filmes para analisá-los quadro-a-quadro e, por fim, escrevendo um blogue freneticamente em seus últimos anos de vida.
Aliás, um blogue é o sinal de que os tempos estão mudando mais uma vez. Se beneficiando imensamente do seu terceiro ato impecável, o documentário expõe a construção do novo saite Roger Ebert.com e a criação de uma equipe de colaboradores que irá manter viva a imagem das dezenas de críticas que eram publicadas por mês pelo próprio Ebert por muito tempo. A popularização da conversa sobre filmes na blogosfera é o que me trás a escrever em meu próprio blogue. A cada dia mais pessoas contribuem para aumentar esse coro que deseja muito mais do que "se sentir bem com um filme". Queremos esmiuçar do que ele é feito, como é possível que obras se mantenham novas ainda depois de séculos de existência. O que há do outro lado? Talvez a história de um velho crítico não seja de fato muito relevante, mas sim a história do que a crítica por ele construída gerou ao redor do mundo.
# O Profissional
Caloni, 2015-03-23 cinema movies [up] [copy]Quando descobrimos que Luc Besson escreveu e dirigiu "Léon", ou O Profissional, é de ficar boquiaberto como o diretor perdeu a mão por tantos anos, acertando aqui e ali somente (Joana dArc é um ótimo exemplo).
Porém, mais fascinante é como esse filme se desenvolve como ação. Há uma sequência inicial de perder o fôlego que de quebra é econômica em explicar como aquele universo onde a história se passa é realista, mas não tão realista. Há um pouco de humor, mas ele vem desse tom fantasioso, um tom bem sutil, mas etéreo, que preenche a película em todos os momentos que alguma coisa acontece. Incluindo, claro, a trilha sonora, magistral e tematicamente penetrante.
Para popular esse cosmos do quase real e um pouco fantasioso são escalados três nomes de peso. Ou, deveria dizer, dois nomes e meio. Jean Reno é supremo em sua determinação em se transformar em Léon, o matador profissional que não fala bem inglês (e nem sabe escrever), mas mata como ninguém. Nas horas vagas rega sua planta, faz seu exercício diário (mais tarde vamos entender por que ele é tão importante) e dorme no sofá, sempre com uma arma do lado. Suas poucas palavras dizem tudo o que é preciso. A parte mais movimentada de sua vida parece residir em seu cérebro. Pelo menos até o momento em que ele começa a se envolver com Mathilda (Natalie Portman), uma garota de 12 anos sexy. Sim, sexy, e é isso que Luc Besson quer que acreditemos. Afinal de contas, vivendo naquela família disfuncional onde drogas, sexo e a construção de uma fachada maquiada que esconde a miséria dessas pessoas, não duvidamos que uma criança já cresça corrompida. Mas não é só por isso. Investindo pesadamente em tomadas que focam o rosto de Mathilda, brincando com seus lábios soltos, mostrando a garota quase sempre em posições sugestivas, dizendo coisas como "acho que me apaixonei por você" de uma maneira mais erótica do que inocente, é difícil não construir uma Lolita em cima da figura sugestiva (e eficiente) de Portman, na época realmente beirando seus 12/13 anos.
E para finalizar, o ápice da loucura realista: um policial corrupto do alto escalão. Gary Oldman é Stansfield, um cara que não se intimida de matar toda uma família por 10% de pó e no final deixar um dos seus capangas para explicar "exatamente o que foi feito" naquele apartamento, agora esburacado até o teto (aliás, outra sequência tensa que me faz ficar triste por Besson não se envolver mais por projetos de ação, e por Michael Bay o fazê-lo). Stansfield é o vilão da maldade pura. Ele não tem qualquer objetivo senão permanecer sendo o topo da cadeia alimentar. Sua loucura se reflete em sua maneira de dialogar, de se vestir, de se portar. Os movimentos precisos das expressões de Gary Oldman colocam em evidência a capacidade de se adaptar ao personagem desse ator. Desde, é claro, que exista alguma esquisitice, velada ou completamente aberta (esse é o caso aqui).
E qual é a história? Quase nenhuma. Não precisamos de muita. É um plot clássico de polícia vs bandido, onde a polícia está corrompida e o bandido não está sendo caçado por ser um fora-da-lei, mas por mexer com os caras errados. Besson sabe disso e se mantém sabiamente econômico do começo ao fim. Apenas como pano de fundo de motivações, há uma lei moral invisível que Léon parece seguir, e podemos notar em sua necessidade de proteger Mathilda sem de fato se tornar sua amante. Lógico, você diria: ele é apenas um ser humano sadio que sabe que fazer sexo com crianças é errado. No entanto, naquele universo tão fantasioso quanto cruelmente realista, acaba se tornando uma marca forte de caráter. Infelizmente, muitos seres humanos na vida real carecem dessa premissa básica.
O clímax do filme se apresenta como um anti-clímax premeditado por nós pelos sinais que a narrativa nos apresenta, seja pelo aspecto cansado do protagonista, ou pelo modo como a câmera caminha em direção à sua redenção, deixando um rastro de ódio que irá virar uma bala letal. Em câmera lenta, claro. Estamos assistindo à perda do heroísmo. Mas por um bom motivo. O que faz toda a diferença do mundo, e o que difere os filmes enlatados de ação em que não damos a mínima para o destino dos seus fracos personagens, e a curva dramática de uma pessoa complexa por dentro, simples por fora. Exatamente o oposto de uma planta.
# Woody Allen: A Documentary
Caloni, 2015-03-23 cinema movies [up] [copy]Espero que esse não seja o primeiro, muito menos o último dos documentários a respeito do cineasta/comediante/músico de jazz Woody Allen. A direção e o roteiro de Robert B. Weide é tão óbvia e caminha por tantos lugares-comuns que fica a dúvida se ele realmente tem alguma conexão com Allen ou foi apenas um projeto encomendado pela BBC.
O filme se resume em recontar a história já conhecida (e revista algumas vezes) do comediante-escritor que é obcecado pela morte desde quando era criança. Através de depoimentos e algumas transições elegantes (como ao mostrar diversas manchetes sobre o "fenômeno Woody Allen" entrando dentro do O de Woody), sendo que um dos testemunhos obviamente é o próprio Allen, seja em arquivo ou na atualidade, o longa não se preocupa em mostrar nada de novo. Nem um pensamento, uma reflexão. Nada. Apenas um punhado de momentos em seus filmes que refletem sua personalidade que por sua vez volta para os filmes, suas mulheres, seu caso com a filha adotada, sua transição da comédia para dramas mais sofisticados (como o ambicioso Match Point) e pela sua fissura atual de fazer um filme por ano. Até o podcast do site Cinema em Cena sobre o cineasta se sai melhor, desenvolvendo uma questão muito interessante acerca de quem é a pessoa adúltera e como isso não tem qualquer relação com o artista.
De qualquer forma, Woody Allen: A Documentary pode ser pensado como um "Woody Allen para dummies", pois revela a ascenção e a manutenção de um ícone da comédia em um ícone do Cinema. Alguém que é relevante até hoje, e apesar de negar sua genialidade, sempre terá seu lugar entre os cinéfilos de carterinha.
# O Beijo da Borboleta
Caloni, 2015-03-25 cinema movies [up] [copy]O Beijo da Borboleta é um filme com ares de independente, e o que comprova isso é sua trilha sonora. Nenhuma produção usaria músicas tão manjadas, tão fáceis e tão perfeitas para cada momento da história que se abre em torno de duas garotas. As músicas constroem momentos de videoclipe para duas personagens reais. O resultado só pode ser traduzido, talvez, como tenso.
Amanda Plummer (a garota do começo de Pulp Fiction) se desfaz de todo o pudor moral e psicológico para viver com todas suas forças a impulsiva, energética, sensual e faladeira Eunice. A cor do seu cabelo, dos seus olhos se completam com seu sorriso e seus lábios se mexendo. Sua capa verde e sua baixa estatura nos faz confundi-la com um gnomo, ou uma imagem idílica de alguma figura irlandesa. O inglês falado aqui não é simples, é regional, e essa escolha complementa o aspecto independente de sua trajetória.
E "independente" é a palavra-chave, o caminho correto a se seguir, como cada nova cena do diretor Michael Winterbottom comprova. Eunice é a garota errante na estrada procurando sua amada Judith de posto em posto. Acaba encontrando Miriam (Saskia Reeves), que logo se apaixona. Miriam é a submissa que pretende aprender com sua mestre. Nos encantamos com a capacidade da garota de mudar sua percepção do mundo apenas por Eunice. Por que digo isso? Pelo simples fato de Eunice matar as pessoas, e não conseguir parar de fazer isso. Miriam a ajuda, vira sua cúmplice, e viajam sem destino no melhor estilo road movie, que é o sub-gênero que o filme esperava seguir desde o princípio.
E, mais uma vez, o sub-gênero correto. Não nos importamos com o andar da história, o que vai acontecer. Desde que aconteça. E perto de Eunice as coisas sempre acontecem, sempre muito rápido e muito intenso.
# Vício Inerente
Caloni, 2015-03-27 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Paul Thomas Anderson volta ao seu estilo Boogie Nights e, de certa forma, Magnólia, com esse Vício Inerente. A história gira em torno de Larry "Doc" Sportello (Joaquin Phoenix), um hippie, viciado em diversas drogas e detetive particular nas horas vagas. Horas vagas essas que se tornam uma constante quando ele vai pegando três casos de uma só vez que parecem estar ligados em torno da persona do empreiteiro Mickey Wolfmann. Tudo começa quando sua ex-namorada, Shasta (Katherine Waterston), lhe faz a mais estranha das visitas dizendo que Mickey é seu novo amante e pede que Doc impeça que a esposa do empreiteiro e seu amante internem-no em um asilo. Apenas essa premissa já seria complicada, mas as coisas vão piorando.
Envolvendo na trama o detetive durão Christian F. "Bigfoot" Bjornsen (Josh Brolin) e uma dezena de atores conhecidos com papéis que complementam a história de maneira não-essencial, o filme é basicamente uma "viagem" completa que contém a atmosfera de sua época (anos 70) com seres surreais, incluindo mulheres libidinosas passeando pelos olhos do protagonista. Quer dizer, isso é o que vemos e que parece estar se passando na cabeça do nosso "herói", pois não há nenhuma cena sem sua presença. Doc, seu ar cansado digno dos filmes noir, é o centro de sua história e todos giram em torno dele, incluindo sua própria narradora onisciente, interpretada como uma mulher (Joanna Newsom) que decide seguir sua vida e narrar seus pensamentos.
O roteiro foi adaptado por Thomas Anderson a partir do romance homônimo de Thomas Pynchon, mas há tantos elementos visuais durante a narrativa que a história, "inerentemente" complexa, acaba ficando em segundo plano. Uma decisão mais inteligente que, por exemplo, Trapaça (2013), pois não usa sua trama para revelações finais previsíveis. É muito mais prazeroso sentir a atmosfera criada por Anderson e sua equipe, como película granulada, os figurinos femininos estonteantes (ou até as roupas surradas de Doc Sportello, que acompanham sua mente desgastada), a fotografia que se aproveita da falta de luz para fazer surgir o tom noir.
No entanto, por mais belas que sejam as cenas, elas se tornam cansativas (talvez de propósito?) pela falta do que dizer, ou por querer dizer muitas coisas sem um foco. Nesse sentido a estrutura de Vício Inerente parece querer sugerir a própria psique de seu personagem, uma pessoa que nunca conhecemos de fato e que parece estar alheio à sua própria existência. Doc está preso em sua própria época (há uma hora em que ele sugere brincando estar em uma máquina do tempo) e o filme reflete isso com todas as forças de sua arte.
# Minhas Tardes com Margueritte
Caloni, 2015-03-29 cinema movies [up] [copy]Esse é um filme doce e maniqueísta. Porém, seu maniqueísmo só se reflete nos personagens secundários, aqueles que são criados para criar tensão e colorir o universo de Germain Chazes, um faz-tudo que vive em um trailer. Todos zombam de Germain por ser ignorante, e sua ignorância é explicada através da diferentes flashbacks de sua infância onde ele é maltratado pelos professores e por sua própria mãe, que o considera um acidente. A relação entre os dois é a base para entendermos a dinâmica de sua nova amizade com Margueritte, uma senhora que se senta à tarde na praça da cidadezinha onde moram para observar os pombos e realizar uma atividade para ela prazerosa e para Germain uma verdadeira tortura: ler. Porém, à medida que ele aprende que ler é enxergar o mundo à sua volta através de símbolos cuja tradução lhe foi negada desde criança, Germain passa a se tornar o que chamamos de homem completo, o que é interessado em sua vida e busca seus próprios interesses. É capaz de se soltar das amarras nefastas da ignorância graças ao convívio com uma pessoa que, apesar de estar no fim da vida, ainda tem muito a oferecer a qualquer um que tiver a paciência de parar e ouvir.
O filme de Jean Becker baseado em um livro tenta com uma certa insistência te levar às lágrimas, mas sem sucesso. No entanto, as interpretações do gigantesco Gérard Depardieu e da mirrada Gisèle Casadesus funcionam em uma dinâmica invejável, pois apesar de todos os clichês algo novo é criado. Não dá para negar que é o próprio Jean Becker que consegue a façanha, que junto com seu editor, Jacques Witta (trilogia das cores), liga as cenas com uma fluidez que faz a história passar bem rápido sem nunca se esquecer de pausar nos momentos importantes. Dessa forma, o dia-a-dia de Germain indo no bar, na feira e na praça pode estabelecer uma rotina de forma eficiente, mas quando este resolve abrir o seu presente de noite, um dicionário, e procurar nomes próprios, o filme dá todo o tempo do mundo para respirarmos junto com a curiosidade (e a frustração) de Germain.
Obviamente concluindo no formato dramalhão -- e ainda sugerindo um passado humanitário para Margueritte -- Minhas Tardes com Margueritte já conseguiu ficar nos trilhos por um bom tempo de projeção a ponto daquelas duas pessoas serem importantes demais para deixarmos de lado seus destinos. Dessa forma, não importa o resgate no hospital, tanto quanto não importa uma morte relevante. O que importa é que continuemos a olhar para esse mundinho por um pouco mais de tempo, só para sairmos satisfeitos de como as coisas se encaixam com uma perfeição suspeita, mas cativante.