# Animais Fantásticos: Os Crimes De Grindelwald
Caloni, 2018-12-07 cinema movies [up] [copy]Antes que me esqueça: não há animais fantásticos nesse filme que justifique seu título. Ou se há, então toda a magia da ambiguidade do primeiro e encantador filme se desfez na primeira cena. Sabe, aquela ambiguidade entre os humanos serem animais também... ah, esqueça. Este não é um filme de sutilezas. Ele vai direto ao ponto: ele quer nos dividir e lançar suas asinhas políticas em um movimento supostamente anti-nazista. Quer coisa mais anti-harry-potterana que querer meter política nua e crua em um universo cheio de maneiras melhores de dizer a mesma coisa?
O filme se inicia logo após o seu primeiro e logo são apresentados diferentes novos personagens que não vêm ao caso. Até o misterioso e poderoso Grindelwald, interpretado por um Johnny Depp inexplicavelmente comedido (uma boa notícia), não merece muito texto. Seus personagens simplesmente dançam ao bel prazer das artimanhas criadas por sua autora, J. K. Rowling, em um claro sinal de desespero criativo em continuar relevante após seu maior sucesso: a saga de uma criança que em oito filmes se torna adulto, com todos os problemas que isto traz.
Aqui todos são adultos. Adultos demais. E os que não são completamente, como o jovem ingênuo encantador Newt, nas mãos de Eddie Redmayne e do roteiro que o tenta encaixar mal e porcamente vira apenas uma pecinha de um jogo de xadrez ambicioso e complexo demais para divertir. Até os efeitos visuais, impecáveis, são meras distrações, pois nunca se encaixam na história de fato. Aliás, qual a história aqui?
Relações de parentesco, aliados do passado, reviravoltas atuais que são ecos de outros momentos da história. Tudo isso já vimos acontecendo de maneira muito melhor em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban. Aqui soa uma mera versão espalhafatosa e alarmante de um conteúdo supostamente mais sério.
Eu gosto de revisitas ao universo de Harry Potter, e até as mais adultas possuem um tom de magia que é de bom gosto e que consegue harmonizar com as cores mais escuras que vemos desde o Cálice de Fogo. Porém, aqui apenas a seriedade dá lugar, e o pior para a série acaba de acontecer: o primeiro filme sem fim. Eis uma nova série de TV em capítulos.
# Harry Potter e a Pedra Filosofal
Caloni, 2018-12-07 cinema movies [up] [copy]Assistir novamente a "Harry Potter e A Pedra Filosofal" depois dos atores crescidos e a computação dominar o cenário de efeitos visuais cria uma nostalgia quentinha no coração. Por ser um filme de origem, muitos detalhes da história tiveram que ser contados de forma burocrática, mas a imaginação de J. K. Rowling transforma o exagero do mundo mágico dos bruxos, coexistindo debaixo das barbas dos não bruxos (trouxas, esse é o nome), em uma diversão à parte. Quando uma chuva de cartas inunda a residência dos tios do pequeno órfão Harry Potter nós sabemos que as regras da magia podem dominar nossa percepção daquela realidade.
Além disso, detalhes desse mundo peculiar dos bruxos também preenchem nossa imaginação, como os banqueiros que guardam moedas de ouro em cofres acessíveis por um sistema de minas, ou a maneira poderosa como um chapéu escolhe a escola dos recém chegados alunos ou a varinha mágica que escolhe o seu dono, e não o contrário, como imaginaríamos.
Além disso, pequenos truques de magia como fotos e quadros animados e escadarias que decidem mudar de lugar conseguem nos inserir completamente naquele mundo mágico da escola de Hogwarts e nos dar uma impressão, ainda que parcial (são crianças) do mundo que Harry Potter e seus recém amigos estão adentrando.
Todas essas novas experiências são cercadas por um mistério envolvendo inimigos do bruxinho e uma história de vingança. Hoje ela é conhecida por todos, mas hoje também os filmes infantis são inofensivos, o que os tornam facilmente esquecidos. Aqui a morte passa próximo das crianças, e é isso que nos faz levar a aventura a sério.
Ainda assim, a direção de Chris Columbus (Esqueceram de Mim) e a trilha sonora de John Williams (que cria o memorável tema da série) abraçam o caráter infantil desse primeiro trabalho cinematográfico da série de livros. As cores são muito vivas, e jogar quadribol voando em vassouras, apesar de arriscado, é uma atividade colorida e lúdica. Também o são as criaturas mágicas que habitam o castelo de Hogwarts e sua floresta.
Eis um filme que consegue empolgar criança e adulto. Criança porque quem não adoraria viver um mundo onde a magia, além de realidade, é um mundo cercado de mistérios? E adulto porque quem não adoraria voltar a ser criança em uma versão mágica e livre das leis da física? Eu estou na fila.
# It: A Coisa
Caloni, 2018-12-07 cinema movies [up] [copy]O que é o medo? Eis uma pergunta extremamente importante para os que desejam adaptar a obra icônica de Stephen King, "It", onde o medo é descrito de maneira literária. E abstrata. Ela não é um palhaço aterrorizante, nem criaturas que saem dos quadros, nem qualquer clichê cinematográfico de filmes de horror.
E por isso mesmo esta adaptação do livro conduzida por três roteiristas e idealizada pelo diretor responsável pelo fraco Mama merece uma pequena nota de crédito. Isso porque ela, apesar de usar sim um palhaço aterrorizante e vários outros clichês, reinterpreta tudo isso na mente das crianças assombradas por essa figura simbólica.
Ora, cinema é algo visual, e vemos no filme diversas formas de medo que já são retratadas no cinema. Porém, nenhuma dessas visões se trata da ameaça em si. São apenas representações de algo mais interno, que o roteiro deste filme explora como traumas dos seus heróis, seja a garota molestada em sua própria casa, o gordinho que sofre o previsível bullying escolar e um garoto gago que perdeu seu melhor amigo da mesma forma com que várias crianças são perdidas através do medo. Ou, melhor dizendo, vários adultos nunca surgem porque essas crianças presenciaram o medo em suas vidas, muito cedo.
Toda essa beleza de poesia a respeito do medo está contido em "It", ainda que abstrata e pedestre demais para sair do medíocre gênero do horror fácil. O filme usa conhecidos exploitations automaticamente, revelando uma falta de criatividade ofensiva ao criador da história original. Além disso, apesar do elenco mirim ser competente, suas falas são bobas e nunca fazem esses personagens avançaram a linha de partida. Diferente de outros tipos de aventuras muito mais desafiadoras, embora da mesma faixa infantil, como Os Goonies ou até o mais adulto Conta Comigo.
Além disso, os efeitos visuais computadorizados tornam a estética de "It" insossa e artificial demais. Falta a poeira dos velhos clássicos e o "realismo" dos efeitos. Sobra uma limpeza preocupante nos cenários, e mais uma vez a falta de imaginação na direção de arte em tentar transformar o medo em algo não palpável para todos nós, mas pelo menos sugestionável.
# Matilda
Caloni, 2018-12-07 cinema movies [up] [copy]Matilda passa na regra dos 15 anos. Se trata de um filme infantil, com premissas infantis, enxergadas do ponto de vista de uma criança. Mas, perdoem os maniqueísmos, é uma louvável lição sobre como quando as coisas certas acontecem nos ambiente errados.
Em primeiro lugar a história exalta a inteligência, livre espírito e iniciativa de Matilda, que no sorriso peralta e ao mesmo tempo honesto de Mara Wilson vira uma base moral para toda a história, recheada de adultos que, alheios à vida virtuosa e engrandecedora, simplesmente não entendem. Pior: tentam a todo momento esmagar a individualidade dos pequeninos no filme.
O roteiro de Nicholas Kazan e Robin Swicord abraça completamente o ponto de vista infantil e cria uma fábula bem-intencionada. Torcemos obviamente pelo sucesso de Matilda, pois ela é o bem absoluto no filme. Ela e sua adorável professora. Mas não queremos o mal de seus pais ou da implacável diretora da escola (nas mãos da possuída Pam Ferris). Por quê? Oras, eles simplesmente não entendem. Vivem suas vidas auto-centradas de adultos, em seu mundinho minúsculo e mesquinho. Isso revela grande parte da humanidade hoje em dia. Matilda é a heroína da história porque ela se recusa a participar do circo animalesco que os humanos fazem com suas vidas.
Este é um filme colorido, com magia, mas acima de tudo, com coração. Ele não se entrega à dura realidade onde mágica não existe, mas tampouco nos diz que isso não é possível e que é apenas uma fábula. É uma metáfora do poder que nosso cérebro possui quando ganha conexões, muitas conexões, sobre o infinito mundo lá fora. A frase mais linda do filme é quando o narrador afirma que Matilda, tendo lido grandes livros de aventuras de diferentes e consagrados autores, descobre que não está sozinha neste mundo.
Os efeitos estão passados, mas a direção de arte não. E a própria direção de Danny DeVito, que participa como o pai de Matilda e vendedor canastrão de carros usados, usa com perfeição os enquadramentos grandiosos dos cenários que são usados para ilustrar este livro infantil em forma de filme. Tudo funciona no universo de Matilda, exceto talvez a tensão, que é aliviada por muitas palmadas nas costas dos oprimidos.
De qualquer forma, se você está com seu espírito um pouco desanimado, pensando talvez que não valha a pena o auto-crescimento, se veja com novos olhos, os olhos mais mágicos que existem em nossa humanidade: os que têm a visão de uma criança após abrir seu primeiro livro. E sua mente, que se expande e que nunca mais se contrai.
# Dá Licença, Saúde
Caloni, 2018-12-08 cinema series [up] [copy]Essa série possui um certo charme quando você percebe que todos os seus personagens são burros, incompetentes e mal intencionados. Às vezes são os três juntos. O que torna ele divertido em alguns momentos é o cada um por si, onde uma pessoa tão incapaz tenta se safar por sua esperteza.
O que a torna menos interessante são as diferentes falhas no roteiro. Logo no começo a maioria delas está relacionada com a troca de um aparelho celular. E assim como naquela série espanhola de assalto a banco (qual o nome, mesmo? acho que Alguma Coisa de Papel), quando os detalhes perdem o encanto todo o castelo de cartas se desfaz.
Mas os atores são bons. Rupert Grint e seu médico (o ótimo Nick Frost) fazem a dupla perfeita onde nada pode dar certo. Temos certeza disso. E ainda assim chega uma hora em que cansa de assistir, pois apesar de não serem espertos eles possuem momentos de brilhantismo que não se justificam, além das falhas no roteiro fazer tudo parecer mal feito.
O piloto tem o dobro de duração e já começa a ficar insuportável bem rápido.
# Minecraft Story Mode
Caloni, 2018-12-08 cinema series games [up] [copy]O problema de uma história interativa nunca é a interação em si, mas a falta de capacidade do roteirista em criar uma árvore de possibilidades onde permaneça uma narrativa suficientemente interessante para o espectador. O espectador sente quando está sendo enganado, quando o que ele vê em sua tela é um mero replicante (Blade Runner).
E essa barreira em um vídeo estático me parece intransponível. Mesmo que essa seja uma ramificação eloquente de perguntas e respostas esta continua sendo uma tabela fixa. Muitas perguntas não serão instigantes ou não terão motivo de existir em uma narrativa preparada para conduzir expectativas de uma história. Por sua vez suas respostas pouco importam, pois tendem a soar falsas dentro das motivações dos personagens.
Isso quer dizer que só existe uma resposta certa, ou todas as respostas devem levar ao mesmo lugar emocional. E é isso o que essa série programada pela criadora do Minecraft pretende. É boba, é simplória e tem diálogos terríveis. Seus personagens são genéricos e servem como bonecos. Ainda assim, é uma série que pode funcionar com crianças.
Esta série é equivalente também a pessoas que assistem pessoas jogando este jogo, já que ele próprio é uma história interativa conduzida por seus jogadores. E, convenhamos, há algumas histórias muito melhores sendo escritas por aí do que as vistas neste programa de TV.
# O Método Kominsky
Caloni, 2018-12-08 cinema series [up] [copy]Essa nova criação de Chuck Lorre (Big Bang: a Teoria, Dois Homens e Meio) consegue elencar os excelentes Michael Douglas e Alan Arkin em plena forma, mas não parece dar lhes personagens dignos de suas performances. A série não parece muito certa de si se pretende seguir uma linha mais humorística ou dramática. Com certeza não consegue fazer os dois. Isso é para poucos, e do jeito que está o piloto já parece uma bagunça.
Douglas faz um professor de atuação com seu próprio método, que leva seu sobrenome e que vira o título da série. Não está muito claro qual seu arquétipo: ele é um perdedor que se alimenta de alunas? Talvez. Mas ele parece um ótimo professor quando o vemos ensinando uma delas a atuar sendo ela mesma. Então não cabe a comédia.
Já Arkin consegue com seu pouquíssimo tempo de tela emocionar sem manipular. Ele é apenas o marido de décadas com uma esposa que padece de uma doença incurável que a vai levando aos poucos. E ele não precisa de muitos diálogos para se abrir ao público.
Alan Arkin é desses atores coadjuvantes que não estão no papel principal por incapacidade, mas por serem tão bons no que fazem que precisam de apenas alguns momentos diante das câmeras. Ele diz as falas de Lorre de maneira tão carismática que o efeito vai muito além de meramente engraçadinho. Lorre parece se contentar com a comédia e o drama fácil. Arkin não consegue evitar dizer muito além do seu papel apenas com suas expressões no rosto, sua dicção, sua garganta rasgada em um misto de emoção e frustração. Arkin é um tratado sobre como atuar em minimalismo. Lorre é um panfleto publicitário.
Não é preciso dizer que Lorre está analisando o processo criativo e o que faz sucesso na TV, dando como "desculpa" o fato de ter criado e produzido The Big Bang Theory, sucesso de audiência, o que o permitiria agora fazer algo mais intimista, mesmo correndo o risco de pouco público. Bom, ele está na Netflix, que não libera dados de audiência. São episódios curtos, é só dar play e ver meia-hora de dois mestres em atuação trabalhando com material limitado.
# A Maneira Errada de Começar um Projeto é com Visual Studio
Caloni, 2018-12-11 computer [up] [copy]Estava eu trabalhando com um sample e resolvi colocar controle de fonte para analisar as mudanças. E a mudança mais inesperada que eu vi quando digitei git diff foi que ele achou que meus arquivos de código-fonte estivessem em binário.
>git diff >Binary files differ >xxd -l 10 -g 1 -c 4 -u source.cpp 00000000: FF FE 23 00 ÿ##. 00000004: 69 00 6E 00 i.n. 00000008: 63 00 6C 00 c.l.
Essa lambança ocorreu com uma versão atual do Visual Studio 2017 após eu resolver ser preguiçoso e deixar o template dele criar o projeto para mim.
Particularmente não sou fã de deixar as IDEs criarem arquivos, porque geralmente elas estão cheias de más intenções disfarçadas de boas envolvendo alguma tecnologia proprietária. No caso da Microsoft há os precompiled headers, que sujam o projeto antes mesmo do tempo de compilação ser um problema. E agora descobri que os arquivos estão sendo gerados em UNICODE Windows.
Se você tiver o mesmo problema e quiser corrigir segue o passo-a-passo: salve os arquivos com um encoding de gente grande como utf8. Fim do passo-a-passo.
Isso pode ser obtido na janela de "Save As" do Visual Studio. Há uma flecha para baixo do lado do botão Save onde você pode abrir a opção "Save with Encoding".
Na prática, troque possivelmente de "Unicode - Codepage 1200" para "Unicode (UTF-8 without signature) - Codepage 65001". A partir do segundo commit o git começará a entender que você atingiu a maioridade e vai comparar os arquivos como gente grande para você.
A partir do segundo commit o git começará a entender que você atingiu a maioridade e vai comparar os arquivos como gente grande para você.
# Mary Poppins
Caloni, 2018-12-11 cinema movies [up] [copy]Mary Poppins é um musical adorável que foi crescendo como um segundo clássico após Noviça Rebelde, ambos trabalhos fenomenais de Julie Andrews como a queridinha que canta e dança. Aqui sua persona é mais rígida, e tem tudo a ver com a história.
Estamos na Inglaterra dos anos 10. O patriarcado, simbolizado pelo chefe da família Banks (David Tomlinson) tenta controlar a família como um banco: rigidez, mas a distância. Um problema clássico que é eternizado neste trabalho com direção de arte, fotografia e figurino impecáveis. Quando surge a nova babá, vinda das nuvens e de um pedido honesto e das próprias crianças, tudo se conecta: chaminés, vizinhos ex-marinheiros, homens de uma banda só, fantasia e realidade trabalhando em função do tema: como manter o frescor da infância apesar dos adultos por perto?
A direção encomendada de Robert Stevenson estabelece o clima fantasioso desde o começo, nos créditos iniciais. Mary Poppins repousa em uma nuvem, com seu guarda-chuva e sua maleta onde tudo cabe. A partir daí há momentos sóbrios e malucos sendo alternados para sempre manter esses dois lados em relevância. Mas como esta é uma produção Disney a fantasia sempre prevalece.
Prevalece principalmente no grande projeto de Disney: uma sequência onde atores e desenho se misturam. Um encanto até hoje. Envelheceu muito bem e é o ponto alto do longa, infelizmente logo no seu começo. Mas fica perene na memória até o seu final. Deve ter sido um processo caro, pois só o vemos naquele momento. O resto são cenários, música e dança. Todos coreografados de acordo com animações clássicas e filmes infantis de primeira.
Esta é uma produção cara e rebuscada no sentido estético e musical, e por isso sobrevive até hoje. Ganhou uma continuação e que serve para reavivar nossa memória para esses filmes que populam o imaginário infantil e adulto e de vez em quando é revisitado.
# The Ballad of Buster Scruggs
Caloni, 2018-12-11 cinema movies [up] [copy]Jack London e Stewart Edward White foram famosos escritores de sua época, lá pelo final do século 19 até o início do 20. Eles assinam duas estórias dessa antologia em que apenas os irmãos Coen conseguem completar. E não apenas no roteiro, mas na direção, imortalizando essa antologia como se todos esses seis contos em conjunto estivessem sendo contados pela primeira vez. Mas não exatamente.
O que permite que os Coen refaçam as trilhas de seus antecessores é um apuro estético e linguístico que permite que nós percebamos que eles estão cientes que não fazem nada de novo. Porém, fazem bem feito. É mais fácil perceber isso logo no seu começo, onde o próprio narrador inicia a trajetória cantando e magicamente como o melhor atirador onde quer que passe. Ele começa como uma figura onisciente que nos introduz a este mundo um tanto fantasioso do velho oeste, mas ancorado nas duras lições que os colonos aprenderam nessa terra árida, muitas vezes sem lei e sem água. E ele morre, como merece, pois os irmãos Coen não precisam de muletas narrativas para impor força em suas estórias.
Essas duras lições do deserto semi-árido estadounidense estão sintetizadas e universalizadas na fala de um dos últimos personagens, ele próprio um ceifador de vidas: "as pessoas adoram ouvir histórias porque se identificam com seus personagens; elas querem ser eles sem ser exatamente eles; não no final, pelo menos." A morte parece estar sempre implícita na frase do sexto episódio, pois depois de assistirmos cinco trágicos contos começamos a entender um pouco melhor a moral em que eles estão fundamentados.
Desde seu último trabalho, Ave, César!, os irmãos roteiristas e diretores parecem fascinados não apenas pelo misticismo que construiu a cultura norte-americana, mas na própria arte de contar histórias. Eles realizam todo o trajeto com um apuro técnico que sozinho já nos faz ficar boquiabertos diante de diferentes paisagens, texturas, fotografias e enquadramentos. Estamos de fato em uma viagem sensorial àquela época, e nada nos faz pensar diferente. Exceto, é claro, nosso narrador do começo, vestido de um branco impecável, e o protagonista do último (em um preto impecável). Note como os símbolos de vida e morte estão a todo momento cercando nossos herois.
A precisão artística dos Coen e sua equipe não recai apenas na narrativa em si, mas nos detalhes glorificados de um tempo que já se foi. Apesar de serem apenas carroças cobertas de pano, uma caravana de colonos repousando em círculo pertence a um imaginário popular por tanto tempo que ele poderia soar batido demais, mas não é o que acontece aqui. A mesma coisa com um garimpeiro experiente procurando por um bolsão de ouro em um terreno ainda intocado pelo homem. Essas figuras lendárias e reproduzidas em imagens nos livros de crianças recebem uma roupagem mais adulta, mas ainda possuem o apelo de histórias para dormir, pois os enquadramentos que os Coen utilizam são por demais óbvias. Elas apenas ficam mais poderosas. Tão poderosas que cada vez que uma termina ela acaba cedo demais, e quando outra começa torcemos para não ser a última.
Isso porque nenhuma delas se parecem, mas todas contribuem como uma peça no quebra-cabeças que remonta a História com o apelo narrativo que nos deslumbra diante de personagens simples, mas poderosos, pois seus dramas são universais, apenas espelhados na realidade americana, mas que poderiam sair de qualquer outro lugar do planeta. A luta pela sobrevivência requer sacrifícios, mas nem sempre eles são recompensados. A partir de que momento na História recente começamos a nos esquecer disso?
# O Retorno De Mary Poppins
Caloni, 2018-12-13 cinemaqui cinema movies [up] [copy]A Disney vem realizando alguns esforços duvidosos em resgatar para live action (com atores de carne e osso) praticante todos seus clássicos de animação, um a um. Porém, em O Retorno de Mary Poppins o filme original já é "de verdade", e seu maior desafio é nos entregar mais uma vez essa união impossível entre o lúdico e o sóbrio. Bom, se tem algo que Walt Disney sempre nos ensinou é que para ele, e para a Senhorita Poppins, até o impossível é possível.
Esse novo filme avança algumas décadas do primeiro, que se passada nos anos 10. As crianças cresceram e o casal de irmãos agora pode ser visto junto de mais três crianças em uma versão que mescla elegantemente um pai e uma tia em uma referência disneylesca clássica que colocava tios no lugar de pais porque muitas crianças se tornavam órfãs na época da guerra. Estamos nos anos 30, na Grande Depressão, e é a situação perfeita para uma hipoteca que vence e o risco de perder a casa da Rua das Cerejeiras para o próprio banco onde o Sr. Banks trabalhava. Uma trama tão óbvia que dispensa detalhes, embora os detalhes sejam colocados de forma elegante neste roteiro finalizado a seis mãos.
Mas a trama nunca foi o forte de "Mary Poppins". Se fosse não teria a menor graça a acompanharmos com os olhos de uma criança. O que importa mais são os números musicais, a imaginação, a esperança e os desafios de uma aventura que não pretende responder muitas perguntas. Como sabemos, se tem algo que a Senhorita Poppins não faz é explicar as coisas. E muito mais importante do que o que acontece no filme é qual a postura de Poppins, que dá o tom que precisamos.
E ela é magnífica. Vivida agora por Emily Blunt, nas primeiras cenas fica óbvio que ela não conseguirá a proeza realizada por Julie Andrews, que imortalizou a figura icônica, adorável e... britânica. No entanto, ela realiza a mímica e possui "senso de palco" o suficiente para as cenas musicais, além de conseguir dizer boa parte das frases que tornaram a personagem célebre em seu filme debut, o que não é pouca coisa. Blunt sabe que está à sombra de uma lenda e mesmo assim ela consegue seu espaço ao sol. Não será lembrada, no entanto, como Andrews sempre será.
Como havia dito no meu blog, acredito que no primeiro filme a maior virtude cinematográfica é sem dúvida toda a sequência em que atores reais e desenhos se misturam, em uma combinação inusitada que funciona tão bem que se torna memorável e curioso que não tenha nunca mais sido tentado (não daquela forma pitoresca), se tornando então marca registrada e única deste clássico. E combina tão bem com este universo que não há maneira de não incluir outra sequência nesta continuação.
E essa nova sequência, que começa de forma inusitada e divertida, é mais longa e mais aprimorada. Ela consegue tirar nosso fôlego em sua primeira e segunda partes, emplacando uma perseguição em sua terceira e última parte completamente descartável. Agora a computação permite que os atores "interajam" com objetos animados, mas é a mesma computação que torna, por exemplo, a sequência na água tão chinfrim, vazio de espírito, apesar de cheio de boas intenções. Inchado pelas novas possibilidades técnicas, a computação é primorosa na junção de cores e efeitos, mas muitas vezes durante "O Retorno" acharemos que o filme não tem nada a dizer; apenas cantar palavras ao vento.
Mas isso não impede que não seja divertido. As sequências musicais passam voando. Parte disso é graças à coreografia que coloca os personagens muitas vezes deslizando e voando pelo palco. Em contrapartida, não há música à altura do tema de Mary Poppins ("uma colherada de açúcar"), e nem deveria. Ela é usada com muita sutileza como trilha sonora instrumental, e consegue manter o espírito no ar para os mais atentos.
E apesar de não ser um filme sobre uma história, mas um estado de espírito, "O Retorno de Mary Poppins" tem a sua voz social e política. Enquanto a menina do original vira uma militante pelos trabalhadores o próprio núcleo da narrativa em torno das ações do banco do filme original pode ser visto como uma discussão honesta sobre onde estão nossos valores humanos quando se fala de dinheiro. E note que é quando o dinheiro vira algo impessoal, frio e cruel, que surge dos céus a postura humanista, mas nunca servil, de uma babá que precisa colocar os pingos nos i's. Seja bem-vinda novamente, Senhorita Poppins.
# Como o Sistema de Estrelas como Nota Funciona
Caloni, 2018-12-15 cinema [up] [copy]Não é a primeira vez que me questionam que apesar de ter escrito no meu blogue muito mal sobre um filme eu tenha dado três estrelas como nota, como se três estrelas fosse admissível apenas para trabalhos minimamente positivos. Bom, é uma questão complicada. Imagine você compactar todo o texto analisando uma obra em apenas um número entre 1 e 5.
A história das estrelas, ou ranking de filmes, começa em 1928 quando a crítica Irene Thirer decide colocar uma escala de zero a três estrelas na sua coluna sobre filmes do New York Daily News. O primeiro filme que se tem registro de ter sido rankeado dessa forma foi A Entrevista das Cinco (1928).
De acordo com a própria Thirer, três estrelas significavam "excelente", duas estrelas "bom" e uma estrela "medíocre". Quando não havia nenhuma estrela isso significada que o filme é bem ruim. Caso esteja se perguntando, A Entrevista das Cinco recebeu uma estrela. =)
Mas esse foi apenas o início, que só se popularizou nos anos 50 quando a famosa revista francesa Cahiers du cinéma começa a fazer o mesmo, agora com uma escala de cinco estrelas no máximo e um ponto para acentuar nenhuma estrela. Esse negócio de não atribuir nenhuma nota, zerar mesmo, é um detalhe ressaltado exageradamente, pois cada crítico parece ter uma opinião bem diversa do que seja um filme muito ruim.
A própria questão de rankear filmes já dividiu e divide críticos e jornais, pois o argumento dos que são contra é no mínimo louvável: não se resume uma análise em um sistema de notas. O que acontece na prática, ainda mais na correria do dia-a-dia, é que as pessoas frequentemente olham mais a nota e se esquecem de ler o texto na hora de contra-argumentar, o que resume toda a questão em uma guerrinha de estrelas, que, vale lembrar, não diz absolutamente nada sobre o filme em si.
Eu tendo a concordar com isso não apenas em relação a filmes, mas a vinhos também. Talvez vinhos até mais. Construído em uma junção de tempo, sorte, terreno, clima e um controle não-tão absoluto do enólogo, as vinícolas estão sempre tentando criar diferentes formas de expressar a arte de fazer vinhos. Os sistemas de ranking ignoram a diversidade de aromas e sabores e categoriza tudo através de um número de 0 a 100, fazendo com que todo o mercado de vinhos se concentre mais em atender o sistema (para vender mais) e menos o consumidor final (que pode muito bem gostar de vinhos com pontuação baixa por alguma particularidade não capturada por um número).
Mas voltando aos filmes. O melhor artigo que conheço sobre rankings é do Roger Ebert ("You Give Out Too Many Stars"), onde ele cita o Pequeno Homem do San Francisco Chronicle como o melhor sistema de ranking já criado. Ele consistia em um homemzinho sentado na poltrona do cinema. Dependendo da nota o pequeno homem estaria empolgado na poltrona, prestando atenção, aplaudindo ou... dormindo!
O que interessa-nos aqui é a posição do meio, as "três estrelas", que é um homenzinho sentado e prestando atenção no filme. Como nesse sistema de rankings eles também não tinham meia-estrelas, o homenzinho prestando atenção é um range, que vai desde quase-OK-mas-nem-tanto até quase-não-OK-mas-nem-tanto. Ou seja, pode ser tanto um filme que é quase ruim ou um que é quase bom. O que importa é que é possível que muitos gostem dele e muitos desgostem, o que é perfeitamente possível, pois gosto é subjetivo. E as estrelas, assim como o texto, vale lembrar, é a visão subjetiva de apenas uma pessoa. A explicação do Pequeno Homem também leva em conta que se uma pessoa gosta do gênero de um filme três estrelas ela possivelmente vai gostar desse filme; já alguém que não gosta do gênero não vai ver nada de mais.
Ao finalizar o texto Ebert se lembra de um fato importantíssimo sobre a nota do meio: as pessoas não gostam. Elas precisam que o polegar esteja virado para cima ou para baixo, mas nunca para o lado. Essa indecisão denota que o objetivo da estrela é basicamente como guia de consumo ou como uma forma não-racional de se conectar com a opinião do crítico. Bom, a resposta para isso é simples: cada pessoa terá seu sistema de notas, e as notas vão refletir esse sistema e não o dos outros. Por isso uma estrela pairando abaixo do título de um filme será sempre, na melhor das hipóteses, apenas um chute educado sobre o valor do tempo para se ver um filme.
# Christiane Amanpour: Sex and Love Around the World
Caloni, 2018-12-16 cinema series [up] [copy]Esta é uma série movida por um sentimento. O sentimento de superioridade do Ocidente, de suas liberdades e sua forma de enxergar o mundo. Todo o resto está errado, está oprimindo e está sendo comandado pelo patriarcado. Exceto os muçulmanos, claro. Eles são bonzinhos.
A host Christiane Amanpour (que desconheço, e fico feliz com isso) nos apresenta como é o sexo em diferentes partes do mundo. No Japão, por exemplo, ela se escandaliza pelo fato de existir casamentos onde não há sexo (duh) e uma esposa ter um namorado para satisfazê-la. E aparentemente todos os casais retratados no episódio, tradicionais ou mais moderninhos, são felizes à sua maneira.
Quem não está feliz de jeito nenhum é Amanpour.
O direito de se escandalizar com o diferente dos EUA está embutido em todo americano de classe média. Já vimos o melhor exemplo em "Borat", o filme onde Sasha Baron Cohen desmistifica diante de um grupo de intelectualóides americanos como funciona a visão de superioridade dos valores estadunidenses em relação aos povos primitivos do Leste Europeu. Aqui há uma pontinha de análise histórica da moralidade sexual de um povo com um forte julgamento na forma de apresentar este mundo ao espectador.
A mesma coisa acontece no episódio sobre a Índia, mais especificamente em sua grande cidade, Delhi. Amanpour convida ocidentais vivendo na Índia para falar sobre o papel da mulher -- e é hilário ver a opinião de quem é de fora sobre locais -- porque ela tem dificuldade de encontrar abertura a críticas do povo local. Acha pessoas que praticam variantes sexuais como BDSM e amantes novos e ingênuos que são perseguidos pelas autoridades por descumprirem as leis locais de matrimônio, que envolve casta e casamento arranjado.
Imbuído de preconceitos inversos a respeito de como o ser humano pode se realizar através de relacionamentos, "Sex Around the World" é apenas propaganda esquerdista da pior qualidade. Eles já foram muito melhores. Já foram quase sexy um dia.
# Derren Brown: Apocalypse
Caloni, 2018-12-16 cinema series [up] [copy]O que você faria se acordasse em um apocalipse zumbi? Esta minissérie, que começa com uma história em dois capítulos de 45 minutos, explora essa abordagem usando uma cobaia em torno de uma produção que mistura o melhor da edição televisiva de séries como The Walking Dead e um roteiro que se assemelha a um jogo, mas que por contar com uma pessoa que vive isso de verdade, está anos à frente de qualquer tentativa de dramatizar os quadrinhos da série famosa de Frank Darabont.
O host é Derren Brown, que é mágico e hipnotizador. Ele está obviamente se auto-promovendo através de uma série com colagens bregas sobre apocalipse vinda de jogos de computador, mas algo muito bom nasce desse projeto. Ele realiza uma pesquisa para encontrar uma pessoa que não valoriza a vida que tem, mesmo ela sendo cheia de privilégios, e encontra Steven Brosnan, um rapaz que ainda não cresceu, vive com os pais e quase sempre na frente da TV. Ele é mimado e se sente incapaz de conseguir um emprego e ter uma vida própria.
Tudo vai mudar quando Brown começa a imputar em sua cabeça a ideia de que haverá uma chuva de meteoros, e através dessa chuva surge o apocalipse zumbi, infectando pessoas que se tornam violentas e irracionais. Com o uso de tecnologia, hipnose, atores e uma produção em tempo real de acontecimentos que buscam encontrar o melhor em Brosnan como ser humano, essa rápida série evita dar spoilers do que está realizando, e tudo se torna como o capítulo mais realista que você pode imaginar de The Walking Dead. Eu assistiria essa série se ela fosse assim.
# Lazzaro Felice
Caloni, 2018-12-18 cinema movies [up] [copy]Este é daqueles filmes que as pessoas assistem e saem um pouco confusas, sem saber direito se entenderam e se gostaram. Mas a boa notícia é que não é necessário desvendar completamente esta pérola para se aproveitar dos momentos dramáticos, cômicos e absurdos deste primeiro longa de ficção da diretora/roteirista Alice Rohrwacher, que ganhou Cannes como melhor roteiro. Sua história é simples o suficiente e seu protagonista cativante o suficiente para que essa fábula se construa como uma ponte entre o divino e o profano.
O profano começa a ser contado quase que de forma surreal. Se trata de uma fazenda onde seus empregados são proibidos de sair. Mantidos em cativeiro através de dívidas que vão acumulando mês a mês, não é preciso ser nenhum gênio para perceber desde o começo que há uma relação de escravidão entre esses camponeses e sua "dona", a Marquesa de Luna. O absurdo da situação é que isso está ocorrendo em uma época em que já existem celulares (ainda que os primeiros).
Também não é preciso ser um gênio para entender que Lazzaro é o santo entre essas pessoas. Ele sequer se importa em não beber o pouco álcool que têm para comemorar a união de um casal, que espera sair daquele lugar para tentar a sorte no mundo. Lazzaro é um jovem despido de qualquer ambição. Ele faz exatamente o que as pessoas lhe mandam fazer, e faz até quando não mandam. Disposto a estar sempre cuidando do próximo, fica difícil ter raiva desse rapaz, mesmo ele sendo meio bobo.
Isso porque a atuação de Adriano Tardiolo é sincera demais para enxergarmos qualquer sombra de incômodo. Seu olhar é transparente, seu rosto sempre amigo. Acreditamos de verdade que ele não quer o mal de ninguém, embora no processo ele praticamente se anule. Mas este não é um filme sobre o individualismo, mas sobre o divino católico, praticamente, embora não haja aqui uma presença muito forte da liturgia (apenas a figura muito vaga dos santos e como eles viveram suas vidas).
O filme é dividido em duas metades, e algo surpreendente ocorre bem no meio. É preciso que você assista para sentir o impacto, e eu não posso falar muito sobre a segunda metade. Exceto que ela avança no tempo e estamos já às voltas com refugiados, bancos malvadões, etc. Agora não existe mais escravidão. Bom, essa frase é verdadeira, mas não de acordo com os valores do filme, que tenta fazer um paralelo entre a escravidão do interior e a miséria nas grandes cidades, e entre imigrantes ilegais e os cristãos clássicos. Sim, é bem farofa se for pensar.
Importante notar que em ambos os momentos do filme Hélène Louvart utiliza uma palheta cinzenta que torna tudo realista através de uma fotografia profana, comum. Essa sensação é aumentada pela diretora Alice Rohrwacher ao fazer questão de mostrar os contornos arredondados de sua câmera, como uma forma de documentar sua ficção. Estilo ou não, funciona, pois os frequentes defeitos que vemos nesse enquadro acaba soando realista, e os planos que Louvart concebe são sempre desprovidos de charme. Se trata de pessoas andando pra lá e pra cá, da direita para a esquerda. O que eu quero dizer é que não há nenhuma tentativa da cineasta em glorificar os acontecimentos simples daquelas pessoas. Elas estão em pé de igualdade do pai em Ladrões de Bicicleta em serem pessoas comuns tentando sobreviver como podem.
A mensagem divina do filme passa dos limites no quesito bondade. Todos os pobres do filme, nobres ou não, são oprimidos (embora os nobres também sejam opressores), e são excepcionalmente bons mesmo assim. É por um motivo. O filme precisa colocar em nossa mente essa atmosfera cristã clássica, onde os humildes herdarão os céus não por passarem necessidade, mas por mesmo passando necessidade serem íntegros e bons. E quando digo íntegros estou incluindo mesmo os momentos em que eles roubam e enganam pessoas para sobreviver. Se isso parece contraditório a mensagem cristã possui tantas contradições quanto, mas esta não é exclusividade das religiões tradicionais, já que a visão atual de oprimido pode perdoar e glorificar até mesmo os piores bandidos da sociedade.
A grande virtude de "Lazzaro Felice" para o Cinema é que se trata de uma história que consegue unir de maneira orgânica diferentes visões e crenças sobre a realidade que nos cerca. Ele brinca com o conceito de divino e profano dentro da realidade que estamos acostumados, e se aproveita de um momento sobrenatural para nos fazer pensar sobre como a sociedade pode ser cega para milagres. É um filme pessimista, e imoral, mas ele o é da maneira mais autêntica possível.
# Amigos Para Sempre
Caloni, 2018-12-19 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Bom, Amigos Para Sempre é um filme impossível de não ser comparado com o seu original, Intocáveis. Aliás, a primeira pergunta que surge é: por que refazer um trabalho magnífico (e recente) e entregar algo que estará sempre à sombra de seu antecessor? A segunda pergunta é: por que Kevin Hart e Bryan Cranston no elenco?
Essas perguntas surgem porque os trabalhos de Omar Sy e François Cluzet criam uma dinâmica tocante desde a primeira cena, que revela a cumplicidade entre os dois, algo primordial para todo o filme que segue para entendermos como surgiu essa inesperada amizade. Em Amigos Para Sempre essa questão não existe, o que já não justifica o flashback de seis meses atrás. A cena é a mesma, mas ela não tem o mesmo efeito. Aliás, o título original e traduzido do filme francês não precisa mencionar a amizade entre os dois porque ela é óbvia. No remake o título brasileiro (no original é The Upside) tenta claramente tentar remendar o serviço nos dizendo sobre o quê a história deveria tratar.
E este é apenas o começo. Eu poderia fazer comparações com praticamente qualquer detalhe dos dois filmes e isso aos poucos revelaria a mediocridade por trás da indústria de remakes americana, incluindo, por exemplo, até sua estéril e genérica trilha sonora dando lugar à mais arriscada e acertada trilha Ludovico Einaudi no filme francês.
Mas não farei isso, continuando com as infinitas comparações, pois apenas diminuiria este novo trabalho e o esforço de seus atores e roteirista, que a despeito de uma direção maçante que se entrega ao óbvio, merecem nossa admiração por tornar este projeto minimamente interessante. O quase estreante no roteiro Jon Hartmere pega praticamente todo o trabalho da dupla de diretores/roteiristas franceses em torno do tratamento que as pessoas dão aos mais fragilizados e o transforma em um filme sobre amizade, basicamente. E é graças a Cranston e Hart que isso não se torna um completo desastre.
De qualquer forma, verbalizo a implícita dica deste texto: assista ao original. Se já viu, reassista. Mas não deixe de ver como Amigos Para Sempre pode ser muito melhor. Ter uma alma. Mas, claro, como todo cinéfilo, veja este filme também. É uma oportunidade, quase única, para apurar nossso senso estético, observar tratamentos diferentes ao mesmo material.
Kevin Hart obviamente não é um substituto para o gigante Omar Sy, e essa observação vale tanto para sua estatura física quanto suas qualidades de atuação. Sy consegue ser cômico sem perder o respeito (também, daquele tamanho e com aquela atitude...). Hart é o lado cômico com um leve traço de melancolia. Leve demais. Ele faz o possível com o seu Dell, um sujeito que realizou muitos erros na vida para conseguir dar a volta por cima. O único que parece apostar no rapaz é quem não tem muito a perder: Phillip, o milionário tetraplégico que nas mãos de Cranston também perde parte do seu charme aristrocrata visto nas mãos de François Cluzet, mas que ganha com a cara de cachorro abandonado (embora não muito confiável) de Cranston.
Os dois precisam trabalhar nas sombras de Sy e Cluzet, e a direção de Neil Burger não os ajuda em nada. Dirigido no piloto automático, o filme usa constantemente externas para a passagem do tempo e não consegue utilizar a câmera para situar o estado de espírito de seus personagens. Vagamente idealizado, o design de produção combina com a direção geral do filme, que assume um caráter de seriado do começo ao fim. Como havia falado, este é o Intocáveis sem alma, sem apelo. Sem necessidade de ser. Ele poderia ser um filme de matinê a ser esquecido na única semana em cartaz, mas será para sempre lembrado como uma versão piorada de um outro filme que já vive em nossos corações.
# Colette
Caloni, 2018-12-26 cinema movies [up] [copy]Colette é uma tentativa de fazer justiça a respeito das obras entituladas Claudine, escritas pela escritora ganhadora do prêmio Nobel (e famosa pelo romance "Gigi"), mas com os créditos dados ao seu marido Willy, na época um famoso crítico e escritor. Se trata de uma biografia burocrática, que descreve acontecimentos sem paixão, apenas se detendo no que mais chama a atenção do público: as relações extra-conjugais do casal.
Aliado a uma trilha sonora que tenta constantemente nos manter tensos frente ao que vemos na tela, o filme nos entrega uma Keira Knightley completamente clichê e alheia, sem a leveza e a doçura vistas em Orgulho e Preconceito nem a sensualidade dela em Apenas uma Noite, e felizmente nada da bizarrice que encontramos em Um Método Perigoso. Knightley não possui liberdade o suficiente em uma direção que se concentra demais na biografia e deixa em segundo plano seus personagens.
Ainda assim, a figura intensamente canastrona de Willy é uma diversão entregue quase que naturalmente por Dominic West, que está muito mais à vontade na época e nos trejeitos. O casal juntos irão se aventurar por um relacionamento nada convencional que envolve compartilhamento de amantes (femininas) e roubo de autoria dos primeiros livros de Colette.
Pela história de roubo de autoria o filme nos faz lembrar de outra biografia, Grandes Olhos, onde o repulsivo personagem interpretado por Christopher Waltz rouba a autoria dos quadros impressionistas de sua amada/vítima, interpretada por Amy Adams. Nesse filme, a despeito de ser dirigido de maneira insossa por Tim Burton o resultado é levemente superior graças à atuação conjunta. Knightley talvez aqui não tenha sido uma boa escolha.
De brinde o filme entrega um outro interesse amoroso, a Marquise de Belbeuf, ou "Missy", que de caricatura histórica andrógina passa por um tratamento contemporâneo para ser menos chocante para o grande público. Aliás, todo o filme parece ter sido sanitizado e transformado em uma versão "segura" o suficiente para chocar na medida certa. O que é um pouco insatisfatório para a história de uma escritora que desafiava costumes.
# Wanderlust
Caloni, 2018-12-26 cinema series [up] [copy]Wanderlust é o primeiro trabalho recente que conheço que tenta abordar relacionamentos abertos de uma maneira mais madura, mais dramática. Ou pelo menos a primeira metade dessa série começa a delinear o assunto dessa maneira. Focado na terapeuta de casais Joy (Toni Collette), a série com apenas seis episódios tenta também explorar os relacionamentos de outros personagens (para não dizer todos). É uma tentativa de ampliar um dos subtemas vistos em Beleza Americana que se sabota da metade para o final.
O que acontece com a moral americana? Monogâmica até as últimas consequências, vendendo a ideia do casamento como algo sagrado, a série nos apresenta a tentativa dos quarentões Joy e seu marido Alan (Steven Mackintosh) em apimentar novamente o casamento. Com dois filhos já adolescentes e uma filha adulta, ou seja, com a "missão cumprida", o sexo não dá mais prazer a Joy e soa como um incômodo para Alan. Um acaba traindo o outro e em uma conversa madura a respeito decidem manter as saídas casuais para "ver no que dá".
O problema é que essa premissa não é uma conclusão em si mesma, mas o sintoma de um problema maior na vida de Joy, que irá realizar uma terapia cheia de caminhos óbvios e intelectualizados a respeito da relação de Joy com uma figura paterna inesperada, algo que é mal explorado pela série, que vai colecionando detalhes para tentar criar uma reviravolta inesperada e até certo ponto indesejada pelo espectador, que espera que aquela relação dê certo independente da forma.
Ainda assim, Wanderlust é um trabalho sólido sobre como relacionamentos abertos funcionam, pois ele assume que as pessoas envolvidas são maduras o suficiente para fazer funcionar, mesmo que em alguns momentos as emoções levem essas pessoas a rediscutir a coisa toda. Porém, a pedra no sapato dessa história é revelada de maneira torta, através de um longuíssimo episódio onde duas pessoas conversam em uma terapia cheia de obviedades que são genéricas demais para dizer algo da personagem, exceto que mal a conhecemos.
Joy é vivida por Toni Collette com alma e uma intensidade que flertam com o exagero. Os cacoetes de Collette parecem perfeitamente normais para essa mãe moderna e disposta a balançar sua vida, desde que ela se recupere de uma queda física e psicológica traumatizante. Collette e Mackintosh são as coisas boas nas atuações.
O maior problema é o roteiro, que tenta explorar complexidades demais em seis episódios que ainda precisam dividir tempo com outros personagens e tornar todos relevantes, como se houvessem problemas a ser resolvidos, o que contraria a própria proposta da série em visitar relacionamentos como processos, e não como pedras no sapato.
Em tempo: Wanderlust tem uma bela fotografia cinzenta com uma direção estilizada que torna a experiência esteticamente agradável. Una isso a atuações acima da média das produções Netflix e você tem um conteúdo assistível do começo ao fim. Mesmo que tudo vá caminhando ladeira abaixo.
# 12 Regras Para a Vida, por Jordan Peterson
Caloni, 2018-12-30 books self [up] [copy]12 Regras para a Vida, como o nome indica, é um livro de auto-ajuda, mas diferente do que você poderia esperar. Livros de auto-ajuda que usam o exemplo de vida do autor servem como guia apenas para... er... o autor. Já o livro do psicólogo/filósofo Jordan Peterson utiliza a sabedoria das narrativas antigas, dos usos e costumes das sociedades, aliado ao que a ciência já descobriu sobre nossa espécie para chegar a um denominador comum de quais são as regras mais valiosas para se viver uma vida significativa. Ah, sim, Peterson está menos preocupado com viver feliz do que viver com significado. "Precisamos de regras; quaisquer regras". Esse livro é a tentativa de elencar as melhores.
O início do livro nos apresenta a ideia de que valores são tão importantes quanto fatos científicos, mas que atualmente existe um movimento que tenta eliminar o discernimento moral como algo absoluto ou mensurável. O mundo que vivemos está substituindo certezas onde podemos nos agarrar pela tolerância ilimitada e cientificismo exarcebado, onde teoricamente apenas fatos importariam. Ledo engano. "12 Rules" enfatiza como a razão não é todo o conhecimento que podemos obter do mundo à nossa volta (apesar de ser importante), pois há lugares que apenas nossa intuição pode caminhar. E para isso um guia pode ser as inúmeras narrativas mitológicas sobre o mundo (que mesmo parecendo contos de fadas estão aí até hoje por um motivo). Há uma certa ênfase em como as narrativas de heróis fictícios sempre focam na transformação pelo qual ele passa e pelo sacrifício necessário para que ele passe para o "próximo nível".
Particularmente a parte mais notável dessa introdução é entender que valores são tão importantes para nós, humanos, como os hoje glorificados fatos científicos. Aliás, fica uma questão interessante para ser respondida durante a vida: como há tantos fatos hoje em dia e prestamos atenção apenas aos que nos interessam (portanto, os que valorizamos) como separar fatos de valores?
Por fim, a mensagem implícita nessas regras de como viver é simplesmente a máxima clichê e piegas de seguir os seus sonhos. E sonhos, por definição, não são obtidos através da razão.
Enfim: vamos às regras.
Desde as lagostas hierarquia por dominação existe no reino animal. Os que perdem um confronto se tornam submissos em um sistema de feedback positivo que começa ao medir forças e continua através dos hormônios. Por isso você pode começar a se sentir melhor apenas agindo como um vencedor e o resto seu corpo segue e lhe dá a chance de mudar de verdade.
Nós decidimos o quanto de caos e ordem queremos em nossa vida, portanto ser niilista é patético. Negocie com você de forma a obter o melhor retorno para si e não como um tirano dando ordens. Essa é uma regra que você deve seguir para evitar ser escravo do caos ou da ordem.
A derrota é o estado natural da vida e não precisa de explicação. O que deve ser explicado é a vitória, e como ninguém sabe é melhor estar próximo de pessoas que estejam querendo saber, e não o contrário, pois pessoas que estão na pior geralmente estão lá por um motivo e tendem a ficar lá e arrastar todos com ela.
Parece óbvio, mas não faz o menor sentido se comparar com as outras pessoas. Por outro lado, você mesmo no passado é um ótimo indicativo; principalmente se decidir estar sempre melhor todo dia no decorrer de alguns anos. E sempre trabalhar em parceria com você mesmo, e não como um tirano mandando e desmandando em seu corpo e mente.
Violência na natureza não é algo que precise ser explicado, pois é o padrão. Sociedades organizadas é que precisam de explicação, e às crianças deve ser permitido se socializar o quanto antes para que aprendam a ser úteis nessa organização que temos e a serem indivíduos que as pessoas gostam de ter por perto.
É simples: ache o que está fazendo de errado e pare de fazer, mesmo que você não saiba exatamente por que isso é errado. Fazendo isso aos poucos e em um ano ou dois estará completamente mudado.
O significado para nós surgiu ao postergarmos a recompensa; com isso surgiu a civilização, evoluímos como grupos; pertencemos a algo maior que nós mesmos. É a fuga do hedonismo, o sacrifício que nos entrega um eu completamente mudado.
Só há uma maneira de melhorar na vida, que é sabendo quando algo está errado; mas mentir evita isso a todo custo, então nunca conseguimos melhorar mentindo para nós mesmos, pois o problema não consegue se tornar claro o suficiente para lidarmos com ele.
Você já sabe o que já sabe; e sabe que ainda não é suficiente. Então para obter mais conhecimento você precisa aprender a ouvir de verdade.
Se não formos acurados, isto é, se não extrairmos ordem onde há apenas caos, não há como discernir as coisas funcionando na realidade. E elas só funcionam de acordo com a nossa definição das coisas. Logo, seja mais claro ao evocar ordem e ela fará mais sentido para todos. E, claro, é preciso sempre definir bem (e sem mentir) quando há um dragão pequeno escondido debaixo da cama. Porque ele pode crescer.
Apenas o perigo cria as condições para nós crescermos. E no conto de João e Maria a bruxa é a mãe superprotetora, que os mantém presos em uma casa de fartura. Em determinado momento ela precisa sacrificar João, engordando ele. É essa a relação doentia de uma mãe superprotetora e seu filho morando para sempre com ela. Portanto, deixe as pessoas correrem os riscos que elas precisam correr para crescer. Do contrário a pessoa pode morrer lentamente e viver uma vida falsa, onde tudo é seguro.
Aprender com o caos em formato de animal podemos entender como nos planejar a longo prazo, mesmo que as coisas sejam irremediavelmente imprevisíveis. Lidar com um dia após o outro e saber que há muito que sabemos que é difícil de lidar, como entes queridos precisando de toda atenção e cuidado por anos a fio. Nada é fácil, a vida humana é sempre sofrimento. Portanto fique feliz nos poucos momentos em que estiver observando um gato brincando na rua.
Essas são apenas minhas anotações preliminares da primeira leitura. São pessoais, para eu entender por cima um livro longo. E ele é longo porque Jordan B. Peterson gosta de se alongar em um assunto. Ele é uma máquina de narrativas, mas usa muitas referências científicas. Vale a pena uma releitura? Talvez não. Apenas de partes. Se trata de um livro episódico que contém alguns momentos que soam sabedoria, mas que acabam se revelando como um guia promissor para algum desenvolvimento de conhecimento baseado em humanos, com valores e ciência, caminhando a lado a lado para buscar o melhor de todos nós.
# Westworld
Caloni, 2018-12-30 cinema series [up] [copy]Eu fui programado para escrever esse texto? Posso responder, na melhor das hipóteses, que eu estar escrevendo este texto é consequência da soma das minhas ações. No entanto, volta outra pergunta no lugar: eu fui programado para executar tais ações?
A série televisiva -- leia-se: lotada de enchimento de linguiça -- Westworld tenta explorar essa questão nos entregando em sua história um parque temático com representações físicas fidedignas de seres humanos, que interagem com os visitantes como personagens "de carne e osso" do velho oeste. Isso permite que os clientes satisfaçam seus desejos mais profundos, geralmente sádicos e sexuais, e ao mesmo tempo coloca em xeque nossos conceitos de moral e ética.
Mas Westworld é mais que isso. Preso ao parque, o conhecimento e tecnologias desenvolvidos durante décadas está nas mãos de poucos investidores, e a criação de histórias e personagens nas mãos de seu fundador. Isso quer dizer que ainda estamos nos limiares do que torna possível desenvolver "cérebros" capazes de conter memórias e processar os mais diferentes tons de emoções humanas, mas ao mesmo tempo conter a racionalidade dessas máquinas em roteiros feitos não apenas para entreter a platéia, mas controlar os anfitriões em um mundo onde todos carregam facas e pistolas.
As ideias por trás do seriado ultrapassam sua narrativa em anos-luz. Ainda assim, o tratamento dado pelos idealizadores é digna de respeito, pois pensou nos mais diferentes empecilhos para que aquele experimento pioneiro se contivesse ainda em uma espécie de laboratório mental. O preço para isso são personagens mal desenvolvidos e diálogos que se repetem sem muitas vezes querer dizer alguma coisa mais profunda, e mesmo com os mais devidos respeitos ao personagem de Anthony Hopkins, é difícil não entender desde a primeira cena em que ele aparece que este é um estereótipo tão básico quanto os primeiros bonecos colocados no parque (como Dolores, a eterna mocinha que aguarda pelo resgate).
O personagem de Hopkins é o cientista maluco, e sua criação é, no melhor sentido metafórico do tema, fruto dos delírios de um roteirista que tem a possibilidade de criar personalidades que sejam finalmente livres de seu criador. Negar isso é negar a própria essência de sua caricatura, e mesmo que a série constantemente nos jogue uma ideia contrária, sabemos desde o início que Hopkins está lá para chocar. O que, paradoxalmente, é o que acaba menos chocando.
Baseado em um filme de 1973 (Westworld: Onde Ninguém tem Alma, de Michael Crichton), a grande sacada da série é subverter a narrativa do original e contar a história sob o ponto de vista dos robôs, o que os dá os primeiros traços de humanidade necessário para que reconheçamos a humanidade dentro deles. Porém, caindo na própria armadilha do plot original, ao ilustrar bonecos como personagens de um filme de terror as pessoas reais da série estão longe de parecer muito diferentes de suas contrapartes de plástico. Aliás, esse truque de comparação é tão velho quanto o primeiro filme de George Romero.
E por falar no criador máximo de filmes de zumbi, não deixa de ser igualmente irônico que o único caminho a ser seguido pelo longa de dez horas é justamente se entregar a caricaturas, quebra-cabeças previsíveis (ainda que cercadas por uma narrativa competente em escondê-los) e girar em torno do próprio rabo sobre as questões filosóficas perenes.
E nesse sentido, podemos também concluir com uma pergunta capciosa: os roteiristas de Westworld foram programados para escrever Westworld? Ou foram apenas consequências das ações de bilhões de indivíduos o que nos trouxe aqui? E mais uma vez, outra pergunta volta no lugar: fomos programados para executar tais ações?
# Westworld (Revisita ao S01 com algumas questões e spoilers)
Caloni, 2018-12-30 cinema series [up] [copy]A revisita a Westworld vale muito a pena. Detalhes que só serão revelados no final são percebidos desde o começo, e a experiência se torna única novamente. Em meu primeiro texto não me lembro se liberei spoilers (vendo agora... não), mas este aqui é certeza que terão. Como toda revisita a esta série deve ter.
Em primeiro lugar, fui desnecessariamente duro com a série em meu primeiro texto. Se trata de uma história necessária para os dias de hoje, e uma história cujo roteirista necessário é possível contar nos dedos. E Jonathan Nolan obviamente está na lista. É dele O Grande Truque, Amnésia e Interestelar. Todos eles possuem algo com Westworld em comum: lidam com mudanças bruscas no tempo, com tempos paralelos e trucagens no tempo.
Aqui a grande trucagem está nos bonecos de Westworld, que por não envelhecerem podem pertencer a períodos temporais distintos. Porém, seus personagens humanos, esses sim, estão bloqueados no tempo e em sua visão limitada da realidade. Os bonecos conseguem reprogramar suas narrativas de maneira muito mais eficiente que um ser humano, embora vivam seus sonhos (e pesadelos) como se fossem a própria vida. Essas diferenças entre humanos e andróides são vitais para entendermos a escalada dessas criaturas para sua merecida liberdade e consciência.
Mas isso ainda está em xeque. Terão alguns andróides atingido a consciência, ainda que da forma deles? O que dizer de um programador de androides onde ele próprio é um androide? Ele está consciente?
A questão do controle é bem curiosa, também, pois aqui os humanos fazem o papel das forças da natureza, já que humanos estão presos à sua natureza, e os androides, a humanos. Anthony Hopkins faz aqui um de seus melhores papeis, e arcos, e é deles o melhor pacote de frases profundas, embora todos tenham o seu papel na história. Principamente os androides.
É curioso perceber como humanos pouco mudam durante a temporada, mas os androides, estes sim vivem sua revolução, de forma velada, mas vibrante. É um deleite filosófico acompanhar a narrativa do ponto de vista da capacidade deles adquirirem uma forma de consciência, fora os diferentes símbolos criados para esta consciência.
Enfim, apenas um pequeno desabafo de uma das melhores séries ainda em execução. Espero extrair mais conteúdo da minha terceira vez em que assiti-la. Sua complexidade me fascina, mas ao mesmo tempo me consome. Não consigo imaginar como o espectador médio passar por esse martírio.
# Westworld S02 E01-02
Caloni, 2018-12-30 cinema series [up] [copy]Estava com saudade de voltar a escrever sobre Westworld. Agora comecei a ver a segunda temporada, os dois primeiros episódios, já que a temporada acabou. É curioso como o jogo de expectativas não funciona muito bem com uma série que praticamente arrasou logo em sua primeira temporada, que merece ser vista e revista algumas vezes. No entanto, é preciso ser mente aberta para aos poucos compreender o que os criadores da série pretendem.
O reinício da série lembra uma tentativa em refazer todos os conflitos da primeira temporada, mas de uma maneira pouco criativa. Os robôs tomam conta de suas próprias vidas, pelo menos as duas garotas mais promissoras, a doce Dolores (Evan Rachel Wood) e a ácida Maeve (Thandie Newton). Dolores era a cobaia do experimento da busca pela consciência. O experimento foi bem sucedido pelo diálogo existencialista que ela insiste em dizer sempre que ela e seus seguidores, incluindo seu amante de suas narrativas, Teddy (James Marsden), param em um lugar para punir seus agora inimigos: humanos.
Mas é época de vingança, e ninguém melhor para liderar uma revolução do que a dona do prostíbulo, Maeve, que aprendeu por conta própria a usar uma falha em seu sistema de apagamento de memória para insurgir como o conjunto de tudo o que viveu e tudo o que lhe fizeram. Ela é ódio puro, mas sob controle do autômato com o maior QI a andar livre por aquelas terras. Por ser negra e ter perdido sua filha na narrativa passada, a metáfora sobre escravidão e dívida história está no ar. Rodrigo Santoro como o impiedoso Hector vira seu interesse amoroso, embora aqui, para ficar claro, os interesses amorosos de fato são os homens, que seguem suas mulheres líderes da revolução.
A série também vê necessidade de explicar, ou apenas mostrar de maneira onisciente, os momentos do passado que culminaram na compra do parque por Wyatt (Sorin Brouwers), ou o Homem de Preto (Ed Harris). Como ele ainda está no jogo, seguindo os passos que Ford colocou para ele, não me parece nada inesperado seu encontro com Dolores. O que me parece inesperado são momentos e diálogos tão inspirados quanto os da primeira temporada. E nem espero pelas reviravoltas que vimos.
Já Bernard (Jeffrey Wright) vira aqui um pouco do elemento gore com tons de terror psicológico, pois vive o desespero de se descobrir máquina apesar de ter acreditado por muito tempo ser humano, e potencialmente isso irá nos mostrar mais filosofia existencialista na trama futura. E mais uma vez (e espero estar errado) não espero nada muito profundo. Algo no nível do Pondé, digamos.
Talvez a primeira temporada tenha entregue tudo que precisamos ver sobre a grande questão da singularidade. Agora apenas aprecie o passeio. It's (brainless) show time.
PS: Importante notar que o casal Jonathan Nolan e Lisa Joy não estão mais na liderança do projeto, que segue por uma equipe diversificada no roteiro e direção. Torçamos para que eles mantenham o legado vivo.
# Westworld S02 E01-04
Caloni, 2018-12-30 cinema series [up] [copy]Westworld e suas revelações nos primeiros quatro episódios são tão profundas que suas várias linhas narrativas ficam em um vácuo por mais de um episódio. E isso é por uma causa justíssima, pois não há como se concentrar com vários acontecimentos em paralelo (e em várias linhas do tempo), e também porque eles (por enquanto) não se influenciam, mas se completam, para explicar um assunto que já vai ficando claro no segundo episódio e óbvio no terceiro: a busca por imortalidade.
A frase que ficou mais na minha memória na impecável primeira temporada não foi nenhum brilhantismo de Ford nem as instigantes mensagens que os androides traduziram em seus pensamentos, mas a da diretora do parque: os clientes querem uma coisa, os criadores querem outra coisa e os acionistas querem outra completamente diferente. É um conforto entender que as premissas da história geral continuam sendo respeitadas e ampliadas, e já não me preocupo mais quais são os caminhos que a série pode abrir, pois as estruturas temáticas do terceiro e quarto episódios já me convenceram que estamos falando de uma narrativa muito, muito boa. Talvez melhor que a da primeira temporada.
Note, por exemplo, como a série explora com sucesso a discussão sobre o que é realidade. Desde o princípio, na temporada anterior, trazendo as sensações mistas dos androides sobre o que são memórias, sonhos ou a realidade em si, apesar de aparentemente emancipados, isso não impede que Maeve continue perseguindo seu objetivo de resgatar sua filha fictícia de uma narrativa antiga, ou até mesmo que Dolores compadeça da situação do "pai" ao reencontrá-lo, um rancheiro que, se vc não lembra, "deu pau" no primeiro episódio da série, sendo trocado por outro robô. E, não por coincidência, mas inteligência, agora ele é a chave do que a empresa Delos (a parte dos acionistas) tanto valoriza neste experimento, mesmo que em detrimento agora até de vidas humanas (e que tem muito a dizer sobre a desumanização das corporações ou do desequilíbrio entre o "valor" entre diferentes seres humanos que beira uma distopia capitalista).
Mas não pára por aqui. Esta não é uma série cujas metáforas são apenas uma crítica ou análise de apenas uma área do conhecimento humano. Artisticamente a série vai além. Observe o final de um certo personagem ao final do quarto episódio, banhado em um vermelho fatídico, e após ter vivido tanto tempo em incontáveis réplicas, e a imagem do inferno de Dante, ou do purgatório, ou das peças que o demônio prega, vêm à nossa mente. E também são o eco da mente deste personagem, ou o que restou dela, com suas frases e comportamentos que surgiram repetidamente no passado, agora pela última vez.
# Westworld S02 E01-06
Caloni, 2018-12-30 cinema series [up] [copy]"O homem não pode fazer-se sem sofrer, pois é ao mesmo tempo o mármore e escultor." Essa frase de Alexis Carrel não poderia ter um valor mais direto do que o visto em Westworld, com a devida correção, já que a grande questão sobre a qual gira o drama é a diferença entre androides e humanos. No entanto, androides também podem mudar, mas a um alto custo. A versão 2.0 do homem torna até Nietzsche, como sempre, relevante.
Do primeiro ao sexto episódio podemos dizer que a segunda temporada de Westworld é uma construção e tanto, que nos inspira os mais diversos pensamentos e sentimentos em relação à nossa (não-)individualidade, nossa consciência ou até mesmo o que é realidade. Nunca com medo de deixar os espectadores mais preguiçosos para trás e ancorado no que o sci fi tem de melhor -- ideias -- as suas diferentes narrativas traçam um panorama ímpar entre as grandes produções, pois conseguem reunir, assim como a maioria das produções dirigidas e escritas pela família Nolan, um blockbuster com ideias. E no caso dessa parceria entre Jonathan Nolan e Lisa Joy, algo que falta nos filmes de Chris Nolan: coração.
Todo o pequeno hiato aberto em uma versão oriental de Westworld poderia ser vista como descartável, mas note a reação dos personagens que já conhecemos ao encontrar seus sócias, seja em personalidade ou narrativa, e terá o preço pago. Isso sem contar a empatia que isso gera em Maeve, tornando sua jornada em busca da filha ainda mais significativa por acrescentar ainda mais dor e sofrimento pelo caminho.
# Westworld S02 E07
Caloni, 2018-12-30 cinema series [up] [copy]Eis o melhor episódio até agora de toda a série. Ele possui a garra da ação contida em uma história cheia de ideias cujas conclusões não são entregues, mas discutidas, o que torna a desorientação espacial e temporal também no campo das ideias, mas mesmo sem termos a exata compreensão do que está acontecendo não nos perdemos. Isso é sci fi no seu máximo filosófico. Talvez nem 2001 tenha ido tão longe.
Mas é claro que uma obra de ficção possui suas justiças poéticas para servirem de catarse para o espectador, e com isso quero dizer exatamente a cena onde Maeve encontra o que esteve procurando a vida toda. No entanto, a série entende que a dor que a acompanha, desde seu momento de evolução instantânea, também é o que faz com que ela não consiga se separar da ficção de quem realmente ela é, tornando assim o seu clímax o momento mais trágico.
Conseguindo amarrar boa parte das pontas em apenas um episódio sem nenhuma pressa, mas também sem muito respiro, o sétimo episódio veio para chacoalhar nossas impressões das possibilidades da série, e ao mesmo tempo nos dar um pouco de closure (nem que seja o mínimo). Com isso temos mais uma vez a participação sempre especial de Dr. Ford, que acaba soando mais sensato que da última vez.
E por falar em Ford, é preciso citar o arco interessantíssimo do Homem de Preto, que começa a obedecer a narrativa mais que os próprios bonecos que acompanhou a vida inteira. Sua obsessão pelo jogo o tornou parte dele. Um "fim" não apenas adequado, mas icônico para o personagem.
# Westworld S02 Season Finale
Caloni, 2018-12-30 cinema series [up] [copy]Foi uma longa jornada desde o começo da temporada, mas nossos neurônios mereciam um pouco mais de respeito. Eu sei que seres humanos não fazem escolha e tudo mais, mas a filosofia de boteco de Ford pós-morte é de matar. Se fosse possível escolher seria fácil: reescreve esses últimos dois episódios, o 9 e o 10, que tá fácil de consertar. Anda. Eu fico esperando.
Concentrado em nos dar algumas reviravoltas custe o que custar (porque a primeira temporada teve a rodo) a continuação comercial de Westworld dá voltas em torno do próprio rabo sem um closure que seja realmente intrigante. Ele apenas entrega parte de uma catarse que se perdeu pelo caminho. Ou se formos pensar mais a fundo, nunca existiu.
Porque vejamos: o grande mote dessa temporada é uma espécie de batalha entre humanos e máquinas. Algumas máquinas ganharam uma certa liberdade de suas narrativas, criadas para entreter os clientes dos parques temáticos. Nessa temporada veremos que há muito mais por trás dessa ideia, como já foi sugerido logo no começo da segunda temporada. No entanto, nenhuma das revelações acaba tendo o impacto planejado. Explico mais abaixo com SPOILERS.
O anfitrião premiado, por exemplo. Ele é o pai de Dolores e o McGuffin do meio da história (e chamá-lo de McGuffin não deixa de ser divertido, se formos pensar que ele também pode ser visto como personagem). Mas uma vez que ele é raptado por Dolores e seu bando, apesar de fazer parte de uma bela cena de despedida, ele deixa de ter importância. A partir daí o objetivo vira impedir que os androides saiam do parque (de alguma maneira mágica que ninguém ousa explicar em nenhum momento porque estragaria a surpresa). Mas esse objetivo não tem vilões do outro lado para sustentar tanto antagonismo. Até Ed Harris sozinho, com sua vilania pura, consegue nos entreter mais do que a grande corporação malvada cujas motivações são obscuras demais para empolgar. E se alguém lá no fundo sugerir que é a tal da imortalidade, bem, as pessoas apenas comentam por cima, como se essa palavra sozinha já dissesse tudo. Bom, pode até dizer, mas é vazio, sem alma, sem ânimo.
Ao mesmo tempo as figuras das duas heroínas, Maeve e Dolores, se no começo empolgam por serem versões novas das suas personalidades que conhecemos na temporada anterior, infelizmente elas se tornam versões vagas de persistência e no caso de Dolores uma espécie de vingança cega. No começo da temporada estava preocupado com a atuação da atriz Evan Rachel Wood, que muda drasticamente de personalidade. Mas esse acabou não sendo o problema, e Rachel Wood se saiu muito bem, obrigado, mantendo uma expressão firme e representando mais uma vez um teatro da vida real, só que através do seu filtro sombrio, que não enxerga mais "a beleza deste mundo". O problema mesmo fica por conta das emoções das máquinas, que são simuladas, e que aqui, em meio a uma verdadeira revolução contra seus donos, exigem muito mais. É difícil embutir ética e moral em máquinas que até então estavam seguindo ordens. Quem diz que a única coisa que mudou não foi quem dá as ordens?
Mas enquanto na névoa a história se beneficiou da dúvida do que pode ocorrer e expandiu a discussão sobre metafísica e existencialismo que a série tanto provoca. E foram momentos inesquecíveis! Até o episódio de explicação da tribo fantasma (o oitavo), podendo ser acusado de filler, se trata de uma linda, poética e profunda história sobre o amor romântico e fraterno, além do amor pela verdade em determinado momento. Foi o último traço de sanidade em uma discussão instigante que depois passa para o necessário fechamento da temporada recheada de ação.
As duas narrativas separadas no tempo fazem sentido, mas não causam tanto impacto pela falta da tensão do antagonismo. O sentimento mais apropriado para as últimas duas horas de Westworld eu diria que é confusão, que vai se consertando com uma reconstrução da lógica narrativa por nós, espectadores, o tempo todo.
Mas não me leve a mal. A última reviravolta possui uma certa ironia agradável de observar, mas está longe de ser uma surpresa que esperávamos ver desvendada. Não há tensão suficiente para que houvesse a urgência dessa solução, tornando o papel de Bernard na equação no pior dos casos um equívoco bobo e ingênuo para uma série onde sua maior força é brincar sobre o processo de construir narrativas. Vocês erraram feio, pessoal.
# Westworld S03 E02
Caloni, 2018-12-30 cinema series [up] [copy]Então eles resolveram plagiar Matrix. Para ser sincero, em vários momentos soa como uma ingênua homenagem. Mas a soma de tantas homenagens acaba se tornando plágio, pois são tantas ideias vindas da mesma fonte, parte integrante e ativa da história que essa temporada pretende contar, que não há como deixar de pensar que vinte anos depois do blockbuster revolucionário de ação dos irmãos Wachowski vira um episódio acelerado que recapitula todos os elementos que amamos nos três filmes. Uma observação relevante: alguns amam apenas o primeiro, pois já havia na época o senso de que muito é demais. Por quê será que as séries de hoje em dia não aprenderam com os erros do passado?
Já havia apontado no primeiro episódio desta temporada que a existência de um arquiteto já indicaria fortemente um "Westworld Reloaded", mas não imaginava que este seria também um Matrix Reloaded, que explora maneiras diferentes de interagir com o mesmo conceito de mundos simulados. Essa é a única forma de conseguir trazer os personagens robóticos da série que foram assassinados de volta, e é por isso que seus idealizadores tomam esse atalho preguiçoso e ofensivo.
A história avança e a "complexidade" dá as caras, como a simpática reviravolta que revela logo no início que as duas duplas não estavam separadas no tempo, nem no espaço, mas na realidade. Por mais que tenhamos simpatia pelos personagens, em certo momento o roteiro perde a mão em suas inúmeras, exageradas e mal-aproveitadas ideias. Não é ruim, mas parece tão sobrecarregado quanto o próprio mundo que Maeve sabota, e quase tão pesado quanto a melodramática trilha sonora. Matrix usava menos acordes graves, mas impactava mais pelo que víamos na tela e pelas suas ambiciosas ideias do que pelo nosso carinho pela temporada original.
# Top Filmes 2018
Caloni, 2018-12-31 cinemaqui lists cinema [up] [copy]Como usar esta lista: Antes de enumerar os 9 (nove) filmes que, acredito, mereçam constar em uma lista de consideração pelo Cinema, explico que listas nunca são exaustivas, nunca são permanentes e nunca são objetivas, mas subjetivas, dependendo do tempo-espaço e da pessoa que a compila. Essa que segue tenta fugir um pouco do lugar-comum, mas que irá falhar miseravelmente porque cinéfilos e críticos costumam enxergar a beleza no mesmo lugar. Porém, eu não assisti a todas as belezas cinematográficas que estrearam no Brasil esse ano, o que me dá um pouco de ponto-fora-da-curvisse salutar.
1. Arábia. O épico do trabalhador comum, anônimo, se esse trabalhador conseguisse colocar tudo que sente e percebe no papel e se este trabalhador saísse do imaginário de Karl Marx e da elite que assim o idealiza. Sua filmagem é tão sutil que ela parece uma fina camada estética que se ergue em torno de um ideal de documentário travestido de ficção. Essa linguagem com não-atores tem ganhado ótimos trabalhos atualmente e 2018 com certeza não é exceção. Há, também, por exemplo:
2. Ciganos da Ciambra. Um experimento que arrisca utilizar toda uma família (real) de ciganos alocados em uma periferia de uma grande cidade da Itália para contar uma ficção que flerta com a realidade dessas pessoas. E se sai maravilhosamente bem. Ele é tenso, mas ao mesmo tempo solto. Ao mesmo tempo ele caminha com competência em uma narrativa simples, mas eficiente do começo ao fim. Ele fica no lugar de Lazzaro Felice porque diferente do vencedor de melhor roteiro em Cannes este é um filme mais incisivo em vez de simbólico, além de não ter ambições tão grandiosas quanto unir religião e ideologias sociais, algo que soa bizarro (embora eficiente) em Felice.
3. Você Nunca Esteve Realmente Aqui. Uma mistura de diferentes obras, passando por Psicose, Taxi Driver e Drive, atualizada e que sintetiza uma obra original, sagaz e pertinente sobre uma camada inconsciente que existe hoje em dia e é crítica para sobrevivermos como sociedade: ninguém realmente liga para o problema dos outros. Uma expansão da violência urbana com tons extremamente gráficos, mas que choca mais ao não mostrar o que imaginamos.
4. A Rota Selvagem. Um filme sobre a descoberta de um jovem pela vida adulta que ganha contornos de épico contemporâneo graças à sensibilidade do tema, que passa por criação de cavalos e a empatia, companheirismo e compaixão que surge, e que termina em uma espiral de vida real e bruta. Um dos melhores trabalhos americanos sobre o tema. Maduro, realista, visceral e que vai até as últimas consequências, ganhando no processo uma profundidade raramente vista em trabalhos dramáticos como esse.
5. Djon Africa. A pegada naturalista, quase um documentário, que dá autenticidade à ficção. A paisagem vira parte integrante dessa aventura além-mar, quase como uma figura da natureza. O curioso é que paradoxalmente o protagonista passa a importar menos que as situações vividas. Uma revisita admirável pelas origens de um povo, sua terra, sua cultura, sua língua. E as origens não param no ser humano, mas ecoa por toda nossa linguagem de mamíferos e répteis. Uma mensagem otimista feita pelo universo endereçada para o universo.
6. O Animal Cordial. Um terror psicológico feito em terra brasilis do começo ao fim. Os atores estão praticamente possuídos, assim como a câmera, que vai observando o caos ir tomando conta de um restaurante em fim de noite. Nossa percepção do que é aceitável vai se alterando durante o trajeto, e pensamentos sobre moral e ética surgem no meio de uma espécime do gênero slasher. Quem consegue isso tudo junto merece um pouco de respeito. Sendo uma produção brasileira, então, merece considerações em dobro.
7. A Garota na Névoa. Um filme que surgiu de um roteiro que foi rejeitado, virou livro de sucesso e por isso foi novamente adaptado para as telas. Tudo pelo seu criador. Se trata de um policial que discute sobre policiais, envolvendo uma trama que entretém ao mesmo tempo que nos faz pensar sobre a linguagem. É um trabalho de peso, com poucas falhas, e que nos faz revirar nossas percepções do que é real. Se trata da trama pela trama, em um trabalho exemplar de sub-gênero independente. E por falar em exercícios de metalinguagem:
8. Os Fantasmas de Ismael. Há aqui um trabalho quase experimental, mas que é feito de maneira comercial, em uma produção francesa de respeito. O filme não tem respeito por espectadores preguiçosos, que se negam a pensar, o que é uma ótima notícia. Não é perfeito, mas é interessante para refletir a respeito até da sua própria imperfeição e como muitas vezes o processo criativo foge do controle de maneira insustentável, ainda que ecoe eventualmente em nossas memórias.
9. Vingadores: Guerra Infinita. E por último vem a mega-produção dos estúdios Marvel, que vem fechando uma saga iniciada 10 anos atrás com Homem de Ferro (2008). Juntando os universos de todos seus personagens que habitam um mundo fantasioso onde super-heróis com super-poderes é algo relativamente comum, este é um filme único, pois diferente de outros filmes que encerram uma série, ele encerra várias delas. Quer dizer, encerrar é forçar a barra, já que ele assume de uma vez por todas que não existem mais filmes completos nesse sub-gênero de poderes e magia, mas apenas novos episódios de uma série que tende a continuar para sempre. Se isso é algo promissor ou não veremos, mas é algo inédito até o momento, e experimentos na sétima arte são sempre bem-vindos. Especialmente se outros se dispõem a arriscar centenas de milhões de dólares para isso.