# Sete Homens E um Destino

Caloni, 2016-10-03 cinema todo movies [up] [copy]

Um filme do velho oeste que é um remake do clássico de Akira Kurosawa, Os Sete Samurais, que acabou virando também meio um clássico. Sua estrutura é poderosa, mexe com heróis incidentais que resolvem salvar uma vila de camponeses das garras do Estado... quer dizer, de uma gangue de bandidos que rouba parte da produção de alimentos para eles próprios sobreviverem. É uma história que mexe com o teatral, mas que mantém sua tensão como todo bom e velho faroeste.

Filmado em technicolor e em widescreen (na proporção de épicos, 2.35:1), essa película está "empoderada" pela trilha sonora grandiosa, que três anos depois foi usada pela Marlboro em seus comerciais de cigarro. Porém, há melodias mais sutis e mais doces em uma história que mexe com a decisão moral tanto do lado mais forte quanto do lado mais fraco, e apresenta um vilão com senso de liderança e um surpreendente bom senso, que tenta evitar conflitos onde eles não são necessários.

A discussão gira em torno de fazer o que é certo (moralmente falando), mas também mexe com a função e necessidades daqueles foras-da-lei, seja do lado do bandido ou do mocinho. Os bandidos são parasitários, e precisam do fruto do roubo para sobreviverem, então possuem uma justificativa usada por quase todo mundo para a existência de um Estado ("e as pessoas vão morrer de fome?"). Os mocinhos, apesar da glória de serem exímios atiradores e terem uma vida sem regras e com emoção, estão cansados desses altos e baixos, e de certa forma invejam a forma de vida pacífica daqueles camponeses.

Os tiroteios são decentes, e alguns momentos possuem uma visão estratégica contagiante. Não se trata apenas de uma série de duelos e troca de tiros, mas também de envolver os tiros em torno da motivação de cada lado. Em determinado momento os próprios camponeses tomam uma decisão menos arriscada, mas não é possível julgá-los de maneira simplista, como vemos logo em seguida através de uma ótima cena do ainda "jovem" Charles Bronson, que faz o mestiço Bernardo.

O pilar de todos é o inusitado, careca e de preto Yul Brynner, que faz um atirador que escolta junto de seu amigo um carro funerário para dar um enterro digno a um índio no meio de uma população brutalmente ignorante e racista. Essa sequência inicial é o que precisamos para a iconografia desses meninos, que herdam de John Wayne a figura do bom mocinho americano, mas que possuem em suas testas a marca das consequências dos seus atos.

Ganhando pontos pelo realismo de personagens que remetem a estereótipos do gênero, mas ainda com uma conclusão que torna um pouco confuso entender qual a moral dessa história, Sete Homens e um Destino merece figurar como adaptação que deu certo. Possui toda a farofa norte-americana, é claro, mas quem disse que histórias com samurais também não é farofa com arroz?


# A Nona Vida de Louis Drax

Caloni, 2016-10-04 cinemaqui cinema todo movies [up] [copy]

Muito cuidado. A Nona Vida de Louis Drax, pela sua premissa, pode se disfarçar facilmente de algo mais bonitinho do que na verdade é. Conta a história de uma criança que vivia sofrendo acidentes trágicos durante toda a infância até ficar em coma no seu nono aniversário. Crianças em coma geralmente remetem a dramas onde os pais estão sempre presentes e a fé de todos colabora para o triunfo de sua recuperação. Aqui não há nada mais distante que isso.

Ou talvez ele contenha, em seu núcleo, alguma semelhança com histórias de superação. Porém, o clima de mistério é tão pesado, que esse thriller psicológico que flerta com o sobrenatural nos mantém mais envolvidos com o mistério por trás do último acidente do garoto do que com o destino do pequeno Louis Drax. Aliás, pequeno é um adjetivo que pode ser aplicado apenas à sua estatura e pouca idade. O personagem interpretado por Aiden Longworth é dotado de grandes observações sobre a vida para uma criança, o uso de ironia e sarcasmo e uma visão fria e pessimista de sua realidade que remete diretamente a por que seu psicólogo é um sujeito de meia-idade, gordo e que está constantemente segurando sua caneca de café (o divertido e comedido Oliver Platt).

Alguém poderia dizer que um garoto de nove anos na vida real nunca teria ideias tão macabras quanto o "Direito de Descarte", uma regra secreta que utiliza para eliminar (literalmente) os hamsters que ganha de presente, e nem diálogos tão afiados a respeito dos desastres que prenunciam toda presença masculina na vida de sua mãe. E esse alguém estaria certo. O roteiro do ator Max Minghella (que estreia na escrita) baseado no romance de Liz Jensen possui ótimos momentos quando cria uma atmosfera triste e amargurada da vida, mas peca por utilizar um garoto como ponto focal dessa atmosfera, revelando que suas ideias obviamente não podem ser realmente, ou pelo menos, inteiramente suas.

De qualquer forma, a história é conduzida por Alexandre Aja em uma mistura de caso policial com drama clínico de uma maneira claustrofóbica, alternando sonho e realidade, e fazendo-nos crer que os sonhos fazem parte central na trama, remetendo a trabalhos oníricos mais ambiciosos, como Onde Vivem os Monstros e até O Labirinto do Fauno, mas sempre escapando no tom que deseja dar à narrativa. Se por muito tempo a história cozinhada em banho maria consegue engatar nesse universo, aqui e ali há tropeções de quem faz um thriller genérico e se esquece que este é acima de tudo um drama. A visão de um garoto olhando de maneira zumbificada por uma janela não é aterrorizante, mas deveria tal cena fazer parte deste filme que lida com emoções complexas e relações doentias de dependência?

Por outro lado, a curta participação de Aaron Paul (Breaking Bad) é por si só uma grata surpresa, pois apresenta um pai que vive em eterno conflito consigo mesmo, e que tenta desesperadamente dar um pouco de apoio emocional a uma criança enquanto sobrevive em um relacionamento desgastante.

O que nos leva à personagem de Sarah Gadon (O Homem Duplicado), Natalie. A criação de Gadon é efêmera e estática, pelo bem do mistério, mas até personagens secundários como Oliver Platt e Jamie Dornan (sim, ele vira um secundário) conseguem entregar o ar da dúvida sendo exageradamente reservados. Natalie não. Ela é a obviedade percorrendo os corredores de um hospital, e cujo comportamento desde sempre soa inadequado, embora seu papel de mãe amorosa possa estar anestesiado por ser a parte fraca da relação com o personagem de Aaron Paul. De qualquer forma, este não é um filme onde o elenco ajude muito.

E por isso mesmo é um trabalho curioso. Ele depende de personagens que se tornam insatisfatórios, mas possui uma narrativa coesa o suficiente para conseguir nos levar de cabo a rabo através de uma história não-linear que é coberta de sonhos e pesadelos e que mantém em seu núcleo um mistério mais ou menos simples de ser desvendado, mas que se torna poderoso ao percebermos como pessoas e relacionamentos podem ser doentios. Sim, A Nona Vida de Louis Drax não é um filme bonitinho. Na verdade, próximo do final, você irá notar que ele é bem horrível, o que poderá lhe dar a impressão de ser um filme ruim. No entanto, quando um filme se torna detestável por apresentar personagens horríveis, é porque ele, de fato, conseguiu mexer com alguma coisa dentro de nós. Apenas por isso essa não vira uma sessão jogada no lixo. Desgastante... mas curiosa.


# Guardando senhas com Vim

Caloni, 2016-10-05 [up] [copy]

Eu já sabia que havia um sistema de criptografia de arquivos no Vim. Isso pode ser útil para textos secretos, ou para enviar qualquer bobagem para outra pessoa que sabe de uma senha que só vocês conhecem. Porém, o método default de criptografia dele não me animava. O pkzip é usa um algoritmo fraco, e os inúmeros programas que quebram zips encriptados estão aí para demonstrar. Além do mais, o blowfish da versão 7 do Vim tem problemas em gerar seu salt que favorece ataques de força bruta tão baratos quanto um XOR. E é aí que entra em cena o Vim 8.

A nova versão do meu editor favorito não apresenta o defeito do algoritmo blowfish anterior, ou apresenta, mas dessa vez fornece uma versão atualizada (claro que, por razões de compatibilidade, foram mantidos os algoritmos anteriores).

O que eu gosto no modelo do Vim de encriptar arquivos é que eles são encriptados apenas na escrita, e na leitura o usuário deve digitar a senha. Se a senha não correponder ao que foi usado para encriptá-lo, não há mensagem de erro: o editor irá simplesmente exibir o lixo gerado pela sua senha errada. Isso gera uma situação vantajosa e uma perigosa.

A vantajosa é que não há como automatizar um brute force em cima de arquivos encriptados pelo Vim, pois não há muitos sinais de que o arquivo foi desencriptado. Claro, por amostragem de texto é possível saber se a senha foi ou não satisfatória, mas a beleza está em não existir nada específico na estrutura do editor que diga se a senha foi ou não bem sucedida.

A perigosa é que uma vez que você digite a senha errada, muito cuidado com o lixo que você verá no seu buffer. Se por força do hábito for salvar o conteúdo, poderá perder o conteúdo do arquivo original, que estava encriptado com uma senha que você conhecia, mas que agora foi salvo após ter sido desencriptado com a senha errada. Ou seja, não há como reaver o conteúdo original a não ser com muito suor.

O mais prático de tudo é usar esse modelo de arquivo encriptado pelo Vim para salvar senhas. Um arquivo de senhas pode ser tão simples quando login/senha de todas as senhas que você deseja guardar, e tão bem protegido quanto a força de sua senha master. Nada mais, nada menos. De quebra, um arquivo pequeno cujo backup pode ser sincronizado instantaneamente na nuvem (usando Google Drive, Dropbox ou One Drive), ou até mantido em um controle de fonte (embora ele seja tratado como binário).

Se você gostou desse modelo, seguem os comandos para pesquisar (:help comando):

; define o algoritmo que será usado para encriptar arquivo
:set cm=blowfish2
; define senha de criptografia ao salvar arquivo
:X

Este post foi inspirado em meu próprio uso do Vim, mas mais inspirado ainda depois de ler o artigo da invert.


# Sin City: A Cidade do Pecado

Caloni, 2016-10-09 cinema todo movies [up] [copy]

Muitos não gostaram do resultado final em Sin City, um longa que emula com perfeição o visual de uma graphic novel. Isso, de certa forma, explica o marasmo do Cinema comercial, onde a mesmice é condecorada, e as criações originais, boas ou ruins, são vistas simplesmente como chatas. Não se engane: quando alguém diz que não gostou de algo diferente, na esmagadora maioria dos casos não é porque ela possui uma visão crítica com argumentos de por que aquilo, em sua visão, é ruim. É simplesmente porque, sabe como é, "eu só queria me divertir um pouco e deixar o cérebro em casa. E agora vocês querem que eu pense?"

Isso em um filme que possui uma história simples, quase linear, que apenas como floreio narrativo fecha seus arcos como camadas de uma cebola, algo que o torna antes de confuso, belíssimo, pois suas histórias se cruzam de maneira temática. As mulheres fortes -- o núcleo da história -- são uma atualização do noir clássico -- o começo e fim -- misturado com policial, onde o detetive que está para se aposentar vai atender o seu último chamado e salvar a garota em perigo, ou o brutamontes que se encontra em uma sinuca de três bicos por ser perseguido por matar a única mulher que lhe deu prazer na vida.

E, claro, há o visual: A fotografia que destaca seus personagens em cenários com fundo desenhado. A descrição que acabei de fazer não faz justiça ao resultado final, que utiliza todos os truques possíveis para criar uma decupagem que vira uma aula de Cinema, trazendo realismo apesar de uma estética rebuscada. A profundidade reduzida de campo, o fundo preto, o jogo de proporções, a física um pouco exagerada, a ultra-violência, os tons eventuais de cores no meio de um preto & branco absolutamente arrebatador. Tudo isso pode ser usado como tema para uma peça de teatro conduzida com energia, diálogos e cinismo como combustíveis de uma história de crime animal e corrupção de poder, seja o clero ou o Estado.

Frank Miller, de acordo com Robert Rodriguez, já era um diretor que usava seus desenhos em uma narrativa visual. Rodriguez, por sua vez, é outro ótimo diretor visual (e péssimo em roteiro). A união dos dois trouxe à vida os quadrinhos que Miller compôs, de acordo com ele, como "um ato de auto-indulgência". São personagens que ele conhece de ponta a ponta, o passado, os gostos, as mágoas. Tudo isso fica de fora do filme, e o que vemos é uma sequência ininterrupta de caracteres bizarros, mas fortes o suficiente para nascerem e sobreviverem em uma cidade cercada de impunidade.


# Terra Estranha

Caloni, 2016-10-09 cinemaqui cinema todo movies [up] [copy]

Terra Estranha é um filme corajoso no formato de televisão. Ele é corajoso em entediar o espectador por quase todo o tempo para em seus minutos finais trazer a redenção de tudo aquilo que o filme pretende tratar. Sua coragem, aliás, vai além, pois descarta um final convencional pelo bem do argumento. E tudo isso na Austrália, terra da "aventura fácil", do clichê Hollywoodiano e das histórias de amor selvagem.

Mas tudo isso é deixado de lado logo no começo, quando somos apresentados a uma família que está quebrada há muito tempo. A filha lasciva de quinze anos, Lily (Maddison Brown), é a responsável por todo comportamento ressentido de todos os outros, até do filho mais novo, Tom (Nicholas Hamilton), que é facilmente aliciado por ela, já que importante para eles é sobreviver com os pais sob o mesmo teto até não dar mais. O almoço de família é convenientemente dividido pela mesa em pais e filhos, assim como os créditos iniciais vão convenientemente sumindo como areia no deserto.

O jogo de foco, contra-foco, planos-detalhe de personagens e panoramas da pequena cidade e do deserto são os truques bem sucedidos da diretora Kim Farrant, que estreia no ficcional com esse filme. Todos esses truques mantêm a tensão de maneira eficiente, mesmo que imersos em um marasmo e calor inebriantes. Menos feliz se sai a trilha sonora de Keefus Ciancia, que exagera em seu tom dramático e comenta de maneira lúdica e burocrática um filme que está tentando criar um drama muito mais complexo que uma simples história de desaparecimento. Mas, ainda nos aspectos técnicos, a fotografia exuberante de P.J. Dillon consegue extrair beleza da morte (deserto) e pobreza da vida (a cidade) através da dualidade do limpo e sereno (deserto) versus o sujo e ruidoso (cidade).

Não é de hoje que a filmografia australiana explora a herança dos abusos de uma terra invadida e violada pelos europeus. A Austrália, em específico, consegue servir de palco muito mais místico, tanto pelas lendas aborígenes quanto pelo clima desértico e isolado, que apesar de quente esfria o coração de seus habitantes.

Em Terra Estranha isso se torna mais óbvio por se tratar de uma cidadezinha isolada, onde os habitantes antes de serem amistosos são desconfiados. Não que isso seja uma reação estranha à família dos Parkers, recém-chegada e com um passado misterioso. Porém, essa estranheza é ressaltada quando o desaparecimento das crianças coloca seus habitantes indiretamente envolvidos com o futuro da família.

E é daí que surge a maior força do longa, que extrai de pessoas ainda estranhas à família a mesma sensação que compartilham dentro de seu próprio lar: de serem estranhos vivendo sob o mesmo teto, por conveniência ou para se esconderem de quem realmente são. Todos estão com medo de aceitarem qualquer coisa fora do convencional, e isso é tão comum para todos que o filme vira uma metáfora fascinante sobre como a vida pode ser complicada ao viver com os outros.

Dessa forma, embora não tenha tanta ação, Terra Estranha pode ser uma ótima combinação entre drama e tensão, e embora o formato meio enlatado não forneça evidências disso, seu modo honesto e persistente de narrar a história acaba fazendo valer o tempo gasto.


# O Quarto dos Esquecidos

Caloni, 2016-10-11 cinemaqui cinema todo movies [up] [copy]

O Quarto dos Esquecidos pega todo aquele nosso preconceito (no bom sentido) de "filmes de famílias problemáticas que se mudam para casas no campo" (um sub-gênero do terror cada vez mais usado) e transforma em um drama envolvente, ou no mínimo quase envolvente. E assim como o excelente Babadook, ele utiliza metáforas para explorar esse ser fora de controle que vive em cada um de nós.

A história é simples, mas vai se desdobrando conforme acompanhamos os primeiros dias do casal urbano e seu filho pequeno que se mudam para o inverso ao que estão acostumados: uma cidade pequena onde todos se conhecem (queiram ou não). E de brinde, pra variar, eles levam o passado tenebroso da outra família que morava na antiga e isolada casa para onde vão.

A cidadezinha mantém sua pequena coleção de personagens caricatos, como a mercearia da fofoqueira da cidade, o conserta-tudo jovem bem-apessoado e até uma antiquária baixinha que subverte seu próprio papel estereotipado de conhecedora dos mistérios do passado daquela região. No fundo, o filme pisca para nós quando, depois de esboçar uma teoria sobrenatural a respeito do passado da mansão, a velhinha acaba concluindo com ela mesma, de maneira anticlimática, mas realista: "acho que andei assistindo Poltergeist demais".

Uma pequena verdade. Afinal de contas, ninguém mais aguenta a velha e batida história dos fantasmas com mortes mal-resolvidas ou procurando vingança além-túmulo, e quando assistimos a algo parecido nos vem à mente esses mesmos surrados clichês. Com o passar do tempo, esses filmes e seus horrendos moradores lendários foram aos poucos se repetindo tanto que não faz mais muita diferença se agora é um senhor sisudo de olhar penetrante e sua mulher submissa (mais sobre isso depois), ou o doberman raivoso caçador de criancinhas. Porém, todos esses elementos -- assim como os espelhos que escondem segredos, fotos antigas com um sótão desconhecido e armários cheios de morcegos -- são usados como souvenires de filmes anteriores, compondo mais um mosaico desse universo do que algo necessariamente original.

Mas não exatamente com os mesmos objetivos. Eles se misturam com o drama da mãe, Dana (Kate Beckinsale), que passou pelo horrível trauma de ter uma filha que não chegou a completar um ano de vida. Sentimos todo o peso na expressão de Dana, que tenta tomar as rédeas de sua vida reformando a casa para onde se mudam. Seu primeiro desafio é encarar o passado, não só seu, mas de todas as mulheres, que se antes submissas, hoje são as trabalhadoras da casa. Enquanto ela é arquiteta e uma mulher forte dona de seu próprio destino, David, seu marido, joga xBox. Se isso é algo relativamente normal de se ver em uma cidade como Nova York, em uma cidadezinha de menos de 1000 habitantes esse passado machista ainda é a realidade predominante.

Porém, quando o trauma de Dana se confunde com as ações terríveis do antigo patriarca daquela casa, há uma fascinante inversão de gêneros e comparação de caráter que vai tomando forma conforme vamos aos poucos compreendendo o que aconteceu com ambas as famílias. A narrativa eficiente do diretor D.J. Caruso fornece gratas surpresas que nos mantêm imersos na experiência, sendo a melhor delas a maneira sempre sutil de fazer Dana voltar ao seu passado traumático, e entre várias cenas a minha preferida é quando ela vai pegar seu remédio no box do banheiro, e quando vemos novamente seu reflexo no espelho ele é frio e distante, pois estamos vendo uma Dana do passado, em um outro banheiro, com os mesmos remédios, como pode observar a mesma Dana do presente através do espelho.

Aliás, essa diferença entre o passado azul, quase monocromático, de Dana, é uma das virtudes da fotografia, que no presente soa mais quente, embora com as cores drenadas, sugerindo uma possibilidade de melhora, mas sem a esperança luminosa. Não há sol aparente que ilumine as paredes daquela casa, cercada de sombras de árvores, uma estufa quebrada (morte) e um túmulo escondido (morte novamente). Também auxilia uma direção de arte afiada no terror, onde um candelabro perigosamente reside no meio de uma escada em caracol, e embora o filme não seja em 3D, ele acaba sugerindo um certo desequilíbrio ao mostrar essas escadas sempre em um quadro torto e focado no ameaçador candelabro.

O único aspecto técnico que deixa a desejar é a trilha sonora, que inconstante e muitas vezes inapropriada, se torna incômoda nos minutos mais tensos do longa. Uma gafe. Que até harmoniza com o roteiro incompleto de D.J. Caruso e Wentworth Miller, que joga amigos saídos do nada em um evento na nova casa e uma Dana bêbada (igualmente surgida do nada) e uma edição confusa (nesse momento) que quase estragam o terceiro ato.

Ainda assim, O Quarto dos Esquecidos, apesar de não ser perfeito em sua história e usar clichês já batidos desta década de terror, consegue se desvencilhar da maioria das armadilhas, como forçar sustos com o uso do som (faz isso apenas pontualmente) ou apelar desnecessariamente para a exposição. No final, ele acaba comprovando novamente que não é preciso de muito sobrenatural para assustar, quando o mais assustador reside dentro das próprias pessoas.


# Caça-Fantasmas (2016)

Caloni, 2016-10-12 cinema todo movies [up] [copy]

Os caça-fantasmas continua sendo uma ótima ideia em seu remake, protagonizado agora pelas meninas. Elas são espontâneas e fazem funcionar muitas das cenas do roteiro capenga escrito a várias mãos, com diálogos e piadas engraçadinhas. Os efeitos visuais atraem, mas não tanto quanto o conceito. E esse... continua tão novo como se tivesse sido lançado esse ano.

Porém, não é à toa que o elenco funciona. Kristen Wiig (Missão Madrinha de Casamento) e Melissa McCarthy são duas revelações na comédia dessa década. Além disso, Kate McKinnon faz a versão nerd dos caça-fantasmas com muito estilo e desembaraço. E fechando o quarteto, Leslie Jones é espirituosa e nova-iorquina o suficiente para nos fazer sentir em casa novamente com a franquia. (Fechando o elenco há também um Chris Hemsworth que faz o papel do recepcionista burro e disfarça sua persona galã, deixando só seu lado burro, mesmo; um outro achado.)

Há participações especiais dos antigos ghostbusters (onde a melhor é, claro, sempre, Bill Murray), há homenagens e referências demais, onde não há sequer cinco minutos entre a aparição do "geleinha" e do gigante de marshmallow. Sem contar que esta é de fato a mesma história, pois este é praticamente um remake do original com pitadas da sua morna continuação, mas se passa em um universo paralelo onde os gêneros estão trocados. Um mero detalhe que acaba acrescentando à diversão.

E acrescenta pela leveza ainda maior da história. Ela fala sobre a amizade, sobre resgatarmos convicções que tínhamos quando mais jovens, que foram morrendo com a visão conformista (aqui travestida do mundo acadêmico e de roupas xadrez sem muita cor), sobre o poder de fazer o que quiser. Nesse sentido, uma história que começa sem muitas pretensões e vira a história sobre caçadoras de fantasmas em uma megalópole com certeza é alguma coisa.


# Os Irmãos Lobo

Caloni, 2016-10-12 cinema todo movies [up] [copy]

Este documentário conta a história de vários irmãos que não podiam sair de casa durante a infância e alimentam sua visão do mundo através dos filmes. É interessante em alguns momentos, principalmente o seu começo, mas aos poucos ele parte para um estilo "casos de família" que apenas estende sua narrativa para virar um filme.

E, convenhamos, o tema sobre viver enfurnado em um apartamento boa parte da vida, assim como a alienação que vivemos hoje em dia, seriam ótimos combustíveis para a documentarista Crystal Moselle, que se limita a ser conduzida pelos meninos do filme.

O mais fascinante no filme é a capacidade criativa dos meninos, que recriam de uma maneira intensa filmes como Cães de Aluguel e Pulp Fiction. Os diálogos são anotados no papel, e o figurino e a caracterização é levada a sério.

Há uma ponta de necessidade do filme em se perder em seus relatos, e alguma coisa teatral obviamente escapou, tornando a experiência menos eficiente ainda.

Válido pela história, desnecessário como filme. Assista se tiver curiosidade de conhecer a família Wolfpack.


# Sete Homens e um Destino (2016)

Caloni, 2016-10-12 cinema todo movies [up] [copy]

Remake do clássico de Akira Kurosawa em 1960, série televisiva em 1998, e agora uma revisita muito bem-vinda à história da defesa dos fracos e oprimidos por matadores profissionais. Menos pela discussão da questão da honra dos sete homens do título; mais como lente de aumento das mudanças ocorridas nos EUA que o fizeram sair do título de país da liberdade para uma ditadura socialista em questão de décadas.

A visão atualizada contém um elenco afiado e transformado para a época do velho oeste, que inclui um peregrino clássico, jusnaturalista religioso extremamente realista (e inspirador) interpretado por Vincent D'Onofrio, um apostador inundado de superstições e remorso (Ethan Hawke), um alívio cômico que contém ainda a energia necessária para as cenas de ação (o cada vez melhor Chris Pratt), e o inspiradíssimo Denzel Washington, que, digno de prêmios, recria o líder da gangue montada para defender o território de fazendeiros/mineiros das garras do monstro capitalista encarnado por Peter Sarsgaard.

Mas eu disse monstro capitalista? Sim, infelizmente é verdade. Toda aquela alegoria do original alertando para o perigo dos bandidos que apelam para a necessidade de sobrevivência (vulgo governo) como permissão para escravizar inocente foi deixada de lado para a visão atual de uma das nações mais socialistas da história, onde o real vilão é oculto da população, e no lugar o espantalho do capitalismo como um deus, que queima igrejas e faz as pessoas se ajoelharem perante o ouro.

É nesse nível capenga, simplista e equivocado que o vilão em Sete Homens e Um Destino se pauta, o que torna tudo muito confuso desde o começo. Portanto me sinto obrigado a fazer uma correção moralmente necessária: Bartholomew Bogue, que se compara ao magnata Rockfeller (o que salvou as baleias fazendo o preço do óleo diesel despencar), não é, nunca foi e nunca será um capitalista no senso da palavra, mas apenas um selvagem com armas e poder de fogo para contratar mercenários. Ele não respeita o direito único daquelas pessoas: manterem suas propriedades. Porém, mesmo assim, o filme chama-o de capitalista como um espantalho que mal serve como combustível para a reunião de sete caçadores de recompensas.

Mas a gangue de body hunters se reúne mesmo assim, quase como que na reunião em Esquadrão Suicida, onde em determinado momento não faz mais o menor sentido estarem juntos. Aqui não faz sentido desde o começo. Mas quem liga? O importante é dar a sensação de vitória após uma sequência cheira de tiros, explosões, cavalos e uma trilha sonora que engrandece o vácuo temático de um filme que costumava ser bom pra caramba. E se antes a âncora moral era o herói enterrar um ser humano de maneira digna porque é o certo a se fazer, hoje é apenas uma necessidade politicamente correta de inserir asiáticos, mexicanos, negros e indígenas lutando contra as forças malignas do capital, pelo bem da coletividade. A degradação moral estadunidense encontra mais um exemplo digno depois da trilogia O Poderoso Chefão, que aponta a mesma derrocada vinda das figuras do corporativismo e da igreja.

Porém, não é nem tematicamente que o filme é medíocre. O diretor Antoine Fuqua mal consegue acompanhar um faroeste como se deve, tão lembrado pelos momentos icônicos em seus diálogos e nas ações de seus lendários personagens, seja nas mãos de mestres como Clint Eastwood ou Sergio Leone, ou até alguns enlatados italianos que capturaram a essência dramática do gênero, que não é para qualquer um. Infelizmente, do jeito que é narrado, se trata de um filme de ação mediocremente realizado, onde conseguimos acompanhar uma sequência interminável de tiroteio sem sentir muito pelos seus personagens. Não por eles não valerem nada, mas por não entendermos suas motivações. Esta é uma realidade onde é muito fácil ser morto; isso ficou claro. O que não ficou claro foi porque isso é relevante nessa história.


# Cegonhas - A História Que Não Te Contaram

Caloni, 2016-10-15 cinema todo movies [up] [copy]

Não se engane com a simplicidade deste filme (porque ele é bem simples). Seu jogo de cintura rápido, suas gags ligeiras -- metade ruim, metade interessante -- seus conceitos um tanto esquizofrênicos -- uma hora algo é importante, depois é outra, depois volta de novo -- e os diálogos expositivos de tudo que está acontecendo -- principalmente da boca do filho de um casal super-ocupado -- parecem obra de um amador. Parece tanto, mas tanto, que não é possível que ele seja. Há algo escondido nesse roteiro com uma produção de animação decente, com trilha grandiosa e fotografia competente. É um filme que zomba das produções Disney, que insistem em mensagens de amor destacadas da realidade. E mesmo que você diga que os motivos por trás dessa atração é a fofura dos bebês, mesmo retirando-os de campo, fica difícil não gostar do resultado final.

A história conta que antigamente as cegonhas entregavam bebês nos moldes tradicionais da crença popular. No entanto, devido a vários problemas em entregar carne humana viva, com olhos esbugalhados fontes de afeição incondicional, o ramo das cegonhas mudou drasticamente para corporação estilo "AliExpress". Isso é novamente uma crítica ao capitalismo? Não se sabe. É algo meio anti-corporativismo, pois a cegonha dona disso tudo pretende colocar o entregador mais eficiente como chefe para que ele demita uma órfã que vive com as cegonhas por não ter conseguido ser entregue. A palavra "chefe" tem uma conotação bombástica na mente dos subordinados, mas por algum motivo, nosso herói não tem a mínima ideia do que chefes fazem. Bom, sim, é um pouco anti-capitalismo (corporativo).

A introdução consegue ainda apresentar de maneira eficiente o garoto que deseja ardentemente um irmão para conseguir a atenção de um ser humano, já que seus pais, apesar de trabalharem em casa, vivem para atender seus clientes do ramo imobiliário (OK, agora está gritante demais: é um filme anti-capitalismo, e de uma maneira torta, meio anti-crise, ou qualquer anti-coloque-sua-neura-socialista-aqui que invoque o ramo imobiliário, falta de atenção dos pais e solidão infantil).

Acho que nem é preciso dizer que a órfã produz o bebê do menino e agora eles precisam entregá-lo. Tanto uma ponta quanto a outra da história irão obviamente se encontrar mais pra frente, mas o desenvolvimento de ambos é feito de uma maneira empolgante deste o começo. As coisas vão indo bem de ambos os lados, e tudo vai incrivelmente bem na história. Até os vilões, lobos reunidos em uma alcateia de dezenas deles -- e que formam as construções mais malucas com seus corpos -- não são exatamente maus. Quem merece morrer mesmo, é claro, sempre será o capitalista malvadão.

No meio do caminho algumas ideias são interessantes. A própria abordagem de uma família não tão convencional (ambos os pais trabalhando de casa) e a própria forma utilizada pelos idealizadores de demonstrar como uma família é apenas um grupo de pessoas que se amam, independente de quantidade, gêneros, convenções, etc, é algo positivo demais para ser deixado tão de passagem. Mas vamos com calma. Além do mais, o arco desenvolvido por uma cegonha e uma humana pode muito bem caracterizar a formação espontânea de uma família criada pela necessidade de cuidar de um bebê (como divertidamente é ilustrado no primeiro momento que a menina ouve o berro da criança, influenciada por milênios de treinamento instintivo). Portanto, essa análise continua nos trilhos.

Também é interessante como a narrativa flui de uma maneira agitada, quase sempre não dando muito tempo ao espectador para aproveitar todas as gags e situações que os heróis vão enfrentar. Tudo isso meio que disfarça a falta de uma tensão verdadeira, já que, como falei, tudo dá sempre certo.

A trilha sonora, como não poderia deixar de ser, é formada por músicas da moda, mas que são bem escolhidas para os momentos que tocam. Além do mais, toda a grandiosidade da partitura composta por Jeff Danna e Mychael Danna serve bem à mudança de paradigma das cegonhas.

Por fim, fica difícil de achar algo palpável para criticar, pois tudo vai do medíocre para o muito bom, sempre sem conseguir atingir o excepcional. Uma pena, pois não haverão momentos marcantes deste filme na memória do espectador. Mas, ainda assim, é uma aventura digna o suficiente. Isso para uma animação é uma conquista e tanto.

PS: Há um curta Lego muito engraçadinho antes do filme começar. É uma bobagem, mas eficaz o suficiente. Seguindo a linha do longa, portanto.


# South Park - Vigésima Temporada, Episódios 1 a 4

Caloni, 2016-10-15 cinema series [up] [copy]

A vigésima temporada de South Park começa em um tom dramático que esconde o humor ainda mais dentro do absurdo de suas situações. Não deixa de ser poderosa sua mensagem, mas ele está se tornando, desde a temporada anterior, um longa-metragem anual de três horas e pouco. Isso é bom ou ruim? Talvez seja necessário esperar o fechamento do arco deste ano para termos certeza.

O que a série criada por Trey Parker, Matt Stone e Brian Graden parece nunca temer é ousar além dos caminhos de seus semelhantes (Simpsons, e Family Guy, isso é sobre vocês). Isso por um lado pode levar a resultados bem medíocres ou desastrosos, mas ainda ganha créditos por utilizar os personagens em situações que fazem todo sentido para eles, e ao mesmo tempo não, já que esta é uma série de humor.

E o humor parece quase nunca existir nas situações pontuais da trama, que começa com os famigerados Member Berries, uma fruta que é vendida em cachos como uvas, formada por carinhas simpáticas que concordam com todas as memórias dos anos 80 e 90, que hoje são revividas em uma reciclagem de forma (e não de conteúdo) por J. J. Abrams, que pegou para si as missões de ressuscitar as séries Star Trek e Star Wars, ícones de duas gerações diferentes de nerds. Agora ele aceita a missão de reviver algo que está cada vez mais perdido, como monstram as eleições americanas deste ano: o hino nacional.

E o hino nacional é apenas uma chave para desvendarmos toda a miríade de metáforas e símbolos da série. O patriotismo americano não é o que está em jogo, mas o significado disso em primeiro lugar. Se as pessoas estão mais interessadas na discussão política entre escolher um babaca e um sanduíche de cocô (dualidade essa já feita na temporada 8), e em quais atletas irão se sentar ou não durante o hino (mesmo que seja em um jogo da escola regional), há algo de errado na vida real.

E é justamente essa a outra vertente da trama esse ano. Quando uma aluna cuja mãe é atacada por um troll de internet decide cometer a trágica decisão de... sair de seu Twitter, os alunos se reúnem com o conselheiro da escola para mandar tweets acalorados sobre a aluna, presente em corpo, mas destituída de seus direitos civis na internet: ter uma rede social. E do outro lado do oceano, na Dinamarca, terra natal dos lendários trolls (os da vida real), uma celebridade comete suicídio. A ponte entre member berries e as escolhas das pessoas no dia de hoje é sutil e vai engrossando conforme avançamos na história... mas é preciso apenas dizer que memórias não vêm em unidades, mas em cachos. O reboot de Star Wars e a escolha de um candidato que irá fazer "a América ótima novamente" afastando imigrantes do país não é uma triste coincidência.

É em cima dessa estrutura que os meninos e meninas de South Park adentram em uma luta de classes... quer dizer, de gêneros. Bom, pouco importa. Quando o diretor da escola é um SJW (Social Justice Warrior, ou Guerreiro da Justiça), ou seja, um levantador de bandeiras sociais com o uso do escudo do politicamente correto, qualquer motivo é um motivo válido para que grupos se ordenem não por causa do que indivíduos fizeram, mas sua representatividade nesse caldo irracional das maiorias e minorias.

Com os levantes dessas bandeiras, e com a criação novamente de uma mega-trama que tende a tomar a temporada inteira -- como foi, aliás, no ano passado -- South Park oficialmente se dedica imensamente a criar histórias dentro do contexto, e não perder mais tempo com piadas pontuais. Nesse sentido, ultrapassa Family Guy em milênios. Porém, fica a dúvida: isso será, de fato, engraçado?


# Comercial Friboi - A certeza do churrasco perfeito

Caloni, 2016-10-16 cinema comercial [up] [copy]

Em tempos de regravações de westerns como Sete Homens e um Destino, a Friboi aposta no gênero e já parte em seu último comercial, "A certeza do churrasco perfeito", inovando com o conceito já inovador há pelo menos uma década de "câmera lenta com partículas em suspensão" introduzido por Guy Ritchie e filmes como Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes. Aqui o churrasco é visto através daquela trilha sonora afiada, fogos gerados por computação e, claro, close na destreza e precisão do mestre churrasqueiro.

https://www.youtube.com/embed/19RrxCMKI4

Note como essas partículas de sal são vistas não uma, nem duas, mas pelo menos três vezes em um comercial de 30 segundos. O sal, de acordo com o narrador com voz meio sensual, meio rouca (são sinônimos?), é muitas vezes vista pelo mestre churrasqueiro como o segredo do bom churrasco (o que explicaria as altas doses de dinheiro trocadas por sal-vesgo de cor diferente da chapada amazônica trazida pelos índios friboizés). Porém, isso ainda não é o que garante o sucesso dessa churrascada. Vemos, então, o mestre do churrasco preparando com toda a dedicação sua carne. Ou seja, tirando da sacolinha a vácuo da Friboi, jogando sal e metendo na brasa.

Note também que os velhos clichês da Friboi estragam um pouco o prazer da aventura. "Carne selecionada"? Só se for seleção de espécie. O apelo ao macio também soa vazio, embora o "mestre" churrasqueiro aparentemente tenha decidido jogar ela na pedra, sem mais nem menos, machucando um bom bife pelo preço de uma boa tomada em câmera lenta (e se isso é realmente uma carne selecionada, começo a sentir pena do boi que foi sacrificado para um comercial que joga carne boa em pedra ruim).

Porém, note, nesta mesma tomada, um garfo afeminado, jogado meio que casualmente, perfeitamente alinhado em cruz com a faca de bastão de madeira. Nesse momento vemos algo inovador: o mestre churrasqueiro começa a levantar a bandeira LGBT e exibir pequenos traços de feminilidade em torno de seu ritual maravilhoso da devoração de animais por outros animais.

E, se nos mantivermos ainda mais um tempo nessa mesma tomada, notaremos também um pedaço de alecrim, também casualmente modelado para ficar à esquerda superior do quadro, sugerindo um suposto product placement disfarçado de mato, sugerindo na realidade uma propaganda velada do Master Chef, programa de televisão que preza pelo uso de temperos esotéricos que cobram mais para que a comida fique com menos sabor.

E por fim, nesta mesma tomada, caro leitor, note como o "mestre" (humpf) churrasqueiro deixa todo seu sal derramado por toda a mesa. Além de um desperdício uma desorganização digna de fazer Bassi se remoer do túmulo. Assim não é possível se emocionar com a trilha sonora tão "original" do velho oeste, quando o que temos no comando é um sujeito desleixado, que preza antes pelo estético, depois pela perfeição gastronômica.

Na tomada seguinte, mais uma rajada de sal é desperdiçada. Alguém não bate muito bem com a cabeça para salgar a carne lançando as pedras de sal como se estivesse em um cassino jogando dados. Me admira que o personagem desta pequena obra não tenha se queimado na grelha até aquele momento, tendo que ser substituído pelo churrasqueiro autorizado da Friboi (que é... adivinha? acertou! um churrasqueiro selecionado... e macio).

Até porque, como veremos na sequência seguinte, a churrasqueira está jorrando labaredas acima da grelha. Alguém chame um entendido do assunto, pois o rapaz vai é queimar toda a gordura antes mesmo da carne.

Por fim, a cara de satisfação misturada com embrulho no estômago da coadjuvante -- como podemos ver quando ela aperta incidentalmente sua cintura para baixo -- não foi a melhor forma da nossa personagem faminta/apressada/comilona (e ela não é gorda; mais um erro de casting) representar o prazer dado por uma carne queimada por labaderas e mal-salgada pelo ex-jogador de cassino agora-mestre churrasqueiro-protagonista. A não ser... a não ser... que de fato a carne esteja horrível, e isso seria um plot twist disfarçado em um comercial que pretende vender carne.

Se for, é um movimento genial do diretor/roteirista, só obliterado pela cara de satisfação quase mongol, quase cantador de pagode, do nosso corajoso amigo churrasqueiro, que mesmo depois de jogar sal como dados em um cassino e colocar carne "selecionada" para ser consumida por fortes labaderas em uma churrasqueira mal-administrada, continua firme, de avental, pretensamente admirando a paisagem abaixo do pescoço da coadjuvante (mas ela não estava de decote, e nem estava mais do seu lado... erro crasso).

Por fim, um resultado medíocre da Friboi em apresentar como não se deve fazer churrasco, aliado a um timing cômico desagradável da coadjuvante no momento final... medíocre, mas com partículas em suspensão (no caso, sal mal jogado). Por isso leva alguns pontos de crédito.


# O Incrível Mundo de Gumball

Caloni, 2016-10-16 cinema series [up] [copy]

Mais um desenho de adultos que apela para o absurdo, a metalinguagem, o fofinho, o humor negro e o slapstick que ultrapassa o convencional em um formato quase tão criativo quanto A Hora da Aventura. Felizmente, Gumball tem senso do ridículo ou acaba sendo mais adulto.

A família de Gumball é mais um exemplo de família funcional que não precisa seguir regras para ser considerada saudável. Seus irmãos são criações de video-game, como um garoto sem pescoço mas cheio de pernas. O pai deles é um coelho de anime japonês fofinho, que vive em casa porque é muito burro para conseguir se manter em um emprego.

Seus personagens e cenários são criados com colagens ultra-criativas, que misturam técnicas de programas da TV Cultura (Castelo Rá-Tim-Bum, Glub-Glub, Vila Sésamo), mas que também usam conceitos tão disparatados quanto um Tiranossauro Rex indo pra escola ou um balão namorando um cactus. O diretor é uma coisa semelhante ao tio distante da Família Adams que namora uma professora, uma chimpanzé raivosa. Apenas descrevendo seu enredo é possível ter uma ideia ou da criatividade doentia dos criadores e ao mesmo tempo de uma possibilidade infinita de situações.

E com um enredo tão amplo é comum que diferentes histórias usem constantemente diferentes personagens que exploram uma característica ou uma situação específica. Como quando Gumball e seu irmão, depois de desistir de estudar para a prova, decidem colar, e vão parar no reformatório, uma espécie de prisão onde precisam lutar para sobreviver. O que se segue é uma inspirada compilação de histórias de prisioneiros, com direito a um preto e branco com uma música de superação cantada ao fundo pelos "detentos", em câmera lenta e com sotaque sulista (leia-se: negro). É esse o nível de imersão cinematográfica que Gumball fornece, e quando falo sobre Cinema, não estou exagerando. Gumball e outros desenhos que apostam na metalinguagem, ou seja, aquela piscada para o espectador, que "entende a referência" da linguagem que pega emprestado (e se não entendesse colocaria tudo a perder) são conteúdo de primeira quando entendem que há uma fonte inesgotável de poder vindo desse quase-gênero. O próprio Cinema é craque em gerar conteúdo sobre o Cinema (e constantemente levam prêmios filmes que exploram esse lado, provavelmente porque as pessoas que trabalham com Cinema amam a arte em que estão inseridos).

Outro detalhe sensacional nas curtas (e independentes) histórias dos episódios é que você nunca sabe direito onde ela vai dar. Há um conflito a ser resolvido, mas a resolução nunca é muito clara. Até porque, como já vimos, os personagens deste universo estão constantemente nos surpreendendo pela diferença, e como praticamente ninguém é da mesma espécie, praticamente ninguém é igual em nada no desenho, gerando resultados diferentes para personagens diferentes. É engraçado como, mesmo quando a história é clichê, como a rivalidade entre o pai de Gumball e o vizinho senil, ela é desenvolvida partindo da premissa do imprevisível, tentando surpreender até seu último segundo.

O que, convenhamos, quase ninguém mais tenta realizar hoje em dia. Quando um desenho com pouco mais que 10 minutos faz isso, preste atenção. É algo que o Cinema poderia copiar mais vezes.


# Os Caçadores da Arca Perdida

Caloni, 2016-10-16 cinema todo movies [up] [copy]

Este é um filme clássico de aventuras. Ele transforma o personagem James Bond em um arqueólogo e que continua sendo, nos moldes tradicionais, um homem de verdade. Ele mata quando preciso, e as mortes acontecem de verdade -- com sangue e tiros. Indiana Jones está disposto a arriscar a vida pelo que acredita. Ele é durão em um filme que ri dos clichês sérios. Ele contém um tema musical inesquecível e uma trilha sonora que se confunde com Star Wars, outro filme estrelado por Harrison Ford na mesma época (e ambos compostos pelo músico John Williams).

A história está envolta pela lenda do Dr. Jones, um professor em uma universidade conceituada que além de todo seu arcabouço teórico sai a campo em busca de tesouros escondidos no melhor estilo Tomb Raider (aliás, este videogame emula em muito os filmes do herói), onde há armadilhas instaladas por povos antigos, quase sempre disparadas por alavancas ou o poder do sol. A história também está envolta dos nazistas, pois ela se passa na época da segunda guerra. Hitler é obcecado por religião e busca encontrar a arca de aliança entre Deus e os hebreus, onde estão as tábuas dos dez mandamentos originais. Ter uma ponte de comunicação com Deus seria a chave da vitória para os alemães. O filme é envolto em uma realidade em que, nos mesmos moldes de Dan Brown, contém boa parte de história real, mas diferente deste, vai até as últimas consequências, sejam elas sobrenaturais ou não.

Há uma linda moça para o herói, Marion, a estonteante Karen Allen, e que aqui gerencia um bar no Nepal que pertencia ao seu pai. Ela é jovem e era o interesse quase-pedófilo de Jones em um passado distante. Hoje vira sócia e par amoroso. Ela contém o carisma e o timing cômico melhor que Harrison Ford, mas ninguém consegue vencer do sorriso de lado deste herói bonachão que está alheio ao fato de estar em um filme de aventuras arqueológicas.

Aliás, este é um herói tão controverso que várias pessoas lhe salvam a vida durante o filme, seja com um tiro, uma hélice, ou até segurando uma tâmara no momento final, demonstrando sua fraqueza sozinho e sua força quando rodeado de amigos.

O roteiro de Lawrence Kasdan (O Retorno de Jedi), baseado em história de George Lucas e Philip Kaufman, mantém impressionantemente suas pontas ligadas em torno de uma história simples, mas que sempre consegue levar o espectador adiante. Detalhes como tâmaras envenenadas, truques com cestos, antessalas temperadas com serpentes e uma perseguição de carros/caminhão que vai além do convencional são inseridas da maneira mais natural possível, e é justamente quando a realidade encontra a fantasia deste gênero que o filme se torna cada vez melhor.

Aliás, é preciso elogiar a energia com que Steven Spielberg, o diretor, consegue nos conduzir por diferentes cenários e situações, além de através de seu editor, Michael Kahn (auxiliado por Lucas), nunca nos fazer perder o fio da meada, ou nos fazer perder de maneira proposital. A sequência dos cestos, onde há diferentes corredores em um lugar de comércio labiríntico é particularmente eficiente nesse ponto, pois nos faz perder o senso de direção enquanto consegue continuar a perseguição (e nós sabemos onde estão os bandidos e onde está o mocinho e a donzela, apesar de não muito certos). Ao mesmo tempo, a perseguição do caminhão é o ponto máximo do filme, onde a trilha sonora (e seu tema) ecoam mais forte porque é aí que reside boa parte do poder do personagem. A destreza de Indiana Jones combinada com sua força de vontade conseguem o milagre de tornar uma sequência relativamente realista em um nível de tensão que nenhum dos filmes Velozes e Furiosos ainda conseguiu. Isso porque, diferente da franquia de carros turbinados, aqui importam os personagens, e não os efeitos.

E por falar em efeitos, o terceiro ato é sucinto e eficaz utilizando efeitos ainda convincentes e que remetem a tudo que foi dito a respeito da tal arca. Pode soar um deux ex machina, mas mesmo que soe, faz parte da história. Melhor mesmo, só a volta para as salas imponentes da universidade e a parceria com os representantes do governo -- que, aliás, lembram muito os investigadores de As Aventuras de TinTim pela sua incompetência, um filme recente de Spielberg -- demonstrando um final realista e, por isso mesmo, desapontador. A aventura, como vista no filme, permanece na força individual de seus heróis, e nunca na pesada mão do coletivo.


# Peppa Pig

Caloni, 2016-10-16 cinema series [up] [copy]

Eis um desenho que preza por histórias sucintas, rápidas e simples, ligeiramente divertidas e que estão atreladas ao fato da família principal ser constituída de porcos.

Aliás, mais do que isso. São porcos que vivem em uma casa, possuem um carro. Sua filha -- a Peppa do título -- vai a aulas de balé. Seus pais são gordos e simpáticos. Seus avós são ativos. Enfim, uma família normal que passa por peculiaridades que toda família passa.

O desenho é tão simples que lembra rabiscos bem feitos com lápis de cor, o que deve empolgar particularmente as crianças menores (e meu sobrinho de 2 anos é prova viva disso). É fácil de entender os acontecimentos e os desenhos em torno deles (que envolve a família de porcos e outros animais), mas eles são feitos em um nível de inteligência acima de esquisitices mais precoces como Teletubbies ou Galinha Pintadinha (essa nem desenho é, são video-clipes infantis).

O curioso é que não existe trama. Não há algo a ser corrigido, nem nada a ser aprendido. É um desenho sobre a própria vida e como a vivemos. Mesmo trabalhos mais naturalistas como Meu Amigo Totoro se alimentam de tensão -- no caso de Totoro, a mãe doente -- mas aqui não há espaço para estratégias que envolvam três atos. A atenção dos pequeninos é limitada, e tudo tem que estar acontecendo naquele exato momento. Viva o agora, esse é o lema.

E se trata de um bom lema. Fugindo do formato convencional das obras narrativas que possuem a ambição de passar alguma lição valiosa sobre a vida (algo meio inútil para pequeninos com a racionalidade subdesenvolvida), Peppa Pig só quer refletir a própria vida em forma de rascunhos para que crianças aos poucos percebam as semelhanças com suas próprias vidinhas.

Para adultos, é fácil assistir dois, quatro, seis, doze episódios seguidos. E nem precisa ter muita atenção. Basta relaxar e se deixar levar por um monte de rabiscos que formam uma história simples, dessas que vivemos no dia a dia. De vez em quando arte é apenas percebermos que estamos vivos, mesmo que seja pela tela de uma televisão.


# Luke Cage

Caloni, 2016-10-17 cinema series [up] [copy]

As produções da Marvel têm tanta certeza que seus fãs irão acompanhar as séries do começo ao fim que eles sequer precisam fazer um episódio piloto que chame a atenção. E é assim com Luke Cage, cria gerada a partir de Jessica Jones, a quase-potencial série em se tornar algo além do incidente Vingadores em Nova York. Nesse caso, Cage passeia pelos personagens que irão colocá-lo em grandes enrascadas e fazê-lo viver grandes aventuras na velha e bobinha lenda do herói humilde que surge do Harlem e que combate uma poderosa máfia com conexões políticas.

Para soar mais "realista", o ator Mahershala Ali, da série House of Cards, faz o líder da gangue responsável por conduzir os negócios sujos da vereadora local. Ele é estiloso, ele é mal, ele mata pessoas com os punhos. E do outro lado do ringue, Luke Cage, um fugitivo da justiça que vive como um pacato trabalhador braçal -- em dois empregos -- e mantém alguns segredos apenas para ele e seus mais chegados, como ter força extraordinária e sobreviver a tiros e socos sem um arranhão. Há um momento no primeiro episódio que vemos rapidamente o que a computação gráfica é capaz de produzir. E, sim, há também um momento onde Cage amaldiçoa o dom que tem; para ele, para Jessica, para todos, dizer que ter super-poderes é um fardo é mais que o suficiente (aparentemente) para que entendamos todo o drama que essas pessoas vivem no mundo real.

E no meio dessa trama tão original há também cenas de luta e de sexo, exatamente como as produções Netflix para "adultos" gosta de realizar. Há também algo interessante para os afoitos por "representatividade de minorias". Aqui há negros, dezenas, centenas deles. E música de negros. E uma trama praticamente protagonizada por eles. Porém, sendo sincero, você quase não percebe a diferença com uma produção de brancos, não fosse a forçação de barra em dizer os nomes Harlem e "crioulo" algumas dezenas de vezes. Acho que isso será o suficiente para chamar o pessoal de esquerda, mesmo que eles não gostem de quadrinhos ou super-heróis tanto assim.

Mas por falar em fãs -- os reais -- esta é uma série para eles, e especialmente os fãs de Cage, que o viram em Jessica Jones, e que curtem acompanhar seus personagens favoritos por mais episódios do que deveriam. Não se trata de nada menos que a qualidade Marvel (o que pode ser um elogio ou não), de forma que você terá alguns momentos empolgantes, referências ao universo e no meio disso diálogos mornos com personagens ligeiramente interessantes. Há um vilão (esse branco) que usa óculos escuros e anda como um mano da ZL. Sim, ele é perigoso (não está vendo que ele anda de óculos?), e Cage faz um esforço descomunal para parecer que está com medo do rapaz assim que o vê. Porém, esta não é uma obra para interpretações rebuscadas ou sobre a construção de personagens.


# Michelle e Obama

Caloni, 2016-10-19 cinemaqui cinema todo movies [up] [copy]

Se Frank e Claire Underwood da série House of Cards seriam o exemplo de "casal perfeito" entre os políticos que anseiam o poder a qualquer preço, a impressão que fica após assistir "Michelle e Obama" é que eles seriam o exato contra-exemplo, pois tanto ela quanto ele irradiam a energia positiva e generosa de quem está honestamente disposto a ajudar o próximo. Isso, é claro, levando em conta que o filme está narrando os primeiros passos do casal em direção a uma união que passará por décadas de vida política, o que poderá mudá-los de forma que se aproximem do casal de "arquitetos do poder" da Netflix.

Mas este é apenas o primeiro encontro da vida deles, ainda jovens e esperançosos, em um verão de Chicago, do "lado negro" da cidade. O filme poderia muito bem fazer par com o primeiro filme de Richard Linklater sobre casais que se encontram pela primeira vez, "Antes do Amanhecer", pois é exatamente essa a estratégia adotada pelo estreante Richard Tanne em amarrar uma agradável tarde com o casal: eles andam e falam quase todo o tempo, e diferente da grande maioria dos casais da vida real, eles têm realmente algo a dizer.

E apesar de seguir o modelo clássico de comédias românticas "se odeiam, mas se amam", este filme subverte este clichê ao dar bons motivos para que Michelle Robinson e Barack Obama não fiquem juntos. Ambos são colegas em um escritório de advocacia, além do principal receio de Michelle em seguir adiante um possível relacionamento com o colega de trabalho é justificado pelo que as pessoas iriam pensar, o que poderia ser negativo para uma carreira em que ela precisa trabalhar duro para se manter competitiva e melhor que todos para compensar -- segundo ela -- o fato de ser negra e mulher.

É tocante também ver tanta força de vontade de pessoas como Obama e Michelle sendo desperdiçada no meio político, utilizando de meios imorais para conseguir alguma melhora de vida nas pessoas que eles ajudam. Michelle é a dona dos princípios que sugerem que irão nortear boa parte dos esforços do futuro presidente, como não julgar as pessoas. Por outro lado, Obama se coloca na posição que o tornará futuramente líder de estado: um facilitador de discussão, a procura dos caminhos certos para conseguir obter sucesso. E, assim como o ex-presidente Lula (embora com muito mais elegância), a capacidade de atingir o coração de seu público e assim conquistar as mentes através das palavras que atingem o coração. O discurso na igreja resume tudo isso de maneira sucinta, mas bem colocada em pouquíssimas palavras, conseguindo resumir em espírito a sucessão de discursos emocionantes e inflados de Obama nesses oitos anos de seu governo na Casa Branca.

Porém, na posição em que ainda estavam, uma conversa política acalorada poderia vir tanto de Jesse e Céline quanto de qualquer outro casal jovem e bem informado teriam. A virtude do roteiro de Tanne está em conseguir aliar política com a vida pessoal de ambos, o andamento de suas carreiras até aquele momento e seus planos de longo prazo. Além disso, o filme também apela com sucesso para os traumas do passado de ambos, principalmente o pai de Obama, que teria sido a figura mais ausente de sua infância.

Realizando um trabalho admirável de imersão desses personagens dentro da ação onde se encontram -- seja um museu, uma dança típica ou um grupo de discussão -- o uso de uma profundidade de campo reduzida enquanto ambos conversam, além de desfocar boa parte do lugar onde se encontram em cada momento, os colocam como um verdadeiro casal tentando se descobrir, e onde os eventos em torno importam menos do que a companhia um do outro.

Tika Sumpter faz uma Michelle leve, mas de opiniões fortes. Sua beleza reside não apenas no seu aspecto físico, mas na maneira com que ela anda, gesticula e observa Obama em seu habitat natural. Ela consegue vestir a personagem seja improvisando no meio de um grupo de dança ou encontrando colegas de trabalho em uma situação inadequada. A forma de tornar sua altura uma vantagem é sutil, mas sempre presente.

Já Parker Sawyers, como seria de se esperar, copia os trejeitos do presidente americano, seja seu sorriso confiante ou seu jeito maroto de olhar de soslaio para a bela Michelle (quase que referenciando o que será um cacoete alvo de ciúmes da própria Michelle, quando em eventos com lindas mulheres líderes de estado). Não é muito difícil encontrar um pouco de Obama em sua forma de andar ou argumentar quando enfrentado, sendo um trabalho mais que adequado de caracterização.

Tematicamente duas coisas são curiosas no filme. A mais óbvia é trazer o palanque de discurso para dentro de uma igreja, sendo difícil disassociar o momento que a plateia aplaude emocionada de qualquer outra plateia em uma manifestação de fé, lembrando que a democracia, assim como outros tipos de crença, é uma religião ainda muito popular.

O outro detalhe, este muito mais presente e incrivelmente óbvio é colocar Obama sempre em uma posição inferior a de Michelle, como sentados no parque ou andando por degraus de diferentes níveis. É como se Obama estivesse sempre a admirar Michelle como um símbolo, a representação do que ele precisa seguir para ficar finalmente junto dela. E, é claro, reafirmar a frase clichê de que atrás de todo grande homem existe uma grande mulher.

Com uma trilha sonora saudosista e apaixonante (embora sutil), e uma fotografia sugerindo "iluminação" (no sentido religioso), ao mesmo tempo que demonstrando o calor daquele verão em Chicago, o filme é uma experiência agradabilíssima se ser apreciada por espectadores pacientes, que ainda irão receber de brinde a citação ao crítico de Cinema mais famoso da cidade, Roger Ebert, na época em que estreava o clássico de Spike Lee, Faça a Coisa Certa (e o filme ainda é usado como gancho para explorar o tema do apartheid americano). Outro detalhe tocante são as críticas de Ebert (e provavelmente de outros) colocada na íntegra em um quadro do lado de fora do cinema, algo charmoso e que também está alinhado com a ideia do filme, de que aqueles tempos eram de jovens com um olhar mais crítico para a realidade do que a alienação pautada nos grunhidos de internet de hoje em dia.

Por fim, a maneira com que edição trabalha a dualidade do casal, não como um casal, mas duas mentes pensantes cada vez mais em sincronia, consegue ainda se desvencilhar de mais um clichê: de que casais juntos formam uma voz uníssona. A defesa da individualidade de cada um, enquanto ao mesmo tempo vão alinhando seus "discursos" um com o outro, talvez seja o detalhe final para tornar Michelle e Obama um romance que conseguiu a mesma coisa que Antes do Amanhecer: ao final do filme, há ainda o desejo de acompanhar aquele casal por muito, muito mais tempo.


# Depois da Tempestade

Caloni, 2016-10-20 cinemaqui cinema todo movies [up] [copy]

Os personagens são tão reais e carismáticos, exatamente como seria se estivéssemos testemunhando uma família japonesa e seus problemas (financeiros e emocionais), que há vários momentos em Depois da Tempestade em que assisti-lo se torna uma experiência naturalista, quase documental. O que "frustra" um pouco esse realismo é apenas a leve dramatização realizada para tornar mais palatável ao grande público, com uma ou outra trilha sonora cômica, e um ou outro comentário que algum personagem solta que é "perspicaz demais pra ser verdade". Mas esses são pecadilhos frente ao resultado final, denso e complexo, pois consegue explorar seus personagens e ainda evocar uma visão um tanto decadente da cultura japonesa (para o bem e para o mal), como o envelhecimento de sua população, a autonomia cada vez maior da mulher e a crise financeira dos mais jovens.

E tudo gira em torno, ou podemos dizer, começa e termina, no pilar familiar: a avó. É ela que torce por dias melhores para seus filhos e netos, mesmo que saiba que seu próprio fim está próximo, e não tem receio de perguntar ao próprio filho como ele preferiria que ela morresse. Seu lado prático, logo após a morte do marido, já denuncia que a mulher já tem um papel extremamente importante na sociedade japonesa, não importando o quanto seja subjugada. Nesse filme os homens são periféricos, ou verdadeiros perdedores.

Como seu filho, Shinoda, que sofre a sina de se tornar uma outra versão de seu finado pai. Muito se discute no filme sobre talento, e ele ganhou um prêmio literário pelo seu primeiro livro, para nos próximos quinze anos cambalear após o seu divórcio entre apostas em jogos de azar, além de usar seu emprego temporário como investigador para espreitar a vida da ex e de seu filho. Shinoda vive à sombra de sua ex-família e explora sua mãe sem deixar o orgulho de lado, mas mesmo assim, a interpretação de Hiroshi Abe é carismática o suficiente para nunca deixarmos de torcer por ele.

O que nos leva à problemática do filme: o que acontece com a vida das pessoas quando elas não conseguem seguir adiante de maneira objetiva, preferindo arriscar jogadas à esmo? O que simboliza esse problema no filme é um brinquedo interditado, um tufão iminente e a próxima geração saindo à cata de bilhetes de loteria espalhados no chão, levados pelo vento. Isso representa de maneira particularmente deprimente a cultura e economia japonesas atuais e, se continuar assim, exatamente das próximas gerações.

E o que dizer da visão tão mais rica e com energia de um grupo de senhoras idosas reunidas aprendendo sobre música clássica na casa de um professor, também idoso, que se recusou a dar aulas pela televisão para "não trair os deuses da música"? Há várias mensagens em Depois da Tempestade que se traduzem no que vemos mais do que ouvimos, os diálogos servindo apenas para temperar de realidade as relações entre aquelas pessoas.

O resultado final é que acaba sendo um filme bem-humorado com pitadas de drama e que não se priva de abordar temas complexos enquanto narra sua história principal. O diretor Hirokazu Koreeda faz uma referência muito pertinente a Era uma Vez em Tóquio ao usar uma profundidade de campo reduzida e enfocar a casa da avó com diferentes planos sobrepostos, dando a impressão da casa ser menor ainda do que é, mas ao mesmo tempo tentando unir familiares sob o mesmo teto. E da mesma forma com que o clássico de Yasujirô Ozu cuidava das relações familiares de uma maneira natural e universal, independente da cultura japonesa, aqui Koreeda tenta atingir o mesmo nível de universalidade, com resultados mistos. É importante lembrar nessas horas que, bem ou mal, famílias pobres, mas não miseráveis, em qualquer cultura possuem problemas semelhantes nas finanças domésticas, independente da comida típica do lugar onde vivem.


# Entre Linhas

Caloni, 2016-10-20 cinemaqui cinema todo movies [up] [copy]

Entre Linhas ensaia ser pretensioso, ou de alguma maneira intrincado. Porém, para que isso aconteça, é necessário que seus personagens tenham algo a dizer além de questões existenciais sobre relacionamentos. E mesmo que fôssemos elogiar sua emaranhada montagem, que preza por idas e vindas entre dois namorados muito parecidos da protagonista, isso se torna impossível a partir do momento que percebemos que não se trata de descobrir um motivo para o vai-e-vem temporal, mas de ser diferente pelo simples prazer de ter mais personagens a dizer frases aleatórias sobre a vida.

E, se formos notar, o próprio filme entrega sua mediocridade em uma produção em estilo independente, que mistura uma trilha sonora tensa de mistério com uma fotografia televisiva, personagens na contra-luz e, como já disse, uma montagem que não é necessariamente confusa; apenas irrelevante.

Irrelevante pelo menos para a história que deseja contar. É sobre um diretor de teatro (Harry Hamlin) e uma escritora, Jacqueline (Irina Björklund), construindo uma peça sobre os próprios relacionamentos da autora, ou são relacionamentos fictícios vivenciados por ela como em primeira pessoa (que pode estar montando um personagem através de diferentes impressões de relacionamentos). No final das contas, isso não importa, já que seus namorados são galãs tirados de telenovelas, o que torna as comparações insípidas. Um gosta de velejar sozinho por longos dias; outro teve problemas na justiça e tenta se reabilitar através de sua arte. Esse segundo até gera algumas questões interessantes, como a incapacidade de Jacqueline de viver sob o mesmo teto com outro criador (artístico). Além disso, Jack tem uma amiga que tem um cachorro e com quem discutem esses relacionamentos e questões mais genéricas, como traição. Daí você me fala: isso tem ou não tudo a ver com uma telenovela mexicana cult?

Para piorar, há um flerte sempre no ar entre diretor/roteirista que beira o clichê, mas que o atinge completamente quando começam os testes com a atriz que fará a heroína no teatro. Não por acaso, o narrador de tudo isso é o próprio diretor, que começa toda essa elucubração ao observar os atores em cena junto de sua roteirista.

O que salva parcialmente a experiência é que ele pode ser visto como um longa metragem rápido. O que não o salva é se você perceber que no fundo é um curta-metragem, quase um conto, extremamente longo. Nesse caso, apenas desejo que você goste de novelas.


# Greater Things

Caloni, 2016-10-20 cinema todo movies [up] [copy]

Este é um filme que possui poucos diálogos, o que o torna o mais cinematográfico possível. Isso quer dizer que o que vemos e o que ouvimos consegue passar a mensagem. E muitas vezes a mensagem é formada pelo que não vemos e não ouvimos.

Conta a história de quatro pessoas. Duas delas são casadas e duas são solitárias (ou talvez todos sejam). Uma mora em Londres e vive na inércia do escritório onde trabalha, até o momento que decide fugir para qualquer outro lugar do mundo, o que acaba sendo Tóquio. Lá é onde estão as outras três pessoas, um casal maduro e um lutador de MMA. O casal está junto, mas apenas divide a casa, como tão bem demonstrado pela fachada transparente de seus cômodos. O lutador mora em um pequeno quarto enquanto aguarda a próxima luta. Duas dessas pessoas usam formas solitárias de se expressar, seja através de efeitos sonoros ou pela forma de treinar musculação. Porém, são péssimos em palavras, como demonstrado nas entrevistas com o lutador e as conversas com a esposa (ou a ausência delas).

O uso de enquadramentos com espelhos tentam ampliar os horizontes limitados dessas pessoas, que apesar de seus sucessos ou fracassos, vivem à deriva de suas conquistas ou desconsolos. Porém, há algo de belo e poético na visão do diretor Vahid Hakimzadeh, que observa seres humanos com a maior paciência do mundo, nos fazendo prestar atenção nos efeitos sonoros da realidade à volta (como os grilos à noite na casa de vidro). Há vários momentos também que a beleza dos enquadramentos fazem o filme virar um quadro vivo.

Porém, nada disso torna o filme particularmente eficiente como narrativa, mas arrastado. Sua beleza consegue nos relevar sua falta de tensão ou conflito até o terceiro ato, ou estamos apenas imersos na história de cada um deles, aguardando algo "sair dos trilhos". Interessante notar que isso não ocorre quando um personagem começa a morar na rua, pois isso para ele não é nada mais que apenas uma outra sensação... a de querer menos.

E querer menos pode ser uma das chaves para o longa, pois o movimento de seus personagens é sempre em direção ao minimalista. O filme tende a minimizar sua própria narrativa, de maneira que o tempo corre, mas o espectador é que precisa preencher algumas lacunas (como a mulher se conecta com o sem-teto? como o lutador chegou lá sem um empresário?). Com o tempo se torna cada vez mais fácil acompanhar aquelas pessoas, mesmo sem saber muito sobre elas, e mais difícil deixar de acompanhar. Esse é um dos motivos que torna o filme incrivelmente curto (e, seguindo sua própria tendência, mínimo).

Mas, afinal de contas, com o que estamos lutando, como espectadores, quando tentamos desvendar um filme desses? Há algum motivo para extrair significado de vidas que simplesmente movem para a frente e se conectam, mesmo que essa conexão seja simplesmente comprar o ingresso para vê-lo lutar?


# Aloys

Caloni, 2016-10-21 mostra cinema todo movies [up] [copy]

Aloys é uma viagem fascinante pelo mundo dos efeitos sonoros que criam a realidade em torno dos dois personagens principais. Para esse feito, é necessário uma edição e montagem impecáveis, além de um design de som que prima pela redundância. Redundância essa necessária para que o espectador consiga penetrar no mundo dividido entre todas as pessoas que vivem dentro do mundo interno de cada um de nós.

Tudo começa com uma morte. A morte do pai de Aloys Adorn (Georg Friedrich), um homem estranho e solitário. A maneira com que Aloys encara a perda não apenas do seu pai, mas seu parceiro na companhia de investigação onde ambos trabalhavam, é a mesma maneira que ele vive há um bom tempo. Sendo uma pessoa desagradável a todo momento com todos que encontra eventualmente, como o dono do restaurante onde pede arroz (sempre para viagem), uma menina vizinha sua que o aborda toda hora sobre seu gato (que esconde dos outros), e até uma ex-colega de sala que encontra ao acertar o crematório do pai. A vida inteira de Aloys se resume em filmar pequenas partes da vida dos outros, pessoas e animais, e assistir novamente essas parte no aconchego do seu escuro e solitário lar.

O que muda em sua realidade é quando alguém rouba algumas de suas fitas, e começa a incomodá-lo com a mesma sensação dos que descobrem que estão sendo filmados por ele: a perda da privacidade. Porém, sua privacidade não é invadida externamente, mas internamente. A ladra, não de suas fitas, mas de sua vida em si, o conhece tão bem, que é difícil saber quem conhece mais sobre ele mesmo.

O diretor estreante Tobias Nölle confia de maneira quase que incondicional à capacidade do espectador de ir seguindo as pequenas e parcas pistas que vão levando ao desdobramento da história, onde compreendemos que cada pequeno detalhe desenvolvido no início da trama será usado na viagem extra-sensorial que ele desenvolve a partir do momento que Aloys se permite se comunicar de verdade com outro ser humano, nem que seja sonoramente.

Isso abre espaço não apenas para um roteiro (também de Nölle) que é bem amarrado com todo o universo criado pela rotina de seu protagonista, como também, como Cinema, é uma aventura arrebatadora pelo mundo dos sentidos, onde a edição de som, criada por uma equipe grande, é primordial para o sucesso da empreitada. Note como nós estamos mais sujeitos ao que o som representa a cada nova interação entre os dois, e como isso se reflete no que Aloys enxerga em sua frente, do que o contrário. Isso é quase como um A Conversação misturado com Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, com a diferença que é uma experiência muito mais intensa e interna, que não requer muita trama do lado de fora do que está acontecendo.

O resultado é que se torna um filme que explora de maneira incrivelmente eficiente a questão da solidão e da depressão sem precisar partir para estereótipos vazios. As pessoas envolvidas em "Aloys" não precisam ser pessoas reais para percebemos o quanto de verdade existe em "cada um de nós tem um mundo dentro de si". Esse mundo pode ou não ser populado por pessoas reais e experiências reais. A questão levantada no filme é a capacidade de viver fora do eu, quase como um desafio.


# Mini-Debate com diretor de O Que Restou da Minha Vida

Caloni, 2016-10-21 [up] [copy]

Depois da sessão de hoje do alemão O Que Restou da Minha Vida, candidato à Competição Novos Diretores, adentrou no Cine Caixa Belas Artes Sala 1 o diretor Jens Wischnewski para uma rápida sessão de perguntas. Logo no começo também chega meio apressada a atriz principal do filme, Luise Heyer. As perguntas foram improvisadas pelo (infelizmente) pequeno público, mas foi respondido com muita simpatia (para um alemão) por Wischnewski. Segue as que eu lembro de cabeça:

Você já fez algum curta-metragem antes desse seu primeiro longa?

Wischnewski: durante minha faculdade de Cinema havia cada ano a produção de um curta, então fiz, ao total, cinco curta-metragens antes de me aventurar em filmes mais longos.

Quanto tempo demorou para ser feito o roteiro?

Wischnewski: o roteiro foi feito durante minha faculdade de Cinema junto com mais pessoas, por isso não estou sozinho nos créditos. Ele foi evoluindo durante o período do curso até procurarmos produzi-lo. Quando ficou pronto, ele já estava bastante caro e longo, então foi necessário buscar financiamento fora da escola.

A ideia da montagem ir e vir com flashbacks já existia no roteiro ou foi sendo feita com o montador?

Wischnewski: inicialmente o roteiro era linear, mas aos poucos vimos que seria mais interessante intercalar os dois relacionamentos do personagem. Uma ideia que também surgiu próximo da produção foi mostrar a nova namorada do personagem antes da falecida, para que o público conseguisse se identificar melhor. Tirando pequenas mudanças, o roteiro já estava completamente pronto na faculdade.

Quanto custou apenas a produção do filme?

Wischnewski: cerca de um milhão e oitocentos (não diz a moeda; provavelmente euros).

De onde veio a ideia de que as coisas são como deveriam ser?

Wischnewski: isso é algo que veio da influência de minhas duas avós; uma delas acreditava nisso, e acreditava no destino. O engraçado é que quando fui mostrar a ela meu filme/ideia, ela já não acreditava mais nisso (risadas), então é por isso também que em um certo momento do filme isso não funciona mais.

O resto foram elogios e comentários periféricos. De um modo geral, deu a sensação que as pessoas gostaram bastante do filme, que ainda não estreou na Alemanha.


# O Que Restou da Minha Vida

Caloni, 2016-10-21 cinema todo movies [up] [copy]

Tratando da morte de uma maneira leve para depois reverenciar a perda das pessoas que amamos, O Que Restou da Minha Vida é um misto de temas que combina comédia, romance e drama em uma sequência de idas e voltas não necessariamente confusas, mas frustrantes.

O filme começa explicando o porquê de Schimon (Christoph Letkowski) não se incomodar tanto com a morte: desde pequeno ele gravava seu avô dizer para não se preocupar, pois a morte, segundo ele, é apenas um novo começo. Tanto que ele ouviu, em primeira mão, as ultimas batidas do coração de seu avô.

O velho, além de contar de várias formas a maneira como encontrou sua amada durante a guerra, também dizia que as coisas acontecem por um motivo. Bem, se há algum motivo para a sequência desastrosa que levou Schimon a ficar viúvo da jovem Jella (Karoline Bär), seria para se encontrar com a sorridente Milena (Luise Heyer), com quem começa a namorar duas semanas depois do enterro da esposa.

O diretor estreante -- e um dos roteiristas -- Jens Wischnewski começa, então, uma jornada que oscila entre o começo de dois romances: o que acabou em morte e o que começou nela. Cuidando para que ambas as histórias se completem e se influenciem, ele consegue unir a fugir de uma cadeira ou um balão roxo como símbolos de um luto que continua apesar da nova vida e do novo amor. Além disso, o roteiro usa e abusa de coincidências para tornar o romance entre eles como algo fruto do destino, mas se esquece de desenvolvê-los como se deve (o trabalho de Milena na ala terminal infantil é usada em uma cena, ignorando a parte triste de encarar a morte através dos inúmeros desenhos das crianças que por lá passaram).

O que faz com que esse seja um filme com um senso de humor bem peculiar, do tipo onde a estátua da falecida é colocada no banco de trás de seu carro para que se encontre a nova namorada no porta-malas. Além disso, o vai-e-vem constante torna os sentimentos do espectador divididos entre o que é certo e errado para Schimon sentir nesse momento. Por outro lado, se torna uma forma visual bem interessante de mostrar como a perda de alguém que fez parte de nossa vida de fato nunca é o fim, pois as impressões e as memórias e parte do nosso caráter continua ativo em nós.

Há elementos bem espertos que fazem do filme um trabalho rico em símbolos. Além do balão e da cadeira já citados, o uso da nova namorada tocando uma corneta soa como algo tão inapropriado quanto escrever músicas para banheiros. Como eu disse, há um senso de humor bem peculiar no filme, e desconfio que isso não se deve apenas por causa do luto.

Porém, talvez a questão mais problemática seja mesmo o terceiro ato, que investe na figura de uma amante compreensiva demais com um sujeito que vem delineando sérios problemas psicológicos, além de subitamente fazer o rapaz retroceder sua vida em um dia especial para o novo casal, onde mais uma vez o roteiro soa forçado. De qualquer forma, há algo agradável em acompanhar Schimon através da descoberta do luto, seja pelo lado inesperado ou até pelo interessante conceito. O que não o torna automaticamente um trabalho complexo.


# Profundidade Dois

Caloni, 2016-10-21 cinema todo movies [up] [copy]

Um documentário que é uma peça de museu. Fala sobre um massacre "de guerra" feito em civis perpetrado pelos capangas psicopatas de um presidente. Bom, o que há de novo? 100% dos massacres são assim.

Tendo como pano de fundo a guerra da Iugoslávia contra o território de Kosovo e a entrada da OTAN no conflito após acusações de abusos nos direitos humanos, o filme resgata mais abusos de direitos humanos, dessa vez dentro do próprio território controlado pela própria Iugoslávia, às vésperas de sua dissolução com a independência de suas repúblicas formadoras, que durante toda a História nunca resolviam seus conflitos.

A narrativa é feita toda sem vermos as testemunhas que estão falando, mas elas foram gravadas durante tribunais de julgamento do caso. O que vemos é a sensação da ação conforme acontecia pelo ponto de vista dessas pessoas que vivenciaram o horror diante dos seus olhos.

O caso mais impressionante é de uma mulher que sofreu uma explosão em seu corpo, tiros e ainda se jogou de um caminhão na estrada. Boa parte do filme vale a pena justamente pelo seu testemunho.

As tomadas do diretor Ognjen Glavonic são inspiradíssimas, mas é difícil de desvencilhar de sua falta de ritmo. Porém, graças a diferentes causos alternados no tempo é possível ter uma quase-vida no que vemos e sentimos, embora dependa muito do espectador.

O impressionante de tudo isso é que os locais que são mostrados possuem um clima lúdico, pacífico e pacato. Nada disso impediu, no entanto, que aquelas pacatas pessoas fossem submetidas ao poder de fogo estatal, que utiliza corpos humanos como se fossem matéria a serviço do prazer sádico ou qualquer outra bobagem que inventem. Aliás, voltando à mulher invencível, é sintomático que um de seus algozes fosse um rapaz cuja família ela conheceu . Ela chega a ouvir a voz de sua mãe após o massacre ter ocorrido. Tudo depende de que lado você está quando a barbárie começa.


# Tempestade

Caloni, 2016-10-21 cinema todo movies [up] [copy]

Este é um filme leve, com uma história simples e e fácil de digerir. Há algum simbolismo por trás do enredo, mas a falta de força dessas pessoas em tomar as rédeas de suas vidas é deprimente. É a típica história de "não somos donos do nosso destino" com uma pitada do ataque ao dinheiro. Uma conversa velha reciclada em um filme tão bem feito quanto descartável, já que não tem nada a dizer.

O centro da história é Dom, que é um pescador do alto mar e fã de festas. Divorciado, ele eventualmente encontra os filhos adolescentes, que moram em sua casa e em seu coração (provavelmente o clima festeiro contribui mais para isso do que o fato dele ser pai de ambos).

Tanto que Dom perde as rédeas de sua vida a partir do momento que ele é necessário como pai. Arrependido por desistir tão fácil do ofício para proteger o que mais ama na vida -- pescar -- ele entra nas águas turbulentas de conseguir seu próprio negocio e assim o desequilíbrio eminente naquela família acontece.

O filme dirigido por Samuel Collardey consegue manter nossa atenção centrada na jornada em terra firme de Dom do começo ao fim, mas não graças à história. Muito mais deve ser creditado ao ator Dominique Leborne, que nos submete a um olhar naturalista de um quarentão prestes a sucumbir à realidade da vida.

Como parte de sua influência como pai (nos poucos momentos em que esteve presente) é assim que também agem seus filhos: desistem na primeira demonstração de dificuldade ("vou morar com a mãe, aqui está frio demais"). E mesmo quando alguém da família tenta impor sua decisão corajosa, como a filha mais velha, é logo desencorajada pela voz mais velha, que vem de um bom pai, mas mascara seu desejo egoísta de viver no mar.


# Tempestade de Areia

Caloni, 2016-10-21 cinema todo movies [up] [copy]

A filmografia por trás da cultura do Oriente Médio vira e mexe acaba girando em torno dos costumes antigos de uma cultura predominantemente "machista e opressora". Em Tempestade de Areia, isso não é diferente. Contudo, encarando como toda a questão desenvolvida pelo filme consegue ser aplicada a qualquer sociedade e qualquer costume, vemos que muitas das nossas próprias ações, nós, do "mundo civilizado do Ocidente", que acreditamos ser atribuída à nossa liberdade de escolha, são apenas reflexos de uma cultura que já existia antes de nós existirmos. Onde está o seu livre-arbítrio agora?

A direção do estreante Elite Zexer torna tudo imediatista com sua câmera que não para (comparável com outro filme de destaque na região, "A Separação") e que observa a realidade quase sempre do ponto de vista da personagem mais atingida: a esposa mais velha. O filme começa com uma discussão entre o pai e a filha, que está tentando dirigir sendo a todo momento criticada por ele, que não coloca os olhos na estrada vazia. E a história continua com o pai tendo a opinião final de quase tudo que gira em torno de sua casa, a despeito de ser sua primeira esposa o pilar da família, a que cuida para que tudo funcione, que as crianças vão para a escola, etc.

As características físicas da velha esposa e da nova esposa já determinam quem está com a vida ganha e quem está sofrendo o martírio de uma vida não-escolhida por ela, mas que agora é sua inteira responsabilidade. Ela é o braço-direito de seu dono, e zela pelo futuro da filha mais velha, que está de namoro com um jovem de outra tribo. Quando a questão vem inevitavelmente à tona para o pai, a questão se complica e temos um conflito de liderança nas decisões basicamente culturais de "quem é que manda", ou melhor dizendo, "como as coisas devem ser feitas". A decisão nunca está nas mãos de alguém.

A interpretação de todos está impecável, mas é Ruba Blal que segura nas costas a responsabilidade de demonstrar as incongruências de um sistema criado há milênios e que hoje encontra problemas na realidade. o entanto, o filme é muito mais sobre os detalhes sutis do que essas pessoas precisam fazer para tentar valer suas próprias decisões em vez do que está escrito na pedra, e é nesse ponto que ele se encontra com a força dos costumes, seja em um povo tribal ou em uma megalópole, no campo, enfim, em qualquer lugar onde haja pessoas o suficiente para serem criadas regras que irão delinear como cada um deve agir.

E se o final do filme parece triste é porque ele é a conclusão lógica do que acontece com cada um de nós, preso ao sistema social vigente. A última tomada não está enfocando a próxima geração à toa. É a triste constatação de que, enquanto inocentes, nada podemos inferir. No entanto, depois de crescidos, talvez isso não mude muita coisa, mesmo que a gente acredite piamente estar no controle da situação.


# Supergirl

Caloni, 2016-10-22 cinema series [up] [copy]

A nova série da "menina de aço" parece importada do seu original de 1984 e atualizada de maneira preguiçosa com os temas do momento (leia: feminazismo). Se até a metade do piloto conseguimos nos importar minimamente com a trama e, principalmente, com o destino de Kara e a decisão de ser quem ela verdadeiramente é (uma super-heroína), de lá pra frente o que vemos é a entrega total ao televisivo, a soluções fáceis e a modelos de entretenimento que utilizam referências dos últimos trabalhos da DC para soar antenado.

O que torna tudo uma pena é que a garota, interpretada por Melissa Benoist, parece ter feito o dever de casa, ao menos nas expressões e movimentos de corpo que fizeram de sua versão masculina -- Clark Kent -- tão divertido quando a imponência do seu verdadeiro eu. Aqui temos o cômico nas caras de Benoist sem a imponência de sua versão "adulta", o que pode ser até explicado como apenas o começo de seu arco narrativo.

Os efeitos visuais dão para o gasto. São bem elaborados, o salvamento do avião é convenientemente feito à noite e com closes bem próximos da improvisada Supergirl de preto. Os detalhes técnicos de uma produção e baixo orçamento para os computadores de hoje parece um mero detalhe que não deve incomodar o fã; pelo contrário, deve conquistá-lo pela atualização do que é possível fazer hoje com séries secundárias como essa.

O que incomoda mesmo é o modo acelerado e burocrático com que o episódio piloto resolve apresentar todo mundo e já fazer as devidas conexões para um formato que no minuto final já está definido, o que implicitamente é uma fórmula para séries medíocres e enlatadas, que usam o mesmo formato em todo episódio para encher linguiça eternamente (ou até a audiência abaixar). E se a interpretação de Melissa Benoist como Kara seria interessante, todo o resto dela e de todo o elenco não é, pois cai no convencional e cartunesco, tornando a experiência já inflada desde o começo.

Bom, ao menos, como disse uma atendente de lanchonete de passagem, agora as filhas das pessoas terão em quem se espelhar como heróis, nos mesmos moldes das caça-fantasmas de hoje em dia. Talvez seja pedir demais por algo além do enlatado televisivo. Talvez eu, quando era um moleque, também me espelhava nas péssimas séries do Superman e Batman sem me importar com arcos narrativos, elipses ou complexidade de personagens. O que importa é romance e pancadaria.


# Black Mirror - S03E01 - Nosedive

Caloni, 2016-10-23 cinema series [up] [copy]

É muito bom ter o Black Mirror de volta na Netflix, com episódios novos. Nenhum me desapontou até agora, tanto pelos aspectos técnicos, narrativos, mas, principalmente: em fazer pensar. E esse nos faz pensar apesar da ideia óbvia: redes sociais. Todas juntas, na vida "real", fazendo as pessoas se esforçarem por aumentar suas notas, sua popularidade. Tudo depende disso. E no caso, o tudo é uma vida cercada de mentiras. Como não amar uma série como essas?

Black Mirror tem esfregado a realidade na cara do espectador há três temporadas. Agora ele conta a história de Lacie, uma garota solteira que vive com o irmão e que precisa se tornar extremamente popular rapidamente para conseguir mudar para a casa de seus sonhos (vendida pela corretora da maneira mais covarde possível: a colocando do lado de um grande amor, um holograma usado para todas as potenciais compradoras).

Lacie tem se esforçado no social. Faz corridas pela manhã com o celular na mão, atualizando sua timeline e curtindo a dos outros. Na hora do café, cria uma foto fofa para conseguir mais likes (embora odeie café). No serviço, evita ficar do lado dos impopulares, além de bajular pessoas no elevador que mal conhece pessoalmente. Mas quem precisa conhecer pessoas hoje em dia, se a vida inteira delas, em tempo real, está no Facebook?

Lacie é interpretada por um achado. Bryce Dallas Howard consegue manter uma risada nervosa e falsa e hilária ao mesmo tempo que diz o nome "Greg". Apesar de pesadamente maquiada, seus olhos exibem uma versão mais doentia de Leslie Knope (a bem-intencionada da série Parks and Recreation), onde o objetivo é subir a pontuação de popularidade. Ela é enérgica consigo mesmo e com os outros, e consegue esconder sua raiva, angústia e frustração pelo bem de seus pontos.

E o mundo pintado pelos três roteiristas e dirigido por Joe Wright é ainda mais cruel, pois as empresas de serviço selecionam seus clientes com base em sua pontuação. Dessa forma, ou você se enquadra no que as pessoas consideram aceitável e até positivo, ou será um outcast apenas por ser você mesmo (se no caso o você mesmo for alguém desagradável para os outros). Isso leva a uma (esperada) derrocada de nossa "heroína" nesse mundo de faz-de-conta (mesmo se estivermos falando do ponto de vista desse mundo), onde ser falso é premiado, e ser honesto sempre é um risco que apenas podemos nos dar ao luxo de fazer com pessoas muito próximas como a família (o que explica porque Lacie não exita em criticar seu irmão, que está com pontuação medíocre e pouco se importa com isso).

Nesse mundo não quer dizer que você deve viver dessa forma ou morre. Os exilados existem, e aparentemente são mais felizes assim. A questão toda gira em torno da crítica a qualquer sistema semelhante (dê você o nome do que odeia mais: consumismo, aparência, o tal "capitalismo" que a esquerda demoniza). A série quase sempre critica o sistema, e não as pessoas que estão dentro dele. Até porque, se formos olhar de uma maneira clínica, não há praticamente nenhuma saída destes admiráveis mundos novos a não ser simplesmente ignorá-lo.

E, convenhamos, o final deste episódio fala por si mesmo, sem precisar de maiores explicações: os comentários de internet, principalmente os anônimos, são justamente os últimos momentos de Nosedive. Espero que se lembre disso da próxima vez que for espalhar o seu ódio em comentários inconsequentes.


# Easy

Caloni, 2016-10-23 cinema series [up] [copy]

Easy é uma série muito interessante da Netflix. Ela explora os relacionamentos mostrando como eles, na verdade, são bem mais simples do que a esmagadora maioria das pessoas pensa que é. Todo o drama, as complicações, a falta de comunicação é traduzida em uma linguagem simples, de São Francisco, que envolve diferentes tipos de casais (ou outros) em diferentes tipos de situações. Seus pontos em comum? Tentar complicar o que é muito, muito simples.

A série dirigida e escrita por Joe Swanberg (que também faz parte da edição) mantém um formato interessante, que não se rende ao cômico demais, nem ao dramático demais. É naturalista em explorar uma mini-história em um micro-cosmos de meia-hora. Se sai maravilhosamente bem. Uma outra série feita na mesma época, Midnight Diner: Tokyo Stories, parece ser seu "primo gêmeo" (só diferenciando pelo foco nas histórias, sua resolução, e o abismo cultural entre o Japão e a Califórnia.

Não há atuações de destaque, mas há personagem carismáticos. E para isso o elenco dá conta perfeitamente. A série apela para a vanguarda artística de esquerda, mas nem por isso se torna politicamente correta no nível insuportável. É algo muito menos apelativo que isso.

Tome o episódio da vegana (o segundo), por exemplo. Ele trata da dieta da namorada de uma pessoa completamente diferente em costumes de uma maneira como se fosse um detalhe a influenciar o relacionamento entre elas, e não uma ode ao veganismo. Da mesma forma o próximo episódio destila o veneno em cima de esposas grávidas chatas, mas entende as complicações da vida real, sem tentar minimizá-las. A série só quer explicar como as coisas podem ser mais simples do que parecem em um diálogo simples, direto e charmoso (a trilha sonora é particularmente fraca, mas agradável).

E com esse objetivo, é uma ótima pedida.


# Ghost Hound

Caloni, 2016-10-23 cinema animes cinema series [up] [copy]

Geralmente as animações japonesas pecam pelo caricato sem ter muito realismo (exceção: stúdios Ghibli). Aqui, em Ghost Hound, começamos assistindo um drama psicológico, mas no meio a coisa vira exatamente este caricato, que, embora em um nível mais sutil, acaba por acusar a si mesmo de ser... uma animação.

Apesar disso, Ghost Hound é um trabalho denso, interessante, sempre marcado pelo mistério e descoberta de acontecimentos metafísicos/sobrenaturais aliadas a algo real ou pseudo-científico. Os espíritos que rondam aquele vilarejo são japoneses (no sentido que espíritos podem virar qualquer animal/vegetal), e o drama do jovem Miki Komori é pesado o suficiente para chamar a atenção por muito tempo.

Porém, se trata de uma série curta que se estende desnecessariamente, arrastando seus episódios, alongando-os mais ou menos o dobro do que deveriam ter. Não há nada que preencha a história, e por isso mesmo diferentes personagens, situações e cenários são utilizados para tentar enriquecer uma trama que já estaria de tamanho suficiente como um longa/média-metragem se fosse reduzido na história principal: a perda de sua irmã, o trauma causado pelo sequestrador, o mundo interno (ou externo, caso você acredite no sobrenatural) que Komori é obrigado a enfrentar para conseguir sua vida normal de volta.


# Indiana Jones e o Templo da Perdição

Caloni, 2016-10-23 cinema todo movies [up] [copy]

A continuação das aventuras de Indiana Jones é tudo aquilo que eu lembrava de quando era criança e muito mais. A trilha sonora de John William conserta o plágio de Star Wars; "Indy" ganha um jeito mais escrachado, bonachão e cínico; Jonathan Ke Quan é o melhor alívio cômico da década; e Steven Spielberg faz em 1984 o que George Miller fez em "Fury Road": um filme de ação quase que completamente sem pausa para respirar. Dado a distância de nossos tempos digitais, o feito de Spielberg (e George Lucas como produtor) se torna ainda maior por comparação.

Não à toa. Estamos falando de um filme clássico de ação, onde os efeitos são gerados com enquadramentos que enganam o ponto de vista do espectador (olhe a perseguição de carrinhos de mina), há "matte paintings" (fundos pintados à mão) charmosíssimos (a aldeia indiana sob a luz do luar), trilhas sonoras que precisam realizar o milagre de fazer acreditar (e o hino de John Williams cumpre o papel), interação real entre os atores (sem tela verde), uso de dublês aliado com uma edição rápida (Michael Kahn edita o filme com um ritmo frenético), emoção trazida pelo enredo que alia a exploração histórica da Índia com a exploração dos indianos poderosos da massa de miseráveis (e crianças!).

É difícil de imaginar que um filme tão fantasioso fizesse sucesso hoje em dia. Ele não apenas inventa uma aventura maluca começando com dançarinas em um bordel (e que usa um "túnel metalinguístico" para os créditos iniciais, assumindo de uma vez por todas sua inspiração "James Bondiana"), como leva adiante personagens que são tão estereotipados quanto o filme gênero daquele ano, "Tudo por uma Esmeralda". Porém, Spielberg e Lucas abraçam a magia por trás do gênero de uma maneira tão empenhada que, assim como o hoje visto como brega Superman: O Filme, é difícil não se apaixonar pela história.

Levados por uma introdução enérgica, que os coloca de um tiroteio para uma perseguição de carros e a queda de um avião, somos levados a um vilarejo de indianos que sofre com a seca e a fome, atribuídos ao roubo de uma pedra mágica da deusa Shiva. Para piorar as coisas, suas crianças foram raptadas. Me lembro que as cenas em torno do rapto de crianças maltrapilhas era extremamente emocionante. Os atores secundários dessa parte são indianos legítimos, dando um realismo para a fantasia que é difícil de reproduzir hoje em dia.

Trazendo em sua narrativa a maioria dos momentos que contribuíram para criar a lenda Indiana Jones nos cinemas, como o banquete exótico com cobras, cérebro de macaco, etc, ou o ritual de sacrifício -- um ótimo exemplo de como os anos 80 foram a última época em que era possível mostrar quase tudo na presença de crianças (menos nudez) -- o filme todo tem um ritmo de urgência, onde cada acontecimento leva ao próximo (eles fogem do tiroteio em um avião, que cai, que os leva à tribo, que os guiam até o palácio, onde dorme e descobrem uma passagem secreta, que...) e onde o gore é usado com propriedade (a caverna com insetos saindo pelos ladrões e o teto móvel cheio de caveiras são tanto épicos quanto símbolos de um gênero).

Harrison Ford está no modo enlouquecido. É uma de suas melhores atuações, se considerarmos que seu jeito bonachão pode ser atribuído ao seu outro personagem em Star Wars. No entanto, ele também protagoniza uma sequência onde é enfeitiçado, e tem seus momentos cômicos quando tem que enfrentar dois espadachins sem sua arma. Ele obviamente é auxiliado por Kate Capshaw, que faz uma Willie deliciosamente divertida. É um ponto extremamente positivo que as "indy-girls" sejam muito mais dotadas de presença de tela que a versão "bond", além de participarem também do alívio cômico.

No entanto, neste filme o achado é mesmo o vietnamita Jonathan Ke Quan, cujo papel do pequeno "Short Round" lhe rendeu uma indicação ao Oscar e provavelmente teve influência em sua escolha como um dos Goonies no ano seguinte. Curiosamente agora ele é instrutor de artes marciais, tendo trabalhado com Jet Li nos anos 2000. Ke Quan consegue sempre trazer um ar fresco às cenas de ação, transformando um clima pesado em algo mais humano, além de suas falas ("muito engraçado!") trazerem também o frescor da juventude e inocência, algo que não seria possível apenas pelas figuras de Willie e Dr. Jones.

O fotógrafo veterano Douglas Slocombe realiza aqui um de seus últimos trabalhos (o último seria coincidentemente A Última Cruzada). Apesar de ter sido indicado pelos Caçadores da Arca Perdida, aqui não há motivos para desgostar de uma coletânea de tons que vão desde o clima frio (com tons azuis) da mina de escavação até o amarelo ardente do sacrifício humano, passando pela floresta densa iluminada ou por um por-do-sol evocativo ou pelo luar de fantasia.

Não há nada faltando nessa aventura, seja sua história ou seus detalhes técnicos, passando pelas atuações. Até o tema, que explora até as máximas consequências a coletividade como algo maligno protagoniza um dos sacrifícios humanos mais evocativos da história do Cinema. Se não fosse pela decisão racional e interessada de um arqueólogo aventureiro, essa história não existiria. Mais um ponto para o romantismo do indivíduo, atravessando barreiras inconcebíveis para atingir algo maior que si mesmo.


# Midnight Diner: Tokyo Stories

Caloni, 2016-10-23 cinema series [up] [copy]

Como uma versão japonesa, mas mais folclórica e... gastronômica? de Easy (série da Netflix sobre desembaraçar relacionamentos), Midnight Diner é fofo, pois apela para o jeito animê do japonês se comportar (e os atores colaboram, vivenciando personagens impossivelmente agradáveis), e um passatempo curioso. Parece que quanto menos sabemos dos detalhes da vida dessas pessoas fictícias, mais emblemática se torna a história, e mais torcemos para que tudo dê certo. Uma série que evoca esses sentimentos do seu espectador não pode ser tão ruim assim.

E de fato não é. Tendo como base o humilde restaurante em Tóquio do cozinheiro "Master" (Kaoru Kobayashi), que abre da meia-noite às sete da manhã, o restaurante encontra nesse período as mais peculiares pessoas com seus mais interessantes dramas, histórias ou meras curiosidades. O primeiro episódio é apaixonante pela diversidade e pelo empenho em todos em ajudar. A partir daí a série já conquista quem estiver interessado em passar pouco mais de 20 minutos viajando em um pequeno conto que une pessoas em torno da comida, e através da refeição noturna aproveita para despertar inspiração, amores e piadas espirituosas.

O japonês é uma criatura apartada da realidade, é o que parece se você apenas assistir esta série para se basear em sua cultura (e talvez um ou outro animê de comédia). O uso dos costumes para demonstrar como são relacionamentos, beijos, abraços e... sexo, é algo à parte também. Mais do que isso, na capital do Japão encontramos de madrugada motoristas de táxi mulheres, acompanhantes de boates, comediantes boca-suja, físicos premiados, mulheres fofoqueiras. Toda uma fauna (e flora) é criada em torno dos pratos típicos sendo criados, um a um, sempre um por episódio, pelo Mestre, que sempre observa e algumas vezes interage.

Se considerarmos que as capitais do mundo carecem de humanidade, "Midnight Diner" resgata parte disso, transformando um pequeno restaurante em um ponto onde as pessoas podem voltar a ser humanas novamente. E qual a melhor oportunidade de socializar no Japão do que em torno da mesa, diante de uma refeição agradecida por todos?


# 5 Mulheres

Caloni, 2016-10-25 cinema todo movies [up] [copy]

Este supostamente é um thriller, mas se confunde tanto com uma comédia, e é também um drama que vai adocicando demais, tornando o conjunto nenhum bom representante de nenhum gênero. Pelo menos há um entretenimento inteligente acontecendo, o que já torna a experiência menos tortuosa.

Além disso, as personagens -- as cinco mulheres do título -- são papéis estereotipados, mas também divertidos. Algumas delas se destacam a ponto de quase as destacarmos como alguém com mais personalidade, mas no final das contas ou ela é lasciva, ou é neutra ou tem um trauma do passado.

E o trauma é o estupro. Ela só se lembra de um lagarto tatuado em seu corpo, mas todo o resto é um pesadelo sem fim, que ela tenta compensar arrumando um fim de semana só com as mulheres, suas amigas que conheceu desde pequena, em um curso de artesanato para crianças problemáticas (o que diz muito e pouco ao mesmo tempo).

Tudo dá errado quando, sob o efeito de alucinógenos, as meninas matam um invasor da casa de veraneio. Decididas a prolongar a tortura ocultando o fato dos policiais (por algum motivo muito mal explicado), o filme se desenrola em uma série de clichês que retomam o trauma da protagonista.

O diretor estreante (e roteirista) Olaf Draemer bebe da fonte do gênero de filmes de mistério, chegando a acelerar diversas vezes o tempo mostrando a transformação das nuvens. Sua virtude reside tão somente em conseguir gerar sequências atordoantes pelo simples fato da câmera tremer e o zoom exagerado impedir que vejamos o que está acontecendo. Nos diálogos, quase inexistentes, solta um "eu queria ter uma casa um dia" em um tom romântico, ignorando que a casa onde estão sequer é de sua amiga e que ela sequer é comprometida com alguém.

Aliás, a construção da história passa por cada uma das amigas dirigindo com seu parceiro do lado, personagens esses que existem apenas para deixá-las na casa para o fim-de-semana e pegá-las de volta. Isso para um filme com baixo orçamento.

Sem conseguir em seu terceiro ato se manter realista, apelando para uma reviravolta boba que apenas piora o resultado final, 5 Mulheres é um passatempo esquecível a partir do momento dos créditos finais, uma bobagem que tenta ser muitas coisas sem sucesso.


# A Menina Sem Mãos

Caloni, 2016-10-25 cinema todo movies [up] [copy]

Mais um desenho baseado em conto dos Irmãos Grimm. Na verdade, Jacob e Wilhelm Grimm, além de resgatar um pouco da origem das línguas germânicas e ajudar a fundar o estudo organizado de linguística, eles também coletaram a cultura desses povos, o que significa na prática suas crendices e valores, estruturadas em contos que eram contados de geração em geração. Ao salvar como escrita, eles conseguiram salvar boa parte da História no formato de folclore.

No entanto, é difícil muitas vezes induzir quais eram os valores implícitos em tais histórias. Muitas, se não todas, possuíam diferentes versões, o que faz todo sentido para a herança oral. Dessa forma, trabalhos como João e Maria ou Branca de Neve podiam se tornar universais por se tratar de histórias fáceis de perceber a moral, assim como as crenças mais modernas de derrubar sal na mesa ou abrir guarda-chuva trazer azar (ensinando as crianças a serem cuidadosas através de exemplos sobrenaturais; como podemos perceber, deus é apenas mais um desses exemplos).

Nesse caso, a história, uma animação, narra sobre um pai que arranca as mãos de sua filha a machadada. O motivo? Um demônio o enganou com riquezas. Mais uma vez, enganar camponeses pobres de forma fácil, prometendo riquezas, também era algo bem comum nas lendas (até porque alguém tinha que reforçar que era para o pobre não cobiçar a riqueza da nobreza, alcançada pelo uso da força e lavagem cerebral).

Note que esta é uma história bruta, não-polida, e que reflete bem a essência de contos antigos. Para descrevê-la visualmente, foi utilizada uma técnica que mistura rascunho de desenho com sombras, onde os traços marcam a presença de espírito, e a alma se mistura com as sombras, que são coloridas e mudam conforme o temperamento ou o valor dos elementos no processo (não à toa, o demônio sempre é desenhado com tinta preta, e não importa qual seu disfarce, sempre sabemos de quem se trata).

Assim como visualmente, a narrativa carece completamente de sutileza, e os eventos são jogados um depois do outro. Seus personagens são irrelevantes, apenas estão aí para ser ir de receptáculo de um conceito. São os antepassados do que seriam os estereótipos.

Falado em francês, tem uma fotografia interessante, que acumula texturas dos rascunhos em uma espécie de 3D (como a floresta cheia de sombras), e a trilha sonora começa clássica e termina moderna, quase um pop. Não é um tema muito feliz para a atualidade, onde as mulheres se tornam cada vez mais fortes e independente no Cinema. Aqui, temos a clássica donzela, ou o rascunho dela.


# Ascent

Caloni, 2016-10-25 cinema todo movies [up] [copy]

Aviso: este filme é na verdade um foto-film experimental. Ou seja, ele é constituído de uma série de fotografias, e tem uma narração em off. Alguns filmes na história do Cinema se saíram fabulosamente bem com esse estilo (como A Pista/La Jetée, curta que inspirou o longa de sci-fi Os 12 Macacos, de Terry Giliam).

A história é uma espécie de recapitulação de Hiroshima Meu Amor (até resgatando a fala original mais famosa do filme de Alain Resnais) com o foco no Monte Fuji, mas igualmente com dois narradores, um homem e uma mulher. O homem fala em japonês e tem um nome japonês. A mulher, que fala em inglês, resgata suas memórias deste homem através de uma série de fotos. Ele morreu, e ela lamenta. Mas agora, através das fotos começa a entender o que ele quis dizer quando vivo. A montanha tem algo a dizer também.

Com uma coleção invejável de fotos (e quadros) tirados no decorrer de um século, Ascent percorre a história "recente" do Japão, indo e vindo no tempo ocasionalmente, e demonstrando como, do ponto de vista da montanha, é o homem que realiza um filme diante dela, e apesar de ser um vulcão em atividade, é o homem o ser mais tempestuoso da "relação".

Através de rimas visuais, o que inclui o uso poético de sombras da montanha e miniaturas sugestivas, o filme é pouca coisa, e para o espectador médio será, mesmo. Porém, dê um tempo para observar a passagem do tempo em si, e verá que se trata de um filme que observa o homem, o oriental, o japonês, tendo como ponto de vista a sua montanha mais icônica.


# Black Mirror - S03E02 - Playtest

Caloni, 2016-10-25 cinema series [up] [copy]

Como seria um episódio de hoje em dia da série "Além da Imaginação", que mistura lendas urbanas, teorias da conspiração e acontecimentos fantásticos, sempre com um fundinho de moral? Desconfio fortemente que seria como os idealizadores de Black Mirror nos fizeram passar este episódio-terror, que parece experimentar um Twilight Zone versão High-Tech. Este episódio, afinal de contas, também parece um playtest da série.

Em uma época onde os games se tornam cada vez mais detalhados, a realidade aumentada e virtual viraram uma onda frenética, e as redes neurais... ops, o machine learning nos leva cada vez mais próximos da singularidade (quando a inteligência artificial se tornar mais esperta que seus criadores). Tudo isso aliado a um protagonista que abandona sua família por não saber se comunicar com sua mãe após a morte do pai, e viaja pelo mundo enquanto vai elaborando como finalmente atender as incessantes ligações da mãe em seu celular.

As ideias de Black Mirror costumam ser bem mais mastigadas que isso. Parece que os roteiristas trabalharam por muito tempo para amadurecer cada um dos detalhes de seus excelentes episódios, que além de explorar bem seus temas narrativamente prendem a atenção até o fim. Nesse caso, talvez estejamos frente a um episódio desleixado, ou apenas uma miscelânea que tenta experimentar coisas novas na série (o que é ótimo, apesar de não chegar aos pés das experimentações da série da BBC Sherlock).

De qualquer forma, há algo perene no ar que consegue prender a atenção até segundos finais antes dos acontecimentos catárticos finalmente acontecerem. É o mistério de qual o tipo de episódio que estamos assistindo. Pra variar, é um terror psicológico. Mas em qual camada? O que é tão aterrorizante?

Justamente por atrasar demais suas revelações, o episódio fica arrastado, e as aparições tão aguardadas ficam não apenas aquém do que o espectador foi alimentando na sua muito mais poderosa imaginação, como o terceiro ato se torna confuso por desencadear detalhes aprendidos em revelações espalhadas pela história (há uma empresa de games promissora, eles pagam bem pelos beta testers, ele não atende sua mãe desde sua saída de casa, etc).

Além disso, as obvias referências, não apenas a games de terror (Resident Evil? Silent Hill?) como as obras literárias (Edgar Alan Poe), apesar de representadas em uma direção de arte fabulosa demais para uma série televisiva (e uma casa do terror tão impressionante que apenas ela é o suficiente para assustar), ainda assim, ou por causa da falta de personalidade, soam sempre fakes demais.

Porém, há algo meio trash e meio reflexo distorcido no espelho neste episódio, que insiste em estruturar seu desfecho em camadas que tornam seu Grand Finale tão trágico quanto bizarro, daqueles casos que aparece no telejornal policial, onde não sabemos distinguir o que é humanidade do que é apenas instinto sádico e animal do ser humano.

Bom, uma série como Black Mirror está a todo tempo brincando com esse conceito usando tecnologias quase na palma de nossas mãos. Nesse caso, o dos jogos de videogame, confesso que esperava muito mais imaginação por parte dos criadores. South Park já fez muito melhor.


# Mini-Entrevista com Olaf Kraemer, diretor de 5 Mulheres

Caloni, 2016-10-25 mostra [up] [copy]

A sessão de ontem no Frei Caneca de 5 Mulheres estava mais ou menos lotado, o que foi uma surpresa (positiva). O thriller dirigido por Olaf Kraemer desaponta em muitos sentidos, incluindo o fato de ser confuso. Após a sessão, ele mesmo aparece para um pequeno debate de cinco perguntas (aqueles da mostra, que duram menos de 5 minutos, só pra tirar foto e sair vazado). O tradutor/entrevistador teve a consciência de avisar o público antes do filme começar, e o diretor nos avisou que haveria um curta exclusivo de festivais antes, que iria se relacionar com o longa depois.

Quanto custou a produção?

Kraemer: Foi uma produção de baixo custo, cerca de 300 mil (euros).

Como foi alterada a maquiagem em na cena X (uma cena-chave)? Como vocês trabalharam essa questão? Você usa story boards?

Kraemer: Usamos a mesma tinta dos quadros nas atrizes. Não uso story boards. Antes de filmar alguém faz um pequeno esboço da cena desenhado, mas é só.

Há muitos casos de violência contra a mulher (na Alemanha)? (espectador comenta que é o quinto filme que vê na Mostra com a mesma temática)

Kraemer: Na Alemanha as mulheres são sempre vistas como vítimas, mas aqui eu quis colocá-las também como algozes dos estupradores, tentar tirar esse estigma delas.

Sua história foi baseada em algum caso real?

Kraemer: Foi baseado em alguns, mas em uma versão muito diferente do que está retratado no filme.

Como o curta inicial se encaixa tematicamente com o longa?

Kraemer: Fiz esse curta como meu primeiro filme, e ele foi uma brincadeira com essa noção de inocência (tanto que o curta tem esse título).

Houve vários elogios da plateia, que curtiu um bom thriller protagonizado (apenas) por mulheres.


# O Silêncio da Noite É Que Tem Sido Testemunha das Minhas Amarguras

Caloni, 2016-10-25 cinema todo movies [up] [copy]

Esta é uma antologia necessária do sertão nordestino. Há muito que repentistas ficam às margens dos "verdadeiros poetas". Pois bem. Este documentário deve corrigir parte do desconhecimento geral de que a poesia de repente possui apenas rima e métrica. Esses são detalhes que reforçam a mensagem, mas é o espírito que importa. E neste filme há de monte. Começando pelo título, ele próprio um desafio ao repente.

Narrado pelos próprios repentistas, que contam em sua maioria das lendas que passaram pela região onde fica a cidade de Santo Antônio do Egito, a história e os causos de cada um vai aos poucos colorindo a paisagem onde vemos apenas pobreza nordestina. Começando em uma feira, palco de muitos repentistas, e passando casa a casa de nomes dessa arte, aos poucos o diretor Petronio Lorena vai "povoando" a roda com mais e mais pessoas. É um almoço de domingo, um encontro casual ou até um evento maior. Lá estão eles, prontos para tirar de cabeça versos não apenas corretos, mas tirados do coração, com uma alma coletiva que vai sendo descoberta aos poucos, com cada pequena passagem.

O uso de diferentes ângulos, mas quase sempre do lado de uma mesa com álcool e uns petiscos serve também para sugerir o habitat natural desses artistas: o bar. Há também na paisagem degraus pintados com versos e lendas que ficam sendo contadas e recontadas até o ponto de se tornarem imortais. A sensação é que não é apesar da pobreza que eles existem, mas por causa dela. Como todo artista, o sofrimento, ou o uso das drogas, é o combustível para suas criações.

A maioria dos poetas é homem, mas há uma passagem ou outra de algumas mulheres, tão sofridas e tão geniais quanto. Há uma poeta maldita no meio deles que discursa sua arte profana e deliciosa a respeito de seus casos sexuais. Quase como uma versão sertaneja dos mutantes e astros do MPB, essas pessoas faziam o folclore da região se manter vivo. Daí a importância desse filme.

Porém, não espere muita lógica narrativa. Ela também vai surgindo, de improviso. É difícil saber quando o filme vai acabar, já que ele tem alguns falsos finais, com nomes surgindo a esmo e uma influência cinematográfica um pouco caótica -- fruto desses artistas de esquerda avessos à razão, ainda que artística. De qualquer forma, o trabalho fica com a sensação de incompleto.

O que de longe é uma coisa boa. Talvez esse seja o começo de uma antologia ainda maior, com mais regiões e mais artistas. Tomara. Já é tempo de sair da pseudo-arte urbana, que se finge de cult soando confusa. Aqui há métrica, aqui há postura, aqui há motivos de sua existência. O repente, espero, não morreu. Apenas vai mudando de formato.


# Porto

Caloni, 2016-10-25 cinema todo movies [up] [copy]

Um romance pode terminar em algo bom ou algo ruim, mas ele sempre será um romance. A montagem de Porto também nos mostra que pedaços de informação não são a mesma coisa que a coisa em si, que pertence apenas aos que viveram o momento. Contando a história de um breve romance de suas problemáticas pessoas, o roteiro do diretor estreante Gabe Kleeman atravessa a questão do final feliz problematizando tanto a questão do ponto de vista quanto a causalidade do mundo que nos leva a concluir um sentido para as histórias a partir do seu final. O que acontece, então, quando enxergamos a série de eventos que fazem parte da vida de duas pessoas sob uma outra ordem?

Da mesma forma, a história pode ser vista através dos pontos de vista, individual ou coletivo. Este filme está dividido em três partes, pois parte de três pontos de vista: ele, ela, os dois.

Isso o torna um pouco burocrático, o que é curioso, pois do aparente caos surge uma ordem previsível e um pouco enfadonha. Para remexer um pouco os conceitos o diretor Gabe Klinger utiliza dois formatos de filme: um estreito e um comprido, quase o dobro (se não o dobro) do primeiro. Quando vemos um dos dois sozinhos, apenas enxergamos pela película apertada. Quando os dois estão juntos, o horizonte fica mais amplo.

E o que dizer da trilha sonora minimalista, mas apaixonante, que a partir de um solo de piano nos faz viajar no microcosmos deste casal instantâneo, que surgiu de escavações arqueológicas em um achado inesperado? "eu não costumo fazer isso", diz ela. Faz sentido, pois esta pequena janela da realidade dos dois é única, especial e... feliz. Sim, há felicidade em um clima melancólico. A personagem de Lucie Lucas, Mati, é melancólica em seu núcleo, e mesmo tendo um lindo sorriso, seus lindos olhos negros tornam transparente o fato de que este não é um filme de final feliz.

Boa parte dela está misturada com uma fotografia que usa grãos grandes, tornando o filme mais... artístico. Talvez um pouco mais que isso, já que a pequena grande cidade do Porto, em Portugal, faz algumas "pontas" charmosas. Além disso, o uso de uma câmera trêmula de aspecto caseiro torna tudo familiar, e por mais estranho que seja aos nossos olhos ver um romance estilizado dessa forma, o filme também repete muitos dos seus quadros para fixar a imaginação do espectador em torno do acontecimento principal. Mas voltando à câmera: não é à toa que soa caseiro. Estamos falando de uma Super8 nas cenas com formato de tela reduzido. A máquina das experimentações.

E como experimentação, Porto se sai muitíssimo bem. Como filme de gente grande, um tanto inerte, acadêmico. Mas apaixonante como estilo, aqueles momentos de descoberta do que aquele casal é permanecem. E felizmente, não por muito tempo, já que o tempo não importa. Apenas o que é vivido.


# Bench Cinema

Caloni, 2016-10-26 cinema todo movies [up] [copy]

É fácil fazer filmes que homenageiam o Cinema de uma forma ou outra. O cinéfilo e o crítico caem de pé. Porém, difícil é fazer algo com qualidade, que queira dizer algo a mais, e esteja se aproveitando da metalinguagem para isso. E esse felizmente é o caso de Bench Cinema, um filme que observa a realidade do Irã e sua censura e, nos mesmos moldes de Cinema Paradiso (outro filme que explora metalinguagem), constrói uma narrativa doce, mas dramática, sobre personagens que vivem de e para a sétima arte.

A história gira em torno de uma espécie de ator improvisado que sabe as falas de filmes clássicos de cor e salteado, e faz toda a performance dos atores principais ao vivo para o público, diálogo a diálogo. Tendo sido dono de uma locadora, seu negócio é fechado quando o governo proíbe fitas "subversivas", no que vira uma imensa pilha de fogo, assim como quando livros são queimados pelo totalitarismo. O ator é preso, e lá conhece um dublador desses filmes, que lhe apresenta um presente. Durante a prisão, nós somos presenteados com a melhor cena do filme, uma réplica do diálogo de Um Estranho no Ninho feito de uma maneira imaginativa e que recria a mesma situação sob outro contexto, com o reflexo de uma TV desligada. Essa cena é poderosa e já capta o espectador de imediato.

Uma vez liberto, o ator descobre seu tesouro. E quando menos imaginamos, ele está adentrando nos clichês, diálogos e situações que ele mesmo recria em seu trabalho. Aos poucos vai formando uma equipe e ganha um local cativo para atuar, onde nesse microcosmos até um chefe de gangue, como há em diversos filmes de gangues, começa a censurá-lo. A vida imita a arte que imita a vida.

A surpresa do filme é um violinista que conhece de cor praticamente qualquer trilha sonora, apesar de sempre tocá-las com um "sotaque" de Oriente Médio. Ele come uma monstruosidade, e é o alívio cômico da trupe. Note como aos poucos o filme explica, não de maneira didática, mas orgânica, como funciona a criação dos filmes. A trilha sonora está na figura desse violinista, e ele está sempre presente no palco, exceto quando o filme é mudo (algo que é necessário quando o ator prejudica sua garganta de tanto atuar). Eles acham também alguém para os "efeitos visuais", e uma coadjuvante mulher também entra em cena, também de maneira orgânica, para gerar tensão e assumir alguns papéis importantes, onde homem não tem vez.

Bench Cinema é um filme na maioria do tempo doce, mas sempre tem uma mensagem por trás, mesmo que em alguns momentos essa mensagem fique confusa. Seu terceiro ato vai se tornando aos poucos o mais poderoso, pois a narrativa adentra em um pesadelo (ou sonho) Kaufmaniano, onde a realidade também é pintada como nos filmes. E sua última sequência, bela e arrebatadora, é o que causou os aplausos do público na sessão onde eu estava. Aplausos merecidos por quem reverencia a arte de contar histórias.


# É Apenas o Fim do Mundo

Caloni, 2016-10-26 cinemaqui cinema todo movies [up] [copy]

O cineasta Xavier Dolan é intenso e leva tudo do seu lado pessoal para as telas. Isso já ficou claro em Eu Matei a Minha Mãe e ainda mais claro em Amores Imaginários. Agora, em É Apenas o Fim do Mundo recebemos mais do mesmo, o que no caso se traduz em um filme também de cunho pessoal. E tenso até a morte.

A história é um fiapo: escritor famoso descobre que vai morrer e volta depois de longo tempo para a casa da família contar a todos. Chegando lá, descobre que não conhece mais aquelas pessoas, e o poder que sua fama e ausência tiveram sobre seus parentes os está destruindo silenciosamente.

Quer dizer, silenciosamente até o momento em que ele pisa na casa. Ele, então, vira o sol onde todos aqueles planetas orbitam, inseguros, instáveis, falando sem parar, tentando trazer à tona o que era aquela família há muito tempo atrás. Sem sucesso. O que era uma vez uma família feliz viajando para a praia todos os domingos no carro surrado do irmão mais velho se transforma nas sombras do passado lutando com os egos do presente. Egos estes atordoados (a mãe), angustiados (a irmã), irritados (o irmão) e fascinados (a cunhada).

Conseguimos reparar no tempo que ele esteve fora pela formalidade de sua cunhada, que o chama de Sr. constantemente e fala do filho como se tivesse acabado de nascer. O olhar de desespero de Mario Cotillard é de fascinação ao mesmo tempo. As longas pausas e os sustos recorrentes antes das conversas entre os dois aumenta ainda mais essa estranheza.

Da mesma forma, a irmã tenta esconder o longo hiato de comunicação entre eles, ficando chapada e colocando uma música que deve ter sido um hit na época em que os dois ainda se viam. Porém, nada tira seu olhar cabisbaixo e a posição de ovelha desgarrada, de cão abandonado, que deve ter ouvido sua mãe falar sobre seu irmão por muitos e muitos anos.

E sua mãe... esta é a versão mais madura do trauma da saudade. Inquieta, com lapsos de memória e audição, tenta dançar uma música brega com a filha para animar seu filho querido, em uma demonstração de até onde chega a humilhação e a adoração de um ser humano, e como o filme transforma um momento tenso em um momento leve em questão de segundos. O único e último momento leve de todo este pesadelo astral.

E o responsável por catalisar, alavancar e sintetizar toda essas frustração e ódio, na figura de alguém disposto a estragar todo segundo de esperança de que "tudo dê certo" nessa visita (se é que existiu, em algum momento, a definição de dar certo) é a figura do irmão mais velho, vivida de uma maneira enérgica até o limite do caricato (mas sem nunca ultrapassá-lo) por Vincent Cassel. Sua capacidade de antipatia, sarcasmo e indignação beira o ridículo, e é justamente sua incapacidade de traduzir esse sentimento em palavras que torna sua performance arrebatadora. Quando ele aponta no ar, quase querendo capturar uma expressão dita pelo seu irmão, exclamando: "isso! Exatamente isso que eu quero dizer", ele luta de todas as formas para que o irmão consiga entender a coisa mais simples do mundo: acabou.

Acabou não apenas a vida do escritor, mas qualquer possibilidade de vínculo deste com o que foi um dia sua família, seus amigos, sua base afetiva. Seu primeiro namorado morreu de câncer, diz seu irmão mais velho da maneira mais impessoal possível. Esse é o nível de conexão entre essas pessoas. Beira o negativo.

E o diretor Xavier Nolan mostra tudo isso como ele nasceu para mostrar: com luzes intensas, closes de perfis tentando dialogar ao menos com os olhos, já que as palavras inexplicavelmente escapam do famoso escritor. Ele tenta olhar de frente, ensaiando um sorriso calado, para pessoas que não reconhece mais. Seu irmão, o único com memória, nunca o encara de frente, exceto em um único e com um único objetivo: acertá-lo um soco com punhos já marcados, denotando a agressividade inata que agora desperta com a "família unida".

A trilha sonora, como sempre, é um presente à parte. Não apenas pela seleção de músicas, mas pelo tom dramático de um Almodóvar existencial, tornando cada cena um duelo de egos em um palco de teatro. O roteiro foi baseado em uma peça, e o filme intensifica ainda mais as atuações dos personagens. Até o design de som reforça isso, com o relógio cuco simbólico na entrada da casa, marcando as horas com um susto e os segundos gota-a-gota; eles vão se esvaindo conforme o movimento das pupilas da mãe pousando nos olhos do filho.

Xavier Dolan continua sendo o cineasta mais pessoal e intenso do Cinema contemporâneo. Ele força seu espectador a entrar no jogo a qualquer custo, e para o cinéfilo desafia a encontrar falhas na emoção meticulosamente medida quadro a quadro (Dolan também é o montador). Como competir com isso, quando o retorno do diretor é comparado ao retorno de um filho famoso e moribundo? Pelo menos, diferente do filho, o diretor ainda conhecemos. Ele não mudou muito desde a estreia. Esse pode ser seu ponto fraco para o futuro. Vamos observar se o personagem de Vincent Cassel consegue capturar esse detalhe. Até porque nos filmes de Dolan, pessoal e artístico se combinam em um mosaico que se torna universal.


# Terra Prometida

Caloni, 2016-10-26 mostra cinema todo movies [up] [copy]

Uma farsa deliciosa dramatizando o apocalipse enxergado por Karl Marx. Mostra os capitalistas inescrupulosos sem valor à vida humana para defender o comunismo que dá valor aos humanos como ferramenta de sacrifício. Não é um filme para levar a sério, mas como qualquer propaganda vermelha que se preze, ela tem que ser dramática; quiçá hilária. Na verdade, é de uma série de filmes do diretor que ridiculariza a propaganda soviética.

O diretor, polonês, e homenageado desta Mostra, criou este drama sob o filtro romântico e manipulador dos políticos comunistas de sua época, que discursavam sobre a "pobreza gerada pelo capitalismo", "forte desigualdade" e todo o pacote que hoje em dia infelizmente é levado a sério. O diretor então distorce ainda mais as lentes desse filtro (assim como as de sua câmera), transformando a burguesia no que era a nobreza: porcos ignorantes, desprezíveis, estúpidos, imorais, desumanos e mesquinhos. Nada pode ser levado a sério em um filme que não se leva a sério, exceto a piada que é feita do outro lado. Em determinado momento, um personagem, após aplicar um golpe, senta-se no chão, dá uma risada de satisfação e acena para a câmera, para o espectador.

O filme de quase três horas é filmado como um épico fantasioso, e é delicioso de se ver. Com uma trilha sonora empolgante e movimentos de câmera dinâmicos, a história nunca para. Seus personagens são enérgicos e estão sempre gritando. A cor é exagerada, sobretudo o vermelho do sangue derramado do proletariado, pessoas do mesmo sangue das famílias judias que concentravam capital. O figurino é caracterizado com cores berrantes para a burguesia, o frio azul e marrom para os trabalhadores. Há um charme arrebatador nos muros e portões das fábricas, assim como suas chaminés, eternamente enfocadas por Andrzej Wajda e eternamente soltando fumaça.

A atuação de todos os homens é exagerada, e os anjos, como uma mulher que pensa no ser humano, é vista como íntegra e a única heroína que se preza. No meio temos todo tipo de traição: adultério, incêndios criminosos, golpes financeiros. Mas todos são bem-humorados ou afetados, o que torna tudo impressionista. As máquinas frequentemente cortam e espremem carne humana, jorrando sangue e desprezo dos patrões, que reclamam que sujou tecido bom.

De caricato temos sobretudo um trio de amigos, os personagens principais, que passeiam por essa miscelânea de criaturas. Eles querem fundar uma sociedade e começar um negócio, uma fábrica de tecido. Cada um deles possui absolutamente nada, o que, para eles, "somados é o suficiente", como uma bela inversão da ideia marxista que a burguesia roubou algo do proletariado. Suas aventuras para conseguir o que querem são despretensiosas, mas possuem a energia da vida. Pode existir um certo drama e uma certa crítica, mas esse filme é quase em sua maioria uma comédia utópica. Uma deliciosa comédia utópica. À luta, camaradas!


# Black Mirror - S03E03 - Shut Up and Dance

Caloni, 2016-10-28 cinema series [up] [copy]

Após um episódio medíocre, Black Mirror volta a fazer história com a tecnologia atual. Sem apelar (muito) para o futurismo, conta a história de como quem não vive através da verdade vira refém dos outros, além de jogar o público a favor dos roteiristas usando a moral da sociedade como pêndulo de justiça (isso nunca dá certo).

A história começa com o jovem, ingênuo e introvertido Kenny (Alex Lawther), que é solitário no trabalho e usa seu computador para estravasar seu apetite sexual de adolescente. No entanto, um vírus que se instala em seu notebook faz com que sua web cam fique disponível para que atacantes invadam sua privacidade, o chantageando através da ameaça de publicar seus momentos íntimos para todos seus contatos. Kenny então entra em um dia de martírio, onde conhece pessoas também atingidas pelo vírus, todos realizando ações mecanicamente para evitar ser revelados.

O roteiro de William Bridges e Charlie Brooker só se torna eficiente através das mãos do diretor James Watkins, que realiza um trabalho tenso, imediatista, através do uso de câmeras colocadas em objetos manipulados pelos personagens (como bicicletas) e o uso de cortes rápidos, que muitas vezes deixam o espectador meio desorientado. Exatamente como os personagens, que vão cambaleando de um lugar a outro seguindo instruções recebidas em seus celulares, vendo onde estão através de seu GPS.

Mas é a atuação de Alex Lawther que de fato entrega o grande prêmio do episódio, que se revela maniqueísta, mas ainda assim, eficiente. Lawther possui uma cara confiável e ingênua, e consegue tremer como ninguém, trazendo o inquietamento do episódio para fora da tela com facilidade. Seu rosto branco logo se torna vermelho, e de fato acreditamos que o sujeito, prestes a assaltar um banco, está mijando nas calças.

A história mexe com alguns conceitos fascinantes, mas para mim o maior deles é a mentira. A mentira é imoral porque faz as pessoas serem reféns de uma não-realidade, que precisam proteger a todo custo. No caso do episódio, não podemos relevar a intensidade que as pessoas podem ser autênticas por causa de alguns de seus atos serem crimes (embora sem vítima; portanto, ilegítimos, como pedofilia). Porém, como um caso geral, quem tem algo a esconder não tem o direito de não ter toda sua persona revelada, mas apenas o dever de se proteger. E uma vez revelado, o indivíduo tem uma escolha: ser íntegro a si mesmo e assumir quem é através de seus atos, ou continuar vivendo uma mentira, sendo escravizado pelos outros que o mantém nessa pseudo-realidade em que são obrigados a viver por não serem seres humanos completos.


# Black Mirror - S03E04 - San Junipero

Caloni, 2016-10-28 cinema series [up] [copy]

Já estava na hora da série Black Mirror enfocar uma questão altamente relevante e discutida entre os aficionados por tecnologia futura: a imortalidade. Dentre as diferentes formas, eles escolheram a perfeita para o romance que pretendem retratar em um arco ambicioso, tudo em apenas uma hora. Abaixo uma breve descrição COM SPOILERS.

Como sempre, os sempre habilidosos roteiristas utilizam a descoberta aos poucos do que estamos vendo, muito embora, se você já conhece a série (estando na terceira temporada, no quarto episódio, isso é muito provável) fica difícil tentar se desvencilhar do óbvio: é claro que estamos falando do futuro.

E nesse futuro as pessoas podem escolher parar de viver na realidade e serem colocadas em um mundo fictício, computadorizado. Um servidor de humanos. As pessoas envolvidas na história já sabem disso; o espectador não. É quando conhecemos a jovem e aparentemente tímida Yorkie (Mackenzie Davis) e a extrovertida, divertida e charmosa Kelly (Gugu Mbatha-Raw). Ambas se conhecem em um bar nos anos 60, mas Yorkie parece uma turista chegando na cidade. Como aos poucos percebemos, Kelly está interessada afetivamente em Yorker, mas não de uma maneira de longo prazo, o que frustra não apenas ela, mas aparentemente outras pessoas da cidadezinha.

A forma como essas duas pessoas vão se relacionando é vital para o sucesso do episódio. E é aí que está o poder da série como um todo: ter paciência para desenvolver seus conceitos e, principalmente, seus personagens. E nesse caso o episódio dá todo o tempo do mundo para os personagens, e a tecnologia... bem, eventualmente entenderemos como tudo funciona. Mas isso é secundário, assim como os efeitos visuais.

Mas nem por isso eles são desleixados. Uma direção de arte absolutamente encantadora consegue nos trazer tanto aos anos 60, 80, 90 e 2000 quanto em um futuro longínquo, mas tudo parece ser o mesmo cenário retraduzido para sua época. E, mesmo assim, os cenários passados mantém uma aura ficcional, pela falta de desgaste e pelas cores primárias mais fortes, e mesmo que estejamos vendo a evolução através dos jogos que rodam nos fliperamas -- um toque charmoso ao roteiro -- eles estão sempre no canto do bar, com poucas pessoas em volta e parecem praticamente novos.

Conseguindo também não apenas desenvolver com sucesso seus personagens, mas reintroduzi-los na realidade e fazer-nos acreditar que são suas versões reais (e para isso a atriz Denise Burse presta um grande serviço imitando alguns trejeitos de sua versão mais jovem com sutileza, mas propriedade), e, ainda por cima, conseguem introduzir um grande conflito emocional, não só entre elas, mas para os mais atentos à questão filosófica que está em jogo: mortalidade digna ou imortalidade em um mundo irreal? Porque, no fim das contas, um servidor de humanos irá conter nada menos que um cemitério glorificado, um lugar onde não haverá progresso (pois tudo já foi feito, e os recursos não são escassos), e mesmo que as pessoas se divirtam fingindo que é, as mais espertas saberão que tudo aquilo é em vão, apenas uma fuga niilista. Enfim, a questão é extensa, mas o episódio consegue arranhá-la com sucesso, além de manter as opiniões em aberto (outra grande virtude da série é não decidir nada pelo espectador, mas fazê-lo pensar a respeito).

Enfim, um episódio para degustar quando precisar debater consigo mesmo, além de um ótimo romance futurista que envolve questões muito, mas muito mais profundas que O Homem Bicentenário. E isso em apenas uma hora.


# Dolores

Caloni, 2016-10-28 cinema todo movies [up] [copy]

Este é um filme feito para a televisão, com um orçamento baixo, mas com grandes ideias. Ele repete os passos hitchcockianos e seus mistérios fantasiosos, mas com pouco jeito. Se tratando de um filme que é sobre a cópia perfeita da realidade, este Hitchcock queimou um pouco no forno.

Mas o maior problema seja a trilha sonora. Jörg Lemberg imita um Bernard Herrmann (Psicose, Um Corpo que Cai) em todos os acordes. Se torna quase um Psicose de Gus Van Sant, que reproduz com fidelidade o clássico de Hitchcock, quadro a quadro. Surge a estranheza dessa imitação, sobre um filme que é sobre imitação.

A história gira em torno de Georg Letterer, um modelador de miniaturas feitas com os mesmos materiais do original e com perfeição. Ele faz um avião da segunda guerra que voa de verdade, mas ninguém enxerga suas habilidades. Quando a atriz mundialmente conhecida Dolores Moor quebra seu carro bem em frente à sua casa e de seu irmão doente (que ele cuida assim como fez com sua mãe), Letterer tem agora uma nova cliente e uma nova obsessão: fazer uma réplica perfeita da casa da atriz.

O roteiro de Sebastian Feld tem várias esquisitices que não são suficientemente desenvolvidas, mas a história principal caminha independente disso. A fantasia daquela realidade, onde a réplica começa a ser o controle que Letterer possui sobre aquela casa -- e, consequentemente, sobre seus ocupantes -- é fascinante demais para que os detalhes importem tanto assim.

A direção de Michael Rösel é a maior virtude do filme, pois além de também replicar terrores famosos (A Mosca da Cabeça Branca), suas transições entre o modelo e a casa são sempre significativas. Filmando com uma profundidade de campo reduzida, mas sempre com um foco completo, a impressão é que cada vez mais aquelas pessoas perdem os detalhes que a tornam... pessoas, e os modelos, vistos em planos-detalhes, se tornam cada vez mais reais.

Não conseguindo extrair uma grande lição de uma grande ideia, o filme ao menos diverte e entretém de uma maneira empolgante e visceral. Ele não se atém à loucura de seu protagonista, mas a alimenta cada vez mais. Um pequeno achado, esquecível, talvez, mas nunca a sua ideia.


# Hee

Caloni, 2016-10-28 cinema todo movies [up] [copy]

Uma ideia interessante, estruturada de maneira interessante, e executada desleixadamente. Tem a ver com sexo, tem a ver com drama, tem a ver com crime. E isso é motivo de sobra para a diretora Kaori Momoi se achar a fodona e deixar todos nós entediados.

Porém, veja bem. O filme é um confessionário com um psiquiatra que começa a ser influenciado pelo "fogo" da testemunha-chave: uma prostituta japonesa meio ninfomaníaca (a própria Momoi) que mora em solo americano já há algum tempo, mas não soube usar sua boca para falar inglês (estava ocupada fazendo outras coisas). O roteiro no começo tenta torná-la vítima das circunstâncias -- o que ela é -- mas ele insiste tanto que ela acaba ficando com a impressão de ser apenas uma vadia, mesmo.

As câmeras duplas, o consultório do doutor com o detetive sentado ao lado; os inúmeros movimentos de câmera, lento, excessivos, tentando sair do marasmo, fazem o possível para tornar o seu monólogo minimamente interessante. Porém, o texto composto por quatro roteiristas (incluindo Momoi) não consegue encontrar o ponto-chave que liga a aparente loucura da protagonista com seus relatos. Falta uma alma que conecte o que ela sofreu para entendermos qual é o verdadeiro drama.

Sem isso, se torna uma tentativa estéril (trocadilho intencional) de reproduzir uma Ninfomaníaca (Lars von Trier) embutida em um thriller de quinta categoria.


# Marie e os Náufragos

Caloni, 2016-10-28 cinema todo movies [up] [copy]

Um filme que atravessa o indie usando uma metalinguagem Kaufmaniana, descobrindo seus personagens no percurso, realizando uma trama eficiente que, por mais absurda que seja, mantém sempre o interesse do espectador.

Tudo começa com Siméon, um rapaz desajustado que entra em um bar em Paris e é abordado casualmente por um viajante carente. Ambos cantam no karaokê e se despedem, deixando Siméon com uma triste notícia sobre o recém-amigo. A intensidade da cena muda de acordo com a versão que é tida como verdade, e é sobre isso o filme.

Cada um dos seus personagens se apresenta em um momento, quebrando a quarta parede e apresentando seu background. Como nos livros. E o filme é sobre um autor de livros, que faz uma pesquisa pessoal para descobrir novas histórias. A obsessão de Siméon e a do próprio escritor pela jovem Marie é o tema do filme/livro, mas o autor só vai descobrir isso até o final.

Com personagens um tanto bizarros (esse é o lado indie), como um amigo que se torna sonâmbulo durante um novo projeto para criação de uma música eletrônica, o diretor Sébastien Betbeder faz aqui uma comédia divertida, leve, que utiliza o que tem ao seu redor para criar um universo característico, que enxerga detalhes nas pessoas que atravessa -- como a recepcionista do hotel, sempre ouvindo hip hop -- e se importa com elas, pelo menos em mostrar que elas existem, estão lá, mesmo que sejam passageiras e não tenham muita relação com a trama principal (exceto, claro, a música).


# O Contador

Caloni, 2016-10-28 cinema todo movies [up] [copy]

O Contador é um filme que se divide em duas metades. A primeira metade é envolvente e possui uma forma de contar histórias de maneira inteligente, embora óbvia. A segunda metade se abstém em servir como catarse para os fãs de filmes de ação e Ben Affleck.

O curioso é que a ação, embora implícita na primeira metade, se torna muito mais eficiente por conhecermos melhor o protagonista, e o espectador "preenche as lacunas" com sua imaginação. Afinal de contas, a sequência do massacre inicial é tenso justamente por apenas ouvirmos os tiros e pessoas caindo, e vermos alguém adentrando o prédio onde ele acontece apenas por suas pernas e seu movimento cuidadoso ao subir as escadas e cruzar o corredor. Uma das melhores cenas de tensão do ano, por sinal.

Nesse sentido, a segunda metade, embora cheia de ação, é explicita e confusa, com exceção de uma sequência que se passa em uma fazenda (mais uma vez: eficiente por causa dos personagens, nunca pela ação em si). Aliás, a grande "revelação do filme" (que sequer é revelação de tão óbvio) encontra o seu pior momento para acontecer, embora seu desfecho seja bem-humorado (e descerebrado). Por isso, ao analisar o filme como um todo, cada vez faz mais sentido dividi-lo e encará-lo em inteligente enquanto se concentra em personagens e ação genérica quando vemos apenas socos e tiros burocráticos.

Até porque o grande esquema desmascarado pelo contador do título é tão vago e faz tão pouco sentido para o espectador médio que está aí só para mais uma vez colocar as grandes corporações como grandes vilãs. Só isso para justificar a pressão exercida por certo personagem para que um investidor pare de "vender a descoberto". Deixa eu repetir pra ver se faz mais sentido: ele vem com uma arma e seus punhos e intimida um investidor para parar de vender a descoberto.

Por isso vamos nos concentrar na história de vida do grande personagem-chave destra trama: O Contador. Ele tem vários pseudônimo, a maioria derivada de famosos matemáticos. E entre Charles Babbage e George Boole, sempre Boole, lógico (ele foi o criador da lógica booleana). O heroi da trama é autista e teve uma infância difícil, mas aprendeu com o pai a se defender e criou uma vida à prova de bandidos e aproveitadores (incluindo o governo), pois ele trabalha para organizações criminosas para lavar seu dinheiro.

O que nos leva a uma questão relevante da trama: a priori ele não faz nada de errado. Lavar dinheiro é tão criminoso quanto sonegar impostos (ou seja: só é porque o governo diz que é). Dessa forma, ele acaba até ganhando a simpatia do policial que está para se aposentar (sim, eles usam esse clichê, embora de maneira funcional). Mesmo que este trabalhe para o Tesouro, há algo que fascina o oficial Ray King (J.K. Simmons eficiente como sempre). É por isso que ele pede para alguém que manterá a operação de busca de identidade do sujeito em silêncio, a analista Marybeth Medina (uma desinteressante Cynthia Addai-Robinson).

E Ben Affleck ganha através da introdução de seu personagem pelo ótimo Seth Lee (que o vive na infância) o suporte necessário para que sua persona fechada, sempre desviando o olhar e com comentários secos e impessoais, ou observações pessoais extremamente mecânicas ("você está zangado", fala ele para um cliente ao observar sua feição). Ainda assim, é um papel estereotipado, que só funciona graças aos movimentos de câmera do diretor Gavin O'Connor, que consegue tornar quase todo personagem interessante apenas deixando pouco tempo de tela para eles (embora haja momentos em que suas atuações sejam eficientes por mais tempo; notadamente quando o filme foge da ação para estudar seus personagens).

E se disse que quase todo o elenco é eficiente, é porque a função da contadora Dana Cummings se torna periférica demais para que ela sequer exista na trama. É como se o roteirista Bill Dubuque, que faz um ótimo desenvolvimento inicial, fosse obrigado a inserir um pretenso par romântico para Affleck porque sim. Dessa forma, ela é a menina que desconfia haver algo de errado com a contabilidade da gigante empresa Living Robotics (um nome nada sutil para um filme com um autista como protagonista), e é ela que irá correr perigo para que Affleck a salve (sabe lá deus por que alguém se preocuparia com ela).

Porém, nem tudo é medíocre. A direção de arte que cria o personagem de Affleck o torna um ser curioso em poucos segundos, apresentando sua precisão em abrir e fechar a garagem elétrica de sua casa (e um espaço milimetricamente planejado para seu carro), além de um espelho quadrado que enfoca apenas o que Christian Wolff precisa ver, ou até seus talheres na cozinha, limitados a um garfo, uma faca e uma colher, igualmente separados em sua gaveta. Além disso, o controle financeiro do sujeito é admirável. Só faltou ele ter alguns bitcoins salvos em diversas contas para se proteger caso tudo dê errado.

Visto de trás pra frente, O Contador é um excelente estudo de personagem e de quebra um estudo do seu tempo, elevando a posição dos autistas (e, em sua maioria, habilidosas com matemática e lógica) em pessoas-chave para uma sociedade próspera. Infelizmente, as cenas de ação não são lá aquelas coisas, e os closes, importantes no estudo de personagem, apenas atrapalham quando a câmera treme e os cortes aumentam. De toda forma, se você está mais interessado no drama e menos nos tiros, é uma boa pedida. Mesmo que você não seja fã de Ben Affleck.


# Umrika

Caloni, 2016-10-28 cinema todo movies [up] [copy]

Este é um drama bem construído que envolve uma família indiana e as dores da separação e da ilusão entre eles. Às vezes apela para a emoção (principalmente no final), mas em sua maioria é uma trama bem desenvolvida e que merece o título de um indie que não soa indie, pois foge das fórmulas mais comuns e acaba caindo em um pesado sonho indiano pautado no americano. Ou deveria dizer umrikaniano?

A história gira em torno de Lalu, irmão mais novo de uma família de um vilarejo onde o irmão mais velho sai em busca de uma vida melhor nos EUA. Primeiramente fonte de saudades incuráveis da mãe, e sem resposta por muito tempo, eventualmente eles começam a receber correspondência, no que são cartas de um Marco Polo ao contrário, descrevendo as maravilhas de um mundo à frente do vilarejo onde cresceram, embora ninguém tenha muita certeza de por que.

Evitando usar a Índia e a cultura indiana como muleta para se vender em festivais mundo afora, o diretor e roteirista Prashant Nair prefere a tarefa mais difícil de fazer o espectador se interessar pelo pequeno Lalu, que se torna um jovem responsável e decide ir atrás do irmão para descobrir o que está acontecendo com ele, onde necessariamente ele irá trilhar seus mesmos caminhos. A narrativa não tem pressa, mas mantém sempre um ritmo de descobertas que mantém o espectador atento. Tudo é novo para Lalu a partir do momento que ele sai do vilarejo de onde nunca havia saído, mas ele aprende rapidamente o que deve ser feito, em um ótimo exemplo de quando a necessidade é a mãe de qualquer força de vontade.

A direção de Nair é competente, utilizando construções de cenas tradicionais para dramas, como a filmagem em primeira pessoa, a transposição de personagens em diferentes campos, o uso da luz para significar esperança (ou a falta de, note como quando Lalu se aproxima da parte obscura de suas entregas informais a luz começa a fazer falta no ambiente). Metalinguístico, o filme utiliza a tela umas duas ou três vezes para estabelecer a fixação indiana pelo Cinema (seja ele clássico, noveleiro ou de ação, como em uma sequência impagável de Indiana Jones e o Templo da Perdição).


# A Causa e a Sombra

Caloni, 2016-10-31 cinema todo movies [up] [copy]

Um filme sobre as pessoas torturadas e presas pela ditadura no Brasil nas décadas de 60/70 que se esquece de avisar ao espectador qual era o grande medo da população e dos militares caso os "revolucionários militantes" chegassem ao poder. Na verdade, é pior, pois se ao menos o filme se mantivesse centrado apenas no aspecto humano seria minimamente interessante, além de servir de alerta sobre a falta de limites do Estado. Mas é claro que ele precisa pintar aquelas pessoas como verdadeiros mártires, algozes e inspiradores de justiça, o que explica parcialmente a motivação dessas pessoas (só queriam ajudar os miseráveis, claro) quando no fundo se tornaram terroristas quando descobriram que não havia concordância nos planos mais gerais de ataque a Brasília.

O núcleo da história é Alípio de Freitas, um ex-padre português que, vendo a miséria brasileira (e comparando com a pobreza de Portugal) se torna um militante de esquerda com a ajuda da classe média paulistana (mas a boa classe média, não a fascista). Juntos montam diversos esquemas, se reúnem, formam grupos. Tudo para frustrar os planos da CIA e do governo militar (evitar ataques comunistas em plena Guerra Fria). Com o tempo vão sendo capturados e torturados para revelarem informações sobre os grupos formados. Muitos permanecem presos para servir de lição para os outros e para se manterem fora de circulação.

A direção de Tiago Afonso é competente ao conseguir trazer uma narrativa com fluidez, em uma história que é contada aos poucos por cada um dos envolvidos. Juntos eles conseguem formar um mosaico que recria parte dos acontecimentos daquela época, como eram realizadas as torturas e como cada um reagia ao horror da violência humana. Abrindo e fechando a história de forma coerente, o filme em si, como contador de histórias, não é ruim, pois possui uma cadência interessante.

E o filme se passa quase como uma série de conversas informais, o que acaba se tornando agradável. Além disso, os entrevistados, apesar de não serem bons no dom de falar, transformam a falta de eloquência em simpatia. O próprio Alípio, apesar de cheio de cacoetes ("pois"; "etc, etc") e pausas desconfortáveis, mantém um discurso sucinto que descreve até com certa precisão tanto a organização dos militantes quanto o que acontecia com os presos políticos.

Então, o que torna o filme ruim? Ideologia, basicamente. Mutilado para dar a sensação que todos da esquerda possuem até hoje -- que os torturados foram heróis porque foram... torturados -- o roteiro de Afonso convenientemente ignora não só os reais motivos dos revolucionários (instituir o comunismo no Brasil) como coloca no lugar a mesma visão que a esquerda tem de figuras como Che Guevara; não como o homofóbico assassino e covarde da revolução cubana, mas como o herói das massas, o médico humanitário, o aventureiro da América Latina.

E esse tipo de pecado é difícil de ser perdoado em um documentário em plena época da internet. Aliás, a própria visão da esquerda é tão imperdoável quanto o falso moralismo da direita nos dias de hoje. Fica quase impossível forjar heróis que não sejam da ficção, como a empregada do panfleto comunista de Que Horas Ela Volta? Esse, sim, é um filme feito para enganar. E esse sim merece todos os louros pela sua bem elaborada fantasia.


# Haymatloz - Exílio na Turquia

Caloni, 2016-10-31 cinema todo movies [up] [copy]

Este é um documentário quase televisivo, descritivo, que não tem praticamente nada a falar. Burocrático do começo ao fim, tem por objetivo uma homenagem aos professores expulsos da Alemanha Nazista que lecionaram em Istambul, na Turquia, além de alguns na Suíça. Seus filhos e netos voltam, então, às origens e o que vemos acaba por aí.

Sim, há longas descrições dos descendentes dessas pessoas, uma piadinha ou outra pelo fato de serem Judeus e Turcos, de serem mal vistos em ambas as culturas. Passadas sete décadas da segunda guerra, o sionismo ainda encontra mais um local para ser reverenciado.

Coincidentemente, a fundação de faculdades e universidades em Istambul, além de um regime progressista, é ter criado o clima propício para que esses professores de diferentes áreas de ensino surgissem como as referências iniciais dessas escolas do conhecimento. O progresso coincide com uma política secularista, mas o documentário e suas testemunhas deixam claro que reconhecem muito a presença do Estado como uma religião importante para o desenvolvimentismo da região, mesmo que estudantes sejam atacados hoje durante protestos e, assim como no Brasil, a população se sente insegura na presença de policiais.

A diretora Eren Önsöz faz questão de tornar toda a narrativa monótona do começo ao fim, retomando os mesmos temas (política, cultura, família, história) várias vezes, de forma que não há como o espectador reter uma linha de raciocínio específica, fazendo com que, mesmo como um programa para informação pura e simples, o filme seja esquecido assim que saímos da sala.

Além disso, as diversas incursões pela nostalgia dos filhos dos professores é lenta e vazia, pois sequer compara o antes e o depois, tornando toda a experiência um show de desinformação contemplativa.


# Sonar

Caloni, 2016-10-31 mostra cinema todo movies [up] [copy]

Este é o segundo filme que vejo na Mostra com um personagem que grava sons do ambiente (o outro é O Que Restou da Minha Vida). Sonar escolhe falar sobre uma imigrante mulher de um país africano que ainda trata mulheres como submissas. O interessante é que, considerando o que o filme faz dessa personagem, não temos pista nenhuma que nos faça evitar em pensar que, no fundo, ela também seria no Ocidente como apenas mais uma vadia.

Resgatando sua história através do editor de som Wyatt através de testemunhos das pessoas que conviveram com a jovem e manipuladora Leïla, o roteiro do diretor estreante Jean-Philippe Martin divide atenções entre Wyatt e Leïla, já que se por um lado a história principal é de Leïla, é a história de vida de Wyatt que surge no meio, como a gravação do perfil de uma ex-mulher em sua vida dá a entender. Dessa forma, há um filme que, dividido, não consegue se sair bem contando a história de seus personagens, já que até o chefe do introspectivo Wyatt contém um background mais interessante.

Já a direção de Jean-Philippe é correta, poética e enfadonha até a morte. Seu uso de closes, câmera subjetiva tremendo apenas é aceitável quando intercalada com tomadas mais simples, que incluem o cenário, ou até as belas panorâmicas de Marrocos. Com uma fotografia que mistura frio e quente entre os ambientes, não sabemos o que o filme quer dizer, exceto ser um trabalho mais profundo do que na verdade é. Além disso, mesmo sendo idealmente um filme sobre os sons -- humanos ou não -- curiosamente a trilha sonora é quase completamente suprimida, exceto uma música branca para gerar transições. Além disso, os sons capturados por Wyatt de nada adiantam para desvendarmos o filme, pois o som ambiente tanto da França quanto da África se confundem. Ouvir pássaros e grilos se torna uma tentativa patética de dar vida aos cenários externos.

Ao final, somados os prós (direção correta) e contras (quase todo o resto) o filme ainda consegue ser assistido sem maiores percalços, o que é uma forma bonita de dizer que o espectador não vai morrer de tédio durante a sessão, mas tão pouco irá morrer de amores. Para um filme que brinca com o som, algo virtuoso na arte do Cinema, acaba se tornando para o espectador médio ruim e medíocre, mas para o cinéfilo decepcionante.


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