# Vídeo: Resolvendo problemas em projetos desleixados
Caloni, 2016-09-01 computer videos blogging [up] [copy]Quem nunca teve que mexer em um projeto cheio de bugs de compilação, péssima organização, documentação e nomes de funções, classes e argumentos? Que você acaba de baixar em sua máquina e ele não compila (e você não tem a mínima noção por quê). Que a equipe que trabalha com você ouviu falar do projeto, mas nunca arregaçou as mangas e organizou. Que tal fazer isso agora?
Nesse vídeo eu exploro alguns dos erros mais comuns de projetos desleixados. Esses projetos em que o programador só se preocupa em entregar as coisas, e deixa os problemas de manutenção para o próximo trouxa que irá mexer com ele. Esse rapaz ou moça não usa a metologia PMF, que eu expliquei no artigo anterior. PMF quer dizer entregar as coisas com qualidade. Eles usam uma outra metodologia que também é simples, mas que traz gravíssimos problemas a médio e longo prazo (a despeito de ser divertida):
Pra começar, projetos que não compilam ou cheio de warnings são um sinal de que há algo de pobre no reino do GitHub. Ou é algo feito nas coxas ou é um projeto mal mantido ou é fruto de programação instintiva, que não pensa nas consequências de seus atos.
Depois, o sujeito usa headers com nomes complicados, inclui 2.653 headers diferentes (e duplicados) quando usa apenas dois, inclui headers do boost com nomes estranhos sem dar dica alguma de onde vieram. Cria funções que recebem s1 e s2 (e se chamam func2). Enfim, o pacote completo de desleixadas.
E por último, mas não menos importante: INCLUI BINÁRIOS NO GIT! TEMPORÁRIOS!
Pensando bem, meu exemplo fictício está bonito demais perto do que existe por aí. Bom, ele tem poucas linhas. É tudo questão de tempo e (des)empenho.
# Eungyo - A Musa
Caloni, 2016-09-04 cinema movies [up] [copy]Uma relação entre uma jovem de 17 anos e um velho escritor aclamado de 70 anos é o tema deste drama que começa lúdico, se desenvolve com uma temática ambiciosa com uma crítica de nossa geração, e termina com um inesperado thriller. Ele é longo demais quando na verdade está apenas inacabado.
O roteirista (e diretor) Ji Woo Chung está brincando com as sensações que giram em torno do mundo do romance e da poesia, pois desde que a lolita Han Eun-gyo (Go-eun Kim) aparece se balançando na cadeira do velho homem tudo lembra o literário, a ficção. E a poesia. Ela está desenvolvida na prosa, pois são os diálogos de Lee Juk-Yo (Hae-il Park), o escritor aposentado, que através da poesia representam a conexão que este faz com a intrometida jovem, através do uso da figura de um lápis para significar diferentes pontos de vista para a mesma coisa. E quando isso nos remete à leitura que o aprendiz Seo Ji-woo (Mu-Yeol Kim) faz durante o lançamento de seu primeiro livro e best-seller, não é difícil perceber que enquanto a garota está tentando descobrir um mundo novo através dos olhos do velho, o jovem escritor de sucesso, enquanto ajuda o mestre nos afazeres do lar, se aproveita para sugar o que ele tem a oferecer de suas décadas de aprendizado. E, por que não dizer, parasitar?
E é justamente sobre esses diferentes pontos de vista que o longa de Ji Woo Chung orbita. Criando tensão através do imaginário do velho, que enxerga detalhes da vida que havia esquecido até conhecer a juventude "fresca" novamente -- e que Ji Woo Chung representa através de belos detalhe de cada elemento em cena, como sua visão debaixo das cobertas. A melhor sequência do longa se encontra bem no começo, quando Eugyo de fato vira inspiração para que o velho volte a compor um conto em prosa. É uma montagem inspiradíssima, que começa inocentemente e vai se desenvolvendo através de um sonho e volta para a realidade, entregando toda a informação para o espectador apenas de maneira visual, sem qualquer diálogo expositivo.
O resto da trama é cozida na fórmula de romances de best-seller, mas aqui e ali vemos o filme tentando delinear alguma crítica construtiva a respeito de como a geração anterior tinha um valor que hoje é traduzida apenas em fama e sucesso, e como criações artísticas estão perdendo sua conexão com a realidade -- nem que seja uma realidade inventada -- e como a automatização de resultados em um mecanismo complexo, mas previsível (leia: engenharia) entrega o resultado mais eficaz e mais vazio de todos, pois é apenas uma réplica da réplica da réplica. "Todos os espelhos são iguais", diz o engenheiro que se tornou um escritor de sucesso. Apenas o olhar do velho e habilidosíssimo Hae-il Park é capaz de expressar a indignação em torno do que vê, não na forma de revolta, mas de uma desilusão melancólica, quase depressiva, mas ainda disposta a observar o mundo em sua volta, custe o que custar.
Observação essa que para a geração atual não tem valor, pois é "difícil demais" em um mundo que já te entrega tudo pronto através dos milagres da tecnologia. O que importa mesmo é o reconhecimento por algo, não importando se esse algo é legitimamente fruto de seu intelecto ou apenas resultado de uma ambição desmedida, que atravessa tudo em alta velocidade, não se importando em quantos idosos ou reflexões únicas são atropelados no caminho.
"A Musa" tenta voltar atrás e tornar as coisas mais otimistas, o que é um erro grave para uma produção tão próxima de entregar o máximo de valor em uma obra do gênero: a análise profunda de uma geração através de um trio amoroso de criador, criatura e parasita. O filme começa a se divertir com a ideia de thriller nos minutos finais, e embora tenha sua "licença poética", ele acaba voltando atrás em suas ambições tão bem colocadas no filme do meio.
O que chega a ser uma pena, mas que ao mesmo tempo também é um reflexo do que essa geração espera também da sétima arte: respostas simples, prontas e fáceis de digerir. Qualquer coisa diferente disso irá dar sono, será difícil demais e tratá à tona justamente a crítica que o filme faz.
# Herança de Sangue
Caloni, 2016-09-04 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Mel Gibson não apenas é a escolha perfeita para seu papel paternal em Herança de Sangue: a sua persona dentro e fora das telas é o mecanismo-chave que faz tudo funcionar no longa de Jean-François Richet. A sua rebelde filha se assusta quando vê seu pai, um sujeito com traços agressivos, sem a barba que escondia no início do filme seu rosto da época dos escândalos de violência doméstica que fez parte. Há uma cena na estrada com motos e um "acidente" que lembra muito a série de filmes Mad Max. Há até um antigo amigo do personagem de Gibson que negocia artefatos nazistas (Gibson, é interessante lembrar, ficou conhecido após A Paixão de Cristo como um cineasta com sentimentos anti-semitas). Simplesmente não há como não enxergar que o roteiro escrito por Peter Craig baseado em seu romance homônimo não tivesse Gibson como parte de sua inspiração (ou que pelo menos a adaptação apostasse nisso). O filme ainda pega todas as oportunidades do roteiro para de certa forma redimir Gibson por ser (ou ter sido) um babaca na vida real. Ele até é um ex-condenado em condicional, querendo dizer que ele não pode pegar em armas e ferir pessoas na sequência mais divertida do filme, onde ele vai enumerando seus delitos.
E o pior é que funciona. Com um carisma inabalável, seu personagem é um pai arrependido pelas decisões que o deixaram longe da filha desaparecida por muitos anos, e é tocante perceber a tatuagem de sua filha em seu braço fazendo par com uma figura mais obscura com a frase "alma perdida". Além do mais, a naturalidade com que ele enxuga as lágrimas do rosto de sua garota, e como está disposto a vender a ideia para ela de que se deve sobreviver a qualquer custo (pois "nunca se sabe quando vai ser o melhor dia de sua vida") são parte integrante de um protagonista complexo, que passou por poucas e boas graças ao seu vício por bebidas e enxerga em sua herdeira os mesmos traços que demarcaram seus erros na vida. Ele não é um pai que está furioso por como sua filha é irresponsável porque entende que há muito dela que veio dele. E isso é vital para entender o porquê aquele homem abandonado em um trailer no deserto de repente se torna dono de uma motivação que o faria ir no inferno e voltar com o capeta pelo colarinho.
Sua filha, por outro lado, interpretada por Erin Moriarty quase convencendo de sua jovem idade (mas nunca conseguindo) é uma jovem inconsequente como uma jovem qualquer. Vítima de uma lavagem cerebral desde cedo, ela caminha em uma nuvem de incertezas enquanto tenta se manter viva e escapar de um destino quase certo. Ela faz um belo par com Gibson e não chega a estragar, mas não apresenta nada de fenomenal. Conforme ela aprende onde se meteu ela vai virando um reflexo de seu pai e sua presença de tela existe apenas por conta de seu drama. Ainda bem que seu velho já aprendeu que isso só atrapalha o lado prático de viver, e seu pragmatismo aliado à urgência da situação é o que consegue fazer o filme fluir sem soar muito moroso para um filme de ação.
Aliás, é preciso lembrar aos fãs de ação: este é um drama acima de tudo, sobre a relação pai e filha, mas contém algumas das melhores cenas de ação que você verá esse ano, seja pelo seu realismo ou por conseguir nos fazer se importar de fato com seus personagens (o que também colabora para o realismo). A jogada de câmera de François Richet, tremida, com zoom, e a edição com cortes precisos com uma montagem muitas vezes inspirada consegue aliar o tenso com o cômico de uma maneira tão natural que quase passa despercebido (e gosto particularmente do diálogo que o personagem de Gibson mantém ao telefone com seu conselheiro e amigo (William H. Macy), quando depois descobrimos o que a edição já acusa: eles estão algumas dezenas de metros de distância).
Alguns detalhes são preguiçosos, como a TV que convenientemente começa a mostrar a moça sendo procurada no momento em que ela entra na recepção do hotel onde está escondida, ou a maneira burocrática com que a passagem com o amigo nazista de Gibson é empurrada. Mas a vitalidade dos dois compensa em muito os momentos morosos que no fundo não significam muita coisa senão uma rebarba inconsequente no resultado final.
Uma pena, portanto, que tanta dedicação com a dupla principal seja muitas vezes sabotada pelos antagonistas, genéricos e não muito inspirados. Não há personalidade nenhuma por trás do personagem de Diego Luna, e por mais charmoso que ele seja este é um filme que apela para vilões mais ríspidos como em Breaking Bad, e muitas vezes mais inteligentes. Para compensar, a pequena ponta de Miguel Sandoval como um outro antigo amigo do personagem de Gibson é impagável pela economia.
Focando na relação pai e filha, Herança de Sangue é um drama com cenas de ação surpreendentemente boas. E de brinde você ainda leva referências mais ou menos sutis de que Mel Gibson continua tentando expurgar uma dívida no cartório da sociedade. A boa notícia é que, embora essa dívida não tenha qualquer relação com suas obras no Cinema, está dando certo.
# O Traidor
Caloni, 2016-09-04 cinema movies [up] [copy]Uma narradora que é uma velha e que faz graça com a desgraça de uma nação. Belas mulheres asiáticas que são estupradas por um imperador maluco, auxiliado por dois caçadores de beleza, pai e filho, que não confiam um no outro. Uma putaria e violência que começam desenfreadas, mas aos poucos caem no clichê moralista não sei bem por quê. Uma história mais ou menos histórica (Yeonsangun of Joseon, o décimo-rei da Coreia) que falha em uma narrativa sem entender a que veio.
Pelo jeito, O Traidor tem muita estética, belas paisagens, figurino e direção de arte, e pouca ideia do que está fazendo. Ele quer chocar pelo erotismo, mas não conseque ser erótico. Quer impressionar pela violência, mas dá risada de si mesmo enquanto cabeças são cortadas (graficamente cortadas). Seus personagens são corriqueiros, mas fazem parte de uma miscelânea de eventos de duas horas, sendo que ao final o que resta é o clichezão do amor proibido.
Que não tem sequer lógica interna em sua conclusão.
Mas olhemos para este tirano, Yeonsangun of Joseon. Ele é interpretado por Kang-woo Kim com uma competência que não faz jus ao filme que está. Ele é impulsivo e mimado, se aproveitando do seu status de rei para matar, violentar e falar o que quiser. Ele está inserido em uma sociedade milenar tradicionalista que não sabe o que fazer quando um retardado sobe ao trono, mas é obrigada a colaborar com o que vier de seu comandante, nem que seja sequestrar dez mil belas moças de seu país para escolher com qual irá copular. De certa forma, lembra outros monarcas de outros países que, estatísticas fazendo valer, foram gerados através de irmãos, primos e primas, trazendo defeitos genéticos para o sangue azul. É uma constante real que os grandes líderes da história sejam vistos como excêntricos, quando na verdade ou eram apenas idiotas ou dotados de legítimas doenças mentais.
Isso está longe do que vemos, por exemplo, em O Império dos Sentidos (Nagisa Ôshima, 1976), onde, como escrevi, "Um senhor cheio de gueixas, uma esposa generosa e uma amante ninfomaníaca fazem a história de Império dos Sentidos percorrer uma curva de aprendizado sobre sexo." Não. Isso tem muito menos a ver com sexo do que com dominação, com uso irracional da força, com o apelo à autoridade para cometer atrocidades.
E irracional por irracional, este filme contém um roteiro confuso, que troca de tom todo momento. Não sabemos se ele está defendendo que filhas de açougueiros são nobres por estarem do lado dos traidores que tentaram matar o rei maluco, ou se é uma fatalidade que o líder supremo dessa nação seja um retardado. Não dá pra saber, pois o roteiro escrito por Yoon-Seong Lee e o diretor Kyu-dong Min passa de um lado para outro sem conseguir unir as pontas de sua trama. É como se de repente, no meio de um teste com as concorrentes (compulsórias) a rainha, o filme nos virasse de lado e começasse a contar a história da relação entre pai e filho e como isso é importante, mas ao mesmo tempo como o filho enxerga a traição ao rei a única saída para salvar seu amor pela açougueira.
Este é um filme interessante pela sua premissa e pelo sua narração histórica, mas que usa o clichê para unir diferentes linhas de sua história, e com isso passa despercebido qual a real mensagem de "O Traidor". Fica claro que não é o sexo... mas isso Frank Underwood, de House of Cards, já descobriu e revelou em uma cena: "tudo é sobre sexo; menos sexo; sexo é sobre dominação".
# unit-menos-menos
Caloni, 2016-09-05 computer [up] [copy]Fazer o setup inicial de testes unitários em seu projeto C++ pode ser algo enfadonho se você precisa baixar e compilar uma lib do Google ou do Boost. Há uma alternativa mais leve e bem direta, que um dia apareceu nesses CodeProject da vida, mas que hoje está, até onde eu vi, no GitHub.
E como se faz para começar a montar os testes unitários? Bom, suponha que você tenha um projeto qualque que já compila, roda e faz alguma coisa de útil:
Apenas crie um projeto do lado, console, ou copie e cole o projeto, mas use os arquivos-fonte do projeto original. Dessa forma ele irá compilar com os fontes que estão sendo modificados/compilados.
Apenas se lembra de não incluir o módulo que contém o int main. Esse módulo deve ficar apartado do projeto principal.
Depois basta incluir apenas um arquivo do projeto unit--, que é seu cpp principal.
Com isso existirá um main lá dentro, definido em algum lugar. E tudo o que você precisa fazer é ir criando seus testes em outro arquivo fonte gerado para isso. O corpo e o formato dos unit cases é bem simples. Note que tudo que você fez para já sair testando seu projeto foi copiar um projeto já existente e inserir um módulo de outro projeto. Tudo compilando junto e já podemos fazer os primeiros testes do programa original (desde, claro, que ele seja testável, algo primordial):
// Precisamos definir uma suíte de testes. testSuite(DayToDayTests) // Se eu digito uma linha, ela deve estar no arquivo daytoday.txt. testCase(GetUmaLinha, DayToDayTests) { //... bool lineOk = TestAlgumaCoisa(); assertTrue(lineOk); } // Se eu digito duas linhas, ambas devem estar no arquivo daytoday.txt. testCase(GeraDuasLinhas, DayToDayTests) { //... bool lineOk = TestOutraCoisa(); assertTrue(lineOk); }
E assim por diante. O resultado é que quando você roda o executável de teste, ele execute toda a bateria e já te entregue todos os casos que você deseja testar, sem frescura:
...... OK Total 6 test cases 0 sec. Press any key to continue . . .
E voilà! Sistema de teste unitário pronto e rodando. Agora cada nova situação de erro ou que você precise validar, basta escrever um novo teste. Se esse projeto ir se tornando algo muito maior, a transição para testes unitários mais parrudos é apenas um regex. No momento, foque em codificar e testar muito bem o que está fazendo.
# Star Trek: Sem Fronteiras
Caloni, 2016-09-07 cinema movies [up] [copy]O reboot megalomaníaco da série de filmes inspirada pela série televisiva nerd dos anos 60 está com muita bala na agulha para poder gastar e pouca vontade de arriscar. Isso quer dizer que o novo filme com Capitão Kirk e Spock tem basicamente o mesmo enredo do filme anterior (Além da Escuridão) tirando a emoção.
Porém, a boa notícia é que os efeitos visuais gerados por computador têm garantidos boas supressas esse ano. Além do ótimo Warcraft, Star Trek possui algumas das sequências descritivas que irá tirar o fôlego do espectador, particularmente a apresentação de uma gigantesca estação no espaço criada pela Frota Estelar para manter uma base de apoio nas profundezas do limite onde humano algum jamais foi. Além disso, a versão 3D faz um ajuste mais que esperado: nas cenas escuras com pouca profundidade, apela ao 2D, auxiliando na claridade para quem está com óculos tampando metade da luz.
Em termos banais, essa nova aventura é onde a Enterprise irá para a periferia do espaço explorado pela civilização da Terra e irá encontrar ainda muita selvageria que precisa ser colonizada. Isso inclui uma pequena dose de filosofia de botequim, quando Capitão Kirk pensa em abandonar o posto da Enterprise por não ver mais sentido naquelas longas jornadas a bordo de uma nave que desconhece limites, exceto o da ignorância dos povos do espaço longínquo, onde tenta sempre vir com diplomacia e hospitalidade.
Enquanto isso, Spock, interpretado cada vez melhor por Zachary Quinto, ainda pensa em seu povo vulcaniano e a dívida que teria com eles, o que gera um certo conflito bobo com sua namorada, a Tenente Uhura (Zoe Saldana). Além disso, há um pequeno ensaio para acrescentar a trágica morte do ator Anton Yelchin e seu personagem Chekov à série, que vai junto no mesmo ano que Leonard Nimoy, o Spock original.
Além dessas duas mortes, Star Trek anuncia sua próxima morte como produto inventivo nas mãos de vários roteiristas (incluindo Simon Pegg, que faz mais uma vez o engenheiro bem-humorado da Enterprise). Entrando oficialmente no automático, o filme é esteticamente belíssimo e funciona bem como ação e um pouco de espírito de equipe embalado nos embates cada vez menos intelectuais dos tripulantes da nave icônica, que representam o mundo como o vemos. E esse mundo está dando sinais de desgaste (o real e o futurista, de 250 anos à nossa frente).
É por isso que há (mais uma vez) um personagem coringa que irá anunciar que o ser humano está nos limites do seu conhecimento e de seu propósito, onde o embate entre a civilização e sua mensagem de paz e seu velho estilo selvagem de lutar e conquistar territórios entra mais uma vez em conflito, o que não deixa de ser, mais uma vez, uma bela analogia com a Europa invadida por bárbaros do século XXI, anunciando prematuramente seu fim como um paraíso socialista. O artefato usado como ameaça no filme é de um simbolismo à coletividade exagerado, e o próprio ataque que é feito à Enterprise se utiliza da mesma artimanha, sendo aliás, visualmente muito semelhante a Matrix Revolutions, um filme muito subestimado na época em que foi lançado, mas que continua surpreendendo em suas influências póstumas.
A despeito da mensagem dúbia que o filme traz, ele deseja evitar a todo custo adentrar na complexidade da trama (que é bem simples) e das implicações de seu conflito até as últimas consequências, preferindo o desfecho simples e físico aos reais conflitos intelectuais das duas formas de enxergar o propósito do homem no mundo. Ele ainda tem a audácia de repetir o mesmo terceiro ato do filme anterior, mas com muita preguiça e leveza.
Aparentemente não há fronteiras para a mediocridade no Cinema atual. Nem para séries ambiciosas intelectualmente como Star Trek.
# Grande Coisa
Caloni, 2016-09-08 cinema movies [up] [copy]Lembra aquelas comédias meio-thriller, meio-policial e meio-pastelão(?!?). Pois é, em "Grande Coisa", isso foi pasteurizado, talvez "reimaginado", e se tornou uma trama pseudo-complexa sobre uma série de acontecimentos inesperados recheados de mentiras deslavadas e reviravoltas impossíveis, a ponto de duvidarmos se tudo aquilo poderia fazer sentido em um filme menos... retardado.
A questão é que não há muito o que fazer para tornar este filme interessante, e talvez por isso mesmo o diretor/roteirista Jean-Baptiste Andrea tenha decidido extravasar todos os clichês de uma vez só. Por isso a história começa como um golpe que seria aplicado pelo escorregadio Gus (Simon Pegg), o mau-caráter bem-intencionado Charlie (David Schwimmer) e a intrometida Josie (Alice Eve) e se transforma em uma análise sobre como selecionar melhor seus parceiros no crime. Especialmente se você está entrando agora nessa área.
Fotografado como um pedaço de arte impecável, com direito a contra-luz no momento em que o trio decide jogar um automóvel desfiladeiro abaixo, não há muita discussão moral envolvida nessa história, já que tanto o trio principal quanto os coadjuvantes que aos poucos vão se tornando corpos estão em um mundo de decisões fáceis (atiro ou não atiro? jogo o corpo aqui ou mais longe? minto dessa forma ou de outra?) mesmo que estejam aparecendo corpos e mais corpos em um pequeno esquema de chantagem. O brilhantismo da história aqui é começar simples para fisgar o espectador Sessão da Tarde para depois ir entregando absurdos cada vez mais inconsequentes que irão prender a atenção de forma eficiente -- com pequeníssimos deslizes no meio do caminho -- mesmo que o conteúdo não seja lá essas coisas. A forma está tentando tomar conta deste filme.
E, de certa forma, consegue. Com um elenco no automático de comédia e uma série de edições rápidas -- com direito não a uma, mas duas divisões de telas totalmente despropositais e que geram ainda mais confusão -- "Grande Coisa" realmente consegue comprovar que é possível contar uma história sobre absolutamente nada povoando-a com elementos fantásticos em uma noite pós-chuva belamente estrelada com holofotes, pois é isso que as estrelas neste filme lembram. Um personagem em determinado momento exclama "parece que dá para tocar as estrelas" enquanto outro fala sobre o número de dias para alcançar uma delas na velocidade da luz. Depois dessa cena nossos sentidos se ajustam à mediocridade e o filme não parece ser tão ruim assim.
# Jovens, Loucos e Mais Rebeldes
Caloni, 2016-09-09 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Jovens, Loucos e Mais Rebeldes é a mais nova experimentação de Richard Linklater (Boyhood), que entra a fundo em uma análise sobre uma geração e seus estilos, ou suas tribos, e que semelhante a seus filmes anteriores, está mais interessado na análise em si do que criar qualquer história.
Se trata de um documentário póstumo em ficção de uma era que já se foi há muito tempo. O que o filme faz agora é emular em laboratório a experiência de ser jovem naquela época -- final dos anos 70 e/ou começo dos 80 -- acompanhando a rotina do time de beisebol, que se reúne antes das aulas começarem, se entrosam, treinam, bebem, procuram garotas. Tudo é permitido na universidade, pois são todos "de maior", e a tensão, se existe alguma, se encontra em se socializar, e conflitos, estes não existem. As poucas regras dos poucos adultos em cena são religiosamente quebradas. Sabe como é: pelos bons e velhos tempos da irreverência ao mundo adulto.
Acompanhamos novamente o ponto de vista de um novato: Jake (Blake Jenner), e digo novamente pois há muitas coincidências em "Mais Rebeldes" com um outro filme do diretor: Jovens, Loucos e Rebeldes (1993). Apesar de ser considerado pelo próprio Linklater como a "sequência espiritual" de "Dazed and Confused" (o nome original), este soa como uma sequência de Boyhood, já que o momento da vida de Jake coincide mais ou menos com a despedida de Manson (o "Boy") em seu filme anterior, Boyhood, e se torna uma continuação natural do processo de entender e vivenciar o que era fazer parte de jovens que iriam "mudar o mundo". De qualquer forma, é o ponto de vista de alguém que acabou de chegar em um novo ambiente e está se entrosando com sua nova tribo, seus costumes e seus valores.
Paradoxalmente a obsessão do filme com questões sociais e existencialistas, embora não muito explícita, mas aqui e ali traduzida em diálogos de um personagem que não consegue conter as palavras, acaba simplificando um pouco toda a discussão, mas acaba se mantendo no nível de maturidade de seus personagens. Nesse sentido, chega a ser divertido percebermos uma tentativa de dialogar a respeito das crenças metafísicas em um outro personagem, que acredita em telepatia e é fã incondicional do astrofísico pop Carl Sagan. Perifericamente observamos as mudanças que o mundo está passando, além da constatação mais que óbvia que o mundo não era apenas a universidade, e diferente dos personagens descerebrados das comédias juvenis de formatura, aqui estamos falando de pré-adultos: pessoas que começam a arranhar o que é viver com a responsabilidade sobre suas próprias vidas. O reconhecimento que cada um encara de uma forma é a recompensa mais madura de um filme que respeita o espectador, não criando conflitos onde eles simplesmente não existem. Afinal, uma briguinha entre amigos na vida real é justamente isso, e termina por aí.
Através de caracterizações natas e um preparo e escolha de elenco exemplares, no começo parece impossível acompanhar todos aqueles jovens sem se perder. Lá pela metade do filme você irá se surpreender que, através apenas da interação entre eles, é possível simpatizar e entender todos eles, ou ao menos os que mais participam das cenas. E os que não participam há aquela estranha sensação de conhecê-los "de vista". E esse é apenas o primeiro fim de semana juntos. Há algo de poderoso em elencar a maioria de desconhecidos e vários rostos, como já foi comprovado no filme de 93, o que serviu de porta de entrada do Cinema para Matthew McConaughey e apresentou outras curiosidades, como uma Milla Jovovich saída da Lagoa Azul e, acreditem ou não, Renée Zellweger perdida em algum lugar (não procure nos créditos; ela não está lá).
E esse é um exercício instigante. "Jovens, Loucos e Rebeldes", assim como os filmes de John Hughes, representou uma época e uma geração em um nível artístico que o separou das comédias inconsequentes, algo que o inteligente roteiro conseguiu realizar e o tempo fez provar. Hoje "Mais Rebeldes" surge com uma proposta muito semelhante em sua forma, e talvez acabe fazendo muitos do jovem elenco despontar, mas que também poderá ser usado daqui a 23 anos como uma fonte de inspiração para algo além da diversão fácil.
O filme ainda recria cenários de uma era com o tom saudosista ligado no máximo. Com uma sequência de músicas que não apelam para o fácil, mas conseguem simbolizar que pretende soar autêntico sem usar muitos hits populares, estamos em uma viagem temporal que é pelo menos prazerosa do começo ao fim. O filme faz questão de traçar uma panorâmica no clube de dança, em um show punk, cowboy e até uma festa do pessoal de artes. Todas essas experiências, embora pareçam itinerários de um roteiro pensado, ocorrem de maneira praticamente orgânica no filme. Afinal de contas, quem nunca teve um amigo que mudou completamente e virou um punk de cabelo comprido? E só por isso não significa que nunca mais vão sair juntos. Pelo menos era isso o que significava amizade naquela época onde havia abertura para experimentar de tudo um pouco. Tudo parecia uma boa ideia, e é por isso que o roteiro funciona. Há uma fotografia igualmente saudosista, que usa uma granularidade alta em um filme digital. Além da estética, o que conta é a viagem no tempo que filmes como esse proporcionam. E o figurino dos rapazes torna a representação documental tão divertida quanto significativa.
Com menos cenas de ação do que sua versão de 23 anos atrás, "Jovens, Loucos e Mais Rebeldes" é uma versão juvenil e escolar da "Trilogia do Antes" do mesmo diretor, pois contém diversas questões sendo respondidas através da observação daquelas pessoas e outros tantos através dos diálogos ocasionais. Porém, se trata de um estudo com bastante energia, e onde dança, bebidas e mulheres floreiam as boas vindas ao mundo adulto de uma forma ingênua, realista e muito agradável.
# Jovens, Loucos e Rebeldes
Caloni, 2016-09-09 cinema movies [up] [copy]Este é o filme de uma geração de Richard Linklater (Trilogia do Antes, Boyhood), um de seus primeiros, de 1993. Ele conta com um elenco de desconhecidos, onde alguns deverão se tornar conhecidos. Ele conta uma história simples, que evoca o naturalismo, mas que contém tensão o suficiente para entreter. E ele contém o mais importante: a empatia do público que sabe como é ser jovem, como é experimentar coisas novas e sabe como é estar naquele momento mágico, vivenciando tudo isso, tendo toda a vida pela frente.
A história acompanha um calouro da universidade, Mitch (Wiley Wiggins), em sua ida para a faculdade. O filme não torna isso claro, pois todos são igualmente protagonistas com ele, mas é a partir de sua percepção dessa nova fase na vida que o espectador acaba acompanhando. De resto são jovens em diferentes momentos e estilos dessa fase que irão compor o que era um pouco dos anos 70/80, embalados em uma trilha sonora inspirada e que hoje remete a velhos clássicos.
Não se trata de nenhuma história especial, ou narrativa rebuscada. Se trata de simplesmente acompanhar esses jovens e experimentar os dilemas frequentes nessa idade, além de através dos diálogos captar a essência de comunicação de uma geração como provavelmente nunca houve mais. Os mais velhos irão sentir saudades de uma época mais simples, ou menos acelerada. Os não tão velhos não vão poder comparar como era viver sem tecnologia que nos conecta em tempo real em qualquer lugar.
Essa não é uma história de mocinho e bandido, de antagonistas escrotos de filmes de adolescentes, mas apenas de jovens querendo curtir. O fato de ser "apenas isso" e ficarmos hipnotizados com sua narrativa não é coincidência. O diretor/roteirista, Richard Linklater, planeja meticulosamente como as pessoas interagem, e sua precisão transforma, assim como sua Trilogia do Antes, qualquer acontecimento em algo tão real que apenas o fato de acompanharmos com uma câmera é por si só uma experiência e tanto.
Jovens, Loucos e Rebeldes terá uma "continuação espiritual" do mesmo diretor nos cinemas em breve, e é tão interessante quanto o original. É questão agora de ver se o tempo será generoso com ele como foi com este.
# Versos de Um Crime
Caloni, 2016-09-10 cinema movies [up] [copy]Depois do ótimo Na Estrada (Walter Salles, 2012), o requisitado personagem da vida real Allen Ginsberg, o poeta americano da geração beat dos anos 50, é encarnado por Daniel Radcliffe (da série Harry Potter), e tem ao seu lado o igualmente ótimo Dane DeHaan (Poder Sem Limites, O Lugar Onde Tudo Termina) e um Michael C. Hall (da série Dexter) curioso, mas um tanto ausente. A história é retratada como um drama novelístico e televisivo, com impecável direção de arte, mas uma narrativa burocrática demais para funcionar com poetas que estavam revolucionando o mundo da literatura.
Aliás, essa noção revolucionária é passada de maneira periférica, assim como quase tudo no filme. Temos uma história arrastada que confia demais na interpretação de personagens que não querem dizer nada a não ser a angústia amorosa que sentem. Toda essa riqueza de conteúdo que esses poetas deveriam supostamente ter é frustrada pelo conteúdo que vemos em tela.
Por outro lado, a beleza dos cenários e a concepção de um drama a partir da figura de Ginsberg, sua mãe enferma e seu relacionamento unilateral com Lucien Carr (DeHaan) tornam a experiência palatável enquanto aguardamos alguma coisa realmente impactante acontecer. Revelando uma falta de interesse notável na história, o diretor John Krokidas se preocupa demais com a beleza estética do vazio, e passagens curiosas como a invasão à biblioteca se tornam meras curiosidades, nunca atingindo o ápice que deveria produzir.
Com tudo isso, Versos de Um Crime é mais uma história sobre garotos mimados que ainda não descobriram o sentido da vida e tentam constantemente se entregar a experiências para conseguir escrever algo que valha a pena. Infelizmente, nem isso é possível detectar no filme. Melhor ir ler direto da fonte.
# Boneco do Mal
Caloni, 2016-09-11 cinema movies [up] [copy]Um terror que entende a problemática do medo do limite entre o real e a fantasia, Boneco do Mal busca em seu formato aproximar o espectador da loucura que o cerca, para apenas depois subverter essa ordem de volta para o real. Um trabalho digno de nota em comparação com tantos filmes do gênero que se passa em uma casa isolada com um passado macabro.
Tudo começa com a vinda da nova babá do filho de um casal já idoso, a jovem, linda e atordoada Greta (Lauren Cohan). Ela tem um passado problemático com um ex, e eles têm um boneco de cerâmica que tratam como seu filho.
Através de uma fotografia belíssima, que dá asas a questionar o que é real em um cenário tão límpido e cristalino (embora cheio de sombras), Boneco do Mal não tem pressa de explorar sua premissa ao máximo, e de forma inteligente torna os acontecimentos estranhos em torno daquela família escondidos na penumbra.
Mais inteligente ainda é a narração voltada mais para as ações e reações de Greta, que ficam muito mais no plano psicológico do que no físico. Estar sozinha em uma casa para cuidar de um boneco após um trauma de um namorado possessivo e agressivo não é a melhor atividade a se fazer para ter paz de espírito. Tudo isso contribui para um drama disfarçado de um ótimo terror. A trilha sonora sutil -- descartados os sustos baratos -- auxilia imensamente nessa viagem de barco do terror, onde os dias se tornam parte de um sonho infindável.
Há alguns excessos, é claro, mas não há nada tão exagerado como o gênero hoje em dia, que abusa do digital e do explícito para querer provar um ponto graficamente. Oras, Boneco do Mal comprova mais uma vez que o medo está sempre na penumbra, no mal-ouvido e no mal-visto. Toda a tensão é construída em cima do que não vimos, e enquanto isso ganhamos empatia pela moça, que tem uma história que também colabora para a trama.
Com um final surpreendente, desses que te derruba novamente das expectativas (quando no início do terceiro ato já havia derrubado), Boneco do Mal é um exemplo de como realizar um terror/drama sem apelar desnecessariamente para o clichê e o enlatado. Uma produção rica em seu design, roteiro e concepção.
# Mr. Robot
Caloni, 2016-09-11 cinema series [up] [copy]Finalmente uma série que retrata o hacker de uma maneira realista. Mais do que isso: retrata o hacker inserido na realidade que vivemos hoje, nesse exato momento. E, por que não, alguns meses à frente?
Mr Robot é uma série idealizada por Sam Esmail que está finalizando sua segunda temporada, em uma continuação tão profética quanto o nível subversivo das ideias contidas em seu original (a primeira temporada). De certa forma, embora com ótimos episódios e um roteiro instigante, a segunda temporada tenta fazer exatamente o que a Evil Corp faz na economia: vende o problema e a solução. E no caso de uma série televisiva, o problema são séries repetitivas que reafirmam o status quo. A solução é uma série que emula a revolta contra esse sistema. Dessa forma, a contracultura consome exatamente como os que nadam a favor da maré, mas se sentindo partes de uma revolução... a revolução do socialista de iPhone.
Mas eu falei iPhone? Bom, isso é um dos pontos positivos da série. Ela não se limita em usar termos genéricos ou colocar as "polêmicas" opiniões da sociedade hacker na boca dos personagens. Dessa forma, já foi falado que eles odeiam Facebook, que Android é muito melhor que Apple, que iRC e outras tecnologias submersas são mainstreaming para eles... e que, claro, odeiam as grandes corporações. Em específico a E. Corp, apelidada (e vista durante todos os episódios) pelo herói da história, Elliot Alderson (Rami Malek), como Evil Corp (evil == maligno).
Não são apenas opiniões fortes que reinam no universo de Mr. Robot. Os comandos, ferramentas, técnicas e sistemas usados pelos hackers são extremamente realistas, mostrando que o pessoal por trás do roteiro e produção realmente fez o dever de casa. Há até um episódio em que no começo está passando o filme "Hackers", com Angeline Jolie, e um dos personagens comenta que nunca viu um vírus ser um sistema gráfico tridimensional. Na vida real -- ou seja, nesta série -- as coisas são um pouco diferentes.
E por um pouco diferentes quer dizer que eles usam Linux, com comandos de terminal, com programação Python ou Ruby que resolva rapidamente o problema. Com dispositivos como Raspberry Pi para grampear o FBI. E com diferentes formas de engenharia social, incluindo a de se encontrarem apenas fisicamente. Sabe como é, casa de carpinteiro...
Porém, voltando um pouco à primeira temporada: ela é sublime. Ela começa sua narrativa da maneira mais original possível: Elliot conversa com o espectador como se ele fosse um amigo imaginário. E dessa forma temos um protagonista que nos diz seus pensamentos e ainda é um narrador de toda a série, incluindo seus interessantíssimos personagens secundários. A primeira cena é de Elliot falando com o dono de uma cafeteria onde a internet é das melhores. No diálogo entre eles é onde se estabelece a persona de Elliot como uma pessoa não muito sociável, com crise de ansiedade, mas que tecnicamente e moralmente possui expertise e objetivos bem claros.
Aos poucos vamos entrando no mundo desse hacker solitário que é viciado em morfina, mas que mantém um equilíbrio através de outra droga. Ele hackeia a vida das pessoas, toda sua intimidade e mentiras, e arquiva em uma coleção de CDs com nomes de álbuns de bandas de rock, no melhor estilo Dexter Morgan. Não é por mal que ele faz isso, mas por curiosidade. Porém, quando vê a oportunidade de mudar um pouco as injustiças do mundo, ele o faz. Ele não é um ser passivo que observa o mundo desabar, mas alguém tentando se encaixar de alguma forma nesse complexo sistema chamado vida real. Quando encontra uma organização de hackers que planeja derrubar a Evil Corp, liderados por um homem com macacão onde se lê "Mr. Robot", parece o destino ter se encontrado com a oportunidade. Uma triste história de vingança vai se delineando, para reforçar o drama.
A beleza de Mr. Robot é justamente conseguir encontrar o tom onde aquele mundo cinzento pode ser equiparado com o nosso mundo dominado por grandes corporações que usam o Estado como marionete enquanto impulsiona o consumo de pessoas escravizadas em um sistema invisível, e abraçar a visão de não-conformidade de um hacker em direção ao oposto disso. Todo hacker, quando jovem, sonha em mudar o mundo. Todo jovem que fica velho, mas não amadurece, continua sendo aquele jovem hacker sonhador, que se esqueceu de baixar o realidade.pdf e dar uma lida. Mesmo assim, a série consegue a simpatia de qualquer ponto de vista, já que é consenso entre todos que conhecem um pouco sobre política e economia que as coisas não vão muito bem. Na verdade, estão piores que nunca.
Se na segunda temporada não há muito como inovar o plot twist do ano em séries (estou falando da primeira temporada), Mr. Robot pelo menos tenta se aprofundar em alguns temas, como as motivações por trás de grandes empresários ou grandes revolucionários (os "terroristas"), assim como as motivações dos indivíduos. Sua linguagem se torna repetitiva, com seus enquadramentos meio desajeitados, com os personagens sempre muito abaixo ou deslocados do centro, e com uma trilha sonora divergente e quase formada por instrumentos de percursão ocasionais (mas sempre com ótimas músicas). Ainda assim, quando vemos um filler que apela para emular as comédias de sitcom americanas da década de 80, percebemos que há ainda uma coisa ou outra a ser explorada nesse mundo de hackerismo inteligente e realista. O mais fascinante, talvez, seja saber que o mundo ainda não acabou, e ele continua mudando.
Graças às leis de propriedade intelectual não temos muitas produções desse tipo, mas felizmente temos algumas. E essa, produzida de forma profissional por grandes nomes da dramaturgia brasileira, realiza um curta-metragem mais que necessário como extra de DVD do filme Shakespeare Apaixonado, aquele hollywoodiano que ganhou Oscar porque... porque... bom, porque não é dublado como O Destino de Miguel.
A história é conhecida por todos que possuem internet há mais de 10 anos. Miguel nasceu como um garoto bem-dotado e que é viciado em comer cus em sua cidadezinha. Seu último objetivo é comer o cu do governador, ou do filho dele. Não fica muito claro na narrativa, que é coesa, mas meio perdida.
Porém, estamos falando de uma redublagem, e é feito um verdadeiro milagre para inserir diálogos que fizessem sentido em todas as cenas. A dublagem de atores profissionais como Lázaro Ramos, Wagner Moura, Bruno Garcia e Caetano Veloso (bom, nada é perfeito) e a participação mais que especial de Sydney Magal, o resultado é muito melhor do que poderíamos imaginar de um filme só de zoeira. Há momentos que a história começa até a fazer sentido, mas pelo menos as risadas são constantes.
# Os 10 melhores filmes dos anos 90... 1890!
Caloni, 2016-09-11 cinema lists [up] [copy]Esta é uma ótima seleção feita pelo saite A.V. Club, que contém para variar vários trabalhos do genial Georges Méliès, além também dos trabalhos mais técnicos de Thomas Edison. É preciso lembrar que a sétima arte estava apenas engatinhando.
Um primeiro exemplo do cotidiano, que não quer dizer nada em particular, mas que já documenta uma rotina da época, e hoje é um dos melhores exemplos dos curtas iniciais do cinema.
https://www.youtube.com/embed/OYpKZx090UE
Um teste de sincronização entre áudio e víduo já pode ser observado nesse conjunto de três tomadas de testes nos laboratórios Edison.
https://www.youtube.com/embed/Y6b0wpBTR1s
Várias trucagens dentro de um cenário de castelo idealizados por Georges Méliès, tudo na edição de corte, além de uso de fumaças, sobrescrita de película, etc.
https://www.youtube.com/embed/OPmKaz3Quzo
Esse é o clássico, conhecido pelo primeiro filme exibido em público e com a lenda de que os espectadores saíram correndo ou abaixavam as cabeças quando o trem chegava à estação. Na verdade, parece que os irmãos Lumière já estavam testando o mesmo filme em uma versão 3D, mas que foi colocada em exibição pouquíssimas vezes e muito tempo depois, no ano seguinte. Mesmo assim, podemos dizer que Cinema e 3D nasceram praticamente juntos.
https://www.youtube.com/embed/1dgLEDdFddk
Mais trucagens de Méliès, dessa vez em um filmeco de menos de um minuto. Mas ainda é fascinante de se ver. Um dos melhores exemplos daquela época de como se pode fazer muito com "pouco".
https://www.youtube.com/embed/Sgr5FVjnXs
Um curta de Méliès que resume toda a história de Cinderela. Tem como figura impressionante o velho do tempo, que surge no castelo. Já possui a noção de mudança de espaço, pois os cortes denotam lugares diferentes onde se passa a história. No final tem uma dança bem divertida, um espetáculo de alguns minutos para a época.
https://www.youtube.com/embed/0caKk42n7A
O primeiro filme polêmico foi feito em terras americanas. Um beijo de um casal foi acusado de pornográfico, mereceu críticas do Vaticano e hoje seria o equivalente a... sei lá. Dezenas de atores em uma suruba em um filme da Disney?
https://www.youtube.com/embed/IUyTcpvTPu0
Esse filme é bizarro. É sobre uma suporta fada, mulher doce, sei lá, que vai arrancando bebês de um jardim (bebês reais) e jogando no caminho. Hoje seria considerado um terror e tanto.
https://www.youtube.com/embed/MTd7r0VkgnQ
Mais um gore para a plateia. Para os que reclamam que hoje em dia há muito apelo à violência gráfica, esse filme é apenas isso: a decapitação de uma mulher (a tal Rainha de Scots). O corte até que foi bem feito. Deve ter impressionado à beça.
https://www.youtube.com/embed/XgDGwc19aU
Na época o Raio-X havia sido descoberto e a criatividade já começava a aflorar. Esse filmeco é bem divertido pela sua inocência, e demonstra como havia curiosidade a respeito das inovações tecnológicas e científicas. Aliás, a Scientific American aquele ano lançou um artigo explicando como fazer Raio-X em sua própria casa!
https://www.youtube.com/embed/3gMCkFRMJQQ
# Pets: A Vida Secreta dos Bichos
Caloni, 2016-09-11 cinema movies [up] [copy]O estúdio responsável pelo Meu Malvado Favorito e Os Minions agora vem reciclar sua biblioteca de criaturas e vai explorar justamente mas uma coisa que humanos acham uma fofura: animais domesticados.
E não se sai tão mal em seu início.
Introduzindo a rotina dos pets em Nova York (sempre ela), com seus donos saindo pela manhã e voltando à tarde, o roteiro escrito a várias mãos explora essa noção que temos dos animais. O cachorro como amigo fiel, o gato como um ser que não está nem aí para humanos, e assim por diante. A animação é de qualidade, e o uso de cenas panorâmicas e câmeras se movendo por cima de uma versão romantizada de NY torna tudo aquilo muito fofinho e engraçado.
Depois entramos em uma trama mais que conhecida. Uma das donas de um dos cachorros (que é o protagonista, o.... Max) arruma um segundo cachorro muito maior, e juntos os dois acabam se desentendendo, entrando em uma enrascada, depois uma aventura e acabam bons amigos. Fim.
"Tudo isso" para apresentar diferentes bichos em diferentes situações na cidade. Temos a gangue do coelho, com seu porco tatuado, um crocodilo e uma víbora, que moram nos esgotos da cidade (e menosprezam os humanos porque ninguém quis ficar com eles), temos um gavião que também não tem amigos, mas decide criar laços com uma cachorrinha só porque ela prometeu fazer amizade se achasse o amor dela perdido por aí, e temos mais alguns bichos que irão preencher as lacunas dos estereótipos que faltam (o veterano de cadeira de rodas, o porco-da-índia engraçadinho e sem personalidade, etc).
Toda essa turma no fundo foi criada para se divertir e fazer piadas divertidas. Não é muito diferente do que já vimos nos filmes anteriores do estúdio, mas acaba sendo um pouco superior a Minions, que tem a proeza de sequer conseguir terminar sua história decentemente.
Aqui reina o clichê com piadinhas cada vez mais idiotas. Elas começam bem, mas vão aos poucos degringolando em um básico e primitivo "porque sim". Quando a preocupação dos roteiristas muda do instigante para o "deixa pra lá", o resultado acaba decepcionando um pouquinho mais a cada minuto de filme. Para piorar a situação, os dubladores do Brasil estão inspirados em tentar tirar leite de pedra com sotaques e gírias que vão se tornar incompreensíveis daqui a dez anos. Mas quem vai assistir esse filme depois de dez anos?
Bom, mas o importante é que tudo se resolve em mais um dia no reino das franquias. Se colar e o filme fizer bastante sucesso, é isso que teremos.
# O Silêncio do Céu
Caloni, 2016-09-13 cinemaqui cinema movies [up] [copy]O Silêncio do Céu é mais uma incursão do diretor Marco Dutra ("Trabalhar Cansa") em um filme que flerta entre o drama e o terror. Porém, nesse caso não há o apelo ao sobrenatural, mas a uma substância social que permeia cada um de nós: o medo.
E esse medo vem na forma da ausência de diálogos entre pessoas que se amam, o que o torna mais poderoso ainda. A história começa com a cena de um estupro de uma mulher em posição indefesa, que pode apenas observar, submissa por dois homens armados com uma faca. Começamos o filme enxergando seu ponto de vista, mas isso logo muda para o ponto de vista de seu namorado, Mario (Leonardo Sbaraglia) que, depois sabemos, presenciou toda a cena, mas foi incapaz de agir.
Mario, dominado por uma imensidão de fobias, que vão de escorpiões a aviões, aprendeu a viver através de emular as outras pessoas, enquanto sobrevivia no porão o seu eu verdadeiro, aterrorizado e petrificado de medo. Essa sua personalidade alternativa se tornou tão forte após o evento traumatizante que assumiu seu controle, mas ele começou a duvidar se era tão forte assim depois que viu a capacidade de sua namorada, Diana (Carolina Dieckmann), conseguir emular uma vida normal após o trauma, e mesmo assim questiona as atitudes de Mario, mesmo que através de imperceptíveis micro expressões em seu rosto e olhar.
Toda essa camada subjetiva só funciona graças a podermos escutar os pensamentos de Diana, Mario e Diana novamente, em uma história tensa e conduzida com um controle absoluto do mise en scene. A dupla competente de atores consegue evocar tudo que é necessário para que esse filme quase sem diálogos significativos pode evocar.
Há um exagero de azul celeste nos cenários que quer dizer que aquele dia com céu azulado ficou permeando os dias seguintes daquela família, influenciando para sempre suas vidas. Só que em vez de significar paz de espírito, o azul aqui é o maldito lembrete daquela tarde horrível que ambos passaram. Há um punhado de simbolismos por trás dos elementos em cena, como o cacto e o vermelho, e se torna inútil tentar desvendar todos eles quando o aspecto onírico (e de pesadelo) começa a tomar conta da rotina, além deste ser um filme ambicioso que almeja atingir algo mais que uma simples história. Ele pretende desvendar o medo mais íntimo do ser humano: o dele mesmo.
Quando uma pedra do jardim é acidentalmente colocada no centro da casa, em cima de uma mesa para todos verem, e isso se torna um elemento recorrente nas cenas, mas nunca é citada por nenhuma daquelas pessoas, é porque há algo muito errado naquele lar, ou essa pedra simboliza justamente isso. É esse o nível de beleza dos símbolos que estamos falando.
E o Marco Dutra consegue com a ajuda desses símbolos, de uma fotografia mestre (Pedro Luque) em dominar as luzes e sombras, e uma engenharia de som rebuscada e significativa -- que nos remete ao ótimo O Som Ao Redor -- remeter a um terror psicológico de arrepiar a mente. O som é feito pelos irmãos Guilherme e Gustavo Garbato com uma tecnicidade de fazer arrepiar em vários momentos. Note o barulho repetitivo dos brinquedos do parque ao lado de onde trabalha Diana, e como o barulho do escapamento do carro em um momento-chave da trama toma conta de todas as atenções (e é usada como trilha sonora). Ao mesmo tempo note o naturalismo de Dutra em montar suas cenas, que mesmo apelando para supercloses e objetos na penumbra consegue evitar uma edição tresloucada; a passos leves caminhamos em direção ao terror.
Há algo de Hitchcock em O Silêncio do Céu, seja na perseguição de carros ou na maneira inquietante com que Mario adentra um mundo estranho que vai aos poucos se tornando terrivelmente familiar. Não é um filme para muitos, pois seu desfecho não satisfaz os que gostam de histórias amarradas com tudo resolvido. Porém, se engana desde o começo quem acha que haverá um final feliz em uma história que começa com um estupro.
# Ring: O Chamado
Caloni, 2016-09-15 cinema movies [up] [copy]Essa é a versão japonesa, que estreou dois anos antes do remake americano. Diferente de toda a pomposidade de sua cópia, e os efeitos sonoros enlatados de terrores hollywoodianos, este tem a rapidez de um thriller e a semi-profundidade de um drama. Possui um ritmo visual econômico e ágil, e uma conclusão factoide, o que o torna um exemplo de sua própria lenda.
A história é simples: um vídeo misterioso de alguns segundos, se assistido, fará a pessoa morrer em sete dias (após receber um telefonema após ter assistido). Uma médium (Nanako Matsushima) começa a investigar quatro mortes em um só dia, e seu ex-marido (Yutaka Matsushige), também médium, passa a ajudá-la. Ambos têm um filho, quase abandonado, e logo isso constitui um drama eficiente em torno de uma história de terror.
Além disso, há um mistério que é desvendado aos poucos a respeito da produção da fita. Uma história sobre erupção de vulcões, uma profetiza e sua filha ainda mais poderosa constituem uma história paralela que rima com a principal por falar da mesma coisa: é a história de famílias desajustadas. Marido e mulher se perguntam se deveriam ter tido mesmo um filho do jeito que são, e agora os três fazem parte da maldição que é ter uma família disfuncional.
O jogo de quadros do filme às vezes é arrebatador, como quando um acontecimento inesperado está sendo ouvido do outro lado de um telefone, e a câmera consegue triangular o passado, presente e futuro desse acontecimento apenas repassando cada um dos envolvidos, sem a necessidade de diálogo expositivo.
É digno de nota também que a maioria dos sustos vêm de uma TV e seu reflexo, sem nenhum daqueles sons capengas que costumam trapacear a surpresa. O jogo de sombras do filme, e os ambientes naturalmente apertados das residências do Japão são o suficiente para tornar Ring um trabalho claustrofóbico por natureza.
Com uma trilha sonora pesada, mas harmoniosa, esse é um filme que passa voando, mas não possui quase nenhum elemento ao acaso. Sua narrativa é coesa, sua história é tensa, sua trama consegue ser complexa sem dificultar o entendimento do espectador. Um trabalho de terror à altura dos maiores: o que não apela para a fuga fácil do susto barato.
# A Passageira
Caloni, 2016-09-17 cinemaqui cinema movies [up] [copy]A Passageira pode ser descrito como um melodrama que se aproveita de sua notável qualidade narrativa e técnica para dar ares de ser algo mais artístico. A mesma razão pode ser dada ao dizer que o herói do filme realmente fez um ato bondoso e por isso, independente de seu passado, é digno de aplausos.
Porém, escolher entre um ou outro seria admitir que no mundo uma situação ou é preta ou é branca, e é exatamente isso que o filme tenta evitar e constantemente desfazer em cada reviravolta de sua história. Naquele universo, miséria e violência são elementos cinzas que podem ser utilizados por uma causa, desde que essa causa seja cinza claro ou cinza escuro, dependendo de sua preferência moral.
No entanto, o filme não precisa explicar, por exemplo, que estupro é errado. Aliás, mais do que isso: imperdoável. Isso é o conhecimento comum da sociedade, além de ser a conclusão lógica de qualquer sistema que vise respeitar o mínimo de direitos de um indivíduo. Porém, ironicamente, há aqui um filme que pretende discorrer sobre o assunto e ao mesmo tempo sua história pretende justamente relativizar este conceito tão simples e fácil de aplicar na vida real. E por mais que se disfarce de melodrama, ele se revela em uma última e expressiva frase dita dentro de uma delegacia.
Toda essa explicação é para dizer que A Passageira nunca poderá ser visto como guia moral de uma sociedade saudável, pois suas premissas estão podres desde o começo. Dessa forma, resta apenas sentir pena daqueles personagens e pelo incauto espectador, pois todos estão movidos pelo sentimento de pena e de culpa do começo ao fim.
A história, extremamente bem conduzida e amarrada -- exceto por algumas coincidências exageradas, como um assalto que surge de brinde para revelar a existência de um personagem -- gira em torno da obsessão de Harvey Magallanes (Damián Alcázar) de ajudar Celina (Magaly Solier) a partir do momento que a reencontra. Vemos que aquele homem nutre sentimentos pela bela jovem desde a época que era mantida prisioneira e escrava sexual de seu coronel em uma guerra. Hoje ambos possuem empregos que estão no limite de sua sobrevivência, e como a fotografia escura busca sempre ressaltar, no submundo de uma megalópole e sem esperanças de progresso.
A narração ganha contornos de thriller e se torna tenso não só pela história, mas pela maneira com que o diretor e roteirista Salvador del Solar resolveu usar sua câmera, com closes muito tremidos, mudanças bruscas de luz e cenário. As cenas são conduzidas por uma trilha sonora cansativa e que evoca um lamento por um passado que não se cansa de ocorrer, dia após dia. Um coronel senil (Federico Luppi) pede que um sorveteiro seja revistado enquanto observa o céu azul, inatingível para todos no filme. O mais inacreditável é que ele é atendido, ainda que por um Magallanes receoso. O resumo da estupidez do sistema de autoridade que serve de gancho para o que aconteceu no passado do agora taxista.
Aos poucos percebemos que há excelentes momentos em A Passageira sabotados por um filme que exagera em seu tom melodramático. Vemos que Celina tentou um esquema de pirâmide misturado com auto-ajuda e que é vítima de uma inescrupulosa agiota, que embora não necessariamente ameaçadora, é impertinente e incomoda a honesta moça. A apresentação desse esquema pretende demonstrar como a esperança de um futuro melhor é tão ilusório quanto qualquer culto evangélico de periferia, com as mesmas desculpas usadas por qualquer livro de auto-ajuda (cujo pai-mestre é O Segredo): se não está dando certo, você é que não está acreditando o suficiente.
E dentro da lógica de A Passageira, não há mesmo salvação para nenhum dos envolvidos. Feridos por uma cicatriz que nunca irá sarar, a violência e estupidez de uma guerra agora reflete no caos urbano em que os mesmos personagens precisam lidar da maneira que podem. Resta a eles tentar tocar suas vidas, assim como qualquer ser humano decente. E se a decência lhes foi arrancada pelos atos brutais do passado, é algo que nem todo o dinheiro do mundo conseguirá curar.
# Usando GVim com projetos do Visual Studio
Caloni, 2016-09-18 [up] [copy]A vida dos programadores C/C++ Windows -- e que geralmente precisam do Visual Studio -- está um abandono total. A configuração de make dos projetos sempre foi baseada no uso de makefiles, assim como no Unix, e por isso mesmo o uso da ferramenta nmake do SDK do Windows era a maneira padrão de se compilar e ver o resultado de dentro do Vim para projetos Windows. Com o advento do .NET, do Visual Studio 2003 e dos XMLs disfarçados como arquivos de projeto e solution, o uso do makefile foi paulatinamente abandonado, gerando diferentes versões de ferramentas -- todas incompatíveis -- para conseguir compilar um ou mais cpps e conseguir ver o resultado.
Por isso mesmo é um assunto pouco explorado nos fóruns do Stack Overflow como configurar decentemente o comando :make do Vim para conseguir realizar o ciclor program-compile-debug que já era feito desde a época do Amiga OS (e conhecido no manual do Vim como Quickfix). Ninguém se dá ao trabalho de usar esse modelo torto.
Houve um tempo que eu mesmo pesquisei algumas soluções, e caí no velho problema de tentar conviver com diferentes versões do Visual Studio. Deixei de lado o Vim por uns anos, e passei a usar o VsVim, um plugin que roda em várias versões do Visual Studio e utiliza o vimrc de sua instalação.
Hoje voltei a fuçar esse problema e depois de algumas horas tentando entender qual a dinâmica que deve ser seguida, cheguei a dois usos legítimos do make no Visual Studio: o modo legado, através do devenv, e o modo comportado, que usa a ferramenta MsBuild para encontrar o projeto e a solution que devem ser compilados.
A não ser que você coloque o path das ferramentas direto nos comandos (algo que não recomendo pois as coisas no Vim começam a ficar estranhas com paths com espaços, algo abundante no Windows) é preferível que você escolha qual devenv e qual msbuild deseja utilizar e definir isso na variável de sistema path. No meu exemplo estou usando o msbuild para qualquer Visual Studio acima do 2010 (como o 2015), pois já está padronizado, e como tenho projetos no VS2003 para manter, escolhi deixar o devenv.com com ele.
set path=%path%;C:\Program Files (x86)\MSBuild\14.0\Bin set path=%path%;c:\Program Files (x86)\Microsoft Visual Studio .NET 2003\Common7\IDE
Note que essa configuração, para ficar persistente, precisa ser definida através do Painel de Controle ou Propriedades do Sistema. Google for it.
Depois de configurado, qualquer projeto deve ser compilável em 2003 pela linha de comando (através do devenv.com):
C:\Projects\samples\FixCMake>devenv.com FixCMake.sln /build Debug Microsoft (R) Development Environment Version 7.10.3077. Copyright (C) Microsoft Corp 1984-2001. All rights reserved. ------ Build started: Project: FixCMake, Configuration: Debug Win32 ------ Compiling... FixCMake.cpp Linking... Build log was saved at "file://c:\Projects\samples\FixCMake\Debug\BuildLog.htm" FixCMake - 0 error(s), 0 warning(s) ---------------------- Done ---------------------- Build: 1 succeeded, 0 failed, 0 skipped C:\Projects\samples\FixCMake>
Da mesma forma, projetos 2010+ devem usar o msbuild:
C:\Projects\samples\ConsoleApplication5>msbuild Microsoft (R) Build Engine version 14.0.25420.1 Copyright (C) Microsoft Corporation. All rights reserved. Building the projects in this solution one at a time. To enable parallel build, please add the "/m" switch. Build started 9/18/2016 6:02:19 PM. Project "C:\Projects\samples\ConsoleApplication5\ConsoleApplication5.sln" on node 1 (default targets). ValidateSolutionConfiguration: Building solution configuration "Debug|x64". The target "_ConvertPdbFiles" listed in a BeforeTargets attribute at "C:\Program Files (x86)\MSBuild\14.0\Microsoft.Common.targets\I The target "_CollectPdbFiles" listed in an AfterTargets attribute at "C:\Program Files (x86)\MSBuild\14.0\Microsoft.Common.targets\I The target "_CollectMdbFiles" listed in a BeforeTargets attribute at "C:\Program Files (x86)\MSBuild\14.0\Microsoft.Common.targets\I The target "_CopyMdbFiles" listed in an AfterTargets attribute at "C:\Program Files (x86)\MSBuild\14.0\Microsoft.Common.targets\Impo Project "C:\Projects\samples\ConsoleApplication5\ConsoleApplication5.sln" (1) is building "C:\Projects\samples\ConsoleApplication5\C PrepareForBuild: Creating directory "x64\Debug\". Creating directory "x64\Debug\ConsoleA.C9D4BE8C.tlog\". InitializeBuildStatus: Creating "x64\Debug\ConsoleA.C9D4BE8C.tlog\unsuccessfulbuild" because "AlwaysCreate" was specified. ClCompile: C:\Program Files (x86)\Microsoft Visual Studio 14.0\VC\bin\x86_amd64\CL.exe /c /ZI /nologo /W3 /WX- /sdl /Od /D _DEBUG /D _CONSOLE 140.pdb" /Gd /TP /errorReport:queue stdafx.cpp stdafx.cpp C:\Program Files (x86)\Microsoft Visual Studio 14.0\VC\bin\x86_amd64\CL.exe /c /ZI /nologo /W3 /WX- /sdl /Od /D _DEBUG /D _CONSOLE 140.pdb" /Gd /TP /errorReport:queue ConsoleApplication5.cpp ConsoleApplication5.cpp Link: C:\Program Files (x86)\Microsoft Visual Studio 14.0\VC\bin\x86_amd64\link.exe /ERRORREPORT:QUEUE /OUT:"C:\Projects\samples\Console ib odbc32.lib odbccp32.lib /MANIFEST /MANIFESTUAC:"level='asInvoker' uiAccess='false'" /manifest:embed /DEBUG /PDB:"C:\Projects\sa cation5.lib" /MACHINE:X64 x64\Debug\ConsoleApplication5.obj x64\Debug\stdafx.obj ConsoleApplication5.vcxproj -> C:\Projects\samples\ConsoleApplication5\x64\Debug\ConsoleApplication5.exe ConsoleApplication5.vcxproj -> C:\Projects\samples\ConsoleApplication5\x64\Debug\ConsoleApplication5.pdb (Full PDB) FinalizeBuildStatus: Deleting file "x64\Debug\ConsoleA.C9D4BE8C.tlog\unsuccessfulbuild". Touching "x64\Debug\ConsoleA.C9D4BE8C.tlog\ConsoleApplication5.lastbuildstate". Done Building Project "C:\Projects\samples\ConsoleApplication5\ConsoleApplication5.vcxproj" (default targets). Done Building Project "C:\Projects\samples\ConsoleApplication5\ConsoleApplication5.sln" (default targets). Build succeeded. 0 Warning(s) 0 Error(s) Time Elapsed 00:00:02.31 C:\Projects\samples\ConsoleApplication5>
Pois é. Tirando essa facilidade, as coisas no Vim para msbuild rodam particularmente bem. Basta alterarmos o makeprg da seguinte maneira:
:set makeprg=msbuild\ /nologo\ /v:q\ /property:GenerateFullPaths=true<CR>
As opções específicas são para gerar o path completo, as barras invertidas são por causa dessa mania do Vim de dar pau quando tem espaço em tudo.
A partir dessa configuração já é possível compilar um projeto estando em sua pasta:
Para o Visual Studio 2003 (ou qualquer um usando o devenv.com) é necessário mudar esse comando:
:set makeprg=devenv\ %\ /build\ Debug<CR>
Sim, temos que escolher uma configuração (o msbuild já escolhe por você). E note que ele usa o arquivo atual (%) para compilar. Isso quer dizer que isso irá exigir do usuário de Vim abrir o sln ou o vcproj e executar o :make a partir daí. De qualquer forma, ele funciona também:
Note que em nenhum dos casos erros conseguirão ser capturados para irmos direto no ponto do código-fonte onde ele está. Para isso funcionar, em nosso último passo, é necessário configurar o errorformat para que ele tenha um padrão que funcione com ambas as ferramentas. Depois de testar um pouco, cheguei nesse formato:
set errorformat=%f(%l)%m
Ele pega também os warnings, mas fazer o quê. Você não quer conviver com warnings em seu código pelo resto da vida, né? =)
VS2010:
VS2003:
Note que depois de clicar em Enter ele pula para o primeiro erro da lista:
E para navegar na lista é como o resultado de comandos como :vimgrep. :cnext e :cprevious vão para frente e para trás na lista, sempre pulando para o ponto no código onde está o erro.
Como deu pra perceber, para conseguir usar o msbuild e o devenv ao mesmo tempo você seria obrigado a trocar o makeprg sempre que precisasse. Para facilitar seu uso, nada como fazer um mapeamento de atalhos:
map <F7> :set makeprg=devenv\ %\ /build\ Debug<CR> map <S-F7> :set makeprg=msbuild\ /nologo\ /v:q\ /property:GenerateFullPaths=true<CR>
Para alguém curioso para ver minhas configurações do Vim (quem quiser compartilhar também, fique à vontade), segue.
# Demônio de Neon
Caloni, 2016-09-23 cinemaqui cinema movies [up] [copy]A única esfinge presente na mitologia grega é um demônio e se assemelha a um leão alado com cabeça de mulher. Presente na peça Édipo Rei, Ela olha onipotente para os mortais que desejavam passar e desfere seu famoso enigma. Para os que não o decifram, ela os devora. O enigma tem relação com as diferentes fases na idade do homem, mas para acertar você precisa descobrir que a criatura disforme, que muda de patas durante o dia, é o próprio homem. Não por acaso, Demônio de Neon em sua primeira cena, ou melhor dizendo, em seu primeiríssimo quadro, mostra uma jovem de beleza estonteante deitada em um divã ao som de uma música estilo dance psicodélico, empolgante e ao mesmo tempo grandioso, revelando todos os passos de como este filme deve ser desvendado. A moça está morta, pois escorre sangue de seu braço até o chão de vidro com um tom rubi. Apesar de trágica, a cena permanece belíssima enquanto a câmera, nossos olhos, se afastam, como em fascinação. E o novo filme "de grife" do diretor Nicolas Winding Refn (Drive) explora justamente essa fascinação que temos, tanto do belo quanto do horrível. Muitas vezes ao mesmo tempo.
E que melhor universo para retratar isso do que o mundo das modelos, acostumadas a conviver, como uma personagem diz, com um prazo de validade curtíssimo, e disputar a atenção de seus mestres -- seja um fotógrafo ou estilista -- e sendo objetos passivos aguardando serem escolhidas ou rejeitadas em um piscar de olhos, ou às vezes nem isso.
Pois é justamente essa posição que privilegia a beldade que vimos no primeiro minuto de filme. Elle Fanning é a queridinha de Hollywood que faz a garota do interior que tem o sonho de se tornar alguém na cidade grande e no mundo da fama, em moldes semelhantes o que fez Naomi Watts em Cidade dos Sonhos (aqui, além de se passar também em Los Angeles, há claramente referências e homenagens ao filme de David Lynch). Nesse caso, porém, esse é apenas um papel que ela deve desempenhar enquanto aspirante a modelo, mas logo vemos que ela já sabe que tem uma pele, um rosto e um corpo que não podem ser ignorados nem mesmo pelos seus mestres mais exigentes, e, claro, nem pelas suas concorrentes mais ferozes. Porém, seu caminho é fácil, pois os deuses da genética foram generosos com seu físico. Dessa forma, o filme se configura uma viagem para ela e um passeio para nós, embora a história de Refn crie tensão apenas pela condição que ela está, e não onde ela quer chegar.
A personagem de Fanning, Jesse, esconde sua arrogância através de sua aparência inocente, mas se revela em um ataque certeiro quando ameaçada, e certeiro no sentido que não sabemos tratar-se de maldade direcionada de Jesse ou apenas ingenuidade de uma moça recém-chegada do interior. Para o momento não importa. O que importa é que, durante esse processo de descoberta, isso acaba desagradando uma modelo que conheceu em uma festa durante uma conversa de banheiro e que responde à moça com uma moeda muito mais cruel, apelando para sua carência de pais, revelando ao mesmo tempo a insegurança da modelo e que, apesar de ter feito no mesmo dia uma amiga maquiadora fascinada por sua pele (a ótima Jena Malone) descobre que não existem muito segredos no mundo da moda, já que qualquer informação obtida pelas colegas poderá ser usada contra ela.
Apesar de utilizar referências e homenagens ao estilo que pretende utilizar o filme escrito a várias mãos não se resume em repetir os clichês da área da moda, apesar de reconhecer sua influência até em filmes mais recentes como Mapa para as Estrelas. Esse clima de deslumbramento e fantasia é pintado para explorar o interior desses corpos divinamente arranjados pelos seus donos, mas evita apelar, por exemplo, para o uso de sexo para subir na vida. Se trata de algo muito pior: de fazer qualquer coisa para subir (e permanecer) na passarela.
E a passarela, essa entidade viva, símbolo pelo qual as beldades precisam se sacrificar e lutar a todo custo, é vista quase como um ser dotado de desejos ritualísticos. Ele possui um símbolo iluminado ora de azul, mas eventualmente de vermelho, e tem por objetivo maior a aceitação do espelho, do ego, da aparência definitiva. A aparência, ou beleza, como bem observado por um outro personagem, não é apenas tudo: é a única coisa. A maior moeda de troca, e talvez a única realmente válida e eterna. Nesse mercado de beleza, todos sabem quando algo é falsificado ou é autêntico.
Há diferentes visões na narrativa de Demônio de Neon que alimentam com simbolismo de cores e músicas um aspecto não apenas onírico, mas temático. O trabalho do diretor é assinado como uma coleção de outono (quando as folhas morrem) e azul e vermelho seguem um padrão simples, mas poderoso. Um ambiente azul (paz, inocência) sempre pode se tornar vermelho (perigo, o mal), assim como os ambientes onde se tiram as fotos e se faz o teste de desfile são amplos, sugerindo riqueza, opulência, divindade, enquanto as salas de preparação das modelos, assim como a moradia da protagonista, é escuro, apertado, feio.
A maior virtude do filme é vir embalado em uma viagem sensorial fascinante, com enquadramentos de encher os olhos e música de encher os ouvidos. Ironicamente, se analisado como metalinguagem, pode acusar a própria "hipocrisia" do espectador em se deliciar com um trabalho feito por uma equipe que trabalha para entregar o máximo de prazer no audiovisual. Pense nisso quando estiver elogiando a entrega total da atriz X ou do ator Y e verá que o filme não se resume em um trabalho específico do mundo da moda. A arte exige sacrifícios e riscos que pessoas estão dispostas a correr, e espectadores dispostos a assistir.
Por isso todo o filme dá essa sensação de estranheza ou incômodo. Aliás, é bom avisar: há cenas realmente fortes na conclusão. Afinal de contas, não há maneira melhor de demonstrar os sacrifícios alimentares das modelos senão pelo clima visceral que os símbolos em Demônio de Neon nos entregam. E não há sacrifício alto demais para realizar uma rima simbólica com o próprio mito da Esfinge. Felizmente para nós, espectadores, isso é apenas um incômodo temporário e maquiado. Nosso único incômodo talvez seja ouvir a belíssima música de fechamento de Sia Furler com uma conotação... diferente do usual.
# Romance à Francesa
Caloni, 2016-09-29 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Romance à Francesa é como se alguém pegasse um roteiro de Woody Allen (dos últimos anos, pelo menos), extraísse todo o pessimismo e trocasse por romantismo. Isso em uma época que, assim como A Comunidade, lutamos por entender, conviver e experimentar formas de amor que fujam do convencional.
A comparação com o estilo do diretor/roteirista/comediante nova-iorquino se justifica pela doçura com que os diferentes aspectos dos relacionamentos dos personagens são abordados, mas mais do que isso, quando vemos o tanto de coincidências e situações forçadas necessárias para que o filme consiga chegar nos temas que pretende abordar. Enquanto engraçado pelo absurdo, ele vai aos poucos criando um renovado estilo de comédia romântica que é charmoso, inteligente, puro e sem malícias gratuitas.
A história já começa absurda quando Clément (Emmanuel Mouret), um professor de crianças comum e distraído, se encontra pela terceira vez com uma moça, Caprice (Anaïs Demoustier), em uma peça de teatro. Clément, no entanto, não se interessa por muito mais do que leitura e Alicia Bardery. Portanto, quando vemos a atriz procurando um professor para seu filho na escola onde Clément leciona, o circo de coincidências está montado.
Com uma fotografia teatral (cores, luzes, sonhos) e exuberante (para não dizer delirante), os cenários estáticos vistos pela diagonal do diretor Emmanuel Mouret caem como uma luva em uma narrativa que se esforça para observar aquelas pessoas e refletir sobre cada nova situação que aparece, sempre de maneira bem-humorada, mas com um fundinho de reflexão. Dessa forma, vemos uma mise en scene toda rebuscada sem soar apelativa. Pessoas andando na frente da câmera soam charmosas criando cenas memoráveis, pois os diálogos são inspirados, sempre regados com jazz ou música de situação.
Aliás, é necessário abrir um parênteses para a trilha sonora que foi escrita a dedo para cada situação. Conseguindo evocar ao mesmo tempo a atmosfera "familiar" de Domicílio Conjugal (Truffaut, 1970) e a arritmia perplexa de Masculino-Feminino (Godard, 1966), as composições conseguem oscilar sutilmente entre o romântico, o suspense e o drama.
Para os muitos que se esquecem que ficção é lidar com o inusitado para construir conteúdo, é importante lembrar que a "forçação de barra" do roteiro deve ser relevada pelo bem do argumento. Quase tudo que surpreende é por um motivo maior, e não para soar inteligente. É assim com Romance à Francesa, e é assim nos melhores momentos de Woody Allen (com ou sem pessimismo).
# Caprice: Amor à Francesa
Caloni, 2016-09-30 cinema movies [up] [copy]Uma comédia do Woody Allen, se Woody Allen fosse francês e não tivesse crises depressivas expostas em seus filmes. Aqui o lance é mais romântico, mas com conteúdo e inteligência. O filme trabalha a questão dos diversos tipos de amor, algo muito em voga hoje em dia, em que o conceito de família é tão líquido quanto os relacionamentos amorosos.
A história é pautada no absurdo, e se torna uma comédia de situação muito fácil, graças a inúmeras coincidências que colocam os personagens da maneira que eles precisam estar para acontecer algo engraçado. No entanto, esses personagens são divertidos, bem-humorados, com estereótipos que combinam. Clément é um professor comum apaixonado por uma atriz que acaba namorando. No meio há uma jovenzinha apaixonada por Clément, e a partir daí caímos no velho triângulo amoroso francês. Só que não é isso que importa, mas a forma de abordar a relação entre os três. Se visto como tabu pela grande maioria das pessoas, aqui há algo de humano que ultrapassa alguns limites do aceitável pelas regras convencionais matrimoniais, e é isso que torna o filme atraente.
Com ótimas atuações, e uma direção de arte e fotografia que evocam o romance pela vida em si, e não apenas pelas pessoas, Romance à Francesa é um passeio agradabilíssimo pela mente de Emmanuel Mouret, que cria uma comédia romântica divertida sem dispensar a inteligência, abordando temas de "poliamor" com sutileza e em uma maneira comercialmente viável (pelo menos na França).
Não há muitos limites para as coincidências nesse filme, assim como geralmente não há nos filmes de Woody Allen. Porém, felizmente aqui a questão maior não é a mortalidade ou o absurdo da vida, mas a tentativa contagiante de conseguir aliar os diferentes sentimentos que nutrimos por diferentes pessoas sem soar tão dramático, insolúvel ou clichê.
# Refúgio
Caloni, 2016-09-30 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Refúgio é uma comédia de situação que brinca um pouco com essa sensação da meia-idade (defina você esse período da sua vida) em explorar outros horizontes, levar a cabo os sonhos da infância, reviver, enfim, os bons momentos que estão em nossas memórias. Porém, ao mesmo tempo que temos esse desejo, estamos ancorados na vida real, sujeitos às complicações da vida moderna.
O herói do filme, Michel (Bruno Podalydès), trabalha com computação gráfica, no meio de um bando de jovenzinhos focados em impressionar os outros. E a sua praia já não é ficar ancorado em uma vida tranquila e estabilizada. Ele começa, então, a desejar expandir sua visão do que é aventura. Fã do serviço aéreo postal que atravessava a cordilheira e inspirado pelo tema no trabalho sobre palíndromos -- palavras que são iguais lidas ao contrário -- ele adquire um caiaque ("kayak") e aos poucos monta todo um universo cheio de apetrechos para atravessar um rio.
O que se torna recorrente em refúgio é demonstrar como é possível carregarmos tantas distrações dentro do "caiaque da vida" sem sequer percebemos, e às vezes ficarmos fascinados por tanta "facilidade". Porém, ele mostra a diferença entre viver à mercê da tecnologia em busca de um conforto ilusório ou usá-la em prol da humanidade que cada um de nós tem guardado no fundo do barco (provavelmene na parte de suprimentos para uma vida feliz).
Porém, ao andar com uma imensidão de coisas em seu barco é inevitável encalhar algumas vezes, onde Michel conhece novas pessoas e vai aos poucos descobrindo que há algo de errado em sua vida. Não necessariamente errado, mas ele quer se libertar do que desconhece simplesmente seguindo o fluxo da corrente. "Kayak", como sabemos, é um palíndromo, na palavra e no desenho da embarcação; ele pode ser visto de ambos os lados e ainda parecer igual. Pois é também é uma metáfora da vida, onde andar com a vida pra trás ou pra frente dá na mesma, e voltar às origem é um novo recomeço.
Essa é uma comédia que tenta ser em alguns momentos meio escrachada, o que quase estraga a bela poesia do seu tema. Porém, isso ajuda em um filme que deseja ser leve falando do drama da vida moderna: enquando estamos enfurnados de tecnologia, mesmo para curtir a natureza os penduricalhos vêm junto. Tudo possui um significado peculiar, lúdico e metafórico. Até o celular de Michel, azul e retangular, que acaba virando a metáfora de uma balsa improvisada, que conecta a vida a lugar algum, tal como a nossa vida tecnológica, se a deixarmos dominar nossa consciência.
O filme para os saudosistas é um sonho, mas para os realistas um tormento. Ele traz uma bela mensagem de humanidade simbolizada em um homem de meia-idade tentando cruzar um rio sem experiência alguma. Não deixa de ser a situação de muitos de nós, perdidos nessa imensidão de informação em tempo real, consumismo desenfreado, "soluções" para problemas que não existiam antes das soluções terem sido criadas. E todo mundo rema seguindo a corrente.