# ARQ

Caloni, 2017-04-01 cinema movies [up] [copy]

ARQ é mais um experimento em filmes de viagem no tempo. Produzido pela Netflix e escrito/dirigido por Tony Elliott (Orphan Black), ele nos leva em uma história que mexe com "loops" temporais que se tornam eficientes como um thriller e um filme de ação estilo videogame. Porém, ele não consegue transparecer tanta complexidade assim conforme nos acostumamos com suas regras e entendemos que o roteiro no fundo não passa de uma ideia para um jogo de computador.

Tudo começa quando um casal, Renton e Hannah, acordam em uma manhã de um futuro pós-apocalíptico e são presos por três ladrões em busca de comida e dinheiro. Quando algo dá errado e Renton morre, tudo começa novamente, só que ele sabe que se trata de uma repetição. A história vai se desenvolvendo a partir dessa premissa e vamos descobrindo a cada nova iteração mais detalhes dos personagens e do funcionamento da máquina de energia infinita que dá nome ao filme.

Com um pé em No Limite do Amanhã, um sci-fi protagonizado por Tom Cruise em que apenas ele consegue se lembrar das iterações de uma batalha contra alienígenas, aqui a analogia com jogos de videogame fica clara quando vemos que a máquina responsável por essa anomalia temporal salva cada dia que se repete em seus arquivos. Além disso, a velha história bobinha de revolucionários contra uma grande corporação que domina todo o mundo se repete, e logo vemos que há mais repetições no cinema do que é possível imaginar nesse filme.

A direção faz junto com a edição um trabalho eficiente de ritmo e tensão, quase sempre com uma câmera na mão e cortes rápidos, que dão tempo para tantas repetições que começamos a sentir o mesmo drama que viveu Bill Murray em O Feitiço do Tempo (mais um "loop"), em que o sentido de tudo aquilo desmorona aos poucos. No entanto, o sentido de localização do filme é tão vago que depois de vermos os mesmos ambientes dezenas de vezes ainda fica difícil entender a geografia daquela casa.

Curiosamente, apesar de tantos "loops", o casal principal não se perde, mas se localiza. Talvez pelo fato de estarem fazendo parte de um videogame, pensando sempre de forma rápida antes que um deles perca a vida e a mesma fase seja reiniciada, a interação entre eles fica cada vez maior. Há também discussões repetidas, como o drama do casal que se separou no passado e se a máquina seria útil nas mãos dos revolucionários. Apenas uma das questões avança, e é a menos interessante delas.

De qualquer forma, as iterações em si conseguem criar um filme de ação e suspense ligeiramente eficientes, e por vermos os personagens interagirem tantas vezes da mesma forma facilita a identificação de cada um deles, mesmo sem sabermos direito o que significa cada um deles nesse mundo, exceto suas sinopses de personagens de... acertou: videogame.


# Netflix Live

Caloni, 2017-04-01 cinema series [up] [copy]

Prepare-se para o "streaming" mais emocionante já lançado por um serviço de "streaming". Netflix Ao Vivo possui momentos do cotidiano que podem se tornar emocionantes, divertidos, hilários e até empolgantes!

Através da narração inspirada do dublador da série animada BoJack Horseman, vamos acompanhar momentos ao lado de figuras marcantes, e muitas vezes essenciais. Estaremos cara a cara, e ao vivo, do lado de um micro-ondas, uma torradeira, uma luta de polegares, o interior de uma geladeira -- com uma salada de uma tal de Jéssica -- palavras cruzadas e quebra-cabeças, e até um motorista tentando estacionar o carro!

Dentro da Netflix, começamos a entender de onde saem as brilhantes ideias. Adam Sandler realiza uma luta de polegares com uma desconhecida. Um rapaz arremessa as peças de um quebra-cabeças para o chão em um acesso de raiva inesquecível (e revisto em câmera lenta!). Um estagiário aponta dezenas de lápis em um provável setor de apontamento de lápis.

A narração de Will Arnett não para por aí. Ele comenta fatos obscuros, desnecessários e descartáveis sobre sua própria vida, teoriza a vida daquelas pessoas e objetos que estamos observando. Chega a ser uma poesia sobre o vazio do tédio, ou a capacidade da mente humana em estar em constante movimento. É um trabalho ambicioso mesmo para os padrões Netflix (que "arrisca" tudo que pode em uma série que recicla e enlata resquícios dos anos 80 para seus nostálgicos fãs).

Se você está entediado com a vida, não sabe que filme assistir e não possui nenhuma habilidade na vida para fazer algo de útil para o mundo, junte-se a nós! Aproveite cada segundo dessa empolgante experiência analisando o vazio da existência humana.


# O Doador de Memórias

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A ideia mais interessante por trás deste filme é usar a analogia de cores para exemplificar por que uma vida em uma sociedade igualitária é como uma vida preto e branca fosca, enquanto uma vida desigual, cheio das nuances, dores e prazeres dos seres humanos "de verdade" é uma vida cheia de cores e luz. Infelizmente, essa analogia não apenas está errada como é mal empregada no próprio filme, e nos tenta fazer acreditar que nosso conhecimento sobre cores vem das nossas memórias (como se bebês não soubessem o que são cores ou herdassem memórias de seus pais). E isso é apenas a ponta do iceberg em um filme que tenta criar uma alegoria ambiciosa demais a respeito de uma distopia que mistura de maneira fragilizada Admirável Mundo Novo, THX e até "Brazil: O Filme". Bom, não é sempre que se pode bancar Aldous Huxley e não levar na cara por sua petulância.

A história é narrada e explicada por todos os personagens a todo momento. Até o personagem interpretado por Jeff Bridges consegue tornar Jeff Bridges chato e monótono. Se trata de um mundo livre de conflitos, onde todos são iguais, blá blá blá, e para que isso aconteça há doutrinamento, remédios, regras de convívio que são ensinados do nascimento até a morte, e a santa ignorância. Apenas uns poucos selecionados (criadores desse mundo?), o anciãos, possuem a chave do conhecimento: livros e memórias. E quando digo memórias digo literalmente. São momentos vividos por outras pessoas passado de geração em geração por um mecanismo não-explicado, e se resumem naqueles vídeos que a família compartilha nas redes sociais. Claro, há também memórias que lembram o lado negro da humanidade: guerras, extermínio de animais pelo lucro e, junto deles, a sensação de que existe dor, mas também prazer.

Essa dualidade de emoções e as memórias passadas vai sendo explicada e passada de um ancião (Bridges) para um garoto que não encontrou sua vocação (o personagem de Brenton Thwaites, Jonas), mas possui as quatro virtudes necessárias para receber memórias (já esqueci quais são; não interessa, pois não vimos nada disso no garoto). O antigo recebedor de memórias era a filha de Jeff Bridges, e aconteceu algo de ruim com a garota. Em um mundo onde os pais adotam seus filhos faz pensar por que Bridges pode ter uma filha, o que faz-nos pensar que toda essa loucura de mundo igualitário só existe dos anciões para baixo. Enfim, sabemos que uma utopia só consegue ser construída se existe alguém a controlando.

A melhor fala do filme está em um diálogo entre Bridges e Meryl Streep (ah, ela está no filme; é a anciã-mestra ou algo que o valha). Quando questionada se esse controle é realmente o melhor para a humanidade, Streep tem a voz da razão quando diz que a maioria das pessoas são fracas e, quando dadas as opções para elas escolherem, elas sempre escolhem errado (os liberais americanos que o digam, agora que as últimas eleições pelos lados de lá elegeram o conservador republicano Donald Trump). Ironicamente, a própria Streep na vida real faz discursos a respeito de como é errado as pessoas pensarem diferente dela.

No entanto, este é um filme de ideias prontas, que não estão abertas a discussão. Assim como no mundinho do filme. E as atuações estão apenas repetindo o que seus personagens deveriam falar. E os acontecimentos estão apenas repetindo o que todos os filmes sobre esse tema já fizeram. Ou seja, um filme tão insosso que dá até pena de chamá-lo de ficção científica ou algo que o valha.


# Paradox

Caloni, 2017-04-01 cinema movies [up] [copy]

Paradox é o tipo de filme que vale a pena conferir pelos conceitos de seu roteiro. Ele é produzido em baixo orçamento, com fotografia de televisão, trilha sonora enlatada e atuações sofríveis. Porém, ignorando tudo isso, este é o filme de viagem no tempo que estava faltando: um que ironicamente evite nos colocar na velha questão dos paradoxos temporais.

Se mantendo o tempo todo em um laboratório subterrâneo, uma equipe inusitada de cientistas realiza a primeira viagem no tempo da história para constatar que a natureza humana é podre. Uma hora após ligar a máquina (e próximo do final do filme) praticamente todos estarão mortos por um assassino misterioso, que é o grande mistério que nossos heróis do passado precisarão desvendar se quiserem continuar vivos.

Porém, como eles próprios sabem, apesar de em vários momentos não admitirem, se a viagem no tempo é possível -- e ela é -- paradoxos não são permitidos. O que significa que a velha questão se destino existe está respondida: sim! E não há nada que possam fazer a não ser acompanhar os acontecimentos e entregar para nós, espectadores, o prazer de um "trash" focado mais em ideias em vez de sangue. Mas, ainda assim, escorre muito sangue.

A melhor diversão da história é acompanhar duas repetitivas situações: as constantes "gafes" de roteiro e um vídeo capturado do futuro. Através das gafes acompanhamos a primeira decapitação intertemporal (no melhor estilo jogos de videogames em primeira pessoa) e pessoas falando o que está acontecendo ("ele está olhando para nós", "isso está acontecendo mesmo"). Através do vídeo do futuro acompanhamos o personagem da cadeira de rodas, que se diverte em ouvi-lo repetir as mesmas frases que ele ouviu de si mesmo. E o que dizer de uma câmera digital em que o vídeo vai sendo restaurado na ordem e de uma equipe de supostos gênios que em vez de tomar decisões racionais a respeito do que sabem sobre determinismo (ex: evitando a todo custo repetir o que aconteceu) preferem simplesmente entrar em pânico; o mesmo pânico que encontraremos uma hora depois. Gênios!

Mas estou estragando parte do prazer que é assistir a um filme desses, que é ir tentando desvendar a mente das pessoas envolvidas em uma aventura muito doida. E, depois de assistido, você ainda terá o prazer de debater horas a fio com seus amigos a respeito da impossibilidade de paradoxos em viagens no tempo. Portanto, recomende esse filme. Eu estou apenas passando adiante. Ainda não consegui viajar no futuro para ver o que vai acontecer com o passado.


# Filhos de Bach

Caloni, 2017-04-04 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Filhos de Bach, uma co-produção entre Brasil e Alemanha, é um filme que tenta alçar voo muitas vezes, mas sempre é sabotado por sua história episódica, que também é simplista e desonesta. Tudo pelo objetivo de tentar mostrar duas culturas bem diferentes entre si, além de uma aparente visão social.

A história tenta de forma livre unir as histórias de órfãos alemães e brasileiros. Os alemães, uma dupla, viajaram o mundo com seu sucesso reinterpretando músicas de Johann Sebastian Bach, até sua eventual separação, quando um deles se casa com uma brasileira e vive o resto de sua vida em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil. Quando vem a falecer deixa de herança para seu antigo companheiro, Marten Brückling (Edgar Selge), uma partitura inédita e inestimável do músico que tanto admiravam.

Sendo obrigado a ir para o Brasil receber sua herança por "ser uma obra de arte", ele é assaltado e tem sua partitura roubada, além de seu instrumento. Ficando no país mais do que devia, vai aos poucos se habituando à cultura e à região através de Candido (Aldri Anunciação), o bem-humorado morador da cidade que fala alemão graças ao falecido músico. Não demora muito para que ele comece a ensinar crianças de um centro de convívio, incluindo, claro, os dois irmãos delinquentes.

Uma pergunta fica no ar enquanto avançamos na história: se já havia um músico alemão morando por quarenta anos na região, por que apenas Candido é o único a ter esse conhecimento?

De qualquer forma, a direção do alemão Ansgar Ahlers é ágil e atravessa rapidamente seu início, até se esquecendo de pontuar, talvez, que ele toca ao lado do cemitério como uma forma de se comunicar com o ex-companheiro, embora não saiba disso. Da mesma forma, o Ahlers consegue extrair o máximo de informações visuais que ajudam a explicar de maneira muito mais razoável do que os diálogos que ouvimos, que preferem soar engraçadinhos sem conseguir ser engraçado e sem querer dizer muita coisa, apenas se focando nessa diferença entre o alemão e o português brasileiro.

Mas este é também um filme que atravessa sua história de maneira burocrática, sem nunca ter um momento em que ele se solte de seu esquemático roteiro, que vai inventando motivos esdrúxulos para que o músico continue no Brasil e até parta para uma empreitada arriscada demais para quem ainda tem medo de estar em outro mundo.

De qualquer forma, este também é um filme bonito, que extrai os cartões postais de praxe de uma Ouro Preto chuvosa e vazia. Além disso, provavelmente a tecnicidade sonora alemã foi responsável dessa vez por conseguir colocar em um filme brasileiro um design de som inteligível, algo importantíssimo para um filme que mexe tanto com música.

Ainda assim, como havia falado, nada em Filhos de Bach empolga muito. Nem seus momentos finais. Isso porque seus fundamentos estão quebrados. Eles se baseiam em roubo e chantagem, que não são perdoáveis por serem feitos por personagens que não transmitem empatia alguma. Não sabemos seu passado, só sua condição. Isso torna a experiência genérica a ponto de não nos importarmos. O que acaba não sendo uma bela mensagem para um filme que fala da esperança das crianças.


# Time Lapse

Caloni, 2017-04-04 cinema movies [up] [copy]

Mais um filme de viagem no tempo. Dessa vez quem viaja é só a luz. Uma câmera tira fotos 24 horas no futuro e entrega para três jovens que perderam a capacidade do livre-arbítrio. Isso porque agora eles precisam reproduzir a foto tirada custe o que custar, se não quiserem morrer.

Time Lapse tem o charme musical e temático daqueles thrillers onde algo muito estranho vai ficando ainda mais estranho conforme a história vai avançando. No entanto, ele se rende a um roteiro estruturado demais, que apenas vai passando dia após dia, e que mesmo com o risco eminente de dar tudo errado, prefere fazer um joguete de triângulo amoroso. É como se a câmera que tira as fotos, ou seu inventor, já soubesse que seu melhor uso é materializar fetiches dos espectadores.

Ele também conta com um namorado pintor que é o oposto do estereótipo de artista. Frio e calculista, ele sempre coloca na balança a situação sem nunca sentir muito mais que um leve desapontamento. Até quando sua namorada precisa beijar seu (suposto) melhor amigo em sua presença.

O filme também conta com um apostador extremamente estúpido, daqueles que acabou de achar o ganso de ovos de ouro e agora sempre vai comprar pãezinhos todas as manhãs com um quilo de ouro debaixo do braço, e que em vez de pensar em ganhar na loteria de vez prefere brincar de levantar suspeitas da máfia das corridas de cachorro.

O que de certa forma demonstra que, mesmo que as pessoas tivessem o poder de ver o futuro, fariam tudo exatamente como seria esperado que fizessem. Ao mesmo tempo, o filme acaba virando uma doce e sagaz crítica de como a ambição desmedida das pessoas as faz se tornarem escrava do tempo, e não mais donas do seu próprio destino.

E tudo isso em um filme bobinho, que apesar de bem conduzido, também não consegue evitar ser bobinho o tempo todo. Parece que o roteiro foi sendo escrito uma página vinda do futuro por vez, e não havia nada a fazer.


# Ultimate Beastmaster - Primeira Temporada

Caloni, 2017-04-04 cinema series [up] [copy]

Esta não é uma competição corpo a corpo, nem uma avaliação de força, nem de habilidades esportistas. É, acima de tudo, uma ode ao ser humano, como as olimpíadas deveriam ser antes. Uma ode à capacidade humana, de se sobressair, vencer desafios e, o principal: vencer a si mesmo.

São 108 competidores buscando uma vaga em uma final com apenas nove deles, que irá trazer o grande vencedor dessa primeira edição de um conjunto de provas que equilibram habilidades em usar de forma inteligente a energia e a saúde do corpo desses atletas. Os escaladores se darão melhor, pois quanto mais força e jeito nas mãos e menos peso para elas, melhor.

Há competidores e comentaristas de seis países: Brasil, México, EUA, Alemanha, Japão e Coreia do Sul. Todos parecem focados em dar o melhor de si, e mostrar que já são vencedores na vida real. É esse o tipo de ser humano que essa competição traz. Alguns são profissionais, outros amadores, e todos apaixonados pela vida.

Com uma edição ágil, a série consegue trazer os melhores momentos durante as provas e vai se tornando aos poucos emocionante, sem nunca apelar para os exageros. Eles parecem acontecer naturalmente, sempre próximo do final, em momentos dramáticos e inspiradores.

Ultimate Beastmaster é sobre vencer, mas não tanto outros competidores, mas principalmente você mesmo. E deve inspirar muitas pessoas a se manter em forma pelo simples prazer de ter a saúde bombando em suas veias.


# Além das Palavras

Caloni, 2017-04-05 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Além das Palavras, biografia da poetisa norte-americana Emily Dickinson, é um trabalho que já estabelece desde sua primeira cena a posição que a mulher tem na sociedade em que ela viveu. O filme começa em uma escola apenas para mulheres, onde chega a hora em que elas devem escolher que caminho seguirão: a salvação garantida de Deus ou se viver como pecadoras, esposas de seus maridos, na esperança do perdão final. Não há terceira opção.

E desde o começo Emily já não se encaixa nesse modelo onde a vida das mulheres, além de estar subordinada aos homens na Terra, também está subordinada às figuras divinas da mitologia cristã no Céu. Enquanto isso, uma nação também está aos poucos se formando, baseada em valores cristãos relativamente diferentes (o protestantismo) e questões sérias como escravidão, que serão tratadas adequadamente pela poetisa como equivalentes à situação da mulher, são vistas pelos homens como banal.

O filme consiste em martelar as situações sociais diversas vezes ao longo de sua esticada história, mas bastaria apenas um exemplo para percebermos toda a hipocrisia e preconceito do patriarcado: uma ópera. A mulher cantando nessa cena o faz de uma maneira intensa e apaixonante (e obviamente tem um talento absurdo). O diretor/roteirista Terence Davies nos mostra as reações da família de Emily. Separados por uma parede, os três filhos aplaudem empolgados, enquanto seu pai (Duncan Duff) não; ele desaprova mulheres se "exporem" dessa forma em público. E sua esposa, como a forma visual de enxergarmos isso, aplaude timidamente, embaraçada talvez por não poder se dar ao luxo de ter uma opinião. Porém, ao mesmo tempo, quando indagada pela cunhada em ser tão calada enquanto seus filhos de moral "flexível" expõem ideias de uma nova geração, ela garante a melhor frase do filme: "evito que meus preconceitos sejam entendidos inadvertidamente como opinião".

Davies estabelece nos melhores diálogos do drama uma dinâmica que consegue ser ao mesmo didática e empolgante, sem soar clichê e ainda conseguindo dar o tom da história. Apresenta com perfeição seus personagens através do que eles dizem, já que este primariamente é um filme de palavras. Porém, mais importante do que elas é quem as diz e em quais circunstâncias. E, "naturalmente", se quem as diz é um homem ou uma mulher.

E é interessante notar a atmosfera criada pelo filme para que tais opiniões sejam ditas. Estamos acostumados em outros épicos com a severidade de uma sociedade ainda muito engessada, mas não em ouvir pessoas à frente do seu tempo falarem em público, ou no meio do seio familiar. Embora em alguns momentos soe teatral ou literário, queremos conhecer essas pessoas justamente pelo que elas têm a dizer dessa época. E até pela esmagadora maioria das pessoas ser complacente com os valores morais vigentes, são justamente as vozes dissidentes que despertam mais o interesse (embora a questão da fé e da religião dos peregrinos americanos seja usada de maneira impetuosa e divertidíssima; os cristãos do novo continente possuem uma reverência irracional que é divertido de ver em embate com a mente da culta família Dickinson, e principalmente Emily).

Os três filhos da família Dickinson possuem um certo nível de liberdade por uma geração que não entende muito bem as mudanças que estão ocorrendo no mundo, mas a sociedade em que Emily viveu ainda estava muito aquém de suas ideias. De qualquer forma, Emily é vista como uma mente revolucionária de tantas formas e em tantos momentos diferentes que fica difícil não confundi-la com uma biografia exagerada, generosa demais. Os únicos momentos mais verdadeiros residem quando ela conversa com uma amiga mais liberal ainda, mas que, ao contrário de Emily, mantém seus pés no chão. A atuação de Catherine Bailey como Vryling Buffam estabelece com bom humor como as mulheres de mente livre deviam viver e casar na época. E, claro, nunca comentar em voz alta do lado de homens do seu tempo.

Mas apesar de sua amizade e dos irmãos quase esclarecidos, Emily ainda se diferencia por levar todas as questões muito a sério, lembrando uma Ayn Rand em um universo paralelo, se além de feia ela também fosse dramática (e poeta, e não filósofa). É curioso notar como seus pensamentos sempre ganham um tom enigmático em suas poesias, recitadas após cada novo evento em sua vida. Além disso, no filme é como se ela já nascesse com uma veia de escritora; uma escritora matutina (acordava às 3 da manhã e começava a escrever, enquanto o mundo dormia). A atuação de Cynthia Nixon consegue passar com propriedade um misto de genialidade, sagacidade e pessimismo, unidos a uma auto-estima deplorável (é aqui que acabam as comparações com a filósofa do Objetivismo).

A fotografia do filme usa a sobriedade do seu tempo, com cores muito discretas sobre sombras e um ambiente acinzentado. Apesar disso, um figurino quase onírico transforma vários momentos em quadros da época, seja nos detalhes do guarda-sol ou até nas expressões das pessoas (e o avanço no tempo e o envelhecimento feito através das fotografias da época que eram feitas dos membros da família). Há ainda uma formalidade que lembra nobreza britânica, mas muito mais perdida, ou ainda a se descobrir. O diretor nos remete a essa época com um realismo ideológico que transforma Emily em uma das porta-vozes do futuro, ainda que incerto.

Não há trilha sonora, exatamente como a vida naquela época. As exceções ficam por conta de uma visão da escritora com seu pretendido fictício e os momentos ao piano. E note a comparação que o filme faz entre uma personagem que é a antítese da poetisa cantando e tocando maravilhosamente e Emily, quando sua mãe a pede que toque um hino clássico, narrando durante o momento sobre a morte de um garoto (repare também que a outra personagem canta em alemão, que, de acordo com os americanos, é a língua ideal para o canto).

Cheio de virtudes técnicas e narrativas, Além das Palavras é um filme que exige paciência, mas que deve ser recompensada a cada momento em que vemos Emily Dickinson esboçar sua opinião e concluir em poesia. Uma biografia exagerada, mas apaixonante, intensa e, sobretudo, didática.


# Una

Caloni, 2017-04-06 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

"Una" é a possibilidade de um diálogo entre dois adultos sobre o que fizeram quando um deles ainda era apenas uma criança. Baseado na peça "Blackbird", de David Harrower (que assina o roteiro), a direção do estreante Benedict Andrews cria um drama intimista que possibilita que o passado ecoe no presente e, em retrospecto, a vida dessas pessoas tente fazer algum sentido.

A história sempre é narrada através desses ecos, trocando rapidamente entre passado e presente com flashbacks e memórias do evento traumático. Andrews realiza cortes secos, como o bater de uma porta, e até cenas que duram pouquíssimos quadros, como apresentando o ápice de uma festa, que criam um ritmo ágil e que pula para os momentos mais interessantes, quando Una e Ray conversam a respeito do passado. Apesar de já estar claro o suficiente para o espectador nos momentos iniciais o filme insiste em tornar cada vez mais óbvio no desenvolvimento que Una (Rooney Mara), hoje crescida, foi abusada sexualmente quando tinha treze anos por um adulto: o seu vizinho Ray (Ben Mendelsohn). Essa é a versão oficial, e todo o clima do filme adota corretamente a seriedade da situação. No entanto, o reencontro entre os dois após mais de uma década possibilita que ambos revivam aquela época em suas mentes e tentem resgatar o que havia de bom em uma relação vista hoje pela sociedade como grotesca (antes do século 20, casamentos entre adolescentes e adultos era comum; embora a escravidão também fosse).

Ambientado na maior parte do tempo na empresa que Ray trabalha, há um clima de perseguição em boa parte do filme por conta dele ter sumido de uma reunião vital para o futuro da empresa. Da mesma forma isto cria um clima de urgência a respeito das pendências do passado, além do uso acertado de luz e sombra, com diversos cantos escondidos do dia-a-dia da empresa, e uma ótima metáfora sobre como foram os três meses de romance entre os dois, sempre se escondendo nas sombras e de olhares reprovadores ou desconfiados.

Ao mesmo tempo, o uso de flashbacks na forma de memórias de ambos mantém o passado sempre como referência. É aquele sentimento "como se fosse ontem" sendo utilizado em praticamente todo o filme, o que ajuda a nos situar sobre os detalhes que vão sendo abertos e ao mesmo tempo separa o filme da peça de onde se inspirou. Essa possibilidade de viajar no tempo e espaço é o que torna o filme o menos teatral possível, mas ainda assim mantendo toda a intimidade de uma conversa a dois pelo decorrer de um longo dia. E, de maneira bem gráfica, distingue entre o passado ensolarado e o presente acinzentado.

E por falar em tempo, a trilha sonora sóbria praticamente evoca um ritmo de "tic-tac", como se, no final das contas, o grande martírio para Una fosse ter vivido todos esses anos após seu trauma sem nunca ter a possibilidade de sonhar com um futuro diferente do que foi seu passado. Nesse sentido, a atuação de Rooney Mara acaba sendo exagerada, pois coloca sua personagem não como um ser vulnerável, mas antes como uma alma atordoada e psicologicamente instável, mas, ainda assim, com uma auto-estima que desafia o bom senso do que é esperado de alguém que tenha sofrido situação semelhante.

Talvez por isso que o filme nunca tente de fato pender para um dos lados, pois não é possível ser ao mesmo tempo parcial e justo. O grande trunfo de "Una" é observar de maneira fria como um acontecimento como esse pode ser prejudicial para todos envolvidos, e nunca ser uma coisa boa, ainda que traga lembranças que podem ser confundidas nostalgicamente com algo positivo. Como o próprio Jay pergunta, como que Una tem ideia hoje de como ela era aos treze anos? Apenas ele sabia, pois, obviamente, o controle estava apenas nas mãos de quem já tinha a consciência plenamente desenvolvida.

"Una", apesar de abrir possibilidades de diálogo sobre um tema polêmico, se torna um terreno infértil quando decide avançar na questão, pois o máximo que consegue extrair de sua história é a inevitável e repetitiva dor de algo que aconteceu e que, não importa o que os envolvidos façam dali em diante, em nada irá mudar o que se tornaram. É um filme de alma pessimista que, assim como Confiar (David Schwimmer, 2010), apenas serve de alerta social. E ingênuo. Quer dizer, é como se um pedófilo assistisse o filme e colocasse sua mão na consciência.


# Variações de Casanova

Caloni, 2017-04-11 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Variações de Casanova consegue provar que a ópera, até mesmo a transformada em filme, não é desse mundo. Não o mundo de hoje. Ela é terrivelmente mais lenta que isso, e por isso mesmo alheia à sua existência. Mas, além disso, aqui temos uma versão de Casanova que está em descompasso com a visão positiva de conquistador de mulheres. É um moribundo, e isso sim, diz muito mais sobre a época em que vivemos do que uma ópera de Mozart.

Baseado em três fontes distintas e escrito pelo diretor Michael Sturminger, a criativa história usa a persona sensual do ator John Malkovich (Ligações Perigosas) interpretando em uma peça que mistura cenários reais e o palco, além de misturar personagens e o público. Os atores/personagens interagem com a plateia e até tornam seus assentos parte do cenário. As câmeras registram tudo como um show televisionado, mas uma edição inspirada une todas as três formas de enxergar essa história.

Casanova é o Don Juan plebeu que se ancorava na nobreza. Uma figura decadente na época que acumulava conquistas amorosas. Um "ninfomaníaco" de seu tempo que hoje é visto no filme como uma figura tão grotesca quanto trágica. Alguém que trouxe apenas dor para suas amantes e a si mesmo. Mas, assim como ele pontua na peça, a dor em si não consegue ser lembrada, mas apenas as circunstâncias em torno da dor.

Essa fascinação que sua figura exerce no imaginário coletivo tem seus dias contados no filme, que vai dilacerando em diálogos com uma misteriosa visitante (Veronica Ferres) a verdadeira faceta de alguém que "não consegue viver de repetições". Se trata de uma história curta alongada pelos inúmeros números musicais que nessa bagunça de unir teatro, literatura e cinema, se diverte imensamente mais que o permitido pela paciência do espectador.

O resultado é um filme sem muito o que dizer, e que contrariando o próprio Casanova, vive de repetições. E ninguém consegue viver de repetições. Nem mesmo em um filme.


# Better Call Saul - Terceira Temporada, Episódio 1: Mabel

Caloni, 2017-04-16 cinema series [up] [copy]

Better Call Saul está de volta. E como sempre é um prazer acompanhar os trabalhos de Mike Ehrmantraut. Sim, ele é o herói desse episódio piloto. Interpretado por Jonathan Banks como sempre, a direção de Vince Gilligan explora como sempre a persona de Saul Goodman, retomando o que vimos nos episódios anteriores, além de entregar um pouquinho do futuro Saul em seu finale pós-Breaking Bad.

Mas são as sequências no melhor estilo policial dos anos 80, sem nenhum diálogo, a parte fascinante desse episódio. Vemos Mike vasculhar seu carro em busca de uma escuta e executar ações que não são explicadas por ninguém após isso. O espectador tem que acompanhar e pensar junto do personagem, embalado como sempre por uma trilha sonora inspirada. Tudo isso faz do início da série apaixonante por natureza. Queremos mais cenas de Mike, mas ao mesmo tempo o drama principal de Saul Goodman precisa ser reconstruído, junto de sua "flexível" moral.


# Nota de 1000 Rúpias

Caloni, 2017-04-16 cinema movies [up] [copy]

Um pequeno conto indiano em formato de filme, narrado quase como uma peça de teatro com enquadramentos poéticos e dramáticos no melhor estilo Central do Brasil, Nota de 1000 Rúpias caminha pelo inevitável drama do povo indiano e sua pobreza explorada ou subjugada pelos ricos e poderosos e corruptos políticos e seus asseclas, igualmente alheios à imoralidade de suas ações.

O filme começa bonito e simples. Uma mulher que perdeu seu filho agricultor, que se suicidou depois de não conseguir pagar sua dívida ao agiota, ganha notas de 1000 rúpias de um político durante um discurso em seu vilarejo. Acostumada a gastar em torno de 2 a 3 rúpias diárias, no máximo, ela se vê agora com o grande problema de conseguir gastar aquelas notas graúdas no mercado de um vilarejo maior. Acompanhada pelo seu amigo e afilhado na prática, eles se veem em confusão quando são acuados por um policial que não possui o mínimo de decência ou respeito por pessoas simples e humildes.

A atuação da velha senhora é uma pequena pérola na primeira metade, que exige um folclore além do normal. Com tomadas coloridas com fachos de luz lúdicos que passam pelo seu dia-a-dia, essa parte é vital para a segunda metade, quando o drama se instaura, e o terror da impotência dos remediados é o combustível para este drama. Porém, aqui a personagem se vê limitada pela atuação da atriz, e o cinema indiano fica mais uma vez preso aos arquétipos de heróis pobres e humildes e vilões ricos e poderosos. Se transforma em uma novela sem ter muito o que mostrar.

Exceto, claro, toda aquela poesia em torno dos valores corrompidos de uma Índia fadada ao fracasso. E quando pensamos um pouco mais além, vemos que o problema é bem maior: é um fracasso de toda a humanidade, refém de sua própria incapacidade de tomar as rédeas de sua vida e ser dominada por uns poucos mafiosos e seus paus mandados. Sabe como é: o que seria da democracia sem esses senhores bem-intencionados?


# O Poderoso Chefinho

Caloni, 2017-04-16 cinema movies [up] [copy]

É um alívio assistir a uma animação que não se esforça nem um pouco em ser a primeira de uma franquia, e que corajosamente atravessa todo o arco de seu herói para terminar como um "filme normal". Além disso, dirigido com uma fluidez dinâmica alimentada por uma criatividade sem limites de seu roteiro -- que usa uma chupeta da maneira mais inventiva possível -- e sua direção de arte -- que explora através de formas e cores os passeios deliciosos na mente de uma criança e suas aventuras -- O Poderoso Chefinho é uma animação que subverte um pouco o circuito comercial e em troca recebemos uma divertida história fácil de acompanhar, e que ainda que não esteja completa e redonda do começo ao fim, empolga mais que o suficiente para nos lembrarmos do filme com uma certa memória afetiva.

A história facilmente subverte, assim como Cegonhas, o próprio conceito de onde vem os bebês, explicando visualmente que há alguns bebês fabricados pela Baby Corp que não sentem cócegas e são encaminhados para a gerência. Sem o menor pudor ou explicações redundantes -- e destinadas ao fracasso -- o pequeno bebê que chega na residência dos Templenton é recebido pelos pais como algo normal, e apresentado ao seu irmão filho único até então como uma criatura adorável, ainda que vestida estranhamente de terno preto e carregando uma maletinha de homens de negócios.

Apresentando mais conceitos que os inicialmente explorados no trailer, a história é surreal e ainda assim conseguimos acompanhar como um conto que é apaixonante em cores e sequências e engraçado no processo, para adultos (piadas subliminares da vida corporativa) e crianças (piadas de bebês, e elas funcionam!). Sua trilha sonora consegue habilmente trafegar entre a aventura onírica e o clima de máfia de filmes como Poderoso Chefão (apesar de apenas seu título brasileiro fazer menção ao clássico de Francis Ford Coppola).

A direção consegue montar sequências habilmente sincronizadas pelo seu editor entre a imaginação de uma criança extremamente criativa em seu mundo de faz-de-conta e a realidade, e implora ao espectador que suspenda sua incredulidade em torno de tantas licenças poéticas. Principalmente as do terceiro ato, que exigem demais da trama, e acaba a desmontando como um castelo de cartas inacabado.

Ainda assim, há alma e paixão em O Poderoso Chefinho o suficiente para entreter com ideias interessantes a respeito de como nossa geração está trocando bebês enérgicos por convenientes pets (e como culpá-los?), além dessa velha rixa entre os filhos únicos e seu novo irmãozinho (ou irmãzinha). Além disso, as piadas impróprias, como lançar algumas notas de dólares ao ar para compensar a falta de um artifício maior estão aí tanto como contra-exemplo como também uma alfinetada no politicamente correto.

Com a fotografia exuberante, a trilha sonora empolgante (na maioria do tempo) e criaturas amáveis apresentadas pelas melhores técnicas de animação do momento aliadas às velhas técnicas do cinema de perspectiva, chegando até ao expressionismo alemão. Um feliz golpe de novidades para o campo dos desenhos para crianças.


# Samurai Gourmet

Caloni, 2017-04-16 cinema series [up] [copy]

No meio de tantas séries televisivas sobre cozinhar, eis uma série sobre degustar. Samurai Gourmet é baseado em quadrinhos e mantém seu personagem-título sob controle criativo das ótimas expressões do ator Naoto Takenaka. Ele se aposentou recentemente e irá agora explorar diferentes restaurantes, bares e cafés, revivendo os velhos dilemas que clientes desses lugares possuem. Nós simpatizamos com Takeshi Kasumi porque, assim como ele, ficamos sem jeito de reclamar quando a comida está ruim, ou quando pessoas barulhentas ou mal-educadas desrespeitam o ritual de uma refeição.

Sua visão do que deveria ser feito é imaginada como no velho Japão, onde um samurai sem dono também vaga de bar em bar, e ensina aos outros como se deve viver. Não chega a ser um drama de ação, mas de lições. Lições divertidas, de moral e positivas. Assim como Tokyo Stories, uma série para ser degustada com calma, e que vai lhe dar muita fome.


# Sherlock: The Lying Detective

Caloni, 2017-04-16 cinema series [up] [copy]

Eis mais um vilão de respeito para a série Sherlock, embora este seja apenas um fantoche para mais uma demonstração das inúmeras habilidades do detetive de Baker Street. Há brincadeiras a respeito dele ser o autor do blog que Watson (Martin Freeman) escreve a respeito das aventuras do companheiro, e há uma participação perturbadora do detetive e seu escudeiro em um hospital com crianças. O vilão, interpretado de maneira caricata e divertida por Toby Jones, ainda assim é um marco, pois permite que os heróis sejam... heróis!

Além do mais, o terceiro ato revela reviravoltas de cair o queixo, e ainda que lembre uma novela, é uma novela deliciosa de ser acompanhada. As maiores tiradas não estão nos efeitos visuais ou na trama complexa, mas nas obviedades que nos escapam. Não há como dar detalhes em uma série em que o espectador implora por pistas durante todo o tempo, mas é possível dizer que as habilidades dos roteiristas em esconder o óbvio continuam certeiras.

Antes que você ache que estou menosprezando o vilão, é ele que torna este o episódio mais forte e mais completo da série. Porém, mais que isso, a possibilidade de vermos novamente os dois heróis vivendo uma aventura não em seu formato canônico, mas passando por um problema intransponível. Sherlock é uma série com poucos episódios por temporada justamente pela capacidade de concentrar o melhor de todas as possibilidades em apenas cerca de 90 minutos.

2020-12-05

Este é mais um roteiro de encher a mente. Uma história de detetive clássica, com detalhes que podem ser revistos sem perder seu brilho. E a capacidade da série reciclar seus personagens é invejável. Ela usa uma fórmula? Não exatamente. Ela segue um princípio, mas não se importa que seus personagens mudem com o tempo. O que é ótimo depois que nos acostumamos com eles. Porque assim como Sherlock, séries que evitam mudanças e ficam no previsível são como clientes que não conseguem se manter cinco minutos em sua sala. Porque são muito chatos.


# Sherlock: The Six Thatchers

Caloni, 2017-04-16 cinema series [up] [copy]

Sempre um prazer assistir a um novo episódio da série Sherlock, que atualizou o personagem e o gênero de investigação criminal através de um roteiro, direção e edição que insistem em correr além do espectador, jogando migalhas de pistas para que imploremos por mais. Diferente do episódio anterior aqui a história volta para os tempos atuais, e há uma certa mesmice, mas que é explorada com uma certa elegância e que contém em seu terceiro ato uma notícia bombástica e ao mesmo tempo covarde, pois coloca os dois companheiros de volta a um formato manjado, mas não menos apaixonante.

A história apresenta novas formas de demonstrar como a mente do poderoso detetive funciona, e faz diferentes montagens com mecanismos de roteiro e elucubrações mentais, além de forçar os personagens de Benedict Cumberbatch e Martin Freeman além de suas atuais situações. O mesmo não funciona para o irmão mais velho de Sherlock, ou até mesmo para Mrs. Hudson, patrimônio britânico intocável.

No entanto, este exemplar é obviamente superior a tudo que se faz em torno de séries do gênero, e por isso merece ser, assim como a série inteira, degustada sem pudor.

  • 2020-12-02: Sherlock já começa a inventar histórias que soam um pouco melodramáticas demais. Porém, foi o jeito para continuar com esta última, derradeira, temporada. Ladeira abaixo, mas ainda bem acima da média.

# The Sound of Your Heart

Caloni, 2017-04-16 cinema series [up] [copy]

Maeumui sori é uma espécia de sitcom e novela/série coreana que apela para o absurdo, peidos e quadrinhos mal desenhados. Ele é engessado em seu formato e simples em sua abordagem, e tenta concentrar o maior número possível de piadas escatológicas e familiares aos seus poucos personagens.

Ele vai denegrindo aos poucos. Começa com ideias quase originais, mas pelo menos muito engraçadas, e usa um ator com um timing cômico muito bom (Kwang Soo Lee) para interpretar o personagem principal. Ainda assim, falta combustível lá pela metade da temporada.

2022-10-20

Foi feita uma segunda temporada com um elenco totalmente diferente do original, menos carismático e espontâneo. É através do novo casting que você percebe um talento maior do original. Tanto que assistindo à nova temporada fomos primeiro reassistir a antiga.


# Fragmentado

Caloni, 2017-04-18 cinema movies [up] [copy]

Este é mais um suspense de M. Night Shyamalan baseado em "eventos reais" que flerta com as possibilidades sobrenaturais de suas premissas. Mas mais "sobrenatural", contudo, é a forma simplista com que a história é contada, como se o diretor/roteirista não se importasse muito com a verossimilhança da história que quer contar, já que, marca registrada do diretor, obviamente tratará de um tema que brinca com coisas "Além da Imaginação".

Considere, por exemplo, o rapto de três garotas. Se trata de um homem, não muito forte, que as mantém presas, mas não imobilizadas, em um quarto com uma porta de madeira. Um detalhe vital é que este homem se comporta de maneira diferente algumas vezes que ele interage com as moças, e isso imediatamente faz com que uma delas, a mais problemática, conclua que o rapaz tem diferentes personalidades, ou pessoas, dentro dele.

Mas isso em um mundo onde a ciência não aceita a teoria das múltiplas personalidades. Ou pelo menos não da forma como a Dra. Fletcher a enxerga. Convencida que seus pacientes traumatizados são superiores aos seres humanos saudáveis, ela realiza sessões com Dennis frequentemente, e está não apenas interessada em seu caso, mas positivamente admirada.

Isso levanta uma questão importantíssima em toda a história: qual o nível de irresponsabilidade que um psiquiatra no mundo real precisa ter, mesmo que digamos que este enxergue o que os outros não viram, para influenciar e impactar de maneira tão contundente a vida e o destino de um paciente que obviamente precisa de mais cuidados que sessões de terapia?

Essa dualidade entre a psiquiatra que desenvolve através de anos de pesquisa uma teoria revolucionária sobre múltiplas pessoas (leia: personalidades) vivendo no mesmo corpo e a garota perturbada que de primeira conclui qual é a do sujeito maluco que se comporta como criança fragiliza a premissa, não nos permitindo deduzir qual o tom de credulidade deveríamos ter. Ao mesmo tempo, as tentativas de fuga das meninas são patéticas, principalmente se considerarmos tanto tempo disponível para elas arquitetarem um plano melhor do que sair correndo, já que desde o começo Dennis não oferece um perigo tão imediato, talvez uma falha de atuação, roteiro ou mesmo direção do elenco. Eu chuto que o ritmo dos filmes de Hitchcock funcionam muito melhor para esse tipo de história. Shyamalan o emula com uma certa competência, mas de maneira apressada, relapsa, pedante e quase automática, sem pensar em seu conteúdo.

Por outro lado, o primor técnico com que o diretor conduz a história diminui essas falhas, transformando um suspense banal em uma história fascinante que vai se desdobrando com o passar de um tempo que não precisa de contagem para se sentir. E a capacidade de Shyamalan em saber ligar um evento ao outro, como o tempo entre Cassie observar o perigo em sua volta e a tentativa de abrir a porta do carro, são os elementos que tornam um suspense médio em momentos de prender a respiração.

Da mesma forma, o uso exagerado de enquadramentos inquietantes, como o teto transparente da escadaria, ou o movimento já clichê de um corredor cheio de canos que sem fim, assinam a obra do diretor, que não poderia ser mais ninguém, mas ao mesmo tempo afastam o espectador da história. A mesma coisa pode ser observada na trilha sonora, eficiente, mas que usada ao exagero flerta com o trash.

E trash é um traço que M. Night não conseguiu ficar longe tempo suficiente para um filme inteiro. Uma pena. No entanto, a chamada pós-créditos para um outro trabalho do diretor é capaz de dar arrepios aos fãs de seu trabalho. Pena que sua assinatura do começo ao fim diminui a empolgação de vermos uma história verdadeiramente nova.


# Minimalism: A Documentary About the Important Things

Caloni, 2017-04-18 cinema movies [up] [copy]

Este é um documentário bem convencional que acompanha dois amigos que descobrem que para ser feliz menos é mais. Estamos falando essencialmente de consumismo desenfreado. Em resumo: o modo americano de viver.

Em um mundo onde o sonho é ter um salário que te permita ter mais coisas com menos tempo, esses dois amigos perceberam que suas escaladas na vida corporativa não estavam gerando a felicidade esperada. Foi quando decidiram adotar uma forma de vida minimalista, com menos peças de roupa, uma casa menor e menos coisas inúteis guardadas nela. Descobrem a fórmula para ser feliz e saem pelo país pregando a palavra.

Durante sua escalada em palestras que vão de duas pessoas a centenas, e de programas de rádios locais para "broadcasts" para milhões, acompanhamos opiniões de diferentes autores e especialistas em formas de simplificar a vida, além de uma análise econômica riponga que discursa sobre vida em comunidade, igualdade e essas besteiras. Ao mesmo tempo vemos cenas grotescas da Black Friday e empilhadeiras ajuntando pilhas de coisas jogadas fora pelas pessoas.

A direção consegue dar uma ideia da escalada no alcance dos dois amigos às pessoas que querem influenciar, mas falha miseravelmente em tentar diferenciar as diferentes famílias que mudaram de vida graças a eles. São pessoas geralmente de classe média alta, aparentemente perdidas por terem tanto e não saberem lidar com seus sucessos. É uma visão distorcida que apenas o autor de Zen Habits consegue expor de forma mais descomplicada, leve e bem-humorada.

"Minimalism" é um documentário que possui coisas de menos para nos convencer, mas foque-se na mensagem e não precisará de um documentário inteiro para te convencer: não seja como aqueles casos de pessoas brigando na Black Friday. Menos é mais.


# Ninguém Entra, Ninguém Sai

Caloni, 2017-04-18 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Assistir a "Ninguém Entra, Ninguém Sai" é embarcar em uma viagem para a comédia brasileira dos anos 90. Porém, também é uma maneira divertida de referenciá-la, já que ninguém espera uma comédia anos 90 nos dias atuais. Há claramente uma ambiguidade entre o retrógrado e o apenas grotesco, e no meio de tudo isso atuações e participações especiais que, para bem ou para mal, remetem a figurinhas da televisão, do cinema e da internet.

A história é tão surreal quanto a realidade brasileira hoje. Um vírus novo, mortal e altamente contagioso, Xabu (sim!), é detectado em um paciente só pelo olhar de um médico arrogante. A partir daí todas as pessoas dentro do lugar onde o paciente trabalhava quando foi infectado são isoladas em uma quarentena, com o risco de levarem três tiros cada ("só pra garantir", diz um policial) se tentarem sair. O lugar é um motel chique, e o governo começa a bancar os recursos para as pessoas lá detidas. Precisa explicar mais a alegoria política?

As pessoas hospedadas representam parte da sociedade brasileira. Há uma juíza que na cama é uma dominatrix (que usa seu guarda-costas como dominado), um casal de menores que passa pela vista grossa da recepcionista com um documento de identificação que diz terem 30 anos, um casal formado por um motoboy quebrado e uma "periguete" gostosíssima que, acreditem ou não, quer casar, um assaltante e sua refém (a eterna virgem neurótica que "passou do ponto" e cantarola uma música do Fabio Jr) e uma faxineira maluca (Guta Stresser, talvez a única participação do elenco que levou sua caricatura às últimas consequências) que segue uma seita que condena todos os atos libidinosos do hotel e que venera uma figura enigmática em seu armário como se fosse um santo protetor.

Todos esses personagens acabam eventualmente interagindo em uma história que poderia muito bem ser uma peça de teatro, já que o diretor estreante no cinema Hsu Chien Hsin usa zooms que tornam o cenário meramente decorativo, e não há qualquer tentativa de juntar as ações que ocorrem em paralelo exceto o velho corte seco entre uma situação e outra, e nenhuma ação é realmente necessária. É uma coletânea de caricaturas e suas piadas, nada que você não tenha visto inúmeras vezes em sua infância ou adolescência. Talvez você desse risada naquela época.

Mas falar de humor, que é algo tão íntimo de cada um, é um assunto complicado. O curioso das piadas aqui é que, para um mundo cercado de politicamente correto para todos os lados, o roteiro tenta encontrar um meio termo entre o que hoje é considerado ofensivo e as boas e velhas piadas estilo Trapalhões. Não é difícil imaginar a influência dos próprios atores nessa concepção, já que temos no elenco não apenas a ponta divertida de Gabriel Totoro mas em dois dos papéis principais um atual integrante e uma ex-integrante do canal de piadas polêmicas da internet Porta dos Fundos, que ficou conhecido justamente porque a internet desconhece barreiras para o humor.

A sensação geral ao assistir esse filme é de uma ótima produção nacional com temas repetidos vistos sob um novo olhar. O filme vai fácil, assim como as atuações, e a despeito de se passar quase todo em um motel não é motivo para baixaria: ninguém fica de fato pelado, e o objetivo quase nunca é sensualizar, mas apenas divertir. O problema, portanto, fica na questão se o "divertir" fica acima ou abaixo das expectativas de uma "globochanchada" de todo mês.


# No Meio de Nós

Caloni, 2017-04-18 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Antes de tudo, um alerta: este filme não é um documentário. Documentários, mesmo os mais parciais, ao menos tentam buscar informações e apresentá-los ao espectador da maneira mais clara e inteligível possível. Já "No Meio de Nós" reúne uma série de especialistas em diferentes áreas de conhecimento e esoterismo para juntos realizar o que não consegue ser muito diferente de um vídeo publicitário. O que ele vende? O livro Mergulho no Hiperespaço, de um General Ufólogo da década de 60, e o próprio filme, lançado no site da produtora em DVD esta semana.

Narrado por Renato Prieto, um ator famoso por atuar em trabalhos espíritas no cinema e no teatro, o filme é um emaranhado de entrevistas em um desfile de apelos à autoridade e evidências anedóticas que apenas confirmam o lado que desejam vender: alienígenas estão entre nós e a humanidade está nesse momento em uma fase de transição para um nível maior de esclarecimento a respeito da nossa natureza como seres não apenas materiais da física clássica, mas de outras formas físicas de manifestação e a forma espírita.

Com asbolutamente nada de novo, a estrutura por trás da história é o já conhecido desprezo que algumas pessoas possuem do salto tecnológico e produtivo que a humanidade sofreu nos últimos séculos, ou a tentativa de pegar carona em uma vida hoje dezenas de vezes mais fácil que nossos antepassados (e excessivamente materialista), unir com estatísticas globais de suicídios (ignorando o quanto a população cresceu em porcentagem), e concluir que é necessário abandonar as antigas religiões e adotar uma nova: o fanatismo ufológico.

Lembrando uma versão menos sutil do documentário de pseudo-ciência "Quem Somos Nós?" e uma versão mais alarmante que a série de documentários econômicos sobre o "Zeitgeist" (mais uma religião de nossa era, voltada para o ufanismo tecnológico), "No Meio de Nós" não consegue se conter em mostrar repetidas imagens comuns em slides de apresentações que tentam ilustrar o que os entrevistados dizem dezenas de vezes com palavras diferentes, palavras essas que cada vez mais querem dizer menos. São termos vagos que nunca são devidamente explicados, lançados como se já fizessem parte do inconsciente coletivo, como "energia vibrante", "multidimensões", "consciência cósmica" e coisas do gênero.

Através de uma direção digna de "Youtuber", o diretor/roteirista/produtor Juliano Pozati, da Pozati Produções, realiza cortes nos enquadramentos para acelerar as entrevistas, intercalando-as com uma trilha sonora imediatista (e enlatada) que situa um clima de urgência e nunca para, martelando em nossos ouvidos suas obviedades. Os efeitos visuais lembram igualmente slides de apresentações, e a própria narrativa se perde facilmente, pois vai e volta para causos contados por parentes e conhecidos de pessoas que tiveram evidências anedóticas de contatos com extraterrestres.

Para dar um ar de credibilidade maior que os tristes canais atuais da History Channel, o trunfo do filme são memorandos do FBI descrevendo objetos e seres supostamente alienígenas, e usando-os como provas irrefutáveis de sua existência, ignorando que um documento, por mais carimbado que seja, não deixa de ser apenas um papel timbrado e amarelado com palavras feitas à máquina de escrever. E mesmo que este seja um memorando cuja origem é da agência de inteligência norte-americana, isso apenas prova que o documento foi lá produzido, e nada mais, da mesma forma que um pedaço de papel da casa da moeda só tem valor porque governos dizem que ele tem valor.

Conseguindo se alongar desnecessariamente em menos de 90 minutos de projeção, o vídeo encomendado definitivamente não possui nada que possa ser chamado de cinematográfico, exceto imagens em sucessão. Contudo, se houvesse uma prova, ou resquício de prova, no meio de todas as bobagens vistas no longa, com certeza valeria a pena. No entanto, a única coisa que foi ofertada a este crítico foi uma cópia do livro-alvo da campanha de marketing. Que eu enviarei com prazer (frete incluso) a qualquer um que me apresentar alguma prova cabal de qualquer um dos eventos que o filme cita. Pode até ser as Cartas de Zener, uma tentativa defasada de transformar parapsicologia em ciência através de um método testável. Aliás, um dos entrevistados, ao falar sobre uma divisão americana obscura durante a Guerra Fria, diz que a parapsicologia já havia sido provada ciência desde a década de 60, e era usada pela Nasa para se comunicar com ETs. Esse é o nível de confiabilidade do filme, caso ainda queira arriscar.


# Velozes e Furiosos 8

Caloni, 2017-04-18 cinema movies [up] [copy]

A série Velozes e Furiosos divide opiniões. Este é o mundo fantasioso onde motoristas/mecânicos habilidosos vivem à margem do crime e realizam manobras não apenas arriscadas, mas impossíveis. E para muitos isso é demais para acreditar. Porém, uma vez que você morda a isca tende a enxergá-lo basicamente como um filme de ação bem arquitetado ou pelo menos bem executado, com personagens com mais estilo do que verossimilhança. E depois de sete filmes, o oitavo vai fácil.

E quem não gosta de um videoclipe com o cenário paradisíaco de uma praia cubana (com mulheres cubanas), música latina e carros antigos correndo como nunca foram desenhados para correr? O ritmo das músicas com seus rápidos cortes e as cores vibrantes e saturadas de Fast & Furious tem o poder de hipnotizar corações, mesmo que a mente discorde que tudo aquilo seja real.

Essa oitava versão segue em seu início o mesmo modelo dos "clássicos", com uma corrida imperdível no começo e muita ação no decorrer da trama. A diferença fica por conta de como os personagens são utilizados. Há uma certa emoção em ver Dom Toretto (Vin Diesel) sendo chantageado de maneira tão maldosa, assim como ver uma vilã de verdade (Charlize Theron) no comando de uma organização (essa sim, criminosa) e dizendo diálogos de fato interessantes (ou de uma forma que pareçam interessantes). Além disso, a participação do monstro de adrenalina e potência de Dwayne "The Rock" Johnson, assim como a perspicácia e sarcasmo de Jason Stahan, é sempre promessa de momentos empolgantes, e nesse filme eles estão mais inacreditavelmente fortes, rodopiando pessoas com chutes certeiros e usando corpos humanos como pesos de arremesso.

E é difícil não achar exuberante e profética uma sequência envolvendo carros autômatos, uma cena que certamente irá fazer os não-adeptos da "farofa" de Michael Bay torcendo o nariz para uma multidão de carros que fazem a festa dos que entendem a brincadeira (eu fiquei particularmente profético sobre como serão os filmes em um mundo sem motoristas humanos). Porém, na soma das gafes lógicas estão um emissor de interferência eletromagnética que só faz efeito por alguns segundos, uma fortaleza russa no meio do gelo que se abre quando falta energia, e, por falar em energia, o meu favorito: uma prisão de segurança máxima que em um curto-circuito abre todas as celas. O filme mantém uma seriedade absurda com tanta farofa e ainda tem tempo para cenas fortes, que convenientemente descarta um personagem pelo bem do drama.

Portanto, se você já gostava da série de carros turbinados, V8 de forma alguma será um motivo para não gostar. Ele pega o mesmo conceito e eleva ao cubo, encontrando Triple X no meio do caminho.


# 28 Dias

Caloni, 2017-04-21 cinema movies [up] [copy]

Como você faria para mostrar ao grande público que ter uma vida boêmia pode ser algo terrível, mesmo que você se divirta no processo? Bom, 28 dias faz isso de maneira brilhante, desfocando e diminuindo direto nas cenas a qualidade dos momentos da vida em que sua protagonista, Gwen, não consegue se lembrar direito. Ela e seu namorado estão em uma festa, chegam em seu apartamento, colocam fogo em um sutiã, fazem sexo, acordam atrasados para o casamento de sua irmã, fazem um verdadeiro vexame no dia mais importante de sua vida e Gwen acaba em uma clínica de habilitação onde, contrariando os filmes mais bonitinhos sobre o tema, as pessoas não são agradáveis ou dignas de pena, mas seres humanos muito reais, que estão cansadas dessa vida que Gwen acabou de interromper.

Toda a estrutura do filme faz-nos crer que a vida é mais difícil que viver de porre em porre, ou pelo menos continuar vivo no processo. Ao mesmo tempo vamos sendo apresentados de maneira orgânica ao grupo em que Gwen acaba fazendo parte. Sandra Bullock consegue criar uma personagem que vai mudando realmente aos poucos, e que não acredita em sua própria mudança, assim como seus novos amigos. Ninguém lá leva realmente a sério o programa de reabilitação, e é como seria na vida real. Apenas nos filmes essas pessoas seriam cordeirinhos comportados. Essas pessoas estão acostumadas a transgredir tudo e todos em seu dia-a-dia, por que seria diferente em um hospital?

Viggo Mortensen, na época participando do primeiro Senhor dos Anéis, consegue com relativamente pouco tempo de tela criar outro personagem carismático, um jogador de beisebol em recuperação. Nada no filme está definido, o que colabora muito para que este Um Estranho no Ninho para viciados soe como uma experiência não-esquemática, quase natural. Perto do final, é como se tivéssemos de fato conhecido essas pessoas, e que um bom tempo de convívio tivesse se passado.

Não é um filme perfeito, mas a dedicação com que ele reconstrói o trauma de infância de Gwen resume o formato mais que agradável de se acompanhar um filme sobre adultos com problemas, usando algo que a esmagadora maioria dos preguiçosos cineastas nunca usa: mostre, não diga.


# Além da Ilusão

Caloni, 2017-04-21 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Além da Ilusão é uma viagem biográfica longa, inútil e de um lirismo que não se justifica ao longo da projeção. Se trata da burocracia dos filmes baseados em eventos reais que não estabelece uma trama, mas apenas descreve acontecimentos. Seus personagens não tão rasos e esquecíveis que nem a atuação competente do elenco nos salva do marasmo. E mesmo que fôssemos apreciar a obra pela sua "beleza inerente do cinema", ele comprova que para tudo há um limite.

Se trata da história de duas irmãs médiuns que encantaram Andre Korben, o líder (imigrante) de uma produtora de filmes francesa em uma época onde os americanos já estavam dominando o mercado e o xenofobismo pré-Segunda Guerra já assombrava a Europa. Com o pretexto de conseguir filmar a força misteriosa que interage com ele através da irmã mais nova -- e que revela um traço até masoquista de Korben -- ele convence os acionistas a gastar uma soma imensa de dinheiro em meio a uma crise econômica, além de adotar as duas irmãs a ponto de trazê-las para sua própria casa, a partir de onde passam a viver histórias diferentes e separadas.

Laura (Natalie Portman) durante as filmagens iniciais das sessões espíritas acaba virando atriz com seu talento em interpretar. Nada mais natural, já que sabemos que a única com o verdadeiro dom sobrenatural é sua irmã mais nova, Kate (Lily-Rose Depp, filha de Johnny Depp), que passa a realizar sessões privadas com o presidente que o satisfazem em um nível sexual. Como Kate é de menor já temos aqui uma situação extremamente delicada do filme, que covardemente não se aprofunda.

E mesmo que se aprofundasse, os objetivos desses personagens nunca são muito claros, e a sucessão de eventos apenas lembra um diário sem muita cadência. É interessante "per se" acompanhar as pesquisas em busca de evidência científica da existência de fantasmas, além das pequenas sutilezas que aos poucos revelam como um jogo de trapaças estava sendo configurado para jogar Korben para escanteio. Por outro lado, a personagem de Natalie Portman completamente descartável, embora seja vista como peça-chave na trama, onde seu encontro no começo do filme com uma pessoa em um trem desperta memórias de um passado mais brilhante com sua irmã.

Mas, convenhamos, nada é particularmente brilhante neste filme, exceto as estrelas no céu, que são mostradas constantemente como uma metáfora boba e esquecível.


# Dirk Gently's Holistic Detective Agency - Primeira Temporada

Caloni, 2017-04-21 cinema series [up] [copy]

Eis que termino a primeira temporada dessa série, e sou obrigado a dizer que quem estiver disposto a assisti-la terá que necessariamente ir até o minuto final para entender a engenhosa estrutura de seu roteiro, que consegue tornar o todo melhor que a soma de suas partes. Não que já não seja divertido acompanhar tantos weirdos por metro quadrado.

Conseguindo interpretar com extrema eficácia por Max Landis um dos mundos do intraduzível escritor Douglas Adams, Dirk Gently's confia mais na força de seus personagens para que estes carreguem uma trama complexa sem que ela se torne excessivamente hermética. Ela é muito obscura no começo, mas, assim como Dirk nos diz, as coisas irão fazer sentido depois de desvendada a trama. Claro que, dadas algumas licenças poéticas, tudo mais ou menos se encaixa. E talvez o maior trunfo da série seja não se render em explicar tudo. A própria viagem no tempo é encarada como algo simples, o que irá afetar bastante a permanência do espectador médio.

A não ser que ele seja como eu e releve qualquer possível explicação em prol daquele mundinho onde as pessoas, independente da confusão em que se encontram, estão tentando se ajudar na medida do possível. Nesse sentido a série resume com perfeição a mente de Adams, onde assim como O Guia do Mochileiro, a cooperação entre as pessoas para viver nessa bagunça caótica e inexplicável de universo é vital para a sanidade.


# Peles

Caloni, 2017-04-21 cinema movies [up] [copy]

Um filme necessário para os negadores da estética objetiva. Aqueles que dizem que "não existe feio" ou que tudo é subjetivo. Porém, este é um filme pesadíssimo, onde uma moça tem sua parte traseira na cara, uma menina sem olhos é mantida em cativeiro e dois deformados se amam e fazem sexo. As cenas são tão pesadas que colorir toda aquela realidade de rosa e roxo é inevitável. Pelo menos tenta disfarçar a miséria da vida e a miséria que somos como humanidade.

As diferentes histórias que lidam com aceitação se entrecruzam de uma maneira elegante e apenas onde precisam. Aqui há uma ode a todo tipo de gênero e espécie, e mesmo que um garoto queira retirar suas pernas e virar uma sereia, a vilã é sua mãe que o criou sozinho. Não tenho certeza se tudo isso não é uma crítica à nossa sociedade do politicamente correto e da -- deus nos livre -- tolerância indiscriminada. O absurdo das situações tornam essa teoria cada vez mais plausível em um filme que não tem medo do grosseiro, desde que seja usado para refletirmos.

Só há dor e sofrimento em Peles, mas ela é necessária para que os temas pesados que são abordados sejam realmente sentidos do ponto de vista de pessoas normais e saudáveis. O que não quer dizer que os personagens que sofrem no filme sejam dignos de pena, mas é o que o filme quer dizer, já que essa é a única forma de nos relacionarmos com seus dramas. E uma história que poderia servir para mostrar a riqueza dos diferentes a usa para mostrar como essas pobres criaturas são dignas de pena.


# Como publicar um livro na Amazon

Caloni, 2017-04-24 [up] [copy]

Estou finalizando essa semana a publicação do meu primeiro livro. Não, não é sobre programação, mas sobre Cinema. Mais de 1500 páginas sobre Cinema. Isso está acontecendo porque eu resolvi testar a possibilidade de publicar facilmente alguma coisa na Amazon baseado em um blog feito através de Jekyll (uma linguagem de marcação simples e um punhado de arquivos markdown). E, guess what? Funciona, é simples e relativamente descomplicado. Eis o caminho das pedras.

Antes de tudo, a coisa mais importante que você deve fazer é gerar conteúdo. Sem conteúdo não há livro. Eu, por exemplo, segui escrevendo sobre praticamente todo filme que eu assistia, pelo menos alguns parágrafos sobre. Ao final de quase sete anos, o resultado são páginas e páginas de texto. Esse é o seu patrimônio e uma ferramenta para praticar a escrita.

Se você usar o Git Hub Pages ou similar para publicar em seu blog poderá se aproveitar da estrutura do Jekyll, que é um builder de páginas estáticas. Basicamente cada post deve ser um arquivo markdown com um header no formato yaml. Há uns poucos templates que você pode escolher ou compilar, como o formato de cada página, e através desse template o Jekyll gera todas as páginas html. O GitHub compila automaticamente um repositório que está sendo utilizado nesse formato.

Depois que você gerar conteúdo suficiente, tudo que você precisa fazer é usar um template no Jekyll que formate o html da forma com que a ferramenta da Amazon, o KindleGen, espera. Ele recebe um html ou um opf (um formato próprio de indexação) como base e cospe um mobi, que pode ser usado para fazer upload do seu livro para publicação como ebook na Amazon. Se quiser também fazer uma versão física, eles imprimem para você. Sai mais caro, e tanto os royalties do virtual como o real são uma mixaria, mas é simples, economiza tempo e aumenta a visibilidade. Para a versão física baixe os modelos em doc deles e cole seu conteúdo. Isso já economiza formatação de margens, por exemplo.

Para a capa, você pode gerar a própria ou eles possuem um gerador de capas, também, que é razoável. Na hora de subir a capa do formato físico pode editar também o texto da contracapa e até colocar sua foto.


# Vida

Caloni, 2017-04-24 cinema movies [up] [copy]

Esta é uma releitura de "Alien, o Oitavo Passageiro" que soa mais realista, ou pelo menos mais próxima de nossa realidade. De toda forma, ela apresenta duas mudanças principais. Primeiro retira aquela impressão de que um alienígena está sendo propositadamente mal, já que analisa com muita propriedade que toda vida tem que matar para continuar vivendo. Segundo, não conseguindo conter o terror dentro da faceta dramática e grandiosa do enredo, o filme vai apelando pontualmente para o trash de bom orçamento, até se entregar de vez ao caricato. Isso gera surpresas na medida em que um filme decide fazer pouco dele mesmo pelo bem da brincadeira. Mas não é tanta surpresa se considerarmos que um dos primeiros diálogos cita o filme A Noite dos Mortos Vivos, clássico terror de zumbis.

Usando uma tomada inicial do infinito universo e suas estrelas e galáxias com uma trilha sonora grandiosa e fontes do título que entregam desde o início que esta é uma releitura ou homenagem (ou ambos) do filme de Ridley Scott, o diretor Daniel Espinosa mantém este tom até certo ponto. A história é sobre a missão Pilgrim (Pioneiro), realizada através de uma sonda em Marte que obtém amostras de solo para análise na Estação Espacial, bem em cima de nossas cabeças. A boa notícia é que eles encontram uma célula de vida reanimada com as condições semelhantes à atmosfera da Terra. A má notícia é que esta é uma forma de vida forte, inteligente e que cresce rapidamente em busca de novas presas, coisa que ela poderá facilmente encontrar no ambiente aqui da Terra.

Apresentada ao mundo em um evento global onde alunos de uma escola batizam a primeira forma de vida alienígena de Calvin, as comunicações terrestres depois do primeiro sinal de hostilidade do "oitavo passageiro" são convenientemente cortadas. E a partir de uma tripulação em que sabemos uma coisa ou outra -- mas principalmente que são um grupo multiétnico de pessoas muito semelhantes ao filme "Alien" -- vamos acompanhando mais uma vez a dor de não sermos mais a única espécie inteligente e predadora a bordo. Pior: este é um ser cuja estrutura celular possui de maneira uniforme a função de cérebro, músculos e olhos, uma tríade que tem o potencial de torná-lo muito poderoso, pois qualquer parte da criatura poderia ser cortada e ela continuaria operando. Pena que o filme se esquece de colocar todo esse poder à prova, e esse detalhe inicialmente empolgante logo se perde nos diferentes tipos de mortes que vemos ao longo da projeção.

O filme exibe uma certa visão positiva sobre os seres humanos na nave em órbita da Terra, enquanto paradoxalmente demonstra como os humanos que ficaram no planeta (nós) são uns desgraçados que geram guerras. De uma maneira confusa o filme vai delineando sua moral, e para isso usa seres humanos extremamente altruístas dispostos a se sacrificar de maneira racional para evitar que Calvin cause um estrago irreversível no único habitat controlado para os seres humanos. Este é um passeio mais ou menos controlado por um remake de filme de terror, e se mantém do começo ao fim como um entretenimento visual e uma graça em sua trilha sonora, que oscila entre o dramático grandioso do começo passando pelo terror incidental e quase inconsequente.

Existem surpresas positivas no elenco, que é uniforme e competente. Porém, os personagens dos bons Jake Gyllenhaal e Rebecca Ferguson (e o que Ryan Reynolds está fazendo aqui, mesmo?) têm pouco tempo para desenvolvê-los. Tudo gira em torno da nova espécie e como ela é inteligente, fascinante e... está matando todo mundo. E como um dos tripulantes espirituosamente comenta, desde o início o ser descoberto sente mais curiosidade que medo. Porém, em vez de terminar a cena na criatura, a câmera começa a mostrar os astronautas, seres humanos olhando atentos através do vidro, em uma espécie de analogia com um zoológico. Mas no caso é um zoológico que mantém suas feras atrás de grades de papelão.

Depois que o predador obviamente se liberta da jaula de biólogos inocentes, a capacidade do filme em não permitir que o espectador se localize em uma geografia tão simples quanto a estação espacial é gritante, atingindo o absurdo de vermos um holograma com o mapa da nave e mesmo assim não entendermos onde está cada passageiro. Isso não impede que frequentemente sejam feitas alusões a trabalhos menos estabanados como 2001 (e suas portas giratórias), além de usar também exageradamente o vermelho para praticamente todo sinal de perigo. E os sinais de perigo começam a ficar repetidos de uma forma irritante rapidamente, a ponto de não fazer muita diferença.

Este é um filme com crise de identidade. Ele começa como um drama inteligente que poderia muito bem fazer jus ao seu título simples, mas instigante. No entanto, inseguro de si, o roteiro de Rhett Reese e Paul Wernick quer surpreender de qualquer forma, evitando o caminho natural e muito mais ambicioso de mostrar que a vida é algo muito menos poético do que a imaginamos, mas uma metáfora poderosa sobre a existência no universo.


# Elon Não Acredita na Morte

Caloni, 2017-04-25 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Elon Não Acredita na Morte é uma thriller policial que consegue manter seu suspense por um bom tempo. Desde que você seja paciente. Ele explora nossa percepção do cotidiano visto de duas maneiras muito peculiares. Uma delas é o senso comum guiando seu protagonista pelos corredores, portas e pessoas. A outra está em conseguirmos preencher uma lacuna vital para a compreensão do todo, um pequeno detalhe que fica em um passado próximo, mas que "infelizmente" se passa antes do filme começar. E é daí que vem todo o suspense.

Dirigido por Ricardo Alves Jr de uma forma aparentemente relaxada, mas que ao mesmo tempo mantém um controle de luz e sombra complexo para não nos perdermos, a câmera quase sempre segue Elon (Rômulo Braga), o homem em busca da esposa, a fugaz Madalena (Clara Choveaux), que não voltou do trabalho. Através dele vamos conhecendo suas ligações com o mundo de sua mulher. A irmã que é dançarina de boate, o filho pequeno entregue ao ex, a sogra que parece ser a única a perceber algo de errado com o filho, embora não saiba o quê. Embora Elon pareça fazer todo o percurso correto de quando uma pessoa amada some, e embora possamos entender seu desespero a ponto de invadir a casa de sua cunhada, a única peça que não se encaixa nesse quebra-cabeças é sua aparente calma. Ou talvez faça parte daquele passado que citei, inalcançável. Mas se os desaparecimentos da mulher fizessem parte da rotina do casal, o que explica ele ir à delegacia apenas um dia depois de seu sumiço? Perceba como o roteiro nos entrega pedaços de informação flutuando no nosso inconsciente. Não se trata do que é dito, nem do não-dito, mas as circunstâncias apenas.

A edição de som é tão precisa que ela se torna quase um personagem. Não fosse ela seria difícil acompanhar toda a ação, já que apesar de uma fotografia competente diante do desafio de filmar becos, salas e corredores sujos e mal-iluminados, há muito ainda não visto; apenas ouvido. E até o que é ouvido às vezes nem isso; como quando Elon vai tentar perguntar para uma colega no serviço de Madalena, diante de máquinas ensurdecedoras. Quase não ouvimos o que eles gritam, mas conseguimos entender a mensagem. É esse tipo de pérola que deve ser buscada nesse filme.

A atuação de Rômulo Braga (O Que Se Move) é precisa em não revelar quase nenhum traço de sua personalidade, exceto a incapacidade de sentir qualquer coisa, como se estivesse anestesiado ou drogado. Ele apenas reage à soma das percepções em sua volta, como um soco na parede durante seu exercício, e até em um momento extremamente sensual, em plelo ato sexual, que indica que ao menos através de seus corpos ele e sua mulher se entendiam bem; mesmo assim, Elon se revela um homem quase que meticuloso, como ao segurar os cabelos de Madalena enquanto ela pratica oral, ou até seu próprio ritmo ao retribuir a amada. É sensual, mas é mecânico. Todo o filme é um suspense frenético, mas Elon está igualmente mecânico.

Ah, sim. Isso me faz lembrar. "Elon Não Acredita..." é um filme adulto. Claro, o motivo oficial é o sexo e a nudez. Mas o verdadeiro motivo, desconfio, é o café. Você irá entender quando acontecer. Sempre é o café; principalmente quente. Não é mesmo?


# Girlboss - Primeira Temporada

Caloni, 2017-04-26 cinema series [up] [copy]

Girlboss é uma história sobre os desafios do empreendedorismo. A série pega muito leve nos obstáculos, porque isso é EUA, e isso é Califórnia (se fosse no Brasil não existiria história, provavelmente). Seu núcleo gira em torno de uma menininha que, assim como quase todos nós, ainda não achou seu lugar no mundo, mas parece finalmente ter entendido o sentido da vida: tornar as pessoas felizes. E ela faz isso do seu jeito, reconfigurando roupas usadas (consideradas "vintage"), e não chama o que ela faz de negócio, mas de outra coisa. Caia na real, menina: você é uma capitalista malvadona!

Sim, poucas pessoas hoje em dia conhecem o significado da palavra capitalismo, exceto o "capetalismo" pintado por ativistas políticos interessados no seu dinheiro (e seus milhões de seguidores acéfalos), mas ele se constitui pura e simplesmente por trocas voluntárias. Elas acontecem para que a situação de vida dos envolvidos na troca melhore. Se não melhorar para todos os envolvidos, a troca nunca aconteceria. Simples assim. E a empreendedora (real) Sophia Christina Amoruso, ao criar a marca "Nasty Gal Vintage", realiza justamente isso: troca seus serviços de busca e entrega (aliada a um senso estético que agrada seus clientes e desagrada fervorosamente seus concorrentes, materializados por lojas que consideram a moda vintagem intocável, digna de ser guardada em uma caixa por séculos). Mas, convenhamos, a caricatura criada pela série para isso, a falastrona Gail (pela ótima Melanie Lynskey), nem o grupinho que com ela formam um fórum na internet (o episódio em que eles se reúnem é ao mesmo tempo hilário e bizarro), conseguem convencer como realista.

Aliás, quase nada na série é realista por completo. Essa é a romantização da vida de Sophia, inspirada em uma empresária do ramo de roupas pela internet, mas transformada em poesia através dos textos supostamente perspicazes de Kay Cannon (New Girl), que junto com um pequeno batalhão de roteiristas encontram um tom que diverte sem passar da linha brincalhona da série, mas que ao mesmo tempo consegue tocar em temas delicados (como traição) com um tom muito mais maduro que 90% de todas as comédias românticas que saíram no cinema nas últimas décadas.

A queridinha Britt Robertson (Tomorrowland) constrói aqui exatamente o que os criadores de Girlboss precisam. Ela realmente acredita em si mesma quando fala suas bobagens, parece não estar muito conectada com a realidade, mas possui aquele tom sério que vai crescendo aos poucos. Suas dúvidas existenciais começam bobinhas, mas aos poucos ela parece ir se transformando em uma mulher de verdade enquanto mantém seu espírito jovem e livre. Seu par alívio cômico e melhor amiga Annie é interpretada por Ellie Reed com um desprendimento que cativa. Seu sorriso fácil combina com a protagonista, e ambas conseguem cativar sem qualquer diálogo inteligente no roteiro. Esta não é uma série de tiradas fantásticas, mas sobre o ciclo de vida de sua personagem. Note como ela se transforma lentamente em um mundo quase que estático, com pessoas ou despidas de talento ou medíocres por natureza. E um grande trunfo da série é concluir que está tudo bem com essas pessoas.

Com sua direção dividida entre cinco pessoas, fica difícil apontar as maiores virtudes, exceto um dinamismo quase que constante em contar uma história que se baseia muito mais no visual do que no que é falado, o que é ótimo para uma série mais que atual. Um aspecto positivo de vários episódios é conseguir unir na edição e montagem aspectos como mudança do tempo (várias Sophias andando pelo seu quarto), navegação na internet (enquanto ela pesquisa seu nome vemos pela janela do quarto as diferentes visões de suas ideias). Até o já batido uso das mensagens de texto ganha um upgrade aqui. Não vemos um quadro genérico, mas o reflexo do que Sophia realmente está vendo. E quando é a hora de ver a tela de um aplicativo real hospedando um site, ele é real, e os criadores decidem de maneira perspicaz mostrar essa realidade, mas traduzi-la nos diálogos. Um trabalho de sincronismo perfeito entre a visão leiga e técnica do negócio.

Aliado a isso a série utiliza cores, figurino e tudo que gira em torno disso (como direção de arte) de maneira econômica sem soar simplista. Quero dizer: olhe o galpão onde eles fundam a empresa. Você realmente consegue acreditar em uma empresa fundo de garagem sem ela ser necessariamente especial. É apenas um galpão, e depois de decorado, é apenas um galpão decorado. E a trilha sonora, além de beneficiada pelo namorado de Sophia ser agenciador de bandas, ganha também outra virtude na montagem audiovisual. Note como uma música de um momento traumático na vida de Sophia a persegue.

Enfim, Girlboss parece uma série de mulherzinha, o que é verdade, e isso, ao contrário do que pode sugerir o nome, é ótimo do começo ao fim. Tem seus enchimentos de linguiça como qualquer série, mas ver sua protagonista por mais tempo consegue ser mais positivo do que prejudicial à série. O que é uma virtude e tanto se você for pensar em como as pessoas em filmes e séries comerciais estão cada vez mais banais. Aqui, apesar de ser um empreendimento capitalista da Netflix, a arte se fez valer. Está vendo como é possível beneficar a todos com trocas voluntárias?


# Guardiões da Galáxia Vol. 2

Caloni, 2017-04-27 cinema movies [up] [copy]

Se você gostou de Guardiões da Galáxia é quase certeza que irá apreciar as novas aventuras do time de escanteio da Marvel, que ironicamente são os que mais lembram, com orgulho e um certo sarcasmo, a mídia original de onde vieram: os quadrinhos. Agora, se você é como eu, tenho certeza que achou que nada de bom viria de um filme onde novamente há uma equipe de anti-heróis de mentirinha formados por um guaxinim bancando o “bad ass”, um macho alfa genérico e seu objeto de desejo pintado de verde (porque é uma atriz negra), um brutamontes genérico isento de neurônios no cérebro e papas na língua e uma árvore “falante” (“Eu sou Groot”) dublada por Vin Diesel (que agora é pequena, o que torna Vin Diesel por tabela fofinho). Para você que pensa como eu, acredito que provavelmente você estará errado em julgar prematuramente uma continuação que faz de tudo dessa vez para acertar as pontas soltas desse ensaio bem-humorado dos quadrinhos para as telonas.

Dessa vez o tom meio bonachão ensaiado no primeiro filme está aqui a todo vapor. Graças a um ritmo alucinante que une cenas de ação irreais e um timing cômico orgânico, praticamente todo o filme respira o mundo dos quadrinhos, onde é preciso economizar balões de diálogos e abusar do visual, com cores berrantes que não são desse mundo. A não ser que esse mundo esteja desenhado em páginas brilhantes de um almanaque Marvel.

E de uma maneira semelhante aos X-Men celebrando a diversidade, aqui o humor usa e abusa das subversões e confusões quando se mistura duas (ou várias) culturas, povos, raças e planetas da mesma galáxia, onde se na Terra Mary Poppins é uma coisa, em outro ponto da galáxia pode virar outra completamente diferente. É possível sentir que o pedaço de universo onde a Terra se encontra agora é um lugar mais rico graças à diversidade da vida. Mas, diferente de Star Wars, aqui a vida não depende de muitos efeitos visuais, bastando um pouco de tinta (uma maquiagem competente) e atuações impressionantes para o gênero. Atuações essas que são vitais para o desenvolvimento da história, que confia mais na interação entre seus personagens e os problemas universais de convívio entre as pessoas (relação pai/filho, irmãs rivais, duas pessoas com visões de mundo diferentes, o renegado pelo bando e o complexo de inferioridade de um guaxinim).

Vou pegar apenas um exemplo, que sequer é o principal da trama: as irmãs brigadas. Note como a constituição robótica da irmã menos talentosa de acordo com os padrões do seu pai é uma metáfora para quando se nega a humanidade de alguém, tentando trocar as peças supostamente defeituosas por versões artificiais. A forma como o filme resolve o conflito entre as duas, com uma mega-luta entre duas criaturas extremamente poderosas, é de tirar o chapéu. É um espetáculo que está ligado com um drama familiar. Nem George Lucas conseguiu fazer o mesmo com Luke Skywalker, pois ele não tinha alguém com o talento de pessoas como Karen Gillan, que como Nebula conquista pela economia de expressões, mas são expressões de angústia, pesar e remorso bem definidas pela atriz.

A irmã de Gamora, portanto, representa em seu drama aquela briga boba de irmãos quando crianças, mas que gera cicatrizes profundas no ser. De uma forma semelhante, todos os personagens nesse filme possuem problemas pendentes que vão ter que resolver ou aprender a conviver. Assim, Rocket, dublado com uma entonação irritada, mas ao mesmo tempo neutra por Bradley Cooper, está sempre querendo chamar a atenção e possui um complexo de inferioridade que se traduz desde sua estatura ou pouca relevância para a equipe até suas ações menos nobres (como roubar baterias inúteis pelo simples prazer de roubar).

Já o mercenário "red neck" Yondu, interpretado por Michael Rooker (The Walking Dead) com seus dentes tortos, exibe seu sotaque caipira e uma naturalidade em ser líder mesmo após ser renegado pela liga de mercenários comandada por Sylvester Stallone. É de longe a figura mais complexa da trama, pois é acusado injustamente por traficar uma criança, um peso que sentimos no seu olhar por detrás de seu jeito durão. Seu arco, embora com pouco tempo de tela, é quase shakesperiano sem as falas pomposas, mas apenas gestos e expressões nobres. E isso estamos falando de um ser que assobia e faz voar uma flecha que sai matando todos seus inimigos.

O alívio cômico natural -- a total ignorância das coisas que temos na Terra -- dessa vez é usado de maneira exemplar. Peter Quill (Chris Pratt, o protagonista) pede desculpas a Rocket por chamá-lo de guaxinim (lembrando que ele não é um guaxinim, pois isso só existe na Terra); ele o chama no lugar de “lixo de panda”, o que é muito pior, mas que não tem efeito nenhum até que o próprio Quill explique isso. E o brutamontes Drax (Dave Bautista), o personagem mais apagado, consegue arrancar alguns bons momentos com seu jeito desprovido de sutileza, como ao perguntar a um novo personagem se ele possui órgãos genitais como se estivesse perguntando se ele usa relógio. Esse tipo de humor em Vol. 2 é quase inexistente no original, ou apagado pela sua suposta seriedade, mas aqui é o que de fato constrói uma trama que desenvolve o universo como ele foi idealizado: escrachado para explorar as confusões culturais entre as pessoas, dando um novo olhar em como a subjetividade das experiências pode isolar as pessoas.

E por falar em isolar, o personagem de Kurt Russell, Ego, é o exemplo máximo da obra. Sendo um Celestial, algo semelhante a um deus, podendo criar seu próprio mundo, sua única visão de significado no universo é criar um universo formado por… ele mesmo. Seu isolamento completo de todas as pessoas gera uma anomalia em sua visão de mundo, e é isso que é usado como vilão no filme e ao mesmo tempo como escape humorístico. Seus planos podem ser acusados de convenientemente maquiavélicos, mas é necessário aqui, mais uma vez, colocar o chapéu de Celestial e entender suas motivações, por mais bizarras que estas sejam. A interpretação de Russell, e muito menos suas ações, não deixa muita margem para empatia, o tornando aos poucos o mal desde o início declarado de maneira velada.

E até personagens mal conduzidos, como Teaserface, consegue não apenas ser usado para um momento de humor simples e eficaz a respeito do seu nome (com direito a repeteco mais pra frente), mas também é um exemplo de como a maquiagem consegue ser tão eficaz em “Guardiões”, com sua face meio desfigurada que lembra alguém que já passou por muita violência, construindo um mundo absurdamente real em uma fantasia ironicamente mais absurda que todos os filmes da Marvel juntos. Conseguindo tanto referenciar o mundo dos quadrinhos com cenários deslumbrantes e enquadramentos cafonas, em câmera lenta e com seus personagens soando desnecessariamente imponentes com uma excelente trilha sonora dos anos 80 (terráqueo), a fotografia com cores exageradas está aí justamente para servir a esse propósito, e se transforma em algo tão lindo de se ver como significativo em seu tema. E me surpreendeu que o 3D do filme, apesar de ser prejudicado nas cenas de ação frenética (felizmente poucas), consegue dar um ar de imersão interessante, pois ele também serve como uma maneira de utilizar a mídia cinematográfica em algo mais “comics”.

Guardiões Vol. 2 contém em seu núcleo de roteiro e direção de James Gunn (do primeiro Guardiões, mas principalmente do excelente e desconhecido “Super”) um mundo ainda a ser explorado em inúmeras continuações. Ele não tem medo de expor um pouco de violência, nem de matar alguns personagens pelo motivo dramático. Porém, principalmente, ele não tem medo do ridículo, pois entende que este universo é o lugar ideal para explorar esse lado B das produções de super-heróis sem perder a produção classe A. E, assim como Deadpool, comprova que o universo Marveliano merece cada vez mais menos seriedade e mais trilhas sonoras saudosistas. É quase como voltar a ser criança durante o tempo de projeção.


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