# Domingo

Caloni, 2018-11-01 cinemaqui mostra cinema movies [up] [copy]

É muito fácil tirar sarro da caricatura da burguesia, com sua gente alienada e auto-centrada no próprio umbigo e propriedades. Difícil é, além de tirar sarro, manter o realismo para que os personagens próprios não virem eles próprios caricaturas. "Domingo", trabalho conjunto de dois diretores, Fellipe Barbosa e Clara Linhart, seguindo o ambicioso roteiro de Lucas Paraizo, consegue realizar isso e ainda mantém várias bolas no ar, dando conta de diversos personagens enquanto tece sutilmente sua crítica social.

A história gira, como o próprio nome diz, em um dia de domingo com a família. Aquele velho churrasco no sítio. Mas não é apenas um dia comum, mas a posse do novo presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, no primeiro dia de 2003. Mas ninguém liga e faz piada ou descaso; estão todos preocupados com a própria vida e os conflitos familiares que surgem à tona. Exceto a empregada "consciente" (pobres também podem ter caricaturas) que assiste pela televisão à posse. A alienação é demonstrada quando a grande massa burguesa nem sabe que é domingo e confunde com sábado (observação relevante: essa é apenas uma obra de ficção; o dia primeiro de janeiro de 2003 na verdade foi uma quarta-feira).

O filme consegue reunir todos os tipos de personagens de todas as gerações em uma família burguesa típica e ainda dar tempo de tela para todos os conflitos. A maneira com que os realizadores fizeram isso foi mostrando múltiplas ações no mesmo espaço. Enquanto acompanhamos o conflito principal ocorrendo entre as vozes que falam mais alto, no fundo ou no lado também observamos conflitos secundários, terciários. Tudo ocupa o mesmo quadro e depende do espectador prestar atenção em um conflito principal que se inicia, por exemplo, em um carro quase partindo do sítio e que termina sutilmente ao fundo de uma mesa que discute outro assunto. "Domingo" está a todo tempo mostrando ação simultânea não apenas como uma sacada genial narrativa, mas também pelo próprio realismo da vida, já que dificilmente as coisas na vida real acontecem uma a uma em fila. Quando a família se reúne são várias conversinhas paralelas rolando.

É até difícil elencar qual delas é mais importante, pois todas recebem igual atenção e todas se relacionam. O roteiro de Fellipe Barbosa inteligentemente decide não ser esperto demais ao abrir e fechar pequenos arcos dramáticos, preferindo deixá-los evoluir organicamente e terminar como geralmente terminamos as desavenças: com o próximo evento ocorrendo e chamando a atenção dos demais.

A não ser nos assuntos centrais que o filme discute com mais reverência, como a já citada posse do presidente, os diversos casos de luxúria dentro da família envolvendo traição e a questão primordial da propriedade, pilar principal com que a atriz Ítala Nandi e sua matriarca Laura seguram a performance absolutamente magistral de uma mulher que tenta controlar a tudo e a todos da maneira com que sempre agiu, dando ordens ou cutucando feridas, além dos conselhos de avó sempre inapropriados e que revelam claramente um desejo oculto de poder. Se torna até icônico o breve momento em que ela para para observar o discurso do novo presidente, como se finalmente estivesse olhando para alguém de igual para igual.

E ainda no campo das atuações será preciso elogiar a maneira completamente tresloucada e ao mesmo tempo realista com que a talentosíssima Camila Morgado vive sua Bete, uma mulher casada com um homem dessa família do Sul e que sempre é colocada à margem, e que por isso mesmo entendemos sua postura anárquica e hedonista, pois é sua única escapatória para manter a pouca sanidade que exibe.

Os diretores estiveram à frente da tela antes do início da última projeção da Mostra para falar sobre a ironia que ocorre neste momento. Eles dizem que naquela época muitos temiam uma ditadura comunista e eram obviamente motivo de piada pelo resto da população. Agora "eles" (imagino que a esquerda) se sentem da mesma maneira, sendo alvos de escárnio por temerem um movimento de extrema direita vinda da vitória de Jair Bolsonaro na presidência. O diretor, Fellipe Barbosa, captou com perfeição a ironia. Mas ao terminar sua introdução ao filme, ao manter um semblante e um tom sério demais para a ocasião, falha miseravelmente em captar o sarcasmo. E isso, pessoalmente, eu acho muito mais revelador que a belíssima ficção que eles desenvolveram.


# Sobre Pais E Filhos

Caloni, 2018-11-01 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Sobre Pais e Filhos é o tipo de filme que o diretor já ganha nota máxima apenas por ter filmado tudo aquilo e voltar com vida, mas ele é ao mesmo tempo um trabalho narrativo impactante na medida certa e para os corações mais fortes, conseguindo realizar uma imersão completa do espectador para aquela realidade, poir mais revoltante, angustiante, insuportável e horrível que ela seja.

A história é simples: o próprio diretor, Talal Derki, volta ao seu país natal, a Síria, e é recebido por uma família islamita radical, jihadistas e defensores do califado (uma espécie de monarquia islâmica e religiosa, claro). Ele convive com eles por dois anos e acompanha o crescimento de principalmente dois dos seus filhos: Osama e Ayman, de 13 e 12 anos. Desde os momentos lúdicos com as brincadeiras de criança até o momento em que eles precisam se alistar como combatentes jihadistas, Talal Derki está atento a todos os valores dessa cultura e modo de viver no meio àquele caos.

O resultado são declarações extremamente polêmicas de seu anfitrião e pais das duas crianças, como por que ele escolheu o nome de seus filhos (um deles tem o nome do terrorista que derrubou as torres gêmeas). Ele vive de buscar minas enterradas onde vivem para coletar o material com que ela é feita e conseguir dinheiro. O grupo ao qual ele pertence está alinhado com a Al Qaeda, e você ouvirá os motivos pelo qual ele defende a posição radical onde está inserido.

E ao mesmo tempo que os diálogos revelam exatamente os valores desse grupo de muçulmanos, não exatamente a exceção, você também irá acompanhar a ação do dia-a-dia, como a educação que seus filhos recebem, como jogar pedras nos alunos de uma escola ou brincar de fazer uma bomba caseira com terra e ácido. O treinamento de jihadistas é a parte mais pesada para as crianças, mas até lá você irá entender que elas já estão inseridas nessa realidade desde a raiz, então não há de fato muito o que se pode fazer. É um outro mundo, e a grande virtude de Derki é nos entregar este mundo por completo, sem restrições, sem vitimismo.

O objetivo mais nobre de um documentário é conseguir documentar um ponto de vista em um momento histórico em todas as suas nuances. "Sobre Pais e Filhos" é um desses filmes, cria de "Nanook of the North" (um dos primeiros documentários que fez isso no Cinema) e que consegue nos mostrar o começo e o fim de um sistema cruel, radical e violento. Mas autêntico. Real. Indissociável de sua própria narrativa. Há tantos momentos dignos de nota que ficarei listando o filme inteiro aqui. Então assista ele, do começo ao fim, e viva uma imersão que apenas documentários podem nos trazer.


# O Quebra-Nozes e os Quatro Reinos

Caloni, 2018-11-02 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

"O Quebra-Nozes e os Quebra Reinos" tem cara de filme que inicia franquia. Inspirado no famoso balé de Tchaikovsky que por sua vez se baseou em um conto do escritor E. T. A. Hoffmann, a essência da história foi totalmente modificada, estendida e esticada para basicamente propósitos de direção de arte e trilha sonora. Uma história que era sobre um soldadinho quebrador de nozes de repente vira uma espécie de versão em miniatura de Crônicas de Nárnia com direito a guerra, traição, perda e todo um conjunto dramático.

A história gira em torno da jovem Clara (Mackenzie Foy, a filha do casal mais adorado na saga Crepúsculo) e sua busca pela chave que irá abrir o presente que a mãe, falecida, deixara para entregar aos seus filhos na véspera do Natal. O problema é que a chave faz parte de outro "presente", do seu padrinho, que localizado em um outro mundo, irá revelar uma espécie de fantasia real de sua mãe, que envolve quatro reinos que viviam em harmonia com um deles atualmente em guerra.

Se tratando de uma versão preguiçosa de crítica política onde as aparências enganam, sobre a relação complicada entre pai e filha após a morte da mãe e sobre o único soldado negro que guarda isolado a ponte para o reino em briga, "O Quebra Nozes" tenta não se prender muito na história, que serve unicamente para impulsionar novas cenas onde se pode ver a real virtude do filme: uma direção de arte aliada ao digital que cria cenários riquíssimos em cores, luzes e estilo. A inspiração é a Rússia imperial e a trilha sonora de Tchaikovsky, usada com certa economia porque já se trata de uma música usada e abusada no decorrer de mais de um século. É um filme sobre um sonho, mas ele próprio também sonha: em ser algo mais que apenas um filme.

Seu aspecto mais temático e menos narrativo prejudica o elenco. Em específico Keira Knightley e Helen Mirren, que possuem mais tempo de tela e que precisam criar alguma dinâmica em suas personagens para manter a história interessante. Os exageros na entonação de Knightley e a gentileza aliada à robustez de Mirren entregam boas atuações em um pacote feito meramente para entreter, e nada mais. Isso é frustrante, porque assim que as brilhantes ideias do design de arte se acabam não sobra mais nada senão acompanhar o desfecho previsível e esquecível. E por mais impactante que seja o visual, ele é vazio de significado se não há história à altura.

Para as crianças mais jovens talvez tenebroso demais, para adolescente chato e sem nada a oferecer e para adultos uma experiência visual incrível que não encontra uma história que permaneça 10 minutos após a projeção, "O Quebra Nozes" é mais luz e menos ação. E ainda é tímido de usar uma trilha que virou patrimônio histórico e público do cinema e da TV. Como um mini-bônus ele tem a oportunidade de mostrar rapidamente as impressionantes performances dos dançarinos profissionais Misty Copeland e Zachary Catazaro, mas mais uma vez, a que público isso se destina?


# A Prece

Caloni, 2018-11-05 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Você é religioso? Costuma rezar para Deus? E qual a resposta? Tem certeza? Pois é. A Prece, novo filme do diretor/ator Cédric Kahn, tenta abordar o tema religioso através de uma história de redenção. Disciplinado como é (vide Vida Selvagem), Kahn explora todas as nuances que envolvem a fé e a auto-superação, mas não por um adulto com suas convicções já formadas, mas através de um jovem garoto que precisa aprender a conviver com um grupo que está fora da moda e com sua própria dose de descrédito.

Acompanhamos a chegada do abalado Thomas após uma overdose de heroína, e que não tem esse nome à toa. Referência direta a Tomás de Aquino, este é um filme tomista na melhor de suas intenções, pois evita a todo custo a conversão do garoto por revelação, se concentrando todo o tempo no poder da razão para que ele ultrapasse suas adversidades. Mas claro que há rezas, rituais, e regras rígidas para que a disciplina adentre em sua mente para daí seu corpo continuar são (e salvo).

Este não é daqueles filmes que tentam converter o espectador, pois não se trata de propaganda barata, mas uma viagem intimista em busca do que nos torna capazes de suportar as sempre existentes adversidades da vida. Desde suas convulsões iniciais causadas por abstinência da droga até Thomas ser capaz de raciocinar sobre seus próprios passos, "A Prece" nos apresenta esse grupo de recuperação que fica próximo de uma pequena vila ao pé de uma montanha belíssima de neve. A natureza no filme se apresenta sempre como iluminada, embora aqui e ali tenha seus momentos nebulosos.

E, olhem que interessante, enquanto Thomas não aceita sua verdadeira natureza ele é na maioria das vezes visto nas sombras e no escuro, dentro do acampamento de jovens. Apenas com sua evolução gradual é que vamos o observando em uma rotina cada vez mais banhada pela luz do sol. Ao mesmo tempo a interpretação de Anthony Bajon é instrumental para o drama, pois nós só conseguimos entender Thomas através de suas expressões; nunca pelos diálogos. E mesmo quando mais pra frente o tímido rapaz está apto a tentar dialogar as palavras nos dizem menos que seus movimentos de cabeça, seus ombros recuados e seus olhares furtivos.

Não vemos o tempo passar corretamente, mas sabemos que ele se conta em meses e talvez em anos. Isso porque as estações acontecem, incluindo um inverno onde podemos observar a beleza da alvidez do local. O que nos ajuda também é entender que existe um tempo para tudo, e é a paciência que recompensa. Enquanto isso vamos acompanhando cada pequeno passo de Thomas em direção à luz ou às trevas. Essa questão permanece aberta do começo ao fim, pois este como falei não é um filme maniqueísta. Ele dialoga com o espectador de igual pra igual, de adulto para adulto, e sabemos que no final das contas a fé é um instrumento subjetivo de transformação antes de ser prova de qualquer coisa.

Os espectadores religiosos, cristãos ou não, que estiverem dispostos a largar seus preconceitos durante a sessão poderão se beneficiar da grande força que vem da constatação racional (do filme e de Thomas) de que quando a vida faz sentido é quando Deus está mais próximo, e que não existe espaço para se viver na mentira quando é preciso viver como filho do Criador. A mentira apenas funciona temporariamente, mas como é visto de maneira mais poderosa no filme, ela está sempre fadada a ser uma muleta desajeitada para quem quer de fato andar em vez de se arrastar pela existência.

Econômico em sua narrativa mas eficaz em sua mensagem, A Prece é um ótimo exemplo de filme religioso que não é propaganda e nem precisa, mas que ironicamente como consequência nos traz uma verdadeira lição de fé, amor e esperança.


# A Garota Na Névoa

Caloni, 2018-11-06 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Uma garota desaparece em meio à névoa. Surge um inspetor em cena e começam as investigações, sob aquela trilha sonora dramática que todos conhecem. Aliás, alguns thrillers policiais costumam cheirar a clichê desde o primeiro momento até seu final. A Garota Na Névoa não é exceção. Porém, o diretor/roteirista/romancista Donato Carrisi sabe disso e usa esses clichês de maneira distorcida, chamando nossa atenção para detalhes que não costumam ganhar o foco nessas histórias. E é isso a grande reflexão que o filme nos tem a oferecer.

Passado em uma pequena vila em um vale na Itália, e graças ao céus falado em italiano e não "dublado" no famigerado inglês (para as plateias que não gostam de legenda), o que aumenta o realismo e a coerência da história, toda a trama segue aquele fluxo que conhecemos: a mídia escavando detalhes do suposto crime, a população e a família em comoção constante e a polícia trabalhando conforme o que lhe é esperado: entregando novidades para todos em um ritmo que faça sentido.

No topo dessa cadeia reside o Inspetor Agente Vogel, que nas mãos do ator Toni Servillo (A Grande Beleza) cria um sujeito que em seu início, detalhista e vestindo um casado sisudo, faz lembrar os grandes detetives da literatura, mas que aos poucos vai se transformando em um mero manipulador de informações. Marcado no passado por um caso conhecido como "O Mutilador", onde ele recolheu indícios que incriminaram um inocente que ficou quatro anos na prisão, Vogel é o cínico da pior espécie, pois é distraidamente charmoso e inabalável frente às câmeras, o que lhe dá um crédito que nós, observadores por detrás do palco, sabemos que não lhe pertence. Vogel veio de um filme noir como A Marca da Maldade turistar em um thriller que não parece muito interessado por justiça. É um match perfeito.

Isso por si só já seria um tema incrível de ser explorado em um filme: o poder da mídia como carro-mestre das investigações em vez da verdade. E de fato boa parte do filme é sobre isso, muito embora fique claro que o livro deve possuir muito mais detalhes enriquecedores de alguns personagens que são simplesmente citados de passagem, como as pontas de um admirador secreto da garota desaparecida com um passado traumático e de uma jornalista velha conhecida de Vogel e suas trocas de favores por motivos vagos que residem no passado. Mas não importa. Ciente que não é possível resumir 400 páginas em 90, o escritor Donato Carrisi entende que precisa podar as partes menos relevantes, embora mantenha a essência: o sistema é corrupto desde seu núcleo, e a justiça é um mero detalhe burocrático que pode ou não acontecer.

Isso fica extremamente latente quando surge em cena o professor de literatura Loris Martini (Alessio Boni), que por não ter um álibi para a noite do ocorrido e por seu carro aparecer na hora errada em frente a uma câmera vira o suspeito número um do caso. A sacada do filme no caso é não nos deixar saber a verdade, pois enquanto acompanhamos o circo que se forma na TV para crucificar o professor (e consequentemente sua família) por antecipação não sabemos se esse é um castigo merecido ao sujeito ou não. E, de acordo com o sempre cínico Vogel, isso não importa.

Aliás, todas aquelas velhas figuras parecem estar tão acostumadas a esse jogo midiático onde o que vale é extrair lucro do processo que sequer entendem quando alguém sugere que talvez fosse interessante se o principal motivo de dezenas de pessoas estarem mobilizadas na investigação fosse a busca da verdade para assim fazer justiça. E mais uma vez a virtude do agora diretor Donato Carrisi é nos fazer prestar atenção mais ao processo do que ao mistério. O filme poderia acabar sem respostas que já seria por si só um thriller instigante por nos tornar imersos nesse mar de lama. Lembra um pouco Garota Exemplar, e talvez não seja coincidência que ambos os filmes tratam não de mulheres desaparecidas, mas dos que estão presentes no processo de busca.

Mas não se engane: haverá reviravoltas. Mais de uma. Esse ainda é um thriller clássico, apesar do filme brincar com os clichês, utilizando, inclusive, uma trilha sonora extremamente batida de Vito Lo Re para toda a produção, mas que não se priva de ter personalidade, com até um tema reconhecível nos créditos finais. Porém, note a música-tema que destoa de todo o resto: Dança da Solidão. Interpretada pela inesquecível Beth Carvalho, a letra fala sobre solidão e desilusão, e são justamente esses os sentimentos que o espectador terá em notar que esta é uma história tristíssima. Tristíssima e belíssima. Como pode a injustiça ser tão glamurizada?


# Entrevista Com Deus

Caloni, 2018-11-07 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

A primeira impressão de Entrevista com Deus é que o filme inteiro foi baseado em apenas uma ideia: Deus é entrevistado por um ser humano. Para que esse momento único funcionasse, porém, seria necessário ou desenvolver uma fantasia mais alegórica como Todo Poderoso, o que correria o risco de ser cômico sem querer, ou desenvolver tão bem os personagens que passaríamos a entender suas motivações por trás daquele momento, delírio ou não.

Infelizmente o filme de Perry Lang (da TV) não usa nenhuma dessas estratégias, preferindo se pautar na lógica daquelas pessoas que estão perdidas em algum momento da vida: elas prestam pouca atenção nos detalhes, seguem a rotina mecanicamente e não possuem o ceticismo em um nível saudável. Porém, o trabalho de Ken Aguado no roteiro (também da TV) preguiçosamente não nos fornece pistas para entender exatamente o que se passa pela cabeça do jornalista Paul Asher, preferindo apenas jogar as cartas na mesa (ou as peças no tabuleiro) na primeira oportunidade que tem.

Paul vive uma crise de fé (claro) após cobrir de perto a guerra no Afeganistão. Prestes a se separar de sua mulher após uma traição, Paul não vive o seu melhor momento na vida, mas não temos como saber se algo está terrivelmente errado com ele. O ator que o faz, Brenton Thwaites, é uma figura simpática e inofensiva, mas também nice guy demais para se fazer sentir. O máximo de desespero que ele nos entrega é quando ele esmaga uma caneca de porcelana e se corta no processo. Mas ele continua andando normalmente em sua bicicleta, usa capacete e sempre a trava quando chega nos lugares. Que rapaz exemplar.

Três desses lugares são pontos de encontro com Deus, que atendeu a suas preces e lhe condeceu uma entrevista. Simples assim. Resta ao espectador ir desenvolvendo a sua própria lógica para entender como isso se passa na cabeça de Paul. Será que ele pensa estar delirando, mas não liga? Será que ele está aproveitando esse senhor que se faz passar por Deus para desenvolver seu artigo? Ou será, Deus me livre, que há uma ponta de fé que o diz que aquela pessoa comum sentada ao lado dele pode realmente ser o criador dos céus e da Terra?

Difícil saber. O filme todo não tem um pingo de emoção. O maior exemplo disso é ver seu chefe e amigo, interpretado por Hill Harper como alguém que ouve o amigo como se estivesse em um briefing. A experiência toda é como se fosse uma parábola filmada mais com foco na mensagem divina do que no que os personagens vivem. Poderia ser uma peça de teatro, não fossem os momentos que vemos Paul andando em sua bike, um respiro necessário ao filme. E são muitos momentos em que ele anda com ela, pois aparentemente o diretor Perry Lang precisa encher linguiça para que essa história caiba em um longa metragem. Vemos Paul tirar sua bicicleta da parede, pegar seu capacete, descer as escadas, andar pelas ciclovias, travar sua bicicleta e colocar sua mochila. Várias e várias vezes. O que significa? Eu não sei. Talvez seja uma forma divina de nos deixar menos ansiosos pelas respostas que Paul tenta arrancar de Sua Divindade.

Mas seu esforço é inútil. Deus não está para papo. Ele gosta de retórica e está profundamente preocupado com Paul. Esse é o clássico formato em que uma pessoa pede ajuda a Deus e é atendida, mas realizada de maneira tão jogada que fica difícil compreender o que está acontecendo. O foco, como eu disse, é na mensagem.

E a mensagem talvez seja a melhor coisa no filme. Ignorando a tradição evangélica/protestante de realizar pequenas atrocidades propagandistas como Deus Não Está Morto, onde música gospel e "milagres" forçados são usados para espalhar a Palavra, em Entrevista com Deus esse formato é atualizado e segue um modelo muito mais próximo do visto nos discursos, debates e livros de Jordan B. Peterson, psicólogo/filósofo contemporâneo que recicla antigos contos mitológicos da humanidade, incluindo os da Bíblia, utilizando-os como fonte de sabedoria. Em resumo: Deus explica a si mesmo como o processo e o caminho, e não como um objeto estático e perfeito, como visto por tantas congregações mundo afora. Ele é a própria consciência humana, vagando de cérebro em cérebro, iluminado pela ordem que surge do caos, mas ainda inseguro e ignorante do porquê de sua existência.

Para os religiosos é óbvio que é um filme obrigatório, mas para os ateus, deístas e esotéricos não é tão difícil assim de engolir. É um ponto de vista diferente, mastigado em formato mais ou menos pop em um filme levemente medíocre, episódico, que tenta (aí, sim, seguindo a tradição) usar um exemplo de vida de uma pessoa como uma forma de explicar como Deus fala para todos nós e nos guia, querendo ou não. O exemplo em si é melhor que os outros filmes, pois se concentra em um evento trivial para a humanidade, mas não para os indivíduos que sofrem: traição dentro de um relacionamento amoroso.

Eu sei que o Deus de David Strathairn está longe de inspirar carisma e reflexão. Ele é apenas um mensageiro de diálogos simplistas que tentam explicar uma filosofia usando parábolas e frases prontas. Ninguém pode culpá-lo. Mas, mesmo assim, Entrevista com Deus é eficiente em sua mensagem de amor, paz, sabedoria. Apesar de pouco inspirador e longe de ser dramático, vale a reflexão da sessão da tarde.


# The Square: A Arte da Discórdia

Caloni, 2018-11-08 cinema movies [up] [copy]

Tenho uma confissão a fazer: quando eu entro em um salão onde está exposta arte moderna eu nunca tenho certeza se entendi realmente o que o autor quis dizer com determinada obra. Aliás, eu também não tenho certeza se o próprio autor sabe o significado de sua obra. Aliás, eu nem sei se podemos chamar aquilo de obra. O que é arte, afinal de contas? E, aproveitando, qual o sentido da vida?

Agora sendo honesto: eu sei o que é uma obra de arte (sobre o sentido da vida fico devendo), e te digo porque The Square é um exemplo magnífico. Para começo de conversa: ele não é um filme muito agradável de se assistir. Cada nova cena desperta uma imensa vontade de entender, mas essa resposta está tão bem escondida na vida comum que torna-se tarefa inútil a cada nova tentativa.

E isso é arte: é a análise da vida comum sob a ótica de uma outra linguagem. É, como sugere o curador do museu, Christian, pegar uma bolsa comum de uma mulher e colocá-la em exposição em um museu. Não é mais uma bolsa. Por que? Linguagem. As pessoas que vão ao museu esperam ver arte. E se você diz que é, algo salta em nossa percepção.

A mesma coisa acontece com esse filme. Em nossa vontade de compreendê-lo por inteiro, apesar da frustração de nunca conseguir, nos faz prestar mais atenção aos detalhes. E esses detalhes são esteticamente tão agradáveis e os assuntos que o filme trata são tão curiosos que assistir trata-se por si só da apreciação da arte por si mesma. É linguagem cinematográfica sendo usada para entendermos algumas questões primordiais do ser humano.

E por prestarmos atenção em um filme sobre pessoas que não estão prestando atenção é que The Square se torna uma obra de arte. Pessoas andando na rua olhando para seus celulares e ignorando pedintes em geral (a metáfora "quer salvar uma vida?" não poderia ser mais óbvia). Marketeiros comemorando orgulhosos a viralização de um vídeo em que uma criança explode. Um garoto procurando reparação por ter sido acusado injustamente de ser um ladrão em sua própria casa.

O filme dirigido e escrito por Ruben Östlund grita a todo momento sobre desatenção para nossos semelhantes. Mas apesar de possuir o tema de minorias, por exemplo, ele não está interessado em realizar mais do mesmo. Ele quer que enxerguemos que qualquer lado, forte ou fraco, rico ou pobre, não está de fato olhando para o outro e compreendendo o que ele quer dizer, o que ele espera, o que ele deseja.

A não ser que esse alguém seja um ser humano animalesco, que pode te agredir a qualquer momento. Aí, meu amigo, surge em cena o hipotálamo, nossa herança dos mamíferos, há muito tempo atrás, e que atualmente nos seres humanos anda adormecido na vida moderna por um senso de segurança que nos permite o luxo de sermos individualistas e ignorar todos em volta quando não estiverem realizando os nossos desejos.

O diretor Ruben Östlund usa algumas trucagens interessantes de câmera. Ele quer mexer pouco nela. Para isso todo seu quadro orbita em torno, e raramente ela precisa se mover: ela apenas gira em torno de si mesma. A analogia é pertinente. Câmeras são no cinema os nossos olhos e nossa sensação de eu. Mas quando a câmera evita a todo custo sequer sair do lugar para ver o que está acontecendo isso ressalta ainda mais o egocentrismo através do ponto de vista do espectador.

Um exemplo no começo de como é o ponto de vista que diz tudo: uma mulher corre em busca de ajuda. Há um homem correndo em direção a ela gritando. Não vemos o homem correndo, apenas ouvimos seus gritos. A câmera fica o tempo todo mostrando Christian. Por quê? Bom, esta é uma pergunta interessante, pois alia a questão que o filme quer tratar (desatenção) com a questão prática de contar uma história (o roteiro mundano, coisas acontecendo com os personagens). Sobre a desatenção a cena mostra dezenas de pessoas ignorando o pedido de ajuda da moça, e quando ela finalmente encontra alguém esse alguém terceiriza a ajuda para Christian. Mas sobre o lado prático, bem, este é apenas um golpe, e a moça no momento propício pega o celular de Christian de seu bolso.

Esse jogo de harmonizar a teoria e prática social de Östlund acontece durante o filme todo, como o plano de imprimir em vários papéis uma ameaça escrita para o ladrão de celular e colocar em todos os apartamentos do prédio onde ele está (e a questão prática de realmente fazê-lo), ou como o descarte de uma camisinha usada se transforma em uma análise do egocentrismo de Christian ao mesmo tempo que ele potencialmente tem um motivo vago para desconfiança de sua parceira sexual. E o que dizer quando ele se encontra em um mar de lixo (informação?) para buscar o número de telefone que irá permitir que ele finalmente se redima do seu pecado crônico de não prestar atenção aos outros seres humanos?

Claro, The Square não é exatamente isso. Ele pode ser. O filme está aberto a diferentes interpretações, e ele é tão rico em temas que instiga essa busca pelo espectador. Portanto, pare por um momento de prestar atenção em seu próprio quadrado e tente entender para onde está caminhando a espécie humana.


# A Casa Que Jack Construiu

Caloni, 2018-11-09 cinema movies [up] [copy]

Lars von Trier precisa urgentemente largar seu estilo. Ele o adotou mais fortemente em Ninfomaníaca (Volumes 1 e 2, onde sua narrativa episódica diminuiu levemente a qualidade de sua estrutura e o impacto do filme (além de ser longo, bem mais longo do que deveria). E aqui em A Casa Que Jack Construiu vê-se que a mesma estrutura é utilizada, mas em uma versão reduzida, o que virou inevitavelmente uma bagunça. O filme parece vilipendiado em prol da nossa percepção de que não há sentimentos por trás das ações de um serial killer. Porém, esta é uma faca de dois gumes, pois leva à conclusão de que ele não tem motivos. E o motivo que von Trier arruma para seu "herói" é simplesmente a busca da arte.

E isso, aliado a um trecho do filme onde ele exibe trechos dos seus outros filmes, implica em dizer que von Trier está falando de si mesmo. De uma maneira narcisista. Ele se vê como um artista incompreendido. E para este filme escolheu um serial killer.

É simplesmente repugnante.

Porém, há um fiapo do filme que permaneceu superficialmente interessante. Se observarmos o começo da narrativa do seu anti-herói, Jack (Matt Dillon sem ter muito o que fazer) perceberemos que na primeira vítima que ele nos descreve há um ponto crucial de identificação e "desidentificação" com o espectador. A personagem de Uma Thurman é um pé no saco. Isso nos leva a desejar que Jack seja de fato o serial killer que ela insistentemente brinca ser. E -- adivinhem -- Jack de fato é um serial killer. E a acerta na cabeça com um macaco de carro. Nesse momento seria o que qualquer pessoa sensata pensaria em fazer. Pensaria, mas não faria. Jack pensou. E fez. Eis a separação entre uma pessoa normal e um psicopata.

Da mesma forma, sua vulnerabilidade em vermos que ele possui um Transtorno Obsessivo Compulsivo com limpeza, onde ele tenta insistentemente verificar se a cena do seu próximo crime narrado está sem manchas de sangue -- e de onde sua desculpa para entrar na casa da vítima beira o patético risível -- nos diz que o filme ainda tenta manter nossa empatia com o protagonista. E o último traço desse fiapo de filme que poderia se tornar deveras interessante é quando ele de fato traça um rastro -- de sangue -- por vários quilômetros de estrada.

E para por aí.

As brutalidades do filme, onde Trier nos mostra graficamente Jack abatendo suas vítimas, são meros shows bizarros de brutalidade humana em que completos desconhecidos são almejados. Talvez o objetivo seja não nos fazer ter empatia e compaixão por essas pessoas -- mulheres ingênuas e até crianças -- mas ao mesmo tempo ele nos torna perigosamente cúmplices dos atos abomináveis de Jack. Porém, aqui há uma diferença: Jack diz que sua motivação é criar obras de arte -- um clichê de alguns serial killers pela história e literatura -- mas nós, espectadores, não sentimos exatamente assim.

Diferente das curiosíssimas analogias traçadas pelo ouvinte de Joe em Ninfomaníaca, onde uma pessoa que viveu sua vida dependente de sexo é analisada por alguém que não conhece nada sobre o assunto, aqui o "ouvinte" de Jack não possui uma personalidade tão constrastante e nem tão divertida. A consequência é que não há humor aqui. Apenas uma triste e doentia existência.

A câmera de von Trier está freneticamente em movimento, com um close ligeiramente alto demais, correndo com o seu herói, acompanhando a ação que se torna realista demais. Não é bonito. É estranho. Gera sentimentos mistos em relação à violência. Não sei se pode-se dizer que é uma questão de gosto. No meu gosto há algo de podre em todo esse projeto.

Potencialmente cortado para se tornar comercialmente viável, ou evitando mostrar demais sobre o personagem para não nos sentirmos estranhamente relacionados a ele, "A Casa Que Jack Construiu" soa incompleto e com excesso de estilo do diretor. É um filme narcisista que usa os cacoetes de seu idealizador diretamente para os fãs. Os fãs do diretor, não necessariamente de Cinema.

Espero que seja o último filme com esse estilo.


# Shirkers: O Filme Roubado

Caloni, 2018-11-09 cinema movies [up] [copy]

Uma garota queria muito fazer um filme. Ela acaba o tornando realidade, mas ele é roubado pelo próprio diretor. Décadas depois ela nunca mais fez nada relacionado a cinema, e chega a hora dela rever esse frustrante episódio de sua vida da única forma que é possível: fazendo outro filme.

E esse filme tem o mesmo nome do filme roubado, pois ele não existe. Os rolos que ela e suas amigas conseguiram produzir ficaram sob a posse do diretor, George. George era uma figura problemática no cenário cinematográfico da pequena e irrelevante Singapura, antes de se tornar o país mais rico do mundo.

Mas mesmo em cima de um filme inexistente ela entrevista amigos/colegas críticos de cinema que dizem que esse filme ia ser muito bom, apesar dele nunca ter passado da fase das filmagens. Deixe-me explicar como funciona a produção de um filme:

Primeiro há a pré-produção, onde argumentação, roteiro, story boards (desenhos das cenas com descrição), locação de lugares (ou descoberta), montagem do elenco, equipe e recursos financeiros são obtidos para começar a produção. Na produção há as filmagens propriamente dito. Na pós-produção é onde se faz a edição (escolha das filmagens, corte rítmico) e a montagem (escolha da ordem das tomadas escolhidas), além de inclusão dos artefatos extras: fotografia (ajustes), música e trilha sonora. Pronto, você tem um filme que pode chamar de seu.

Shirkers chegou apenas na fase de produção.

Isso gera um problema para sua idealizadora, Sandi Tan. Ela era uma sonhadora e queria fazer filmes. Seu primeiro filme nunca se torna realidade, o que a deixa frustrada e provavelmente muda completamente sua vida. Décadas depois ela realiza um documentário com as pessoas que fizeram parte desse triste episódio e realiza colagens dinâmicas sobre como tudo aconteceu, usando material da época.

Sandi Tan é uma egocêntrica, e seu filme reflete isso. Suas amigas falam em sua cara que ela era uma idiota. Talvez ainda seja. Porém, ninguém no filme tem mais potencial para ser chamado de idiota do que Georges Cardona, o diretor do filme que nunca existiu.

Georges é a pessoa problemática que começa todo esse drama. Ele deveria até ser o tema do filme se Sandi não fosse tão egocêntrica ao ponto de tornar o assunto o tema de sua vida, pois Georges tem sérios problemas de personalidade. De origem desconhecida, mas provavelmente latina, ele inspira jovens cineastas e logo depois ele frustra seus planos. Os rolos do Shirkers original ficaram com ele após as filmagens.

E esse Shirkers se torna um trabalho de reconstrução dos fatos no mínimo interessante. Seu formato segue a lógica de artistas plásticos. Isso porque Sandi Tan e suas amigas eram pessoas vibrantes na época. Tan diz que não consegue parar de ter ideias. E "Shirkers: O Filme Roubado" é sobre como você pode roubar essas ideias e destruir a potencial carreira criativa de um artista. É triste, mas é filmado em um clima de resolução. Espero ver novas obras de Sandi Tan no futuro.


# O Segredo De Davi

Caloni, 2018-11-13 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

O Segredo de Davi é sobre um estudante de Cinema e sobre Cinema. Um dos poucos filmes de gênero que costumam sair em circuito comercial aqui no Brasil em um gênero que curiosamente até mantém seu público cativo através das décadas, mas que nunca se transformou em algo viável em terras tupiniquins. Agora nós temos uma produção brasileira de tirar o fôlego em todos os quesitos técnicos e narrativos, o que é uma ótima notícia. E apesar de flertar com os enlatados norte-americanos ele mantém seu charme local.

Se trata da história de Davi (Nicolas Prattes), um garoto tímido que estuda artes visuais e que vive sozinho no centro de São Paulo. Atraído inicialmente em observar as pessoas, filmando-as no processo, Davi é um misto entre narrador em off e protagonista subjetivo. Aos poucos vamos percebendo que quem está contando a história é ele, sob seu ponto de vista. E seu ponto de vista é distorcido, surreal, onírico. Cinematográfico e sobrenatural ao mesmo tempo, e o resultado em pouco tempo é um certo desconforto de nós observá-lo.

Isso porque Davi começa a agir em relação ao que observa, e sem querer revelar muita coisa, o que vemos não é bonito. Porém, continuamos vendo, pois o fascínio que ele tem inicialmente em observar é passado para o espectador, que precisa continuar imaginando por que Davi está fazendo tudo isso. Os motivos vão sendo revelados aos poucos, com um certo clima de desorientação. Já não sabemos o quão claro Davi está sendo conosco, mas sabemos que ele está ciente das consequências. Mas o tímido garoto não consegue evitar. Vai surgindo uma força, bem aos poucos. No começo é bem conveniente, mas depois, quando ele flerta com uma garota, ele ganha nossa cumplicidade ao mesmo tempo que torcemos para que ele mude seus objetivos. Ele não muda, e o clima vai ficando cada vez mais pesado.

A atuação de Nicolas Prattes é um ponto fora da curva. Cercado de personagens convencionais, ele se destaca não apenas pela competente transformação de Prattes, mas também pelo uso combinado de câmera e cores. Note como o esguio Davi começa se vestindo com sua roupa toda branca e a cabeça cabisbaixa, e repare como a sua feição não muda tanto assim, mas suas roupas ficam escuras e seus movimentos mais agitados, apressados e até certo ponto descontrolados.

A direção de arte desse filme é um primor. Apenas fico triste de não ter visto outras partes da sinistra cidade de São Paulo retratadas pelas cores cinzentas de Kaue Zilli (Todo Clichê do Amor), apesar de concordar que a decisão de estar nos cenários externos mais marginais do centro seja uma ótima ideia, pois torna a figura de Davi um tanto distante, mas nem tanto. Perigosamente onisciente das mazelas do sujo, abandonado e desatento centro da cidade.

Mas o filme não é todo escuro, e é isso que o torna digno de nota. O design de produção de Fernando Cacerez auxilia em criar na mesma cena um misto entre luz e sombra que se separam de maneira tão gritante que em certos momentos parecemos estar vendo um filme 3D. E é justamente isso que se passa na cabeça de Davi, que vivendo nas sombras entende seu objetivo através de uma foto icônica, ensolarada e feliz. Davi vai tentando recriar sentimentos mistos de felicidade e ódio dessa foto.

A direção de Diego Freitas insiste em closes exagerados e enquadramentos estilizados, mas essa insistência é justificada, pois nos faz ter a mesma sensação de desconforto de seu protagonista. Esse desconforto é ressaltado pelo uso do som e suas quebras constantes entre silêncio e um barulho ensurdecedor, usado além do limite do razoável e que lembra um pouco (demais) os thrillers psicológicos americanos.

Freitas também assina o roteiro competente, que teve ajuda da crítica Ana Maria Bahiana, e que embora capenga em seus minutos finais é eficiente na maioria do tempo. Note como alguns detalhes nem precisam ser ditos ao espectador, como quando descobrimos quem realmente está namorando a amiga de Davi, ou a relação entre Davi e seu misterioso pai. E o uso repetido de frases-chave ressaltam o caráter repetitivo das vozes que Davi escuta, em mais um sinal de respeito à inteligência do espectador. Além disso, a reviravolta evita muitos flashbacks para não soar pedante, se limitando ao necessário. Funciona. O Segredo de Davi, você irá notar, possui narrativa econômica do começo ao fim. Vai prender a atenção de muita gente.


# Bohemian Rhapsody

Caloni, 2018-11-15 cinema movies [up] [copy]

Há um momento em Bohemian Rhapsody em que teoricamente tudo funciona: o seu final. A atuação de Rami Malek, como Freddie Mercury, o vocalista irreverente e exótico da banda Queen, está em seu ápice; os efeitos visuais do estádio onde eles tocam funciona porque toca na relação de cumplicidade dos fãs com a banda; as pessoas mais importantes em sua vida pessoal se encontram do lado do palco, acompanhando emocionados a performance de uma pessoa única e especial; o cantor/lenda reconhece suas origens e faz as pazes com sua família em um evento transmitido para o mundo inteiro. Se trata de uma cena de peso, único e que merece figurar nos momentos mais marcantes do Cinema em 2018. Mas como filme... bom, eu disse que ela funciona mais teoricamente; talvez para outro filme.

Isso porque tudo o que vem antes, o filme como um todo, não trabalha em função desse momento. Se trata de um apanhado na biografia do cantor e da banda (mas mais do cantor) que burocraticamente e sem tensão alguma (não há quase conflito) nos conduz a este ápice e suas lágrimas. Mas o ápice não existe, pois não houve sacrifício nessa história, e as lágrimas são manipuladas pelo roteirista Anthony McCarten, que já fez isso em A Teoria de Tudo: "vamos chorar porque é emocionante e há personagens chorando", e não "vamos chorar porque este é um momento de redenção". Infelizmente não é um momento de redenção. Mas olhe para essa banda e esse cantor. Olhe que momento único que era vê-lo cantar. Se trata de uma lenda do rock. Inesquecível e poderoso.

O diretor Bryan Singer após marcar época com seu thriller policial classudo Os Suspeitos fica pulando entre projetos bem diferentes como uma continuação de Superman ou a bem-sucedida franquia dos super-heróis mutantes X-Men. Aqui ele escolheu um projeto relativamente fácil de dar certo, pois a trilha sonora é a melhor possível e tudo se trata de reconstruir um pouco da magia daquela época até que recente.

Para isso ele elenca Rami Malek (da série Mr. Robot) depois de ter perdido o comediante Sacha Baron Cohen ("Borat"). Malek se transforma no palco, mas não consegue o mesmo fora dele com sua dicção estranha, monotônica e grave, e sem uma construção de um personagem, qualquer que seja. Seria a falta de acesso a material da vida privada de Mercury? Seria uma trava do roteiro em não permitir o crescimento do protagonista através de sua história em que praticamente tudo funciona (exceto ele contrair AIDS)? Ou seria a falta de alma no projeto, já que as cenas da conturbada carreira do vocalista-gênio aparentemente eram mais intensas do que apenas vemos sugerido no filme?

Se formos pensar no contraste da vida de sexo (gay), drogas (pesadas) e rock-and-roll de Freddie e no que vemos em "Bohemian Rhapsody" vamos chegar à conclusão que esta é uma versão da Disney, sanitizada, puritana e igualmente contraditória para o mercado americano, que chegou a banir um clipe que a banda fez onde todos se vestiam de empregadas domésticas em cenas eróticas. Não foi apenas a MTV a conservadora na época; os EUA são uma contradição à parte nesse jogo entre os desejos mais libertinos e a postura pública sóbria demais para ser vivida, e o próprio filme de Singer ironicamente exibe esse puritanismo.

Ou a fonte dessa conveniente e comercial produção seria do seu roteirista família, Anthony McCarten? Importante lembrar que McCarten em A Teoria de Tudo utiliza a primeira esposa do físico teórico Stephen Hawking para criar um núcleo moral onde tudo orbita. Aqui ele realiza a mesma trucagem com a primeira (e única) esposa de Mercury, Mary Austin, que nas semi-católicas mãos de Lucy Boynton parece estar protegido das tentações baixas demais que ele enfrenta após cada show nos bastidores. Não por acaso, já separados, quando Freddie compra uma casa ao lado de Mary para não perdê-la de vista, seu quarto fica no térreo e possui uma iluminação vermelha, tornando óbvia a relação entre o vocalista vivendo em seu inferno astral tentando manter uma ponta de conexão com o divino. Todos artistas precisam de uma musa, mas isso está bem mais longe de ser apenas isso.

Por outro lado a direção de Singer é precisa e diverte com o pouco material que lhe é fornecido. Ele usa o clima descontraído da banda e dos produtores para realizar diversos diálogos irreverentes para decidir o próximo passo dos astros, e Singer desenvolve o humor em poucas falas. Além disso, é dele o corte mais hilário do longa, quando nos momentos finais, durante a música "We Are The Champions", vemos seu primeiro agente, naquelas ironias do destino dos descrentes do sucesso de alguém tão exótico para o mundo pop star.

Bohemian Rhapsody não é exatamente a homenagem respeitável da figura icônica de Mercury, e para falar a verdade, dificilmente saberemos se isso é possível de ser feito. Porém, é um fan service de primeira qualidade, nem que seja técnica. E vai dizer que apenas por poder ouvir novamente os hits do Queen em uma versão ligeiramente sanitizada da realidade não é algo que valha a pena de ser assistido? Talvez apenas uma vez.


# Excelentíssimos

Caloni, 2018-11-15 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Não sou uma pessoa chegada a política, mas curto assistir à série House of Cards. Todo esse emaranhado de poder materializado em homens engravatados munidos de retórica e troca de influências em um verdadeiro circo imoral de personagens temporários me fascina pela exatidão com que essa barbárie sofisticada é desmistificada na fala, no grito e na "lei". Excelentíssimos, documentário/colagem do diretor Douglas Duarte, consegue nos fornecer exatamente isso a respeito de um evento marcante do Brasil recente que transformou completamente a visão que o brasileiro médio tinha da já tão surrada democracia que vivemos.

Iniciando o longa (bem longa, duas horas e meia) vemos a última aparição pública da ex-presidente Dilma Rousseff, se despedindo após deixar permanentemente o cargo ao ser deposta através de um processo de impeachment. É esse processo o alvo de Douglas Duarte, e para isso ele reconstrói as circunstâncias desde o início da maior investigação sobre corrupção da história do país, a operação Lava Jato, até a votação e os resultados pós-votação da retirada do poder de um representante eleito. O formato de apresentação dos fatos é importante porque faz surgir um debate mais ou menos sério a respeito do processo previsto na Constituição: ele poderia ser considerado uma forma de golpe de Estado?

Para averiguar isso Duarte realiza montagens de diferentes fontes -- TVs, vídeos caseiros, entrevistas que ele conduziu, gravações telefônicas -- para se mostrar o mais imparcial possível. É importante em um caso desses tentar ser imparcial -- por mais impossível que seja -- para que o equilíbrio de forças permaneça durante todo o filme e seja o fio condutor de uma narrativa tensa que nos faz pensar o tempo todo. E Excelentíssimos está sem dúvida colocando o espectador para pensar, pois ele não entrega tudo de bandeja. Ele nos deixa, assim como em House of Cards, saber até um limite os acontecimentos, para depois nós mesmos montarmos em nossas cabeças as teorias por trás do que foi visto.

Por exemplo, ele constrói a narrativa da esquerda (ou o governo de situação) de que os partidos de oposição estavam duramente empenhados em tomar as rédeas do governo federal nas eleições de 2014, custe o que custar. Foi uma eleição acirrada onde Dilma foi reeleita com uma porcentagem mínima de vantagem. Logo em seguida começa a surgir a ideia de impeachment com o uso das famigeradas pedaladas fiscais que a presidente cometeu durante o primeiro mandato e ao estancar a ferida orçamentária meses antes das eleições. Isso é fato. Porém, é um fato contundente em um processo de impedimento de um governante eleito democraticamente? Esse é basicamente o debate que se segue de ambos os lados conforme as peças do xadrez político vão se movendo de vários lados.

Para quem gosta de novela, ou se interessa pelo que acontece em Brasília, Excelentíssimos é uma ótima pedida, pois cria relevância em sua trama através de uma edição cirúrgica que nos entrega a arquitetura de um ataque ao poder e suas consequências, como o surgimento de representantes do povo mais extremos, como Jair Bolsonaro, surgido da bancada evangélica, conservadora, e que, profeticamente, se torna o presidente nas eleições de 2018, e embora o autor do documentário não tivesse como saber disso ao fim das filmagens, ele esboça essa pontinha do futuro muito bem para o brasileiro comum, mas muito mal para quem vem de fora e não entende o surgimento no filme dessa figura seguido de gritos de "mito" por alguns cidadão do lado de fora. É preciso contextualizar para os leigos, e isso o diretor, compenetrado já no processo, se esquece de se atentar.


# House of Cards - Sexta Temporada (Series Finale)

Caloni, 2018-11-16 cinema series [up] [copy]

A sexta e última temporada de House of Cards foi marcada por alterações drásticas em seu elenco, todas encabeçadas pela saída do seu protagonista, Francis Underwood, interpretado pelo insubstituível Kevin Spacey e que teve que ser substituído porque a patrulha dos bons costumes estava de olho em um caso ocorrido há mais de 30 anos onde Spacey avançou sexualmente para cima de um jovem de 14 anos (algo assim; leia os jornais se quiser saber mais). Apesar do ator também ser o produtor executivo da série, isso não impediu sua distribuidora por streaming, a Sjwflix, decidir reorganizar todo o meio de campo da produção da série antes de estrear esta que será sua última temporada, excluindo (apenas) nela todo e qualquer envolvimento do ator. Não se pode corrigir o passado quando ele está ainda dando lucro.

Isso quer dizer que nenhuma cena, foto ou áudio do protagonista da série inteira foi usado na produção de seu último capítulo, marcado por um número menor de episódios e reviravoltas e plots inacabados que comprovam que as medidas tomadas pela equipe criativa foram desastrosas em respeito à série, tornando o que era um exemplo televisivo a ser seguido em um show de horrores narrativo. Praticamente nada faz sentido do começo ao fim, e todos os conflitos e tramas soam descartáveis, jogadas ao vento e até cheiram conflitos de novela mexicana, onde completam uma cartela de bingo com os itens gravidez, filho adotivo e mortes repentinas e desajeitadas.

Tudo porque seus idealizadores transformaram sua esposa e agora presidente americana, Claire Underwood (Robin Wright), na protagonista da série, seguida cada vez mais de perto por Doug Stamper (Michael Kelly), que já comprovou sua eficácia em conduzir praticamente uma temporada inteira, mas que soa impotente diante de uma trupe de roteiristas que não conseguiu arrancar a participação do ator, que é a carta de fundação desse castelo, e sair ilesos com a qualidade da obra.

Participaram também do desastre, claro, o fato da personagem Claire ser mulher, o que gerou um escape ideológico para aberrações como a luta de uma mulher contra o velho patriarcado formado de homens brancos de terno e cabelos grisalhos encabeçados pelo seu vice, Mark Usher (um Campbell Scott perdido), e o novo corporativista-vilão, o decrépito Bill Shepherd (o ótimo Greg Kinnear). Há também a figura indispensável de Diane Laine, que faz a irmã maquiavélica de Shepherd, e que levanta um pouco a moral de Claire ao ter uma adversária à altura.

Enquanto coadjuvante e diretora (ela dirigiu alguns episódios) Robin Wright se sai muitíssimo bem como suporte classudo para um político baixinho com mania de grandeza. Porém, Wright obviamente não daria conta sozinha de uma temporada inteira, e isso é comprovado pelos péssimos momentos onde passa a conversar com o espectador. É ela e Stamper agora os responsáveis por quebrar a quarta parede, mas nenhum deles, principalmente Wright, possuem a malícia e o olhar sábio e repleto de camadas de Spacey, que conduzia sua própria história com vilania, mas a postura de um lorde das trevas.

Tentando reproduzir os mesmos passos em uma versão mais humana (onde a cena do passarinho é o reflexo da primeira cena de Spacey na série, onde executa um cachorro), a ideia central da sexta temporada seria (teoricamente) demonstrar como todos se tornam influenciáveis pela podridão do poder, e não há salvação nem para as mulheres (que obviamente são santas). Porém, a história é morosa, as reviravoltas são perdidas (em um dado momento uma personagem foge das tentativas de assassinato, se esconde, apenas para voltar e ser assassinada sem alterar nada na história) e a parte feminista não empolga.


# Ace Ventura 2: Um Maluco Na África

Caloni, 2018-11-17 cinema movies [up] [copy]

Jim Carrey está de volta em sua persona de detetive de animais para fazer todo tipo de piada politicamente incorreta na África. Agora ele precisa resgatar um animal sagrado da tribo dos... bom, quem se importa? É Carrey fazendo caretas e movimentos desengonçados que se desenvolvem bem como comédia, mas péssimo como história. Não se trata de um Carrey que se entrega de alma em um projeto coerente como Deby e Loide, mas somente um humorista fazendo humor de situações criadas especificamente para fazer rir, e não movimentar a história.

Como um hipopótamo de mentira que fica quente demais e o faz sair pelo buraco mais hilário que poderia existir.

O roteirista e diretor Steve Oedekerk, que já participou de projetos "semelhantes" como Kung Pow - O Mestre da Kung-Fu-São, aqui estabelece algumas lógicas que funcionam: todos estão trabalhando no modo automático para TV. Carrey é a figura que transcende isso e quer chamar atenção de todas as maneiras. Tudo segue muito o caminho da farsa, e o filme não se importa em não nos entregar uma história coesa, preferindo deixar o humorista de standup fazer seu trabalho. Funciona para risadas; mas não para o Cinema.


# Atypical - Segunda Temporada

Caloni, 2018-11-17 cinema series [up] [copy]

A segunda temporada de Atypical já demonstra o que o final da primeira temporada já arriscava em dizer: se trata de uma novelinha típica norte-americana aliada a algumas tentativas de conscientizar as pessoas acerca do autismo.

Porém, para parecer mais interessante, a série vai além, desenvolvendo todos os personagens da família central da história em situações problemáticas, como traição e a mudança para uma faculdade de diferente classe social, o que remete a inúmeros outros trabalhos anteriores. O objetivo na primeira temporada era fazer uma comparação entre a vida de um autista e uma pessoa comum, concluindo que todos nós temos os nossos problemas em se encaixar. O resultado de fato é apenas mais uma novela de costumes com roteiro pedestre que apenas precisa ir avançando a história na medida certa em que a plateia fique morna, interessada mais no desfecho que no desenvolvimento das ideias.

Assim é Atypical Season 2, e assim provavelmente será toda a série, buscando ser um contraponto autista onde no fundo apenas se transforma em entretenimento inclusivo.


# Rock em Cabul

Caloni, 2018-11-17 cinema movies [up] [copy]

É curioso o resultado dessa comédia roteirizada por Mitch Glazer, que já está acostumado em elencar a persona de Bill Murray ("Os Fantasmas Contra Atacam", "A Very Murray Christmas"), e dirigido por Barry Levinson, que já está acostumado a dirigir Murray e outros famosos, além de ter uma cinegrafia conturbada, que vai de "Rain Main" e "O Enigma da Pirâmide" para "Esfera" e "A Revolta dos Brinquedos". Levinson não está acostumado a dirigir filmes ruins como esse, mas é Glazer que o entrega um material confuso, que se perde em suas premissas antes mesmo do segundo ato, e vai atravessando a vergonha alheia até não poder mais.

A história se ancora em um fato verídico: a primeira mulher a cantar em um programa de TV no Afeganistão. Todo o resto é mentira. Assim como a história do produtor musical Richie Lanz (Murray), que constantemente usa nomes famosos como Madonna para se auto-promover. Murray já foi melhor definido por Rober Ebert em sua crítica de Flores Partidas: é um ator fascinante quando não faz nada. Isso é verdade tanto no filme de Jim Jarmush quanto em Os Caça-Fantasmas e "O Feitiço do Tempo", e é exatamente por ele fazer alguma coisa é quando o filme deixa de ser interessante.

Por isso e porque Zooey Deschanel começa estrelando o filme e some para sempre do plot nos primeiros quinze minutos. O mesmo tempo da ponta de Bruce Willis, que sem falar nada consegue ser hilário. A pior e a melhor ponta definem os extremos dessa empreitada.

Então Murray encontra uma prostituta que pretende se aposentar interpretada pela voluptuosa Kate Hudson e Glazer e Levinson pretendem construir uma crítica divertida à chuva de dinheiro que ocorre quando os EUA resolvem patrocinar uma guerra. A combinação inicial já estava ótima por reunir o nivel ótimo de sarcasmo de Murray e da realidade que o cerca. E começa a desandar justamente quando a bondade humana começa a tomar forma em sua tentativa de ajudar a tal cantora afegã, interpretada por Leem Lubany.

A partir daí todo o plot se rende ao maniqueísmo barato, e os personagens que já estavam desenvolvidos são usados em ações que não imaginamos eles fazendo de livre e espontânea vontade. Tudo começa a soar falso e forçado, e a compulsão de deixar de assistir ao filme é maior do que a vontade de ver onde ele vai terminar. Porque no fundo nos desinteressamos por aquelas pessoas. Elas fugiram do controle de nossas crenças e não são mais viáveis no universo do filme. A bondade pela bondade cai por terra em um deserto de violência e ambição humanas. E tudo isso porque é impossível imaginar Bill Murray bancando o bonzinho sem querer algo em troca.


# Super Drags

Caloni, 2018-11-17 cinema series [up] [copy]

Super Drags é um projeto de animação de três idealizadores patrocinados pela Netflix. Um deles é de Fernando Mendonça, que depois de produzir CDs interativos na internet 1.0 já participou de um projeto megalomaníaco chamado BugiGangue no Espaço, mas agora parte para o público adulto em uma ideia simples: uma animação para adultos envolvendo drag queens.

A proposta é interessante e tem drag queens conhecidas no cenário Brasil como dubladoras, além do ótimo Guilherme Briggs. As piadas do piloto funcionam por serem ideias novas utilizadas em material novo, mas o desenho é clichê, usa mais do mesmo em sua produção e não empolga em praticamente mais nada. É mais um projeto inclusivo da Sjwflix que não é ruim, tampouco é bom o suficiente para ser algo digno de lembrarmos.


# Ugly Delicious

Caloni, 2018-11-17 cinema series [up] [copy]

O chef de cozinha David Chang é o astro dessa série criada por ele. Ela segue um caminho documental bem-humorado, com montagens bem conduzidas e a captura de momentos hilários entre Chang e seus amigos conversando sobre... adivinhou: comida.

O trunfo da série é nos entregar diferentes e inusitados lugares para experimentar comida que está sendo produzida sob a influência cultural da região, da tradição e da inovação. Chang não é um tradicionalista apenas, mas alguém que aprecia boa comida, seja lá de onde vier. E por isso ele encontra verdadeiras pérolas em volta do mundo, explicando no processo como tudo funciona.

Esta é mais uma série gastronômica, mais uma vez da Netflix. Seu objetivo é menos reverenciar os chefs como em Chef's Table, menos reverenciar a produção de comida como em Chef & My Fridge. É mais sobre o dia-a-dia de um chef de cozinha e seus amigos. É um encontro informal, como pode haver entre pessoas comuns. A única diferença é que alguém está obcecado em descobrir ótimos lugares para comer. Quem ganha é o espectador gourmand.


# Um Segredo em Paris

Caloni, 2018-11-17 cinema movies [up] [copy]

A diretora Élise Girard parece se pronunciar apenas quando é necessário. Nesse seu segundo longa de ficção ela nos apresenta Mavie e Georges como um casal impossível pela diferença de idades, que conta duas gerações, e ao mesmo tempo tece a criação de um romance nas entrelinhas escritas pela jovem Mavie e nos momentos capturados pela sua memória. Para Mavie o que importa são as sensações.

Isso é o mais interessante no filme minimalista que se segue, pois o velho Georges, interpretado pelo velho de guerra no cinema Jean Sorel ("A Bela da Tarde"), que cuida de uma livraria que não recebe clientes, possui um passado misterioso que é justamente o que faz com que Mavie se apaixone perdidamente por ele.

Os longos passeios de carro e os longos momentos de silêncio entre os dois é a versão francesa de "Encontros e Desencontros" que Girard nos entrega e nos remete, criando em cima desse leve tecido a contemporaneidade dos problemas modernos, como o mal estar súbido de gaivotas que começam a cair nas ruas de Paris, ou as manifestações de jovens contra o uso da energia nuclear. É do paralelo entre o velho Georges e suas velhas ideias e o jovem Roman e seu conveniente engajamento que "Um Segredo em Paris" mais se perde na mesmice.

Por isso sua primeira metade é a mais forte, pois é a que estabelece a conexão improvável entre essas duas gerações, que se sacrificam e mantém a relação assexuada, mas cheia de fascínio um pelo outro, mesmo vindo de planetas distintos. Uma brevíssima janela de ficção que se monta em quadros estáticos e simples enquadramentos. Uma pequena peça cinematográfica para as tardes quentes da primavera.


# Oito Mulheres e Um Segredo

Caloni, 2018-11-18 cinema movies [up] [copy]

Oito Mulheres e Um Segredo entretém como seus antecessores, graças mais ao seu elenco que está em harmonia de interpretações. Aliás, a parte mais inacreditável do filme é entender como tantas mulheres juntas conseguem se dar bem.

Talvez a resposta esteja no passado. A personagem de Sandra Bullock é irmã do personagem de George Clooney, que até onde se pode dizer está morto e enterrado. Mas Bullock age para se vingar do seu ex que a colocou na prisão (interpretado pelo insosso Richard Armitage), e isso é bem feminino.

Bullock é a melhor protagonista da série até agora. Ela é focada e com um objetivo em mente. Sabemos que ela é picareta, mas com estilo. Sabemos que ela tem um golpe arquitetado por anos e adoraríamos entender os detalhes. Por isso prestamos atenção.

A reunião de suas parceiras segue essa mesma lógica, mas não com o mesmo fervor. É mais ou menos Vin Diesel em Velozes e Furiosos escalando capangas que viram uma família temporária. A boa notícia é que essas capangas não são ninguém menos que algumas das atrizes mais talentosas de Hollywood no momento, incluindo a fabulosa Cate Blanchett.

Conseguindo unir atrizes mais famosas como Hathaway (que está ótima) e outras nem tão famosas assim, como a asiática Awkwafina que diverte como trombadinha de luxo, "Oito Mulheres" é filme de golpe de primeira linha até suas reviravoltas darem espaço para incoerências e contradições no roteiro de Gary Ross (Jogos Vorazes) e Olivia Milch, que tenta soar inteligente mas é bobo e sem graça.

O "golpe" em questão envolve uma jóia de 150 milhões de dólares que é trancado a 50 metros no subsolo em um cofre de segurança máxima da Cartier e que por algum motivo é entregue a uma celebridade (Hathaway) para ser exibido em um evento com centenas de convidados. Há uma trava no colar que impede que qualquer um o tire do pescoço da diva, e é aí que toda a história começa a desabar.

Por outro lado este é o mais suntuoso dos filmes, e toda a luxúria, desde a escolha da estilista por trás do vestido de Hathaway até a exibição privada das joias da nobreza de sei-lá-de-que-época, assim como a participação de celebridades do show business, acrescenta um tom necessário para sempre estarmos do lado dessas meninas e seu golpe, pois é inadmissível que tanta futilidade saia ilesa de lá.


# Planeta dos Macacos: A Guerra

Caloni, 2018-11-19 cinema movies [up] [copy]

É impressionante a qualidade constante dessa nova trilogia. Planeta dos Macacos: A Guerra mantêm as mesmas virtudes técnicas e narrativas de seu antecessor (Planeta dos Macacos: O Confronto) e segue a mesma história do filme inicial que é o mais fraco de todos, mas se ancora na força de sua ideia e nas referências ao "Planeta dos Macacos" original (aquele com Charton Helston).

Esta é uma produção que foi crescendo com o tempo. Iniciado pelo inexpressivo diretor Rupert Wyatt e elencando o fraco James Franco para o papel de mentor do primeiro macaco inteligente a se rebelar, ainda que Planeta dos Macacos A Origem tenha em sua história os elementos necessários para que toda a saga ganhe peso (como a viagem ao espaço que sabemos que irá dar errado) o filme em si carrega um pouco na questão da inteligência símia e de como ela surgiu. Por outro lado, não deixa de ser adorável observar o que os efeitos visuais com a captura de movimento e expressões tem feito para o Cinema. Andy Serkis é o mestre nessa arte desde a trilogia de O Senhor dos Anéis e aqui percebemos a franca evolução do ator e da técnica.

Quando o diretor Matt Reeves tomou controle do resto da história ela ressurgiu como um épico denso e histórico, dando o peso merecido para a civilização dos macacos que começa surgindo rústica, mas que logo se transforma no calcanhar de aquiles da História humana. Se em "O Confronto" ela tomava contornos shakesperianos, aqui o ciclo se completa, com a participação de Woody Harrelson como o vilão à altura para César (Serkis), o líder carismático mas firme da proteção e libertação dos símios das garras humanas.

O personagem de Harrelson surge em um grupo de soldados paramilitares que leva tons de "Apocalypse Now", e Harrelson é o papel principal dessa distopia. Mas é apenas isso que saberemos do lado dos humanos, pois este é um filme contato totalmente do ponto de vista dos macacos, decisão inteligente do remake em respeitar os planos artísticos do original, pois nos dá a identificação necessária com os heróis da história. Além disso, respeitando novamente o que irá se tornar o Planeta dos Macacos visto pelo personagem de Charton Helston, uma possível mutação do vírus vai limitando a capacidade humana de falar (possivelmente de raciocinar), onde encontramos a pequena Nova (Amiah Miller) e uma balança do destino que parece sempre irônica.

Mas "A Guerra" não é um filme livre de defeitos. O alívio cômico apresentado por Steve Zahn e seu atrapalhado Bad Ape (Macaco Mau) é engraçadinho, mas soa conveniente demais como parte da trupe que se move de encontro com o temível Coronel (Harrelson) para colorir um pouco um filme tenso e pesado. Por outro lado é interessante notar como o comportamento de César chega a ser em alguns momentos tão agressivo e irracional quanto o maior traidor dos macacos, Koba, visto no filme anterior e cujo maior pecado era não deixar para trás os abusos de seus antigos donos humanos, querendo vingança a qualquer custo.

O cenário de "A Guerra" já segue colorido o suficiente com a soberba trilha sonora de Michael Giacchino, que cria segundas impressões dos acontecimentos épicos que vão ganhando contorno pelo filme, em uma marcha ritmada e solene. Giacchino nunca chega a ser farofa, pois ele está comentando um filme que se torna sério pelos seus próprios méritos, não por uma trilha dramática.

Não há muito o que dizer das interpretações no filme, a não ser que elas são indissociáveis das interpretações do elenco humano. Uma pena que ainda há um certo preconceito em dar prêmios para atores que trabalham com captura de expressões e movimentos, mas se houvesse alguma luz mais sábia ao reconhecer a arte, "Planeta dos Macacos: A Guerra" seria um ótimo começo.


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