Uma Temporada na França é um filme que você provavelmente já viu, mas de outras formas mais pesadas. Isso porque o tema de refugiados pode revelar situações muito dramáticas, além de ser fonte principal de inspiração hoje em dia no cinema da Europa. O diretor e roteirista Mahamat-Saleh Haroun tenta, então, tornar esse tema fácil de assistir, palatável até para a família. O resultado é uma fábula com resultados mistos.
Seu protagonista Abbas Mahadjir é uma criatura complexa que vai demonstrando sua força poética aos poucos. Refugiado há 19 meses com um filho e uma filha, tendo sua esposa morrido durante a viagem, o viúvo recente que precisa reconstruir a vida (e a de seus filho) em terra estrangeira é construído pelo ator Eriq Ebouaney em pequenos detalhes. Primeiro sua dificuldade em se comunicar com sua namorada por causa da tempestade de emoções pela qual está passando. Ou sua maneira de guardar sua frustração em movimentos discretos de cabeça baixa e um silêncio perturbador. Ou até quando ele desconta pontualmente sua raiva, chutando aleatoriamente algo na rua, contra os revezes que impedem que ele conclua o que ele começou ao lado de sua mulher.
Do outro lado da equação temos uma autêntica Sandrine Bonnaire, que com sua polonesa Carole Blaszak não apenas legitimiza a causa refugiada, lembrando que leis de imigração já foram um empecilho para salvar vidas no passado não tão distante da Segunda Guerra, como com sua simplicidade tenta nos remeter, assim como Ebouaney, para a vida real, onde a maioria das pessoas são simples e esperam apenas ser deixadas em paz para trabalhar e seguir com suas vidas.
E como estamos falando de diferença de gerações, a pequena Aalayna Lys é uma revelação como Asma, que consegue harmonizar através da simplicidade e naturalidade a esperança e tristeza em sua expressão. Percebemos quando Asma está preocupada com o destino de seu pai, mas também podemos ver o quão genuíno é seu sorriso quando ela está vivendo um raro momento feliz de sua conturbada vida. E por fim temos seu irmão, o introvertido Yacine (Ibrahim Burama Darboe), cuja performance não temos muito como analisar, pois o rapaz aparece quase todo momento de costas ou escondido por sua jaqueta, e que talvez por isso funcione tão bem.
Exceto, é claro, quando ele precisa dizer alguma frase maniqueísta de Mahamat-Saleh, como "um pai de verdade teria documentos". O roteiro de Saleh tem muitos bons momentos, que são bons porque são naturais da história. As maiores falhas ficam por conta da tentativa de transformar tudo aquilo em uma fábula e elevar seus personagens à categoria de ícones dos tempos atuais.
Há um misto disso, por exemplo, na cena onde Ebouaney e Bonnaire estão aguardando o resultado de um órgão burocrático que permite ou nega a estadia de estrangeiros no país. Aquele amontoado de pessoas se espremendo para esperar sua vez de olhar a lista gera um dos enquadramentos que praticamente resume a situação do personagem de Ebouaney e de muitos outros personagens da vida real. O momento em que vemos que uma chinesa foi aprovada e ela começa a cantar e dançar é o tom fabulesco que o diretor adota para si, e com isso perde o peso de sua história. Ou, o resumo perfeito deste problema no filme, quando pai e filhos fazem uma pequena guerra de travesseiros, e penas de ganso voam por toda a sala. Isso aparece bem em uma story board, mas soa cafona e clichê demais para ser levado a sério.
Já como diretor Mahamat-Saleh se sai muito melhor, apostando em longas tomadas estáticas que apenas mostram a interação de seus personagens lado a lado, como a festa de aniversário de Carole. E de outra forma ele não se priva de mover sua câmera quando é necessário, como na sequência dos sonhos de Abbas, que enxerga sua mulher se afastando pelo corredor. E não podemos esquecer das tomadas externas de uma França periférica que aparece banhada por um sol de esperança e com ruas praticamente inabitadas. Sinal da hipocrisia dos que criticam a vinda de estrangeiros como se houvesse algum tipo de saturação populacional no continente que menos cresce no mundo.
Uma Temporada na França, como havia falado, é um resultado misto. Como filme-família ele se dá bem em suavizar até onde é permitido o tema da imigração de refugiados. Mas como um filme mais sério ele peca justamente por isso. Resta ao espectador entender este é um trabalho digno de nota por um lado ou pelo outro, ou se um acaba atrapalhando o outro.
"Antes que Tudo Desapareça" encontra o pior do trash dos anos 70 e mistura com algumas referências nada amistosas do Cinema mundial. No entanto, tenho um problema em odiar este filme. Mesmo sendo um pedaço imprestável de história esses malditos japoneses conseguem tornar tudo mais palatável. É um povo tão educado! Até seus piores filmes não inspiram o que há de pior no ser humano. Sendo assim, eu nunca diria diretamente ao diretor Kiyoshi Kurosawa "mas que lixo de filme, hein?". No lugar, faria uma reverência respeitosa e agradeceria pelo espetáculo. Talvez até decorasse algumas falas em japonês e as recitaria, se ainda me lembrasse após as duas horas e nove minutos da projeção.
Dito isto: mas que lixo de filme! Ele consegue tentar recomeçar sua história durante todo o tempo e nunca tem sucesso. Uma hora são alienígenas que tomaram o corpo de humanos. Outra hora os humanos que hospedam os alienígenas também estão ali dentro, mas não possuem o controle de seus corpos. Em um momento se trata de um vírus que ataca seu hospedeiro com delírios sobre a real natureza de seus atos. No momento imediatamente após este, são alienígenas mesmo e faz sentido o exército estar a postos para... para o quê, mesmo? Não importa, já que aparentemente o Ministério da Saúde sai em um furgão preto matando pessoas. São tempos estranhos...
Os alienígenas estão aqui para sugar os conceitos da raça humana. O que são conceitos? Basicamente são a essência do que nossas palavras significam para nós, algo que pode ser mentalizado para que esses sugadores de ideias se apropriem delas, deixando a mente da vítima agora sem esse significado. Quem explica isso é um alienígena no filme. E como ele sabe o que é um conceito, sendo este também um conceito? Não sei, e as pessoas que interagiram com ele acharam indelicado perguntar, talvez. Esses japoneses e suas interações cerimoniosas!
O melhor exemplo de como os japoneses são cerimoniosos é que os alienígenas praticamente não precisam usar a força contra os humanos para arrancar esses conceitos da mente deles. Mesmo no meio de uma luta: o alienígena pergunta para um policial: "o que significa a expressão 'eu mesmo'?". E o policial, muito respeitoso, para de lutar e se concentra para dar a melhor resposta. Isso pelo menos explica por que os aliens escolheram o Japão para atacar.
Temos aqui três desses alienígenas, onde dois se apropriam do corpo de jovens e o terceiro é o marido de um casamento em falência. Os aliens precisam de guias humanos para ajudá-los, o que explica porque eles vão estar sempre na companhia de alguém para fazer o seu showzinho e ir explicando os detalhes da invasão que pretendem realizar no planeta depois que conseguirem pegar todos os conceitos que precisam. Um jornalista se mete no meio deles e vira o guia dos dois jovens para conseguir fazer a cobertura do fim do mundo em primeira mão. "Esses humanos são fantásticos", exclama o alien no corpo do jovem; engraçado que o mesmo alien alguns minutos antes tinha comentado que "os humanos são uma das espécies mais comuns no universo". Ué...
A parte divertida do filme fica por conta de observar como sua história vai mudando conforme o tempo, incluindo seus personagens, e como o amadorismo de Kurosawa (e que paradoxo este sobrenome nesta expressão) consegue reduzir ao trash até as tomadas mais simples. Tome, por exemplo, o casal conversando enquanto anda pela praça. O momento não exige tensão, então a câmera só precisa realizar um travelling normal, sem trepidações. Só que a calçada não é lisa, mas daquelas cheia de detalhes que tornam o caminho tortuoso. Eu nem estava prestando atenção no chão, mas como a câmera me avisou, percebi. Também percebi que havia uma câmera os filmando, me arremessando imediatamente do filme.
Outro momento adorável é quando surge um avião sobrevoando uma área e começa a perseguir um personagem no solo. Munido de bombas, o avião eventualmente acerta uma bem perto dele, e em seguida o vemos estirado no chão. Note como há três pequenas pedras pegando fogo simetricamente posicionadas em torno do corpo no chão. Essa cena demora tempo o suficiente para você medir o ângulo entre as pedras e concluir que elas estão de fato enfeitando o cenário. E estão na melhor posição possível para o quadro. Muito bem feito!
Este é um filme que mostra que qualquer pessoa pode chamar a atenção subindo em um banquinho e falando um pouco mais alto. Também é um filme onde balas são invisíveis e não furam nem o corpo nem a roupa das pessoas, mas as tingem de vermelho e fazem elas andarem como se estivessem bêbadas.
E no final, bem no final, vai ficando claro que esta é uma mensagem genérica sobre como a humanidade está perdida atualmente de um jeito que não cabe nem tentar explicar, e só uma invasão para enxergarmos que precisamos mudar a nós mesmos. Aliado a isso teremos o velho clichê do amor. Sim, ele novamente. Mas aqui ele é adorável porque é feito por japoneses. E não é fofinho o jeito que casais japoneses demonstram afeição? Eles sequer se beijam; se abraçam. É que há câmeras filmando (olha elas de novo aí) e é feio se beijar em público.
"Antes que Tudo Desapareça" pode ser um longo espetáculo sobre como o trash sci-fi no Japão pode ser minimamente divertido. Ele também pode ser uma aula sobre Cinema. Todos os erros crassos de roteiro estão aí, embora muito bem equilibrados. E, por fim, é uma aula sobre como fazer um filme-catástrofe sem apelar para efeitos digitais de quinta categoria. Basta apresentar um conceito (ou dois) que descarta a necessidade de naves penduradas com fios, para não correr o risco de virar um Plano 9 do Espaço Sideral Oriental. Mas cuidado com seus conceitos: pode haver um alien por perto tentando roubá-lo.
Tenho o prazer desta vez de poder falar sobre um filme nacional que não dependeu de quaisquer incentivos públicos, produzido de forma completamente independente. E se fazer arte é um ato político, a produção de Todo Clichê do Amor diz muito mais sobre a época que vivemos do que qualquer manifestação na Paulista.
Com toda a originalidade possível que um projeto desses implica, a produção de Daniel Gaggini e a direção, roteiro e atuação de Rafael Primot elencam três protagonistas mulheres em torno de recortes exóticos do dia-a-dia dos relacionamentos amorosos. O objetivo é brincar com os clichês desses filmes de amor ao mesmo tempo que se faz um. Temos uma prostituta que ao mesmo tempo que cuida de um cliente de sadomasoquismo conversa com o marido -- ator pornô -- a respeito de seu desejo imediato de ter um filho. Enquanto isso, madastra e enteada trocam farpas sobre a vida ao terem que se encontrar sobre o enterro do pai/marido. E para fechar a trilogia a paquera inocente entre dois jovens que, diz-se, vivem mundos e destinos distintos, mas que no fundo... no fundo sempre há um clichê para juntá-los.
Este filme brinca com o sexo e o seu orgasmo é o clichê romântico. E orgasmos aqui nunca são alcançados, quase como uma metáfora sobre a definição do amor. Ou como a comédia no filme, pois apesar de estarmos presenciando o humor em momentos pontuais de histórias que arriscam ser leves, todo o texto existencialista que se finge de cotidiano não nos deixa desvencilhar do drama inerente de cada história. É como se a profundidade que Rafael Primot alcança com essas histórias sabotasse sua própria ideia de humor atrelada ao drama.
Isso quer dizer que o material apresentado neste filme, apesar de emular as narrativas frustrantes de globochanchadas ou até de romances piegas, acaba soando imensamente mais complexo, o que se torna fascinante por si só. Há vários momentos que a força da história não reside nela mesma, mas na auto-análise que o filme nos força a fazer, desconstruindo sua narrativa em prol da observação aguçada do que torna um clichê do amor uma matéria-prima tão essencial para a produção de histórias.
Tome, por exemplo, as narrações em off. Elas começam com os homens, mas dizem muito mais sobre as mulheres, objetos de desejo. E elas não são desejadas como objetos, mas como conceitos de seres humanos. E apesar de ser muito difícil enxergar um ser humanos neste filme feito de momentos, não é muito difícil perceber como uma atendente de hamburgueria que aprende língua de sinais para ajudar jovens carentes já é um pouco mais que um entregador aleatório "como qualquer outro que você vê na cidade", como ele mesmo se define (a atuação é do próprio diretor).
E esse é um dos elementos dos filmes românticos. Nunca é sobre as pessoas, mas esse sentimento que, como um vapor, paira no ar, e que ao tentar definir ele se esvai. É sobre comunicação, também. Temos aqui uma abertura para absurdos como nunca antes visto, já que o próprio filme em seu título (e na fonte dos créditos iniciais do seu título) já reverencia o lugar-comum, então nada mais justo que tentar fugir do comum o exarcebando. É apenas através dessa forma que é concebível um casal onde ela não enxerga e ele não tem paladar. Ambos se complementam de uma das maneiras mais estranhas e românticas possíveis. E esse casal simboliza que Rafael não está brincando em serviço.
E apesar disto, mais um símbolos do lugar-comum, as histórias que se entrelaçam, é visto aqui como ferramenta de entretenimento. No começo acompanhamos a conversa entre madastra e enteada como a realidade número um, mas conforme a história avança dicas importantes para as outras histórias que se iniciam serão lembradas nestas, ativando a isca plantada em nós, espectadores, já acostumados a tentar desvendar onde cada história se encaixa na outra. Pode ser uma ficção dentro de outra no melhor estilo Mundo de Sofia (o livro de filosofia de Jostein Gaarder), ou pode ser algo mais poético como as vidas que se cruzam em Um Beijo Roubado (o filme de Wong Kar-Wai de 2007). O mais importante aqui é que não nos importamos (muito) em desvendar o processo, mas ele fica no nosso inconsciente, o que aumenta nossa atenção; cada detalhe das historietas poderá ser importante para montar este quebra-cabeças, incluindo as formas de enxergar o amor de cada personagem.
E por falar em personagens, não é muito difícil se sentir apaixonado ao admirar o sorriso aberto de Débora Falabella, a atendente da lanchonete que poderia ser uma versão resumida da já-resumida atendente da primeira história do longa de Hsiao-Hsien Hou (Three Times). Vemos seu sorriso ao vivo através dos olhos do atendente "humildão" que sabe se expressar melhor do que imaginaríamos, mas mesmo a foto do sorriso de Falabella no quadro de funcionária do mês já seria suficiente para inspirar suspiros colegiais. E o fato de Falabella manter uma história com tão pouco texto a ser dito é o que torna seu sorriso mais poderoso. Ela é falante de libras, a língua de surdo-mudos, e ela brilha em uma cena inusitada onde sua fala é dita em libras. Não sabemos na hora o que é dito, e isso é importante para entendermos a força que a atriz possui naquele singelo momento.
Difícil é a tarefa de Marjorie Estiano, que não se encaixa em nenhum dos quesitos do que nós homens chamamos de "mulherão". Ela, Estiano (desculpem, não resisti), tem que performar uma prostituta de luxo com um certo ar misto entre familiaridade e incompetência. Consegue deixar a marca de uma garota que fez isso a vida toda, ou trata sua profissão como uma banalidade. E aqui o humor funciona melhor, não nas falas, mas na situação que a fala denota. Ela liga no meio do programa fazendo uma lista de mercearia. O tom que ela emprega para citar os usos do chantily demonstra mais a segurança da atriz do que seu uso do famigerado e desgastado chicote de BDSM.
Enquanto isso o dueto teatral entre Clarissa Kiste e Maria Luísa Mendonça funciona justamente por estar inserido em um filme teatral. As falas de Clarissa são ditas em um tom levemente ficcional, o que lembra o estereótipo sem largar a personagem. E Maria Luísa entrega uma mulher à beira de um ataque de nervos sem perceber que ela evapora diante da postura firme, pseudo-melancólica e com um quê de mimada de Clarissa. Clarissa faz uma surda que usa aparelho, mas este é um detalhe que nos lembra mais da importância da inclusão de deficientes em filmes do que um aspecto do personagem, estereótipo ou não. Ele é usado em momento climático, mas não precisaria. Se trata daqueles elementos de cena que se pensa mais sobre ele do que na verdade mereceria.
Além de atuar, Rafael Primot dirige aqui com absoluta tranquilidade e uma certa petulância, que pode ou não fazer parte do jogo dos clichês. Apostando nas cenas mais fechadas ele mantém o orçamento sob controle e nos traz mais para a intimidade daquelas pessoas. Foram sete dias de filmagens com pouquíssimo tempo para ensaios que realizaram um pequeno milagre que merece ser visto na tela de cinema. Há algo aqui querendo ser dito sobre o processo de "amorização" do cinema, e pode ser algo que não havia sido dito antes. Ou, sei lá, talvez nós estivéssemos entretidos demais nos velhos e eficientes clichês do gênero.
Se antes filmes medíocres de Spielberg poderiam contar com a sua emoção e carisma em conduzir uma história para subir sua média próxima do aceitável, em Jogador Número 1 esse efeito inexiste, pois estamos lidando com fantasmas sem alma como os heróis de um jogo cujas consequências na vida real já foram preguiçosamente definidas antes do jogo começar.
Por outro lado, imagino que impacto este filme terá para as futuras gerações, estas sim, já aprisionadas em um verdadeiro beco sem saída, incapazes de sentir qualquer coisa e optantes por isso, ignorando um mundo desagradável demais para suas timelines. Não que as pessoas já não façam isso, ansiosas por sentimentos explosivos artificiais todo o tempo, seja através de comida, vídeo-games ou de filmes como esse. Porém, a tecnologia tem tornado cada vez mais simples colocarmos nossos óculos da ignorância, a ponto de um dia a tecnologia em si ser mais humana do que a espécie que a utiliza.
Aqui definitivamente Spielberg conseguiu. As emoções desta história se concentram principalmente nas infinitas referências aos saudosos anos que a infância dos espectadores estão inadvertidamente presos desde que o presente se tornou um fardo pesado demais. Estamos na cidade fictícia de Columbus, onde vive o heroizinho do filme, Parzival/Wade, órfão graças a uma corporação do mal, a IOI (gostou do nome? então talvez goste desse filme). Ele vive na periferia, onde há casas apinhadas, mas ninguém liga, pois todos praticamente vivem na realidade virtual, em especial um jogo criado por um gênio da computação do passado, etc. O próprio Parzival vai explicar isso no começo, além de outras coisas. A narração em off é apenas o primeiro, mas não mais usado, recurso preguiçoso do longa.
O mais usado são efeitos digitais. E explosões. E músicas pop de época. E luzes piscando. E Alan Silvestri exagerando cada nota de sua trilha sonora, comentando o filme de cabo a rabo com força o suficiente para assistirmos tudo de olhos fechados. Talvez fosse uma boa ideia.
Mas quem quer deixar de ver Gigante de Ferro, T-Rex e tantas referências pop literalmente pulando na tela? Apenas uma figura como Spielberg, produtor e detentor de tantas "marcas" do passado, e digno de conseguir licença para outras tantas, para produzir e dirigir esta façanha. Dessa forma, não é surpresa alguma que quando Parzival tira seu carro para uma corrida "descobrirmos" se tratar de um DeLorean, o carro usado por Doc. Brown e Marty McFly em De Volta Para... ah, se você cogitou em ver esse filme já sabe disso.
Aliás, este é um dos detalhes mais irritantes no longa. As referências são usadas como muletas, mas os personagens que vivem dentro delas a idolatram não pelo que representam, mas por serem... referências. Isso por um lado diz muito sobre o espectador saudosista que assiste Stranger Things por falar sobre os anos 80, e não pelo que ele tem a oferecer hoje. Consumidores estes que comem Member Berries (South Park) no café da manhã. Isso porque -- e mais uma vez a premissa do filme -- a vida real, o tempo presente, é muito insuportável para quem já tem uma visão idealizada do paraíso: os anos 80 dentro da televisão. Afinal, é muito mais divertido, embora não original, pegarmos nossos DeLoreans e venerar o que hoje é visto como grandes clássicos, embora na época provavelmente era visto como o último ou o primeiro Vingadores e não se lembrar direito qual é qual.
Este filme está obcecado em contar uma história adolescente que tenha uma sensação de aventura tão falsa quanto em um videogame. Ou talvez mais, já que gamers podem pelo menos sentir algo a mais controlando seus avatares e sendo responsáveis por seus atos. Aqui nem Parzival nem sua trupe sentem o peso de suas ações, e muito menos as centenas de alienados que os seguem. Isso porque a maior parte da ação se passa no jogo virtual, onde os avatares são criações diferentes das personas vistas na vida real, gerando um descompasso.
Porém, esse descompasso entre avatares e pessoas de fato está longe de ser dramático como na vida real, onde uma linda garota em um RPG pode ser de fato um grandissíssimo gordo nerd entalado em sua cadeira de gamer jogando por 24 horas em seu porão se alimentando de pizza vencida há dois dias. Aqui a mocinha do filme sequer é feia. Ela tem uma marca de nascença que a torna mais sexy! Ela é Olivia Cooke, descolada, bonitinha. A frase do nosso herói: "não estou decepcionado em te ver na vida real".
Ao mesmo tempo em que brinca inocentemente com questões sociais interessantíssimas como essa, que poderiam ser melhor exploradas, o roteiro de Zak Penn adaptado de um romance utiliza o vilão clássico, personificado, que na liderança da corporação capitalista malvadona (lembra dela?) irá fazer o possível para conseguir um legado deixado pelo criador do jogo em forma de enigmas. Você já viu esse filme antes, algumas vezes, e com melhores desculpas.
As cenas de ação, pelo menos, recebem a mão habilidosa do diretor, que desde As Aventuras de Tintim ganha gosto em explorar as possibilidades da câmera em mundos virtuais. Porém, mesmo aqui, há muitas sequências cheias de cortes frenéticos onde fica difícil de acompanhar minimamente o que ocorre. Mas este não é sequer o maior problema. Estamos acompanhando um épico sem motivos válidos para nos emocionarmos. Tudo é tão vazio quanto um avatar sem jogador presente. Aliás, nem Mark Rylance e Simon Pegg no elenco, pesadamente maquiados/virtualizados, conseguem entregar humanidade.
Com crianças que fingem ser adultos, incapazes de se divertir como os Goonies, e um Spielberg que finge ser uma criança discutindo história, economia e política, Jogador No. 1 tende a atrair pessoas afeitas ao saudosismo. Ela podem até se lembrar de quando o diretor trazia alguma novidade interessante através da emoção. Aqui a emoção ficou cara demais para surgir no pacote básico do game.
Tudo que Quero é um road movie onde as emoções estão empacotadas e sob controle. Não há nenhum momento no filme inteiro que você teme pela sua protagonista. Seu sorriso nos diz que tudo vai dar certo. As expressões das pessoas que gostam dela também. Ninguém está verdadeiramente desesperado pela situação, pois, afinal de contas, o que pode acontecer de ruim com uma garota linda como Dakota Fanning perdida sozinha na estrada?
Este é um filme seguro para assistir inteiro ou em partes e sem prestar atenção. Ele não arrisca nada em sua criação, e portanto no final não há ganho algum. Se trata de um passeio no parque dentro da mente de Dakota Fanning fazendo uma garota autista que acaba se revelando uma excelente escritora, de acordo com sua cuidadora (Toni Collette). Ela fez 400 páginas de um roteiro para um concurso que comemora os 50 anos de Star Trek, sua série de TV favorita (o clichê dentro do autismo). Ela está sendo cuidada em um centro de tratamento de pessoas com necessidades especiais, saindo de uma infância obviamente problemática, mas já conseguindo andar sozinha pelo bairro e trabalha em uma loja da Cinnabon (que é tão boazinha que contrata autistas e patrocina filmes que desmistificam o autismo). Seu conflito é ser mais independente, morar com sua irmã, que acabou de ter um bebê, e até cuidar de sua sobrinha. Ela gosta de bebês e cachorros pequenos. E este filme, é claro, tem um cachorro pequeno com uma roupinha da tripulação da Enterprise.
Então o roteirista Michael Golamco adapta sua própria peça em que a garota autista precisa entregar seu roteiro para o concurso, mas os Correios já fecharam, e convenientemente só irão abrir um dia depois do prazo limite para participar. Ela, então, foge um pouquinho da rotina rígida que a permite ter uma vida normal para seguir em uma aventura onde tudo poderia dar errado se ela não encontrasse almas caridosas pelo caminho. Ela encontra uns ladrõezinhos, também, mas eles são tão bondosos que a deixam ficar com seu caderno de anotações e algumas moedas que somam a quantia exata para manter o drama de "será que ela vai conseguir?". Ela precisa realizar a façanha de entregar seu roteiro porque ela precisa provar que consegue ser independente. Isso enxergamos na personagem criada por Fanning a despeito do roteiro não nos dar muitas pistas sobre isso exceto uma cena com sua irmã em sua única visita.
Olhando pelos lindos olhos de Dakota Fanning enxergamos um esforço sincero em ser a menina excepcional que infelizmente tem algumas limitações emocionais em sua cabeça. Mas ela é brilhante. Ela consegue reescrever seu gigantesco roteiro de cor (a única piada do filme é imaginar um episódio de Star Trek vindo de um roteiro de 400 páginas). Seu roteiro atrai a atenção de quem o lê, mas nem isso sua atenciosa cuidadora consegue fazer. A cuidadora, uma desperdiçada Toni Collette, comete um erro comum de convivência no dia a dia com pessoas que amamos, excepcionais ou não: dar atenção para o que menos importa. Ela é orgulhosa dos avanços na rotina de sua paciente, mas durante todo esse tempo foi incapaz de pesquisar o que é Star Trek.
Enquanto isso, a irmã vivida por Alice Eve é uma versão frustrante de uma pessoa comum incapaz de lidar com o fato de que sua caçula às vezes foge do controle, mas na maioria do tempo está bem. O filme inadvertidamente acaba revelando a doença americana de enxergar doença em tudo que fuja de um padrão de comportamento aceitável. É uma bênção que não exista ainda um remédio a ser vendido para autismo, pois ele seria rapidamente topo dos prontuários médicos de autismo em todo aquele país, causando mais um problema crônico criado pelo TOC coletivo de não aceitar a não-individualidade alheia.
Em um momento ou dois do longa você será brindado com suas belíssimas músicas, cuja trilha sonora fui incapaz de encontrar. A trilha temática de fundo do brasileiro Heitor Pereira possui uma graça em sintetizar o humor convencional com a leveza da história e a repetição de padrões (não apenas no filme, mas no gênero). Sendo brincadeira ou não, funciona, e o espectador é levado a acreditar que ele também é autista. E se torna um autista impaciente em algum momento dos longuíssimos 93 minutos do filme. Só espero que nas sessões comerciais as pessoas tenham a decência de sair da sala em vez de começar uma gritaria e bater na própria cabeça.
O que torna o filme longuíssimo para o que ele se propõe é sua incapacidade de enxergar qualquer momento que se pareça verdaderiamente necessário. Tudo que acompanhamos de sua jornada não serve para acrescentar nada sobre a personagem de Fanning nem para levá-la a uma nova descoberta. Ela nem poderia, talvez, mas nós sim. No lugar de uma jornada o que vemos são apenas eventos -- um roubo, um acidente -- que vão se somando. Poderiam ser retirados do filme sem muito prejuízo da história. Poderiam fazer um website antes da produção para coletar eventos que seriam interessantes que acontecessem com a personagem. Um concurso de mini-texto. Quatrocentas palavras máximo, por favor.
Em outros momentos, os detalhes empregados tanto pelo diretor Ben Lewin quanto por Michael Golamco soam igualmente preguiçosos, seguindo a etiqueta do momento, o que em um filme que pode despertar alguma consciência social pelo autismo acaba soando cômodo demais nos detalhes periféricos. Dessa forma, a motorista de ônibus que começa levando Fanning para Los Angeles, onde ela deve entregar seu roteiro, é mulher e negra (pois é um sub-emprego), assim como o colega da moça no Cinnabon é um indiano. Porém, quando a motorista a enxota para fora no meio da estrada por ter um cachorro em mãos ela não pode ser mostrada, pois "pegaria mal", interracialmente falando. Mas se isso é desculpável em detalhes periféricos o que dizer dos centrais, como um policial que fala klingon a encontrar por acaso andando pela calçada e conhecer toda sua história? Isso só seria aceitável se Dakota Fanning em pessoa fosse autista, e mesmo assim ele pediria um autógrafo (em klingon).
"Tudo que Quero" como produção felizmente se beneficia de espectadores preguiçosos que possuem o dom de não investir muita atenção na sala de cinema. Ou no caso deste filme, até na sala de casa. Lançado nos EUA tanto no cinema quanto em streaming, ele já foi formatado praticamente para ser assistido enquanto se mexe no celular ou se conversa casualmente com as visitas. No final das contas o filme serve para seu propósito utilitário: uma trilha sonora bonita com alguns momentos que podem ser comentados sem sequer entender o que está acontecendo na história. A Netflix deveria pegar (mais) essa receita para seu caderninho de anotações.
# Pagliacci
Caloni, 2018-04-13 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Sobre o que fala Pagliacci, este pequeno documentário? Sobre palhaços, basicamente. Várias definições de profissionais e estudiosos do ramo, de várias gerações e sobre várias facetas. No entanto, você vai sair da sala com a impressão de ter ouvido mais do mesmo por 80 minutos.
Isso porque, dirigido por cinco pessoas -- e nenhuma delas lista o filme em seus créditos no IMDB, marca de trabalhos que não precisam de público pois já ganharam o dele -- e apresentando diversos profissionais respondendo a mesma pergunta (o que é ser palhaço?), o resultado fica mais ou menos repetido. Mas os participantes não têm culpa. Não há muita originalidade nas respostas porque, além de ser a mesma pergunta, a tentativa de sintetizar esse conceito milenar por pessoas que admiram demais este trabalho acaba virando uma homenagem com uma boa dose de emoção e pouca profundidade analítica. Alguns dizem que ser palhaço é ser... tudo. É por aí que vai o trabalho de "desconstrução".
E apesar de falar sobre palhaços, este não é um filme para fazer rir. Ele se leva a sério, mas não possui muito foco no que quer falar. Não demonstra o que é ser palhaço simplesmente mostrando alguns momentos dos shows. Eles são mostrados, mas estão dilapidados para analisar como ocorre "a mágica de fazer rir" no detalhe. Não consegue. Vemos um movimento de mãos, expressões maquiadas, o uso do malabarismo e acrobacias, iluminados por descrições burocráticas do processo em si. É como ver pessoas eternamente deslumbradas pela profissão, incapazes de deixar a poesia de lado e as frases prontas. Há uma gíria, deselegante, eu confesso, mas que pode resumir sobre o que este filme de fato é: uma babação de ovo bem feita.
O ponto alto fica por conta da produção. Editado e mixado impecavelmente, quem juntou tantas peças repetidas deste quebra-cabeças espaço-temporal merece créditos pela coesão. E diferente de muitos filmes nacionais, aqui sons, música (em uma ótima trilha que reúne símbolos) e fala são todas ouvidas sem prejuízo do espectador. É um trabalho fotográfico de primeiríssima qualidade, pois nos coloca em ambientes abertos (as ruas de São Paulo), fechados (o picadeiro), com tomadas próprias ou emprestadas de fontes caseiras, e tudo orna e tem cadência, e embora em seu processo artístico falte espírito, em nenhum momento sua estética deixa a desejar.
Mas faltas com o espírito em um trabalho que busca a essência de uma profissão, ou um estado que as pessoas ficam, ou são, é imperdoável. Produzido pela GloboNews, Globo Filmes, Canal Brasil e com verba da Ancine, este é um exemplo mais próximo de trabalhos de divulgação com captação de recursos do que uma exploração sincera sobre para responder a pergunta o que é ser palhaço. Além de tudo, há propagandas, incidentais, mas há, que ficam por conta dos grandes circos ainda em atividade (cujos nomes não irei citar porque você já conhece ou ouviu falar). E os pequenos, espiamos rapidamente, as últimas décadas os tornaram menores ainda. O dono de um deles exibe uma foto panorâmica das dimensões que o circo tinha nos anos 90, época que o frequentei. Mesmo montado na vila onde eu morava, posso afirmar: ele era gigante e seus ingressos disputadíssimos. Hoje ele se esconde na paisagem urbana e precisa ir para cidadezinhas do interior para sobreviver, e mesmo assim depende da boa vontade da população. Esta parte revela um documentário que ainda precisa ser rodado; mas não é esse.
Aos poucos se revelando como "um filme para fãs", sejam eles as pessoas por trás dos picadeiros ou quem conhece a fundo as referências de grandes nomes do circo, apenas a explicação sucinta e desajeitada dos dois papéis tradicionais das duplas de palhaços -- o Branco e o Augusto -- pode ser vista como "sou de fora e aprendi algum coisa". O resto, como o próprio letreiro da última cena, é um trabalho "sobre a amizade". O coleguismo do ramo consegue nas salas de cinema sua equivocada representatividade em um trabalho esquecível.
# The Handmaid's Tale (O Conto da Aia)
Caloni, 2018-04-15 cinema series [up] [copy]Esta série da Hulu pode ser vista como uma mini-aula de história e sociologia "a céus abertos". Começamos vendo uma família fugindo na floresta. Um pai, uma mãe e uma garota. Eles fogem das forças inexoráveis de um Estado autoritário (isso na prática, se você já assistiu filmes o suficiente, quer dizer que a família acaba ali). São momentos fortes que sintetizam o significado do totalitarismo na vida das pessoas, quando o coletivo vale mais do que a própria unidade básica da sociedade: a família.
Corte na cena com avanço rápido no tempo. Estamos com a mesma mãe de família, June, mas ela se veste com panos que remetem a uma época medieval, embora cercada dos mesmos seguranças uniformizados, camburões e rádio-patrulha. Ela é agora membro de uma unidade maior que sequestra o livre-arbítrio dos participantes dessa nova sociedade, onde a função das mulheres é a função que toda mulher carregou por centenas de milhares de anos e que havia apenas se libertado há algumas décadas: parir crianças.
Este é o pano de fundo de uma série que analisa em cada evento atual como a realidade deste mundo funciona e onde flashbacks vão nos informando como o passado foi alterado para chegarmos no ponto onde as casas possuem mulheres que são possuídas com o único objetivo de procriação. Em cada casa a matriarca organiza os rituais, onde cada marido, chamado de Comandante, copula com suas serviçais selecionadas para este fim. Quando vemos pela primeira vez esta cena do começo ao fim, é como se finalmente caíssemos na real e entendêssemos que tudo aquilo é "real", está acontecendo e, portanto, em uma hipótese bem frouxa, seria possível de acontecer em algum período da história onde as coisas deram muito, muito errado.
Ou talvez estejamos acostumados demais com nosso conceito atual de civilização e direitos humanos. Tão acostumados que ficaremos horrorizados diante desta nova realidade. Os hábitos e costumes desse grupo de pessoas parecem orquestrados via mandamentos religiosos (há frases de cumprimento que remetem a esta origem) em uma hierarquia que provavelmente será revelada aos poucos. Há algumas cenas de violência e cadáveres sendo expostos, incluindo uma sequência patética de um homem sendo agredido por uma massa de mulheres furiosas. Mas nada se compara a duas mulheres de mãos dadas no fundo de um furgão indo de encontro para a sentença de morte de uma delas. A cena é filmada em apenas uma tomada e está no episódio 3 da primeira temporada. Os três primeiros episódios dessa série são dirigidos por uma mulher, Reed Morano, mas Morano apenas consegue se soltar das amarras de um roteiro burocrático completamente na segunda metade da última destas primeiras três horas. E é tão impactante que é como se conhecêssemos essas personagens anônimas. Mas não é verdade. A história desta série, impregnada talvez pela cultura retratada, está mais preocupada com os eventos do que com as pessoas. Incluindo as mulheres.
E por falar nelas, esta é uma história dirigida e escrita primordialmente por mulheres baseadas no romance de uma mulher, o que faz todo sentido. Ela tenta explorar um pouco do processo reverso do feminismo em conquistar direitos, pois esses direitos vão aos poucos sendo perdidos. No final, o que resta é apenas o que as mulheres sempre fizeram durante toda a História: observar e tentar mexer os pauzinhos onde fosse possível. Mas tudo é muito, muito meticuloso nesse mundo, e a paranoia parece ser um estado de espírito necessário para que tudo funcione a cada novo dia.
A produção da série é primorosa, mesmo que simplista. Estamos em um futuro apocalíptico onde a fertilidade humana chega a níveis assombrosamente baixos. Uma gravidez, além de rara, gera aberrações genéticas para um bebê saudável. Esse provavelmente foi o estopim para revoltas sociais que culminaram em um controle praticamente absoluto da vida da mulher e dos homens em prol da procriação. E para quem achava que a Bíblia estava fora de moda, bom, ela está de volta ao jogo com tudo. Pelo menos na parte que interessa (crescei-vos e multiplicai-vos!).
A fotografia de Handmaid's nos oferece alguns conceitos díspares, assim como sua trilha sonora, como ao trazer inquietação em suas notas distoantes, além de uma inquietante música animada que surge na cena final e que ainda me causa espanto, pois nada na música reflete o que vimos no episódio (ainda não consigo interpretar o motivo dessa escolha). A fotografia faz o mesmo jogando luz e sombra em diferentes aspectos. O lugar mais iluminado é a calçada que contorna um rio, mas neste rio são pendurados os corpos dos sentenciados à morte (a execução é por enforcamento). O lugar mais escuro é dentro das casas, e parece que ninguém está podendo ligar a luz. Há uma crise no contorno de cada decisão técnica por trás da série, mas note como o que ocorre dentro das casas, apesar de poder estar sendo vigiado, tem um pequeno nível de privacidade. E um inocente jogo de palavras irá revelar como toda a realidade é interpretada por expectativas de nossas mentes, condicionadas já aos valores e hábitos da sociedade.
A protagonista, June Osborne, é encarnada por Elisabeth Moss, que usa seus longos e curvos lábios como oferenda em troca de viver um pouco mais, ainda que a única atividade prazeirosa de sua vida hoje seja lembrar de seu passado e torcer para resgatar sua filha desta loucura. Moss fez a esposa do lutador de Punhos de Sangue, que deu origem a Rocky - Um Lutador, e ela consegue ser feminina ainda que sob constante ataque. Aliás, mais do que isso: ser sexy sem ser vulgar. Esse meu comentário poderia soar extremamente machista (não que eu ligue), não fosse o caso de já estarmos em uma sociedade patriarcal aparentemente no nível mais hard possível (sem trocadilhos).
Osborne, porém, pouco pode fazer, pois sua protagonista é apenas nossa guia para este mundo, fora o roteiro que incha para dar lugar a dez episódios em sua primeira temporada. O grande trunfo do streaming é fazer o espectador ficar mais tempo assistindo, e quanto mais tempo de duração melhor para eles. Quem perde é a arte. Há ideias frescas que vieram da adaptação do romance de Margaret Atwood que remetem diretamente ao que as feministas acham do nosso mundo contemporâneo (e elas geralmente se referem ao mundo ocidental), e por mais que elas neguem a realidade e problematizem até o comportamento biológico do homem, o fato é que inadvertidamente The Handmaid's Tale consegue explorar muito bem o papel da mulher antes dos direitos humanos. Então, não, esta não é uma série feminazi, mas um estudo interessantíssimo sobre como nossos costumes é que regem nossos valores e comportamentos. Ele pode ser aterrorizante para mentes fracas, ou fascinante para quem entende que seres humanos podem ser horríveis dados os incentivos "corretos" (vide comunismo, etc). E o pior de tudo é que para quem nasce em um mundo desses tudo soa normal. A grande questão da série é o que acontece quando tudo muda muito rapidamente durante a mesma geração. E este é um assunto interessante a ponto de valer a pena assistir seus inchados episódios.
Já tentou desligar e ligar o computador de novo? Sabe o que quer dizer TI? Então talvez você goste dessa comédia britânica em formato de sitcom e seus momentos quase fora da realidade, que nos faz lembrar de maneira muito divertida como (não) funciona o ecossistema do pessoal de suporte técnico.
São dois os personagens principais: o irlandês alto, perdido e com toques afeminados Roy, e o nerd até os ossos Moss. Na pele de Chris O'Dowd e Richard Ayoade, a parte mais engraçada nem são as piadas, mas como o timing físico para comédia dos dois se encaixa em gags rápidas e sagazes.
Há também um elenco de primeira, em que a maior representante é Jen, a gerente de área técnica ideal: sequer sabe como funciona um computador. Com o seu próprio jeito solitário e estranho (não conseguir um namorado vira piada recorrente na série) Jen se comunica em alto e bom som com toda sua equipe de duas pessoas, embora seja ignorada pelo resto da corporação e assediada pelo seu chefe, um herdeiro inconsequente e tão bizarro que é capaz que um ser humano desses realmente exista.
As piadas apelam muito para o cotidiano britânico para atingir seres humanos normais, não sendo apenas sobre pessoas que conhecem a fundo computadores, mas sobre a visão de mundo dos que trabalham na área que só serve para resolver os problemas quando eles aparecem. Moss, por exemplo, o nerd típico dos anos 80 e 90, na pele de Richard Ayoade aposta em movimentos de cabeça sincronizados e falas cheias de pomposidade e formalidade, por mais informais que sejam as situações. Como um incêndio, por exemplo. Seu senso de humor é atípico, quase autista, mas isso não impede que ele seja autêntico. Alheio ao mundo real, seu distanciamento social é dignificante em vez de alvo de chacota, pois Ayoade nunca deixa de levar o seu personagem a sério, e encanta o espectador nessa criatura auto-centrada.
No outro espectro está Roy, que nas mãos de Chris O'Dowd divide com Jen as frustrações românticas da série, pois ele é o estereótipo do anti-charme do nerd, da miopia de estilo, dos movimentos bruscos e sem qualquer tato. Roy mantém um espírito que entende as mulheres, mas é incapaz de se dar bem com elas, exceto com Jen, com quem vai alimentando uma amizade platônica e distante ao nível de virarem parceiros de video-game. Roy é tão perdido quanto Moss, mas ao não admiti-lo, é o alvo das piadas mais maldosas, como a hilária sequência em que ele acredita saber a hora exata em que irá morrer naquele dia.
Jen, por sua vez, na figura da simpática Katherine Parkinson, consegue se sair bem na arte do exagero, com seus tons afetados e expressões enigmáticas. Seu tom de voz é exagerado e sofre distorções no espaço-tempo, menos por ser uma personagem para passar na TV e mais por uma atitude de auto-imposição em um mundo dominado por homens. Seu episódio-ápice é o que ela se insere em um drama auto-contido em uma referência ao universo soviético, em que os fumantes são vistos como os excluídos da sociedade e que resistem até o fim.
A série criada, escrita e dirigida pelo irlandês Graham Linehan expõe o melhor do humor britânico na TV para as massas. Não é algo experimental como Monty Python, mas tem seus momentos altos, mesmo que esses momentos sejam forçados pelas risadas e aplausos falsos de TV. E é uma obra que sobretudo pisca para o pessoal de TI, pois possui tiradas típicas de se comentar na hora do café.
E se você sabe o que é a hora do café em um departamento de TI, então, mais uma vez, The IT Crowd é uma série que você deveria estar vendo agora.
Que trabalho lindo de direção este de A Cidade do Futuro. Ele guia seus atores não-atores para realizarem seus símbolos. Ele conta uma história sem precisar das falas. Em suma, ele não precisa do elenco para narrar, mas os utiliza como potência e movimento.
Mas o movimento é meramente teórico. Não há atuações de fato, e o significado que extraímos de seus personagens ou é devido ao efeito Kuleshov, o teórico russo que há 100 anos descobre que a ordem na montagem das cenas muda o que sentimos por ela, ou é devido aos enquadramentos significativos da dupla de diretores, que não têm vergonha de soar tão basal em colocar um homem se ajoelhando em frente a uma mulher grávida e aceitando seu destino. Antes disso o mesmo homem rodeia a mulher em sua moto de maneira ameaçadora. Quer dizer, nós, espectadores, acreditamos ser ameaçador pela história que acompanhamos, de um triângulo amoroso entre pessoas que se amam mutuamente.
No começo do filme as dicas já são dadas. Ela, Milla, é uma professora de arte, e faz questão de deixar isso bem claro usando a mesma camiseta icônica com as máscaras do teatro grego. O pai da criança que vai nascer, Gilmar, é professor na mesma escola. São os mais jovens de lá, uma cidadezinha perdida na Bahia a 20 kms do Rio São Francisco. Ela foi construída pelo governo na geração passada para o projeto de transposição do rio, uma entre outras obras faraônicas da ditadura militar no Brasil. Os mais antigos lembram, mas esses jovens foram criados sem pais (apenas com mães), sem raízes e sem história em uma terra que ninguém quer.
Falar em História e Arte em um local icônico como esse exigiu duas corajosas decisões dos produtores: usar moradores da região para o elenco e adotar ao mesmo tempo uma postura teatral para o cinema. O resultado são momentos artificiais que emulam o significado daquelas pessoas inseridas naquela comunidade, em que os personagens ficam dispostos para serem pintados em um quadro, como dois jovens se abraçando dentro de uma caverna enquanto um declara seu desejo de se casar ao outro. Esta é uma história simples, mas a forma com que é narrada nos traz cores curiosas de um folclore sendo descoberto in loco, assim como as cores do fotógrafo do filme, Gabriel Martins, exibe uma diversidade de sentimentos que oscilam entre o pastel e o azulado, mas sempre empoeirados.
Empoeirados ou empoderados? O maior risco do filme da dupla de diretores Cláudio Marques (que assina o roteiro) e Marília Hughes é soar excessivamente dramático para o espectador. O clichê do amor proibido se multiplica em contornos mais perigosos se considerarmos que esta é uma comunidade no interior, tradicional, e que eles são professores, que há um casal gay envolvido e que, talvez o pior atualmente, os seus relacionamentos são líquidos, podendo durar de uma noite até a vida inteira, com uma ou mais pessoas.
Pensando ainda na ameça constante e oculta de ser punido por fazer algo "errado" na sociedade é mais um fator que enriquece a narrativa, além de fazer pensar. Note como o namorado do pai da criança, Ígor, vaqueiro e jovem demais, precisa agora sempre olhar quem o está seguindo quando caminha sozinho à noite. Suas tentativas de viver uma vida normal estão condenadas para sempre neste lugar para onde sua família foi jogada. Sua mãe não o aceita mais e já o avisava dos perigos desse romance não-convencional. Ao quebrar a tradição por necessidades fisiológicas, o longa que tenta unir o evento histórico da cidadezinha com a mudança espontânea da sociedade demonstra como é importante para uma comunidade se manter unida em torno de sua terra e seguir suas tradições; do contrário ela se dilacera em pelo menos duas: jovens de mente aberta e velhos retrógrados porque assim os foi ensinado (mas que eles mesmos não passaram adiante).
Ao observar que o único suporte que permanece nessa família construída ao acaso são de apenas seus membros nos faz pensar em como existem grupos de valores tão díspares habitando as mesmas ruas, o que não pode nunca ser saudável a longo prazo. É uma das marcas sangrentas da democracia obrigar que pessoas que seriam banidas de sua comunidade continuarem convivendo nesse caldeirão de ódio. A Cidade do Futuro tenta montar seu palco com base na defesa da tolerância, diversidade e amor, mas se esquece que esses são hinos vazios para quem nunca foi ensinado a respeitar o próximo. Se trata de um filme incompleto, com mensagens díspares, mas muito realista, mesmo usando seus tons teatrais demais. A música escolhida para o tema, "Jeito Carinhoso", está longe de ser política. Ela fala sobre o amor e afeto, assim como a história do filme. E com isso deixa claro que o filme não tem a menor noção do que quer falar, apesar de o fazer muito bem.
# Rogério Duarte, o Tropikaoslista
Caloni, 2018-04-18 cinemaqui cinema movies [up] [copy]A poesia é a pedra no meio do caminho entre a música e a palavra. Rogério Duarte
Eu gosto de colagens. Geralmente os apanhados de museu de arte moderna (chamados de exposição) são um convite inspirador para adentrar no âmago de um artista através de sua obra. Em "Rogério Duarte, o Tropikaoslista" há esse sentimento no sentido mais espaço-temporal do conceito, bem ao gosto do artista em questão e sua visão cósmica da realidade. Acompanhamos Rogério falando sobre si e sua história, que se mistura com outras obras de outros artistas (em específico Glauber Rocha, seu melhor amigo) e também se mistura com a própria história do Brasil da ditadura militar.
Isso porque Rogério foi preso e torturado naquela época, sendo um dos primeiros a denunciar o abuso. Mas sobre esse acontecimento o filme arranca apenas isso, e a câmera captura um jeito meio cabisbaixo, pensativo e impotente diante do próprio passado e do que sofreu.
O bom do longa de José Walter Lima é que aos poucos se torna uma pequena delícia ouvir Rogério e sua voz rouca e sua lucidez invejável; Duarte era vivo quando foram feitas as gravações (ele faleceu em 2016) um velhinho cuja característica mais marcante é a barba e bigode médios, mas extremamente volumosos. Seus olhos se escondem por trás de sua boina e suas sobrancelhas que crescem de maneira a completar a caricatura natural de sua face. O resto da caricatura está em seu comportamento, com sua dicção ritmada e um jeito com as palavras para conseguir descrever o que não é fácil de resumir.
O filme de Walter Lima, no entanto, "atrapalha" esse processo de descobrir o velhinho por trás dele mesmo usando de uma edição dinâmica, que une tudo que ele diz com trechos de filmes e gravações da época, tentando situar os vários momentos de várias entrevistas com o autor-título e o momento que ele vivia. Em resumo: uma colagem, nada original e faltando um pouco de ritmo.
O longa se divide temporalmente sobre sua fase e importância no movimento da Tropicália, enfocando enfaticamente, quase obsessivamente, sobre a ditadura militar, e discorre aos poucos no que se torna o brinde do filme, que é ouvir sua versão sobre seu próprio eu, no meio daquelas colagens de filmes de Rocha, músicas de Caetano e Gil, anúncios formais do governo brasileiro. Ele cita brevemente sua maior inspiração, o filósofo alemão Max Bense (vira e mexe vemos Duarte indo a exposições na Alemanha), e não se preocupa muito em se tornar erudito demais explicando sua arte da maneira técnica. O interesse maior de Lima é extrair o máximo de política possível para falar no filme; nem que ele use alguns momentos do Cinema Novo para reciclar o tema.
E por falar em técnica, aos poucos o lado burocrático do documentário dá lugar ao próprio Rogério, que é maior que isso tudo. Suas tentativas de definição passam pelo racional, mas é fascinante entender como é inatingível as outras camadas do ser, que ele hierarquiza de maneira muito própria, em corpo, mente, inteligência e alma. Assim como a dupla Raul Seixas e Paulo Coelho, ele é um maluco beleza. Diferente deles, ele não possui suas belas histórias retratadas aqui como no excelente documentário "Raul - O Início, o Fim e o Meio"; ou elas não existem (improvável).
Talvez no documentário não caiba Rogério Duarte inteiro, do começo ao fim; esse poço de "contradições". Ele diz no começo ter virado comunista desde jovem, e mais tarde diz ser uma pessoa religiosa e rezar duas horas por dia ("sou teísta", conclui), em um dos muito paradoxos que mexem com as convenções que estamos acomodados a tomar como verdade. É preciso lembrar nesses momentos que a luta marginal pela existência do controverso não existe para a vasta maioria da sociedade. Quando Rogério fala que disco X "foi um sucesso", imagino burburinhos de empolgação dentro do prédio da UNE e nos bares frequentados pela elite artística; mas só.
Mentor do movimento Tropicália antes de virar modinha (e ser absorvido pelo establishment), Rogério é preciso ao apontar que o artista é para a burguesia o bobo da corte. Ele se esquece de revelar, contudo, como esse bobo é alimentado com dinheiro público (como, por exemplo, este filme). Suas observações são atraentes para serem degustadas sem passar pelo amargo crivo crítico, mas quando a realidade bate à porta, como ele mesmo diz, não existe sonho tropicalista que resista a um AI-5.
Ele cria um método de criação musical que utiliza uma ideia que pegou de um livro, onde o autor usava cores para vogais; ele os usa também para notas, criando assim uma espécie de padrão para criação de músicas. Da época da entrevista ele tinha duzentas músicas gravadas em seu computador. Não afeito ao clichê de artista, diz ter usado o xadrez como um retorno à socialização, em mais um dos vários momentos viajantes de sua história. Rogério é o tipo do cara que quando foi se consultar com um médico para tomar LSD recebeu uma negativa porque, de acordo com o médico, se ele tomasse ácido nunca mais retornaria.
O caos é algo bonito se olhado da maneira certa. Rogério Duarte com certeza merecia um longa para registrar sua passagem na Terra. Este é um longa que torna isso possível praticamente apenas acompanhando suas viagens e ouvindo-o falar. Ainda bem que foi feito antes dele partir em sua nave espacial.
Você já assistiu esse filme. E mais de uma vez. Criatura estranha e incompreendida é vista como monstro, mas no fundo tem um bom coração. E se você tocar uma música a criatura pode até dançar. E no caso de A Forma da Água, esta fantasia aventuresca de Guillermo del Toro (Círculo de Fogo, O Labirinto do Fauno) assume estar atrás de prêmios como o Oscar, por ser fácil de digerir (fácil até dar sono, eu diria). A direção de arte é soberba e extremamente verde. A heroína vive em uma casa em cima de um cinema que ninguém vai e que insiste em passar clássicos bíblicos. Seu vizinho é gay e juntos eles se divertem vendo musicais em preto e branco pela TV. Ele faz desenhos de publicidade, um mercado que está sumindo por conta das fotografias. E ela é uma faxineira de um centro de pesquisa inacreditavelmente incompetente. Junte tudo isto em uma alegoria tão séria quanto robôs gigantes lutando contra monstros apocalípticos.
Michael Shannon faz aqui um dos personagens mais caricaturescos já inventado. Ele é o homem branco hétero obtuso dos anos 60 na visão da feminista justiceira social mais ferrenha. Imagine que ela assistiu Mad Men e pirou, jurando vingança no processo. O personagem de Shape tem um emprego decente, uma esposa e filhos no estilo sonho americano (a casa dele é a única coisa no filme com uma cor diferente: amarelo). Ele deseja um carro novo, um Cadillac, símbolo daquela era. E consegue. E adivinha o que irá acontecer com o carro de um vilão em um filme desses?
Já Sally Hawkins (As Aventuras de Paddington) é a primeira atriz a ficar completamente nua em um filme de sessão da tarde. E, digamos de passagem, está muito bem obrigado (e digo obrigado em nome de todos os marmanjos que levarão suas namoradas melosas para ver este filme, como um prêmio de consolação). Hawkins é uma mudinha que irá levar uma indicação pelo seu trabalho em cima de uma personagem vazia, enigmática como todos os outros no filme. Me diga uma cena em que você se lembra da expressão de Hawkins no filme que sintetize sua personagem e o que ela sofre. Ela sequer é a narradora. Ela não tem nem voz onisciente; em seu lugar um narrador de romance.
No fundo vamos percebendo que são todos estereótipos que representam exatamente o que eles deveriam representar. Personagens vão e vem apenas com sua função pré-definida. A esposa de Shannon aparece apenas para que o marido possa transar e se imaginar com a mudinha, quando em momento nenhum imaginávamos que ele tinha algum desejo por ela. Shannon não é o ator indicado para este papel. Mas quem seria? Um homem arrojado com um cargo de liderança que deseja faxineiras nas horas vagas? É preciso lembrar também que Octavia Spencer está aqui para inserir cotas e as piadas de cunho racistas precisam de um alvo, não? Quando questionado por Shannon sobre irmãos, ela diz não ter nenhum, e ele estranha. "Geralmente para pessoas como vocês (negras) isso é incomum". Comentários gratuitos e desvinculados da narrativa principal como esses (não há qualquer motivo dele ter perguntado sobre irmãos para ela) fazem parte de uma história maniqueísta que tenta jogar com a velha dicotomia bem contra o mal, onde o bem é uma monstruosidade criada em computador (com os movimentos de Doug Jones).
Conspirações de Guerra Fria, espécimes raras capturadas em florestas sul-americanas (apenas um exemplar, e querem usar no programa espacial; sounds legit), mudinhas cuja reviravolta já sabemos desde o primeiro momento que olhamos para seu pescoço, negras que preenchem cotas e são alvo de piadas racistas, brancos que preenchem cota e são alvos de ódio SJW. O pacote é vasto de personas, mas não há nenhum personagem tridimensional nesta história romantizada sobre um amor "impossível" entre dois outcasts (o filme é recheado de mais alguns). Enfim, se você gosta de verde e nostalgia, talvez esse filme seja para você. Do contrário...
Que filme impactante! E extenuante. Quando chegamos na última cena estamos esgotados, e não é pelas duas horas de projeção. Ciganos da Ciambra praticamente nos rouba a alma com seu fundo documental e histórico, e faz isso de uma maneira absurdamente tensa e atemporal. Quando o garoto do filme chega ao final, ele passou por tantas iniciações, e todos os passos necessários para se tornar um homem -- algo que ele deseja muito desde o começo -- que parece que o filme não vai terminar. Pelo menos para nós. Para ele, valeu completamente a pena.
E é sobre isso que o filme fala: pontos de vista. Na primeira cena vemos o patriarca da família de ciganos chegando próximo a um córrego, em um vale que se abre ao seguir um cavalo que vai um pouco à frente. Ele acaricia os pelos do animal cinzento, mestiço (símbolo), de maneira quase comunicativa, agradecendo por levá-los até aquele lugar. Em seguida, do córrego, faz para si um copo da água com meio limão espremido. Quando vemos o garoto preparando a mesma bebida para seu avô, já muito velho, usando o mesmo tipo de limão, mas a água da torneira, sabemos que uma geração se passou; e alguma coisa mudou naquela família de nômades.
O mundo mudou. E não existe mais mundo para um povo que vive de mudança. Com todas as terras ocupadas pelos países, as famílias ciganas eventualmente se assentam em algum deles, literalmente às margens da sociedade que as "acolhe". Sem a terra para lhes prover, acabam se tornando ladrões e trambiqueiros profissionais. A energia elétrica, eles puxam do fio mais próximo da rua. Roubam fios da rua para derreter o cobre. Você sabe o que as pessoas dizem sobre os ciganos, e isso em qualquer lugar do mundo. A polícia ir e vir para os prédios isolados onde essa família vive, trazendo e levando um ou mais membros para a prisão, já se tornou rotina. Apesar do modus operandi ter mudado nessa geração, alguns valores permanecem; eles são um povo unido contra o mundo, seja ele formado por "italianos" ou imigrantes africanos.
Mas vamos falar sobre o garoto. Seu nome é Pio, da família Amato; Pio quer dizer "mais" em grego ou "piedoso" em italiano (e Pio Amato é o nome verdadeiro do ator que o faz). Ele está naquela idade que é velho demais para ficar brincando com seus irmãos menores e jovem demais para adentrar no mundo do crime dos adultos. Ele carrega os genes ciganos até nos ossos. Ele tem pavor de lugares fechados que se movem rapidamente, como elevadores e trens. Ciganos foram feitos para serem donos de seu próprio nariz, e não para serem conduzidos. Pio vive com sua família nesses prédios abandonados. O truque para tornar o filme real é elencar todos os atores como pessoas de carne e osso. Estamos falando de uma família inteira de ciganos romenos, a família Amato, que contracena como personagens da vida real, mas o fazem com uma propriedade assombrosa.
É uma decisão arriscada, mas que se paga, usar toda a família como elenco (15 pessoas aparecem nos créditos finais, todas com o mesmo sobrenome). Por conseguir encontrar o caminho entre o real e o imaginário, o filme de Jonas Carpignano ganha uma narrativa com os contornos tão arrojados que em vários momentos surge a dúvida sobre a ficção, ou a estranheza de saber que é uma história ficcional e ainda assim ficar pensando se essas pessoas são atores ou figurantes da vida real. Não por causa da atuação amadora, pois não é, se utiliza de cenas simples que vão compondo o mosaico de suas personalidades, em principal o garoto e sua mãe. E apesar dos momentos do filme não exigir muitos desafios de atuação há uma grata surpresa em alguns momentos. Essa família possui uma ginga impressionante. O que mais se paga desse experimento é observar como foi captada a essência do patriarca fundador, o avô, que vira um símbolo, e a matriarca atual, e enxergar o sofrimento e o passar dos anos nos olhos dessa mulher. A dor quase é transmitida diretamente para as câmeras.
E essa dor existe em quase todo o filme graças a uma direção furtiva de Jonas Carpignano, com câmera na mão e quase sempre emulando os passos de Pio, o seguindo aonde quer que vá, o que se torna mais dinâmico graças à edição que quase não se faz perceber de Affonso Gonçalves (da série True Detective). Sua liberdade lembra Sunny Pawar, o garoto de "Lion: Uma Jornada Para Casa", mas sem sua ingenuidade. Muito pelo contrário. No começo nossa bússola moral até nos deixa inquietos. Roubar é errado, aprendemos desde pequenos. Aos poucos, porem, vamos nos levando pelos valores que, sabemos, o garoto aprendeu desde pequeno. "É o mundo contra nós", já dizia seu avô. É outra decisão arriscada do filme não se justificar em nenhum momento, deixando essa decisão para o espectador.
Pio sabe que precisa passar por todos os rituais para ser considerado o mais novo homem da família. Ele sabe que precisa e sabe o que tem que fazer. Por causa disso ele se torna sempre a força motriz de si mesmo, se impulsionando naquele universo a despeito de todos dizerem que ele não pertence ainda a esse mundo. No caminho ele terá que fazer dolorosos sacrifícios, como a amizade com um africano. E mais uma vez a decisão de Carpignano é apenas nos deixar realizar este fato; afinal, os valores nós já sabemos, nos foram dados desde o começo; é o trajeto que dói.
A produção do filme brilha em seus detalhes mais sutis. Como a fotografia, sempre cinzenta e escura, demonstrando como essas pessoas vivem nas sombras. Exceto em um breve momento, onde Pio e sua mãe se abraçam, em um raro momento de descanso e de aconchego familiar. E nesse momento a fotografia é clara e límpida como comercial de margarina, demonstrando como o fotógrafo Tim Curtin, que estreia no cargo após ser responsável pela câmera em seu vasto currículo, está alinhado com os sentimentos do protagonista.
Já a trilha sonora é outra na categoria "vamos arriscar e ver no que dá". Embora escolher músicas contemporâneas e pop seja sinal de preguiça, aqui não é o caso, pois como estamos testemunhando uma história com pano de fundo real, a música se torna incidental, e mesmo que não tenha uma origem para o som, ela é sentida pelos personagens, o que inclui a ótima música final, que se sai muitíssimo melhor, por exemplo, que a música de Sia nos créditos finais do já citado "Lion", que abraça a mensagem sem se desvencilhar do clichê. Aqui não existe clichê, pois tudo é cru e reto.
E por ser cru é que Ciganos da Ciambra pode causar estranheza em muita gente. Não é um filme mastigado para o grande público, mas tem o apelo emocional necessário para os dispostos a se entregar em uma experiência intensa. Para os que se derem essa liberdade, prometo que irão sair da sala de cinema com alguma coisa para pensar, seja a sua própria vida ou a de outros neste planeta.
# Hype da Prévia de Vingadores: Guerra Infinita
Caloni, 2018-04-24 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Apenas pelo fato de eu ter que olhar para o pôster que ganhei no tour com Chris Pratt em São Paulo para me lembrar do subtítulo do novo filme dos Vingadores já demonstra que não sou desses nerds de HQs, games ou Cinema como plataforma de materialização de sonhos infanto-juvenis. Mas nada contra quem é. Muito pelo contrário. Foi de certa forma para mim um verdadeiro tour, no sentido literal da palavra, participar deste encontro com dezenas de miguxos e miguxas super-empolgadíssimos e extremamente catárticos em conferir a presença do ator e de uma enxurrada de YouTubers, e deixarem claro isso através de uma maré de aplausos que precediam e "pós-cediam" cada comentário mais engraçadinho ou revelador sobre o futuro da saga da Marvel nesta que eles chamam de terceira fase ou algo do gênero de seu universo cinemático.
O ator e, de certa forma, comediante, Chris Pratt, tem uma presença de espírito invejável. Ele está adorando tudo isso. Pratt não alterou em praticamente nada sua persona nas telonas e telinhas. Me lembro de sua figura ligeiramente acima da média e competindo com Amy Poehler pelo timing cômico de maior impacto em Parks and Recreation, série televisiva em que ele começou com uma ponta e logo tinha mais de 20% das gags. Ele é uma figura e tanto, verdade seja dita, e assim como Robert Downey Jr. em Iron Man e Ryan Reinolds em Deadpool, Pratt é o kinder ovo de mais uma série que começou despretensiosa e jogou um ar fresco frente à mesmice dos filmes de rapazes e mocinhas de collant coloridos (ultimamente mais os rapazes).
Todo este hype por Vingadores obviamente não é apenas devido à sua figura. Ele simplesmente era um dos atores principais presentes naquela noite, desta que está sendo anunciada como (não traduzirei, sorry) "the biggest crossover in history". E bastou para a Marvel dizer isto que começaram a brotar memes de tudo quanto é lado questionando essa afirmação tão pretensiosa quanto meia-dúzia de filmes onde os vilões pretendem destruir a galáxia e a única salvação está em nosso planetinha azul (precisamente em Nova York ou outra grande cidade americana).
Se a palavra hype é definida "como o exagero de algo, ou em marketing uma estratégia para enfatizar alguma coisa, idéia ou um produto", ou em outra palavras, "um assunto que está dando o que falar", os memes são o anti-hype cujo efeito é basicamente o mesmo, só que melhor, porque é cômico. Os memes servem para darmos risada de toda essa pretensão de que algo que está prestes a ser feito em nosso planetinha azul (salvar o mundo... pfff). E curiosamente os maiores sucessos de bilheteria inesperados da produtora de filmes foram justamente os primeiros filmes das séries já citadas (Deadpool também será uma série, caso você esteja tão desavisado quanto eu), e que, por uma ironia do destino, não tinham todo o hype criado por trás dos heróis já populares da editora de HQs, como Homem-Aranha, Os Vingadores, Thor, Capitão América, etc.
Por este fatores imprevisíveis da indústria de Cinema americano é que ter a figura de Chris Pratt sentado naquele palco, naquela bela noite em São Paulo, no Brasil, na América do Sul, cheia de fãs em êxtase pela sua presença e por estarmos tão próximos do maior crossover, talvez não da História, mas com certeza da História da Marvel nos cinemas, fosse o grande meme invisível que pairava no ar. Nós já sabemos que Vingadores Infinity War será um sucesso inequestionável. Mas não graças a esse hype. Justamente o contrário. O que foi construído aos poucos, nas fases anteriores até, com surpresas como Iron Man e Guardiões da Galáxia, e que hoje ocupam um destaque impossível de se prever dez anos atrás no pôster que hoje penduro temporariamente ao lado de minha mesa. Seria uma falta de educação guardá-lo enrolado na gaveta. Pôsteres de cinema não são mais o hype do momento: teasers de 20 minutos são. E isso me relaxa de certa forma.
PS: Naquela noite assistimos a 20 minutos ininterruptos do filme. E a maior mágica não estava em assistir a esta pequena prévia, mas em olhar para a plateia compenetrada. Isso não me relaxa, mas é este excitante mundo que gera os memes que eu aprecio.
# Lista Ligada; tá Ligado?
Caloni, 2018-04-24 computer lists [up] [copy]Uma lista ligada é uma lista de alguma coisa onde os elementos se ligam um no outro, ou seja, um elemento tem a referência do próximo. O tipo dos elementos de uma lista ligada pode ser inteiros, strings ou estruturas inteiras. Independente do que for, você vai precisar de uma estrutura. Sabe por quê? Porque existe além dos dados em si mais uma informação que você precisará guardar em cada elemento de sua lista: o próximo elemento. E é daí que surge a ligação da lista ligada.
struct Node { int number; struct Node* next; };
Sua estrutura pode ser simples e direta. Digamos uma lista ligada de números vai ter o número que esse elemento armazena e o endereço para o próximo elemento. Em C guardamos o endereço de uma variável usando um ponteiro para o mesmo tipo de elemento (no caso um struct Node).
O elemento mais importante de sua lista ligada é o primeiro elemento, pois sem ele você não consegue mais voltar ao início. Isso pode ser uma variável especial que não é usada para nada exceto indicar qual o primeiro elemento da sua lista. Essa variável não pode mudar, pois precisamos sempre ter uma referência para o início da lista, a não ser que o primeiro elemento seja removido (veremos adiante). Ele pode ser simplesmente um ponteiro para o "próximo" elemento,que no caso o primeiro elemento.
struct Node* head = NULL;
Este ponteiro começa em NULL porque a lista está vazia. Mas assim que inserirmos um item ele deixará de ser nulo.
struct Node* node = (struct Node*) malloc( sizeof(struct Node) );
node->number = 10; node->next = NULL; head = node;
Pronto, agora a lista não está mais vazia e a cabeça da lista aponta para o primeiro elemento. Note que você precisa sempre inicializar o membro next com NULL, uma vez que ele é o último elemento da lista e não possui próximo.
Para inserir um novo elemento você pode inseri-lo no começo, no fim ou no meio de sua lista. No começo é o mais fácil, pois já temos o endereço do primeiro elemento.
struct Node* node = (struct Node*) malloc( sizeof(struct Node) );
node->number = 10; node->next = next; head = node;
Para inserir um novo elemento no final da lista você terá que percorrê-la até achar o próximo elemento cujo membro next é igual a NULL, o que quer dizer que não há mais próximo. Nesse caso é importante saber se a lista está vazia. Se estiver basta atualizar a cabeça da lista e está pronto (como já visto).
struct Node* lnode = head;
if( ! lnode ) { head = node; } else { while( lnode->next ) lnode = lnode->next; lnode->next = node; }
Se formos sempre inserir um novo elemento no final também é interessante termos um ponteiro para o último elemento (o tail), que também pode ser um ponteiro e começa com NULL. Quando for inserido o primeiro elemento ele também será o último, então devem ser atualizados os ponteiros head e tail com o mesmo valor.
struct Node* tail = NULL;
É preciso prestar atenção quando temos muitas variáveis com o estado de sua lista sobrando no código. Cada atualização na lista envolve atualizar todos os endereços envolvidos. Preste atenção sempre na hora que estiver escrevendo e depurando seu código ou se arrependerá por horas a fio em um fim-de-semana perdido.
Acho que remover elementos da lista ligada é a parte mais complicada, pois temos que atualizar o elemento anterior, se houver, para que o próximo dele seja o próximo do próximo.
void del(struct Node* node) { struct Node* pnode = NULL; struct Node* cnode = head;
while( cnode ) { if( cnode == element ) break; pnode = cnode; cnode = cnode->next; }
if( cnode == element ) { if( pnode ) { pnode->next = cnode->next; } else { head = cnode->next; } } }
Para simplificar programação, depuração e análise de problemas a lista duplamente ligada, apesar de ser uma estrutura mais complexa, acaba nos dando mais controle sobre os elementos de uma lista. Mas este é assunto para próximo post.
Existia uma aura em mim que me dizia que o ator Paulo José era uma grande persona, e uma versão mais velha do Seu Jorge, uma figura presente em todos os momentos importantes da cinematografia nacional (e até mundial). Se você também tem este apreço por este ator não indico assistir a Todos os Paulos do Mundo, uma pseudo-homenagem inglória que perde em ritmo a mesma quantidade do que perde em brilho sobre quem foi, é e será Paulo José em nossas memórias.
O mais trágico disso tudo é que o filme é narrado na maioria do tempo pelo próprio Paulo José, uma espécie de convidado especial que atravessa sua cinematografia em uma série de colagens criadas pelos diretores Rodrigo de Oliveira e Gustavo Ribeiro, que assinam o roteiro do seu aparente brilhantismo em ligar cenas de diferentes filmes que o ator participou por temas crus, vazios, como o disparo de uma arma, uma declaração de amor, um momento de loucura. As falas de Paulo em todos os filmes se misturam em décadas e narrativa, se tornam um marasmo tentar acompanhar o significado de cada uma dessas falas, que ouvidas dessa forma soam obscuras demais.
"O ator é o significante, e é o filme que dará o significado para seu papel." Aqui a dupla de diretores não entrega o significado nem para o significante da pergunta "quem é Paulo José?", preferindo em vez disso deixar o mistério fluir por infindáveis 80 minutos. Sabe quando estamos assistindo a um filme ruim e o protagonista olha para a câmera e diz algumas coisas sem sentido, mas que soam importantes pela maneira dele falar? "Todos os Paulos..." soa exatamente assim, com a diferença que esse momento se repete indefinidamente como um eco que nunca diminui o volume.
E este eco se transforma em diferentes vozes de atores e atrizes que já trabalharam com o protagonista. O elenco secundário de narradores vai desde a figurinha repetida de Selton Mello (que repete a façanha de Paulo José em usar a mesma cadência em suas falas) até os que seriam verdadeiras pequenas pérolas, como Fernanda Montenegro e Joana Fomm. Esse pessoal, essa panelinha, faz parte de uma outra arte que não cabe ao cinema nacional. Eles fazem parte do teatro, e estão homenageando a arte errada.
Havia um experimento no teatro que Paulo retrata, chamado de Arena. Neste lugar uma trupe de atores entregava a coisa real, não-maniqueísta, de ser seus personagens. A distância do público era mínima e o efeito máximo. O resultado era a essência do que era atuar no seu sentido mais íntimo ou legítimo. Paulo José diz que nunca construiu um personagem, pois ele simplesmente o era quando estava diante da câmera. O trabalho de Rodrigo e Gustavo o transforma em um atuador de Paulos Josés, infinitos, pairando sobre a tela, em um delírio "Quero-ser-John-Malkovichiano" que acaba virando um pesadelo.
Há diferentes fontes de imagens neste filme em um trabalho admirável de pesquisa e arquivamento histórico. Fora os mais conhecidos Macunaíma, O Padre e a Moça, Todas as Mulheres do Mundo, O Homem Nu, Policarpo Quaresma e tantos outros, temos imagens de trabalhos menores e marginais que teriam se perdido facilmente. Aqui o trabalho do filme é legítimo e digno de aplausos. É verdade, o seu uso poderia ter sido muito mais frutífero caso não estívessemos acompanhando uma sequência caótica e desfigurada de momentos marcantes da filmografia de um ator. Ainda assim, o resgate da memória de um povo através de sua arte é uma missão nobre e respeitável.
Porém, se para isso teremos que burocratizar o cinema em documentários que tem por finalidade catalogar o acervo nacional financiado pela Ancine e realizado da maneira mais insossa possível, seria melhor queimarmos tudo e dar espaço para o novo, pois o velho é reconhecidamente valioso demais para ser revisto e assim estragar nossas tenras memórias de algo que parecia muito maior do que aqui é visto. E esta minha última frase está muito mais coerente do que a maioria das falas de Todos os Paulos do Mundo, o que é a lástima de sintetizar o impossível: o próprio ato de atuar.
Este é mais um filme sobre o processo de criação. Mas ele é tão intenso que se deixa levar como uma auto-análise do seu criador. Eu disse quase, já que Os Fantasmas de Ismael é um trabalho que se mantém sob controle se você olhar de perto, mas para o leigo, esta é uma aventura muito, muito louca, que com um pouco de esperança irá te dar alguns insights sobre como somos manipulados todo o tempo nas artes cênicas e na literatura.
Porém, este não é um trabalho obsessivamente controlado pelo seu roteirista como Adaptação, de Charlie Kaufman; tampouco é o caos se transformando em filme por acaso. Ele vai caminhando através do equilíbrio entre o coerente e a insanidade, aos poucos nos dando a impressão de estar assistindo a um trabalho de ficção, quebrando eventualmente a quarta parede da maneira mais sutil possível. Ele não nega isso, pois este é o assunto do filme, mas não deixa escrachado, pois você terá que perceber isso nos detalhes, como lágrimas que começam a escorrer quando um personagem diz a outro que ele deveria estar chorando, ou nos movimentos de câmera grosseiros que lembram filmes de suspense como os da época de Hitchcock (e não é à toa que o Bernard Herrmann, colaborador de Hitchcock na maioria de seus filmes, consta nos créditos musicais). E, assim como o próprio Hitchcock, a maestria do filme reside em esconder suas pegadas, mesmo que o assunto do filme seja sobre as pegadas em si.
Ou seja, é obviamente sobre metalinguagem. O começo do filme é o começo de um filme sendo escrito e dirigido pelo seu protagonista, o fumante e bebedor compulsivo Ismael (Mathieu Amalric). Ele já carrega o gene do escritor clichê, mas ele desconfia também carregar o gene responsável pelos seus contínuos pesadelos, geralmente envolvendo a morte. Ele e seu sogro (László Szabó, quase sempre na penumbra, como um fantasma) mantêm este drama em comum. O que faz todo sentido, pois sua esposa, Carlotta, desapareceu misteriosamente há mais de 20 anos e nunca mais deu notícia. Este é um clichê literário que adquire uma expressividade arrebatadora nas mãos de Marion Cotillard, que faz a garota crescida surgindo inexplicavelmente como um fantasma, e que acabará desencadeando a maior parte dos acontecimentos a partir de então.
Explicar o plot de Os Fantasmas de Ismael seria não apenas uma tarefa ingrata, como inútil, já que o filme não é sobre a história em si, mas como os detalhes da possível vida real do escritor/diretor e dos detalhes de si mesmo e das pessoas em sua vida acabam se mesclando nos personagens que ele cria para suas histórias. Aqui o mais emblemático é um rapaz que acaba virando espião de uma organização fictícia no último filme que Ismael está dirigindo, e que combina detalhes de sua namorada (que é astrofísica) e de sua esposa desaparecida (surgir sem um passado, mas com muita vivência para seu novo emprego). Note, por exemplo, como ele segue seu interesse amoroso da mesma forma com que Ismael se oferece para conhecer a casa da personagem de Gainsbourg, mesmo depois dela deixar claro não se sentir confortável com a proposta.
Se Mathieu Amalric e Marion Cotillard emplacam um casal que não existe mais, mas que inexplicavelmente ainda têm muito em comum, como a impulsividade de suas escolhas e a intensidade com que vivem, Charlotte Gainsbourg refaz a personagem periférica de Lars von Trier em Melancolia de uma maneira mais sóbria, mais auto-centrada, mas visivelmente afetada por Mathieu, com quem vive um relacionamento complicadíssimo depois que sua ex-mulher retorna das cinzas do passado. Porém, o triângulo amoroso que se forma (outro clichê) aos poucos vira o combustível para que Ismael consiga produzir mais páginas de seu roteiro, o que vai se tornando cada vez mais claro conforme vamos ficando mais a par do processo criativo do sujeito.
Há referências para tudo quanto é lado sobre o cinema em geral e alguns trabalhos específicos, sobretudo de suspense. Porém, não é necessário conhecer nenhum deles, pois o filme os utiliza mais para a montagem de um universo ligeiramente exagerado que coordena duas ficções diferentes e que se cruzam nos detalhes de seus personagens. O paralelismo, apesar de desproporcional, funciona tão bem que somos levados a pensar sobre a narrativa ficcional da história principal por reflexo de acompanharmos um outro filme sendo produzido. E é justamente esse o exercício aqui proposto.
Os Fantasmas de Ismael é um filme em constante construção. Assim como sua história interna. Portanto, fica difícil percebermos qual é sua conclusão quando o filme termina. Por isso é tão importante para o espectador que ele entenda que o que está sendo discutido no filme não são suas histórias, fictícia ou não, mas o processo em si. Uma vez que isso fique claro, a viagem metalinguística se torna verdadeiramente original e fascinante. Principalmente se nos lembrarmos que o diretor (real) do filme está com tudo isso em seu controle.