# Festa da Salsicha
Caloni, 2018-06-02 cinema movies [up] [copy]Essa delícia de filme é aquele tipo de brincadeira que você vai aumentando com os amigos mais chegados e, quando vai ver, está produzindo um filme. Seth Rogen, Johah Hill, Evan Goldberg, Kristen Wiig e mais uma série de atores irreverentes auxiliam na escrita, produção (nenhum grande estúdio estaria por trás disso) e atuação (dublagem) desta animação que definitivamente não é para crianças, mas que poderia servir de lição para muitos adultos com algumas partes da mente ainda infantil. E ainda dar boas e pesadas risadas.
Greg Tiernan, um diretor mais marginal (Deu a Louca na Cinderela) dirige esta bagunça com a ajuda do diretor mais experiente Conrad Vernon (e especialista em animações, como Shrek 2, "Monstros vs. Alienígenas" e "Madagascar 3: Os Procurados") e conseguem o pequeno milagre de tornar o resultado enxuto e na maior parte das vezes acompanhável como narrativa, mesmo com as trocentas piadas que esta trupe de humoristas inseriu nesta gigantesca alegoria sobre o mundo dividido que temos (como a eterna briga entre judeus e palestinos) que se encaixa na intolerância e a miopia de religiões em geral (incluindo aqui também a agressividade dos neoateus) e sobre levar às últimas consequências o Dia da Independência americano, ao liberar das garras dos insaciáveis humanos os rotativos produtos de um supermercado onde a história se passa.
O protagonista, uma salsicha embalada para ser consumida dentro das "pãezinhas" que são vendidas na mesma proporção de pacotes pares (e cuja conotação sexual já começa nos seus lábios em formato de ambos os lábios de uma mulher), vive, assim como os outros, cantando no começo de cada dia naquele supermercado, aguardando por ser comprado pelos deuses (no caso, os humanos) e ser levado para "a luz" (através da porta de entrada), onde receberão a recompensa dos céus por serem obedientes e acreditarem e reverenciarem seus deuses. Eu não quero nem ressaltar a perfeição da analogia desta história com qualquer religião clássica Ocidental que você conheça; basta reler esta descrição ou observar cada detalhe sendo comentado no longa, incluindo aqui a sensacional sacada de um pãozinho árabe que espera por 72 garrafas de azeite extra-virgem como sua recompensa.
O conflito de interesses daqueles obedientes produtos ocorre quando um pote de mostarda e mel é devolvido, e ele relata o que os antigos nativos do local (os produtos não-perecíveis) já sabem, mas mantém em segredo para a estabilidade daquela sociedade: a dura e cruel realidade que os deuses na verdade consomem seus "fiéis", das maneiras mais cruéis possíveis (isso se você imaginar aquela realidade do ponto de vista daquelas figuras com mãozinhas e perninhas). Não há o prazer infinito de uma salsicha enfiada confortavelmente em uma pãozinha se logo depois ambos são devorados. A partir daí ocorre uma cisão de opiniões entre a protagonista salsicha e sua pãozinha, em mais uma analogia sensacional envolvendo sexo antes do casamento.
Cada novo episódio neste filme expande as ideias do longa na mesma proporção que eu imagino que as piadas desses colegas de profissão foram expandindo conforme o roteiro coletivo foi tomando forma. Muitos momentos parecem ser criados apenas para inserir as piadas a respeito do conflito na Palestina ou referências aos desejos proibidos de "uma" taco lésbica, e se torna impossível imaginar um vilão mais sujo e perverso do que uma ducha vaginal que foi deixada de lado no último momento pela sua potencial compradora.
Aliás, eu falei sobre episódios porque de fato há uma estrutura um tanto episódica cujo objetivo se torna claramente ir desmembrando o repertório de piadas. Mas isso em (quase) nenhum momento significa que a história paralise para dar vazão a piadas fora de contexto. A direção dinâmica da dupla Tiernan/Vernon elabora uma construção de mise-en-scene que funciona em diferentes planos. Quandos os heróis sobem em uma prateleira para observar um plano geral do mercado e para onde devem ir enxergamos a real dimensão de um mundo para os moradores do local. Já quando a ação se passa entre corredores apertados onde se misturam diferentes tipos de salsas mexicanas (e outros produtos que já passaram do prazo de validade) o ambiente se beneficia do clima underground daqueles lugares nunca antes visitados pelas estrelas do supermercado em época de feriado americano para dar a sensação a nós, espectadores, de estar perdido em um supermercado (mas nesse caso como se fosse uma questão de vida ou morte).
O longa, a meu ver, vai longe demais quando ele faz uma piada envolvendo a persona de Stephen Hawking sendo uma goma de mascar ultra-passada que anda em uma cadeira da rodas elétrica, mas em um bom sentido. Nesse momento as piadas de cunho sexual se tornam ligeiramente menores frente a uma alegoria que vai até suas últimas consequências, e cuja sequência-chave envolve se drogar com sais de banho e um pedaço de pizza que perdeu as pernas. Isso, meus amigos, é imaginação sem controle e sem censura. O conjunto da obra se torna uma piada de uma hora e meia para ser vista e revista com os amigos em um encontro casual regado a álcool. Claro, se você não se sentir mal depois, dependendo da comida que forem ingerir, pois cenas fortes virão. Eu evitaria baby carrots.
Finalizando o longa com uma sequência orgástica que me fez pensar em quantos pais tiveram que conversar com seus filhos após levá-los inadvertidamente para assistir essa fofinha animação com salsichas e pães, Festa da Salsicha é uma experiência bem-sucedida como Cinema e humor adulto do começo ao fim, muito embora as piadas gratuitas o façam perder o ritmo aqui e ali. Mas com dublagens repletas de profissionais competentes e com uma direção firme que consegue manter as rédeas de uma história que faça o mínimo de sentido, eu diria que o excesso de piadas é o menor dos problemas. Talvez seja apenas uma das razões para ver o filme de novo. Dica: convide aquele seu amigo religioso para um debate saudável. Esse é o nível de confiança que tenho com o "politicamente incorreto sob controle" que o filme passa.
# Artista do Desastre
Caloni, 2018-06-05 cinema movies [up] [copy]The Room é um filme especial para muita gente (eu incluso). A maioria dos filmes ruins são apenas filmes com um roteiro equivocado, baixo orçamento, atuações pedestres e uma direção perdida. Os sharknados da vida, por exemplo, são divertidos, mas foram já feitos sem a intenção de serem bons. E a saga Transformers apenas comprova que Michael Bay está cada vez mais senil. Já obras como The Room possui um charme em sua produção que transcende o trash, o gore ou qualquer outro atributo que você utilize para a categoria dos filmes ruins. Ele transcende de tal forma que ele merece um filme sobre ele, tal poder de sedução ele exerce para o cinéfilo apaixonado pelo Cinema e o que quer que seja que ele tem a oferecer. Vamos analisar um pouco o que é isso.
Cult isolado deste século entre os filmes que deram muito, muito errado, The Room atraiu a atenção de James Franco, que resolveu atuar interpretando Tommy Wiseau, o responsável pela produção, direção, roteiro do filme original. Sendo fiel à proposta, Franco, que está irreconhecível no papel de Wiseau, também dirige o longa sobre a produção do The Room, que é narrada à luz do livro autobiográfico do melhor amigo de Wiseau, que foi o segundo ator do projeto e que aqui ganha vida através do irmão do diretor, Dave Franco. Dave e James são atores consagrados há um tempo, a ponto de se sentirem confortáveis interpretando pessoas da vida real que não o são. Desde o começo do relacionamento deles percebemos que ambas as figuras, Wiseau (James) e seu novo amigo Greg (Dave), nunca chegariam muito longe utilizando a falta de talento na dramaturgia.
Mas por sorte do destino Wiseau é uma figura estranha, mas que tem dinheiro. Muito dinheiro, por sinal. Ele tem casas em São Francisco e em Los Angeles, para onde eles estão indo para se tornar o novo James Dean. Quer dizer, ao menos Greg, que tem idade para isso. Tommy, não sabemos sua idade, mas sabemos que ele se interessa por jovens da idade de Greg, além de ter um sotaque irreconhecível, e que ele insiste em dizer que veio de Nova Orleans. Wiseau possui um temperamento que beira o bebê chorão. Mas como ele é dono da bola todos em sua volta são obrigados a aguentar os ataques de humor, as ofensas gratuitas e o gigante buraco negro de fama onde ele pretende se enterrar e a todos que confiarem em seu projeto: roteirizar, produzir, dirigir e atuar em um filme 100% independente.
Verdade seja dita: sem o carisma empregado por James Franco a uma criatura tão polêmica quanto Tommy tudo iria por água abaixo. O sujeito é antipático no máximo, mas possui uma certa paixão pelo Cinema que não passa pelo filtro da razão. Ele é muito estúpido para ter um filtro da razão. Ele é puro, infantil, ciumento, invejoso. Está na cara que ele teve uma história de traição em sua misteriosa vida e que isso está agora sendo representado diantes das câmeras. É praticamente um autista tentando filmar sua obra-prima. Me faz lembrar de Abed, de Community, quando ele grava um filme para que seus pais entendam o motivo dele ter o sonho de ser cineasta. O resultado é horrível e apenas seu pai entende. Algo me diz que ninguém consegue entender racionalmente The Room, mas muitos conseguem capturar a essência do que ele representa para o Cinema.
Já Dave Franco é o parceiro ideal de James para fazer Greg, pois o seu jeito de amigão, bonito e simpático, é o reflexo positivo que Tommy precisava para sua bizarra existência. Greg também não é um ator muito bom, mas estando em Los Angeles as oportunidades mínimas para viver da arte começam a surgir. Ele namora uma garçonete (Alison Brie) e através dela tem contato com Bryan Cranston (que faz uma ponta sendo ele mesmo, assim como vários atores e atrizes), na época atuando em uma série de sucesso, Malcolm. Ele ganha um convite para participar de um episódio onde precisa manter sua barba. É apenas um dia antes dele precisar fazer a barba para o filme de Tommy. Greg é incapaz de mentir para o amigo. Tommy é sincero demais e Greg gente boa demais. E o resultado é que ele despedaça essa amizade em questão de segundos.
Artista do Desatre é um ótimo retrato de como filmes absurdos podem surgir, filmado com a câmera na mão em estilo documental e imediato. Mas é muito mais do que documental. Ele é sobre essa fascinação sobre esse conteúdo horrível que aparece no Cinema de vez em quando. The Room é um desses marcos, virou um cult, e pessoas de todo o mundo não conseguem deixar de gostar deste filme. Assim como eu. Curiosamente o filme traça um paralelo com a própria figura de Tommy Wiseau. Ele é uma pessoa difícil. Horrível, podemos dizer. E ingênua. E essa ingenuidade é tão impactante para os que apreciam arte que se torna seu escudo para o ódio, e o trampolim para o sucesso do underground.
# Sense8 S02: Amor Vincit Omnia
Caloni, 2018-06-17 cinema series [up] [copy]O cancelamento da série Sense8 pela Netflix nos apresentou um exemplo muito óbvio de como séries bem-feitas não podem funcionar como filmes, pois foram concebidas para expandir o seu mundo personagem a personagem, caso a caso. Quase como uma novela bem feita. E no caso do delírio criativo, poético e existencial de Lana Wachowski, mais do que nunca.
O que ocorre no episódio/segunda temporada se torna um trabalho impressionante dos roteiristas em comprimir uma temporada inteira e todas as suas reviravoltas, incluindo até o final da própria série, resumido em 151 minutos. Para o espectador é exigido um nível de concentração e aceleração da narrativa acima do comum. Para uma série que exige um pouco de exercício mental, principalmente nos diferentes e diversos tipos de cortes entre os oito personagens principais conectados sensorialmente, e ainda mais quando estes entram em ação e exibem cada um suas habilidades em "corpos" diferentes, essa condensação de arcos e reviravoltas é cansativo e vai parecendo aos poucos repetitivo. Quando pela segunda vez um determinado personagem é sequestrado já não temos muita fé de encontrar a redenção esperada desta trama "fora de série".
Mas sejamos justos desde o começo. E a história recomeça a partir de onde parou, pausando nas memórias e consequentemente na história da infância de Wolfgang (Max Riemelt), um dos dois reféns (um de cada lado da guerra entre espécies) mantido pela organização criminosa da série. Essa é a parte mais singela e mais bela da série, pois depois de acompanharmos a mudança da consciência de pessoas localizadas em espaços diferentes, a transição feita entre o Wolfgang pequeno e já adulto é a mesma transição que qualquer Homo Sapiens está fadado a fazer no decorrer de sua vida. Presos em suas memórias de quem fomos para nos definirmos quem somos e a partir disso viver o quem seremos, somos seres inevitavelmente contidos no tempo; mas nunca somos a mesma pessoa em tempos diferentes. Ao usar o mesmo "truque" narrativo já conhecido pelo espectador da série que é feito entre pessoas diferentes localizadas em lugares diferentes do planeta para a mesma troca, só que agora da mesma pessoa em espaço e tempos distintos, a diretora Lana Wachowski realiza a analogia mais bela que poderia se esperar de uma série cheia de brilhantes ideias a respeito de quem somos: consciências separadas vivendo neste mesmo planeta. E por nunca tentar explicar isso com diálogos expositivos esse se torna também o momento mais econômico.
Iniciando com esse conjunto de transições inspirador, o episódio vai aos poucos se entregando à fórmula já consagrada para os fãs onde há momentos cômicos misturados com momentos de tensão e muita trilha sonora (muitas vezes repetida demais) para ligar esses estados de humor que balançam ao sabor do vento para o respiro do espectador. Isso acontece muitas vezes no mesmo quadro, quando um grupo se concentra em rastrear a vida de Sussurros (Terrence Mann), o maníaco por trás da organização criminosa, enquanto ao fundo vemos o ator do grupo treinando para seu papel. Esse paralelismo é interessante como experimentação, mas em um clima corrido do episódio soa mais como uma tentativa de contar vários acontecimentos o mais rápido possível.
E isso pode-se dizer também dos fechamentos românticos, que são muitos, e que são resolvidos com uma leviandade que soa como desleicho desde o começo. Sim, é preciso perdoar os roteiristas por esses atropelos, pois estão trabalhando com o conteúdo para pelo menos 640 minutos em menos de um quarto desse tempo, mas é necessário também ressaltar que alguns arcos nunca precisariam ser fechados. Principalmente o de Doona Bae, este que soa o mais cafona e jogado de todo o episódio. E o que dizer da resolução na última cena para a mãe da transexual que não a aceita, um verdadeiro bolo ex-machina?
Por outro lado, voltando aos pares românticos, revelar um possível caminho do triângulo amoroso formato pelo casal de indianos e Wolfgang poderia ser previsto pelo objetivo inclusivo da série de todas as formas de amor, e isso é louvável, mas mais uma vez a agilidade com que isso se resolve faz tudo perder seu peso. Através apenas desses exemplos pontuais é possível perceber ao mesmo tempo a força que a série teria em um tempo maior e o desperdício que isso gera em uma história que corre contra o tempo.
Atropelos em cima de atropelos, "Amor Vincit Omnia" é um projeto que começou já tendendo ao fracasso, mas que é simpático para o fã, que é o real objetivo desse fechamento de série. E se o real objetivo foi concluído, o projeto pode ser considerado um sucesso. O fracasso, no caso, é a decisão da Netflix em cancelar uma das poucas séries criativas e pulsantes da atualidade.
# As Portas da Percepção, de Aldous Huxley
Caloni, 2018-06-25 books philosophy [up] [copy]As Portas da Percepção é um (ou dois) ensaio do escritor Aldous Huxley que descreve com uma precisão poética os efeitos do uso da droga conhecida como mescalina, e se você tem vergonha na cara já deve ter se lembrado desse nome citado nas inúmeras vezes que assistir ao filme The Matrix. Quando Neo recebe uma visita que o acorda ("the white rabbit") ele ainda parece estar dormindo. Sua visita e cliente conhece esse efeito: "mescalina! A melhor maneira de voar". Aparentemente o Sr. Huxley voou bem alto em certo momento da vida.
O livro é curto, mas possui muitas distrações e comparações pela história da humanidade, que tentam de maneira completamente aleatória ligar o uso de drogas que ampliam a consciência do mundo com rituais das mais diferentes tribos pelo mundo e pelo resultado dos mais diferentes artistas, sobretudo os pintores. Por ser unicamente em modo texto o leitor precisa ter um conhecimento invejável da História da Arte ou merecíamos uma edição ilustrada para entender melhor o que o Sr. Huxley quer nos dizer.
De qualquer forma a parte mais útil se encontra no começo, onde ele estabelece algumas distinções vitais entre o uso de alucinógenos e o álcool ou o tabaco. Enquanto esses últimos, apesar de legalizados, possuem altas taxas de dependência e insalubridade ao organismo humano, alucinógenos como mescalina ou ácido não apenas não possuem efeitos colaterais permanentes, como sequer viciam seus usuários.
Mas a defesa de Huxley vai além, pois todo o ensaio tem por objetivo defender uma expansão de nossa realidade, sobretudo enxergamos o universo não mais do ponto de vista do "eu", mas do não-eu, uma nova forma de interagir com o universo que revela o que muitos filósofos já desconfiavam: que somos parte de um todo.
Cada indivíduo é a um só tempo o beneficiário e a vítima da tradição linguística no seio da qual nasceu ; é seu beneficiário na medida em que a língua lhe dá acesso aos registros acumulados das experiências de outras pessoas, e é sua vítima na medida em que a mesma língua confirma, no indivíduo, a crença de que a consciência reduzida é a única consciência, assombrando o seu senso de realidade e criando nele a tendência quase inevitável de substituir os dados pelos conceitos, as coisas reais pelas palavras.
O cérebro contém vários sistemas enzimáticos que servem para coordenar suas operações. Algumas dessas enzimas controlam o fornecimento de glicose para as células cerebrais. A mescalina inibe a produção dessas enzimas e, assim, diminui a quantidade de glicose disponibilizada a um órgão que necessita constantemente de açúcar. O que acontece quando a mescalina reduz a ração normal de açúcar fornecida ao cérebro? Uma vez que os casos observados foram poucos, ainda não podemos dar uma resposta completa a essa pergunta. Mas podemos resumir a seguir o que aconteceu com a maior parte dos poucos que tomaram mescalina sob supervisão. A memória e a capacidade de "pensar direito" pouco ou nada se reduzem. (Ouvindo as gravações das minhas conversas sob a influência da droga, não constato que eu estivesse então mais obtuso do que sou normalmente.) As impressões visuais se intensificam e o olhar recupera parte da inocência perceptiva da infância, quando as sensações não se subordinavam imediata e automaticamente aos conceitos. O interesse pelo espaço diminui e o interesse pelo tempo quase se anula.
E, de qualquer modo, o corpo parecia perfeitamente capaz de cuidar de si próprio. Na realidade, ele cuida de si próprio o tempo inteiro. Tudo o que o ego consciente pode fazer é formular desejos, que são então executados por forças que ele controla muito pouco e não compreende em absoluto. Quando faz qualquer coisa a mais -- quando se esforça demais, por exemplo, quando se preocupa, quando fica apreensivo quanto ao futuro, ele diminui a eficácia dessas forças e pode até causar doenças no corpo desvitalizado.
Se a mescalina fosse tóxica como as outras drogas de poder comparável ao seu, o simples fato de tomá-la seria suficiente para causar ansiedade. Mas a pessoa razoavelmente saudável sabe de antemão que, no que lhe diz respeito, a mescalina é completamente inócua, que seus efeitos passarão ao cabo de oito ou dez horas sem deixá-la de ressaca e sem, portanto, produzir nela a ânsia por uma nova dose.
O esquizofrênico, além de ser uma alma não regenerada, é também desesperadamente doente. Sua doença consiste na incapacidade de se refugiar da realidade interior e exterior (como faz habitualmente a pessoa sã) no universo prosaico do senso comum -- no mundo estritamente humano das noções úteis, dos símbolos compartilhados e das convenções socialmente aceitas.
Parece muito improvável que a humanidade em geral seja capaz de dispensar um dia os Paraísos Artificiais. A vida da maioria dos homens e mulheres é, na pior das hipóteses, tão dolorosa, e, na melhor, tão monótona, pobre e limitada, que a vontade de escapar, o anseio de transcender a si mesmo, por poucos momentos que seja, é e sempre foi um dos principais apetites da alma.
Para uma pessoa em quem "a vela da visão" nunca queima espontaneamente, a experiência com a mescalina é sem dúvida iluminadora. Joga luz sobre as até então desconhecidas regiões de sua própria mente; e ao mesmo tempo joga luz, indiretamente, sobre outras mentes, mais privilegiadas do que a sua no que diz respeito à visão. Ao refletir sobre essas experiências, essa pessoa pode chegar a uma nova e melhor compreensão das maneiras pelas quais outras mentes percebem, sentem e pensam, das noções cosmológicas que lhes parecem autoevidentes e das obras de arte às quais se sentem impelidas a nelas se expressarem.
Uma pessoa sob o efeito de mescalina ou ácido lisérgico vai parar de ter visões depois de uma grande dose de ácido nicotínico. Isso ajuda a explicar a eficácia do jejum como um indutor de experiência visionária. Ao reduzir a quantidade de açúcar disponível, jejuar diminui a eficiência biológica do cérebro e assim torna possível o acesso à consciência de um material que não tem nenhum valor para a sobrevivência. Ademais, ao causar uma deficiência vitamínica, remove do sangue o inibidor das visões, o ácido nicotínico. A psicologia experimental descobriu que, se um homem for confinado em um "ambiente restrito", sem nenhuma luz, som ou odor, e mergulhado em um banho morno com algo quase imperceptível ao toque, ele logo começará a "ver coisas", "ouvir coisas" e a sentir estranhas sensações em seu corpo.
Estava sentado na praia, ouvindo sem prestar muita atenção um amigo que argumentava violentamente sobre algo que me causava apenas tédio. Inconsciente de mim mesmo, olhei para um filamento de areia que eu pegara na mão e de repente vi a requintada beleza de cada grão; em vez de algo desinteressante e sem forma definida, vi que cada partícula era feita de acordo com um padrão geométrico perfeito, com ângulos bem definidos, e de cada uma delas refletia um intenso feixe de luz enquanto todos os cristaizinhos brilhavam como um arco-íris. Os raios cruzavam e recruzavam, criando padrões de uma beleza tão fantástica que me deixou sem ar. Foi quando, subitamente, minha consciência foi iluminada a partir de dentro e eu vi de um modo bem claro como todo o universo era feito de partículas de um material que, não importa o quão superficial ou sem vida pudesse parecer, era preenchido com essa beleza intensa e vital. Por um segundo ou dois o mundo inteiro apareceu-me como um resplendor de glória. Quando passou, me deixou com algo que nunca mais pude esquecer e que me faz lembrar constantemente da beleza encerrada em cada partícula mínima de matéria em torno de nós.
As imagens que aparecem nos limites mais próximos do subconsciente coletivo têm um significado em relação aos fatores básicos da experiência humana, mas, nos limites desse mundo visionário, somos confrontados por fatores que, como os de natureza externa, são independentes do homem, tanto individual como coletivamente, e existem sob seus próprios direitos. E seu significado consiste precisamente nisto: são intensamente eles mesmos e, assim sendo, são manifestações do caráter essencial "do que é dado", da alteridade não humana do universo.
o trabalho de um compartimento mental altamente diferenciado, sem nenhuma conexão aparente, emocional ou volitiva, com os objetivos, interesses ou sentimentos da pessoa.
PS: há um segundo relato que ele comenta também sobre a versão infernal do uso da droga. Começa interessante, mas cai em muito mais devaneios. Não terminei. Preferi entrar novamente no mundo ordenado de Aristóteles.
We had perhaps better consider the universal good and discuss thoroughly what is meant by it, although such an inquiry is made an uphill one by the fact that the Forms have been introduced by friends of our own. Yet it would perhaps be thought to be better, indeed to be our duty, for the sake of maintaining the truth even to destroy what touches us closely, especially as we are philosophers or lovers of wisdom; for, while both are dear, piety requires us to honour truth above our friends.
# Jurassic World: Reino Ameaçado
Caloni, 2018-06-25 cinema movies [up] [copy]O tema sério de Jurassic Park, sobre a responsabilidade do ser humano sobre o planeta, incluindo a própria natureza (uma mensagem bíblica contida em um livro de sci-fi?), já foi torcida e retorcida tantas vezes que hoje em dia só sai uma gotinha de arrepio. Há uma gotinha extra, de sangue, para a diversão inconsequente. É lá que estão os milhões gastos em produções como essas.
E Jurassic World: Reino Ameaçado não tenta absolutamente nada mais que isso. Um resumo em lista: travestido de mensagem ecológica (a analogia com aquecimento global é tão óbvia que Jeff Goblin poderia resumir seu discurso que inicia/termina o filme apenas dizendo isso), devidamente embutido de mensagens SJW, cotas sobre empoderamento feminino (logo esquecido, assim como a "paleoveterinária" da história), além de contar com personagem negro, nerd e magro (Justice Smith) que supostamente deveria ser o alívio cômico, mas que consegue apenas dar a deixa para cortes de cena e tenta não ser muito irritante (spoiler alert: não consegue).
Já o casal principal formado pela donzela em perigo Bryce Dallas Howard e seu macho alfa Chris Pratt estão bem e apenas revivem em pedaços a aventura vivida no ótimo reboot da série. Eles possuem uma pequena tensão sexual acentuada pelo fato de que a atriz é extremamente gostosa, e o cineasta faz questão de deixar claro nas cenas que ressaltam seus seios e quadril. Eles não são alívio cômico e quase não movem a história. Ela nem precisa ser movida com esse fiapo de roteiro, em que os próprios donos do parque original pretendem resgatar os dinossauros quando o vulcão da ilha entra em erupção, usa a ajuda do casal principal fingindo que irão construir um santuário (há várias sequências daquele recurso batido da falta de comunicação para salvar o verdadeiro visionário do parque de culpa, além do segredo a respeito de uma menina absolutamente dispensável ser encoberto como se fosse algo impressionante (spoiler alert: não é). Na verdade irão vender e quando o casal descobre eles tentam impedir... não sei exatamente como. E não sei exatamente por quê os donos dos dinossauros acham que eles precisam ser mortos, não é como se houvesse alguma ameaça real do hot couple contra os planos maléficos dos donos dos dinossauros envolvendo sua mercadoria.
Mas este é um filme cujos momentos foram planejados unicamente para fazer referências a praticamente todas as cenas icônicas dos filmes anteriores. Se esse é um recurso usado para homenagear ou repetir o efeito que isso gerou em cada um desses momentos, não será possível dizer, pois praticamente todos eles não funcionam, pois não estão conectados com a coisa real. O exemplo mais marcante é a visão de um brontossauro surgindo ao fundo. Seja pela interpretação convencional da garota empoderada (a boba Daniella Pineda), que vê um dinossauro vivo pela primeira vez, ou pela rapidez com que o momento é construído, o fato é que além de ser uma cópia descarada de um dos momentos mais belos do original ainda soe mal feito. Isso por sua vez inverte as expectativas a respeito dos novíssimos efeitos digitais deste filme, que acabam enaltecendo não eles próprios, mas o pioneirismo e a construção de clima no trabalho original de Spielberg algumas décadas (e muitos, muitos gigahertz de processamento) atrás.
Com um enredo que existe meramente para voltarmos a esse mundo, a história sequer se preocupa em apresentar personagens que façam algum sentido. Quando o rabo de saia convida o macho alfa para voltar para a ilha, agora em erupção, sozinho, para buscar o filhote de dino que ele cuidou desde a infância, não importa. Apesar de Chris Pratt ser um excelente ator de comédias, essa parte dramática faltou para dar peso à história.
O que dizer mais? Os vilões são os 1% mais ricos, que fazem um leilão pelas criaturas orquestrada pela figura horrenda de um ator competente (Toby Jones o nome), mas que aqui se presta a uma caricatura (que nem assim se torna convincente). Ah, quase ia esquecendo: dessa vez o próprio caçador já é chamado como o "White Male Hunter", uma figura recorrente na série. O fato dele ser exatamente isso e nada comprova que este não é um filme em forma de parque, mas um parque de diversões em forma de filme. Assista na ordem que preferir.
# Morte na Escadaria (Staircase)
Caloni, 2018-06-25 cinema series [up] [copy]Mais uma série que demonstra a incompetência e/ou a má fé do sistema americano de justiça. Ou podemos dizer a má fé de qualquer sistema de justiça estatal? Perdoem-me os religiosos, mas um sistema que paga juiz e advogado de acusação pela mesma folha não tem muitas chances de ser algo remotamente imparcial.
O que me chamou mais a atenção foi que o juiz era negro e uma das promotoras era mulher e negra, julgando um branco rico pela séria acusação de homicídio. Mas você não vai ver ninguém sugerindo o suposto racismo no sistema judiciário americano, não é mesmo?
Nem os idealizadores, documentaristas franceses que realizaram o brilhante e tenso Making a Murderer. Eles possuem a disciplina e competência de filmar, a pedido do acusado, um escritor famoso, o circo que se forma em torno da morte acidental de sua esposa, caindo da escada bêbada e sangrando até morrer. Se trata de um caso que exige ciência e razão para que não se confunda com agressão doméstica, até pelas fotos do estado da mulher, que parece ter sido duramente abatida.
Só que racionalidade não existe no condado de Durham, que apesar de bem ao norte da Carolina do Norte, ainda pertence ao Sul dos EUA, e o pensamento preconceituoso limitado e tendencioso de seus habitantes. Peterson não é bem quisto entre as autoridades. Ele é um escritor de sucesso e escreveu uma coluna política no jornal local onde tecia duras críticas a representantes do governo por lá. E como ele mesmo diz, ninguém se esquece quando é feito de idiota.
Além disso temos a situação da sexualidade de Peterson. Dentro de um casamento heterossexual em uma família formada por outro casamento e diversos filhas e um filho vivendo em harmonia por tantos anos, Peterson também tinha um lado homossexual conhecido apenas por sua esposa. Quando isso vem à tona é como se fosse sua declaração de culpado por homicídio estampado em sua testa.
Recheado de incongruências em seu processo, e nos dando de brinde sua conclusão em 2017 (os documentaristas estavam a postos para fechar seu arco da vida real), Staircase é um trabalho coerente do começo ao fim, que consegue aparar as arestas de um tortuoso processo, que no começo nos dá o benefício da dúvida de ambos os lados, mas que acaba descambando para o inevitável: a justiça humana possui falhas tão inerentes à nossa natureza que a única coisa que nos resta é lamentar.
# Homem-Formiga e a Vespa
Caloni, 2018-06-27 cinemaqui cinema movies [up] [copy]O segundo Homem-Formiga arruma os erros do primeiro e se torna uma aventura divertida e despretensiosa sem apelar para o ridículo ou a comédia fácil. Mas o humor existe, em sua melhor forma para filmes de ação: nos diálogos, e não na ação em si.
O roteiro nunca tenta ser mais esperto do que pode, o que é uma pena, pois arriscar às vezes pode dar bons frutos para a Marvel. Mas ele é esperto o suficiente, e entende as características básicas de seus personagens. Dessa forma, é natural que quando o personagem de Paul Rudd se encontra rodeado de cientistas falando tecnês ou ele se utilize do sarcasmo espirituoso que sua persona consegue dizer -- ele conclui sempre que alguém fala algo de ciências com "foi o que eu imaginei' -- e ainda nos deixar na dúvida se ele está falando sério ou não. Um humor quântico, eu diria.
E por falar em quântico, aqui, diferente do primeiro filme, não precisamos nos preocupar com as gafes científicas, pois basta colocarem "quântico" no final das suas teorias que tudo soa científico e mágico ao mesmo tempo, exatamente como eram as sci-fis antigonas que encolhiam e esticavam humanos e criaturas, e estava tudo bem.
A história segue uma linha de uma coisa puxa a outra, e consegue harmonizar perfeitamente com o universo Marvel. Mesclando duas histórias, o filme começa com Scott Lang/Homem-Formiga (Paul Rudd) em prisão domiciliar por ter violado algumas leis americanas ajudando os Vingadores em outro filme (Guerra Civil), situação em que ele acaba melhorando sua relação com a filha, a adorável Cassie (Abby Ryder Fortson), enquanto divide a guarda com sua ex-mulher. No entanto, o tédio o sufoca quando fica sozinho, e no meio desses longos períodos onde Scott não tem nada para fazer ele aprende truques de mágica e tem um sonho onde ele se vê como uma mulher que, sabemos pelo flashback inicial do filme, é a esposa do Dr. Hank Pym, desaparecida há três décadas no mundo quântico (claro).
Basta olhar para a figura do Dr. Hank Pym e sua filha com um nome estiloso, Hope Van Dyne (Evangeline Lilly com energia de sobra), e suas posturas diante de mais uma grande criação, o túnel quântico (claro), para percebermos uma certa referência e homenagem às figuras lendárias do passado e suas invenções fantásticas. O Dr. não é um cientista maluco como Doc. Brown, pois não está em uma comédia, nem é sério e obcecado como Duende Verde em Homem-Aranha, pois ele possui a cabeça no lugar. Se trata de um velhinho ranzinza interpretado por um Michael Douglas que não deseja ficar no caminho dos heróis do filme.
Pena que aqui os heróis, e todos os personagens, são inócuos. Estão de passagem pela história e servem à ação em vez de serem seus protagonistas. Há um vilão do mercado negro (Walton Goggins), uma vilã com uma tragédia em seu passado (uma interpretação muito interessante da atriz Hannah John-Kamen, que oscila suas expressões da mesma forma que a doença que possui) e junto dela um cientista gênio rival de Michael Douglas, o sempre side kick Laurence Fishburne. Do lado cômico há Paul Rudd fazendo Homem-Formiga e sua irreverência, seu amigo Luis (Michael Peña) e sua empresa de segurança beirando à falência (fato curioso: um de seus funcionários é um russo com a melhor side joke envolvendo uma bruxa de historietas para crianças). Ah, sim, há o FBI, como se faltassem obstáculos para os heróis.
Todas essas pessoas participam em maior ou menor grau, equilibrando a história sem criar grandes momentos, o que faz com que ela não dependa de grandes interpretações ou efeitos. Mas, como todo pseudo-sci-fi centrado na ação, o divertido do filme é observar como a tecnologia de encolher e esticar coisas é usado ad nauseam, como na forma inusitada com que um prédio é transportado ou a coleção de carros no porta-miniaturas da Hot Wheels.
Dotado de diferentes atmosferas, note como a trilha sonora de Christophe Beck mapeia tudo isso, passando para o momento lúdico onde convenientemente a roupa do Homem-Formiga dá defeito e ele fica do tamanho de uma criança em plena escola da filha, ou admirando em êxtase um universo que se abre na escala microscópica, e que pelo uso de cores pode ser facilmente confundido com uma viagem de ácido. De ambas as formas, falta impulsividade, mas nunca competência.
Todos perseguem o Homem Formiga e seus companheiros nesta segunda aventura do herói que acerta seu tom entre o fantástico e o humor. Com isso nos esquecemos facilmente que existem outros heróis no universo Marvel, não prejudicando nossa imersão nessa história local. E como é bom acompanhar uma história simples, sem vilões megalomaníacos tentando destruir uma cidade, um planeta ou um universo.
PS: Por falar nisso, há duas cenas pós-créditos. A primeira é logo após o encerramento e vale a espera. A segunda é por sua conta e risco.
# O Plano Imperfeito
Caloni, 2018-06-28 cinema movies [up] [copy]Você já sabe a história pelo trailer, e até algumas das piadas. Ele e ela são assistentes de Lucy Liu e um outro cara (Taye Diggs), que fazem o estilo obcecados pelo trabalho da Meryl Streep em O Diabo Veste Prada, mas sem o charme, o carisma, a inteligência e o motivo de assim serem. Logo, são apenas egoístas mimados que sugam todo o tempo de seus subordinados, evitando que eles também tenham uma vida social, aguardando pela grande guinada de suas vidas. Quando ambos se encontram na mesma situação lamentável de trabalharem até tarde todos os dias resolvem bancar o cupido para que os dois mimados fiquem juntos e assim tenham mais tempo para suas próprias vidas. O que ocorre se assemelha a tantos outros tabalhos, com as piadas modernizadas para "first world problems" dos 2010s.
Este não é um filme sobre os chefões, mas sobre seus dois dedicados e simpáticos funcionários. Sabemos disso porque mal o vemos, mesmo depois que o plano deles dá certo. E também porque ninguém se interessa em uma comédia romântica por quem não se veste de colorido. A menina se veste, e ela se movimenta espontânea mesmo que lembre um ataque epiléptico. Ela é interpretada por Zoey Deutch, uma atriz que já fez pequenas pontas em alguns trabalhos no Cinema e TV e tem o potencial de ser uma sub-queridinha das ComRoms. Ele é interpretado por Glen Powell, o que já diz o suficiente. O importante é que ambos são lindinhos, fofinhos, e você até já sabe quem vai ficar junto no final.
Isso quer dizer que podemos nos concentrar durante o filme sobre seus outros aspectos. Como suas piadas, ou a forma de ver a vida. Ou até mesmo o jeito desajeitado com que as cotas são colocadas aqui. A agilidade com que esses dois agem é típico daquelas séries onde no final da cena toca aquele mesmo som de finalização. Não se trata de um roteiro particularmente inspirador de Katie Silberman, que consegue se soltar bem mais em seu Como Ser Solteira. Além disso, a direção de Claire Scanlon deixa claro que duas mulheres trabalhando nos cargos principais de uma ComRom moderna deveriam ter o dever moral de tornar a história e a posição de seus personagens o mais livre possível do patriarcado. Não conseguem, apenas jogam com as estatísticas pateticamente.
A maior prova disso é que os chefões do filme, que apesar de malvados estão em posição de destaque naquela sociedade, fazem parte de minorias étnicas. Taye Diggs é o negão bem-sucedido, apesar de no filme apagado demais, e até deixar entre os negões do filme ter a atenção roubada por Evan Parke em uma ponta de 5 segundos (que vergonha). Já Lucy Liu, asiática, podemos dizer que não está no seu melhor (de atuação), embora, como podemos perceber em alguns momentos que seu corpo é enquadrado (que chauvinismo é esse, diretora Claire Scanlon?), aos quase 50 anos ela está no seu melhor, sim senhor. Afirmativo.
Não, este não é um filme que desafia o status quo, tenta promover diversidade e um diálogo saudável sobre os limites do bullying corporativo. Ele sequer é engraçado, e coloca um amigo gay de tabela para preencher mais cotas, além do casamento de uma mulher que já dormiu com todos na vizinhança como... empoderamento? Quando quer apelar para a felicidade nas coisas simples começa um diálogo em um restaurante chique sobre como uma pizza de cinco dólares pode trazer felicidade? Muito feio, dona Katie Silberman, sendo contratada pela Netflix para fazer atrocidades semi-engraçadinhas semelhantes que se distancia dos roteiros vigorosos de Nora Ephron e se aproxima de Naked. Shame on you.
# Nos Vemos no Paraíso
Caloni, 2018-06-29 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Nos Vemos no Paraíso tem a estrutura de um conto de fantasia, ou uma peça de teatro, mas consegue espaço para expandir timidamente sua história através de cores, arte, música e ação. Muita ação.
A ação do filme é anedótica. Seus personagens são caricatos desde o começo. Até os agentes do governo, por exemplo, lembram urubus comendo a carniça o quanto podem (em uma cena vemos um fiscal devorando uma asinha de frango enquanto se prepara para tirar o máximo que puder de um serviço de enterro de soldados mortos na guerra). A história é sobre uma amizade, ou parceria, que encontra momentos de amor, ódio, medo, ambição. Como na guerra, um misto de emoções define melhor as pessoas envolvidas. O pano de fundo é a corrupção, íntima de cada um de nós ou sistêmica, com um viés mais ou menos político.
Mas este também é um filme francês de época. Logo após a primeira guerra. Como todo filme francês é exagerado na sua exaltação da arte do começo do século, o que se confunde com sua própria textura, escura, como uma projeção, e com cores que flertam com o bucólico infanto-juvenil de uma Paris senso sonhada para a telona. As casas, as ruas, as pessoas, o bairro de Belleville (quase imaginamos a cantora Édith Piaf, que nasceu no bairro, andando pelos seus becos), Moulin Rouge. Tudo está misturado lindamente. Podemos até nos distrair pela beleza enquanto acompanhamos uma história feia.
A história brinca com vida e morte. Mais a morte. Em época de guerra, os que lucram com a morte sempre a exaltam. Se torna uma quase brincadeira de mau gosto quando percebemos que praticamente todas as pessoas do filme exploram a morte. Seja mocinho ou bandido, idiota ou inteligente, a morte é o caminho da salvação dos que estão vivos. Até a morfina, uma morte lenta pela ausência de dor, entra na jogada, como moeda de troca (e roubo).
Este é o velho conto do soldado desfigurado, que já chegou em pedaços psicologicamente e na guerra recebeu seu destino fisicamente, perdendo sua maxilar. Sendo um artista, isso é explorado no filme através de diferentes máscaras carnavalescas, que viram uma atração à parte. Como espectadores, viramos cúmplices em apreciar a triste beleza de um filho (Nahuel Pérez Biscayart) que foi renegado pelo pai (Niels Arestrup) por desenhar lindamente e não se preocupar com os negócios da família. Agora ele não possui a própria boca para expressar o que sente, mas ele é um artista, e de suas esculturas faciais e seus grandes e expressivos olhos surge algo muito mais poderoso.
Ao mesmo tempo temos seu companheiro do front, Albert Maillard (Albert Dupontel), cuja vida foi salva pelo soldado-artista antes dele morrer sufocado, indo buscar seus últimos suspiros de um cavalo moribundo. Mais tarde, em meio às máscaras confeccionadas pelo personagem de Nahuel Biscayart, ele confecciona uma cabeça de cavalo para Albert, e a alegoria se fecha: ele se torna o cavalo que o salvou, e o rapaz desfigurado, incapaz de falar corretamente, relincha como um cavalo. As alegorias pulam de personagem em personagem, e é difícil caracterizar cada um deles quando todos se parecem. A mensagem do filme, se é que há alguma, se perde na tradução desses sentimentos.
No meio da história fiquei com medo deste ser um filme de Jean-Pierre Jeunet, que é um excelente contador de histórias dentro de mecanismos que se sobressaem aos seus personagens, um padrão que tem tudo a ver com "Nos Vemos no Paraíso". O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, Micmacs - Um Plano Complicado, Uma Viagem Extraordinária. Tudo nos leva a Pierre Jeunet, menos o peso do tema, e é apenas isso que separa o filme do diretor Albert Dupontel das obras mais fantasiosas de Jeunet, e nos permite acompanhar esta história sem face como se ela fosse relevante.
Ou quase. Fechando seus arcos de uma maneira conveniente demais, apesar de necessários, o filme perde o elemento surpresa muito rápido, não nos dando tempo de sentir seus personagens como se eles fossem reais. Isso faz perder o peso de toda a narrativa, e consequentemente sua mensagem anti-bélica. E o que nos faz voltar à atmosfera de um conto. Um conto que, podendo se passar em um palco, começa e termina em uma delegacia de Marrocos em 1920, na exótica e longínqua África. Os antigos épicos adoravam isso. Aqui tudo soa embrulhadinho demais. Mas apesar disso, um entretenimento de primeira.
# Screenland
Caloni, 2018-06-29 cinema series [up] [copy]Essa série parece ter a intenção de reconhecer a genialidade dos gamers em antecipar futuras tendências nos jogos eletrônicos que virão com a melhora da inteligência artificial e a construção de ambientes virtuais, sejam eles realistas ou não.
Como o primeiro entrevistado sabiamente formula, a capacidade da mente humana em adaptar e interpretar nossa realidade será colocada à prova. Na verdade, já está sendo, como ele demonstrou em seu primeiro sucesso: um jogo que alia meditação com controle da consciência.
O formato desta série-documentário é o que incomoda. Com uma voz robótica e efeitos anos 90 dizendo como será a revolução digital de maneira profética, poética e piegas, a série nos tira a possibilidade de ativar nossa imaginação.
A coisa fica pior por causa do detalhamento inadequado da história. Em 20 minutos acompanhamos o desenvolvimento de duas criações experimentais sem saber direito como elas funcionam. Tudo bem existir o mistério do pra quê elas serão usadas (ninguém sabia direito para quê serviria o Twitter até ele começar a bombar), mas sem nos dar a chance de entender os objetivos por trás do autor da máquina de meditação fica difícil se identificar com seu protagonista.
Da mesma forma, o projeto patrocinado por George R. Martin, criador da série de livros Game of Thrones, que se passa em um mundo fictício, mas muito semelhante à Idade Média, peca em não estabelecer quando este projeto deverá ser considerado pronto. Mesmo jogos aparentemente sem fim como Minecraft tiveram sua versão 1 lançada para deleite de seus early adopters.
Sem saber direito a que veio e sem se destacar de vídeos do YouTube (alguns são melhor produzidos e mais atuais), está série está fadada a ser tão esquecível quanto as incursões de George Lucas em dourar sua pílula em uma galáxia tão distante. E isso ninguém precisa para viver.