"Cadê Você, Bernadete?" é um filme que projeta em seus humanos mensagens mais gerais a respeito de relacionamento e sociedade. Em algum momento alguém usa a desculpa de que a verdade é muito complicada e a resposta recebida é que sim, ela é complicada, mas isso não quer dizer que não devemos tentar alcançá-la.
O novo filme de Richard Linklater (A Melhor Escolha, Jovens, Loucos e Mais Rebeldes) alcança momentos profundos sobre a compreensão humana e consegue isso através de um roteiro com personagens que sabem que estão em um filme, mas que são interpretados de maneira tão intensa por Cate Blanchett e Kristen Wiig que você até se esquece disso. Aliás, esse também é um filme de altos e baixos, mas todos os altos são assinados por essas duas fenomenais atrizes. Elas estão tão acima da média que elevam até a interpretação da estreante Emma Nelson em uma cena comovente em que uma adolescente criada por uma mãe complicada a defende de forma autêntica.
A história é adaptada de um livro de Maria Semple cuja narradora é a adolescente Bee interpretada por Nelson, que explora o sumiço de sua mãe (sugerido sutilmente no início), uma arquiteta premiada, mas que com agorafobia passou a ter uma vida reclusa. A ideia do livro é ir lendo documentos, como emails, que possam levar Bee até sua mãe, mas o roteiro escrito por Linklater, Holly Gent e Vincent Palmo Jr. possui uma ideia melhor ao nos fazer ver Cate Blanchett narrando esses emails para seu celular e trancada em casa, o que sendo vizinha da moradora mais ativa da comunidade (Kristen Wiig) acaba sendo para ela o pior lugar para se morar em Seattle.
Casada com um engenheiro da Microsoft (Billy Crudup) e tendo seu trabalho premiado por genialidade destruído por uma celebridade por mero capricho, os homens (e mulheres, se considerarmos suas vizinhas) responsáveis pela vida que Bernadete leva estão alheios à sua existência, o que vira o tema mais bem explorado do longa: como não temos a menor ideia de quem são as pessoas com quem convivemos, seja dentro de casa ou atravessando a rua.
A tensão na história nunca soa manipulativa nem previsível, e os momentos com os personagens estão sempre sendo puxados pela sequência de eventos que leva, finalmente, Bernadete a sumir do mapa. Claro que são eventos que pode fazer você pensar em quantas coincidências são necessárias para enfiar uma psiquiatra e um agente do FBI em sua sala de estar, transformando brevemente um drama leve em uma comédia de Paul Feig. No entanto, por mais caótica que a história fique nós sempre seremos iluminados pela atuação de Blanchett, que está tão ou mais intensa do que em Blue Jasmine, quando ela faz uma daquelas personagens com tiques elevadamente nervosos de Woody Allen.
Mas por mais problemática que seja esta adaptação, "Cadê Você, Bernadete?" recebe o tratamento humano, libertador, de seu diretor. Richard Linklater não sai de casa para dirigir um conjunto de estereótipos dizendo diálogos inteligentes. Há um aspecto humano no filme que faz com que não importe tanto assim o que acontece nele, desde que possamos ficar mais tempo ao lado desses personagens, falhos em vários momentos, mas que justamente por isso podemos chamá-los de humanos.
A Camareira é um filme lento sobre uma pessoa lenta que nem sabe o próprio signo. O objetivo é termos dó dessa criatura, devagar no raciocínio, mas muito caprichosa, embora com movimentos de um zumbi, que vai aos poucos aprendendo que ser competente apenas beneficia aos outros. O drama surge na banalidade das ações do dia a dia, e essa banalidade contamina o próprio filme, pois ele aos poucos, em vez de se tornar relevante, se torna esquecível.
Evelia é a protagonista absoluta. Tudo gira em torno dessa pessoa dedicada e atenciosa que quase não percebemos que está desesperada. Com movimentos sutis ela vai ganhando a vida de forma dura, trabalhando quase todo o tempo como camareira de um hotel chique na Cidade do México cujos clientes são impessoais e rudes. Ela precisa limpar mais quartos para com a renda extra poder manter seu filho e a vemos o tempo todo dentro do hotel e de uniforme para termos a sensação de uma carga de trabalho tão pesada que ela já se esqueceu que é um ser humano. Mas Evelia é um ser humano, e como todo mundo possui desejos para si, como ser desejada, pegar um vestido vermelho nos Achados e Perdidos e ganhar o andar mais luxuoso para limpar.
Enquanto vamos desvendando a rotina dos funcionários do hotel através dos olhos da diretora Lila Avilés vamos montando nós mesmos esse microcosmos de onde nunca saímos. Os empregados são igualmente impessoais entre si, cumprindo ordens que fazem parte do sistema de funcionamento do hotel. Muitos tentam fazer um dinheiro extra no horário de trabalho vendendo comida e potes de plástico para os próprios colegas, e a familiar troca de favores entre faxineiras para cobrir os imprevistos. A rotina é estabelecida em torno do elevador, que leva Evelia para cima e para baixo em uma marcação de tempo que parece nunca passar.
Sem qualquer diálogo expositivo e muitos momentos em que simplesmente a vemos trabalhar, "A Camareira" é quase um zoológico cinematográfico para classes privilegiadas que assistem "filme de arte", e para os que sempre quiseram observar o habitat natural dessa profissão de limpar os quartos antes e depois de serem usados. Entretém por um tempo e depois a história precisa ser desenvolvida para não cairmos no sono. Isso não é falha da atriz estreante, Gabriela Cartol, pois ela executa passos precisos de sua personagem. Sem espaço para se expressar exceto nos poucos momentos em que ela desvia de suas funções ou as faz com alguma pequena diferença, o papel de Cartol é ser uma boneca orquestrada por movimentos de câmera dissonantes em busca de alguma compreensão desse universo do filme.
A direção de Avilés usa essa câmera intimista, subjetiva, sempre caminhando atrás e ao lado da jovem Evelia. A câmera na mão tem dupla função, pois além de nos aproximar da protagonista nos dá a noção do tempo real e imediato de suas ações, que parece nunca terminar. Colabora também não existirem janelas onde os funcionários trabalham, e mesmo nos quartos dos hóspedes os vidros das janelas disfarçam bem o período do dia, ressaltando a impressão que o tempo não passa, mas gira em ciclos infinitos.
Este é o filme ideal para os críticos de cinema realizarem algum discurso sobre o drama social dos mais vulneráveis, embora a história não seja condescente nesse nível. No entanto, há detalhes sórdidos manipuladores, disponíveis para os que estão cansados desse canto pelo pobre repetitivo e incessante poderem desmascarar a narrativa. Evelia come pouco no refeitório para economizar tempo e dinheiro, mas o filme cai naquelas contradições da vida real, onde uma jovem de 24 anos que trabalha como uma condenada e come muito pouco não se torna fraca e magra, mas mantém uma disposição incompreensível, e podemos também notar em um momento onde ela explora seu próprio corpo, robusto e sadio, que a narrativa não condiz tão bem com a realidade.
A Camareira quer nos impressionar, mas sem o esforço do elenco e produção. É uma experiência minimalista de um discurso fácil de replicar na ficção, mas difícil de se tornar o estado da arte que sugere ser.
Ford Vs Ferrari narra uma corrida histórica, mas seu pano de fundo é um conto de fadas estadunidense com o objetivo de levantar questões controversas a respeito da postura dos "homens de verdade" das décadas pós-guerra, sendo a principal das questões qual a envergadura moral de um Henry Ford II em levantar a bandeira do industrialista orgulhoso, quando tudo o que lhe resta dos tempos gloriosos e do trabalho duro de seu avô são milhões de dólares e influência herdados e empacotados na forma de uma diretoria pronta para concordar com seu chefe apenas por ser seu chefe.
Para quem trabalha na era da informação, onde boas ideias podem vir de qualquer lugar e nacionalidade, chega a ser risível a idolatria à hierarquia e nacionalismo dos anos 60, quando a própria geração de adolescentes já começava a se dar conta da mudança de valores no ar. O filme dirigido por James Mangold absorve essa atmosfera nos apresentando a ela primeiro, junto de seus principais personagens e conflitos, para depois nos aprofundar nos aspectos históricos da aventura.
Carroll Shelby é um piloto de corrida de automóveis de sucesso, o primeiro americano a vencer uma competição de resistência francesa e a se aposentar por problemas de saúde. Shelby se enxerga em seu amigo Ken Miles, um mecânico talentoso que entende de forma quase instintiva a dinâmica na pista quando participa como um piloto quase anônimo. Ambos representam esse lado ainda amador e nada glamuroso dos pilotos de corrida nos anos 60, muito diferente do que vemos hoje na Fórmula 1. E ambos são a versão artística que bate de frente com a indústria focada em produtividade e lucro de Henry Ford.
O roteiro escrito a seis mãos dedica boa parte do tempo em conseguir nos convencer de que esses dois mundos podem trabalhar juntos para ganhar do símbolo de velocidade entre os jovens, a quase sempre vitoriosa empresa de automóveis de Enzo Ferrari, um italiano raiz que coordena, diferente de Ford, não uma linha de produção em que a repetição transforma mediocridade em produto, mas uma equipe de artesãos, cada um dedicado a fazer a melhor peça de um automóvel para que, em conjunto, reine o estado da arte.
O resultado dessa história com detalhes demais para dar conta é um filme com peças sobressalentes, mas que na média oferece tensão e emoção, graças principalmente, além da direção, ao seu elenco. Matt Damon vive Shelby com a expressão enigmática de quem pensa muito mais do que de fato diz, mantendo em equilíbrio a rixa inevitável entre homens de terno arrogantes e a equipe dos homens de verdade que fazem o serviço de fato. Seu calcanhar de Aquiles é Ken Miles, com seu temperamento explosivo que se torna justificável frente a tamanho atrevimento cego dos homens do dinheiro. Miles é uma criatura autêntica cujo único intérprete com a energia e a capacidade de recriar até seu sotaque bem específico é Christian Bale (e a ironia da vida é que Bale também é conhecido nos bastidores como sendo uma criatura difícil de se lidar nas filmagens).
James Mangold estabelece essa dinâmica entre idas e vindas do roteiro em um nível morno porque nós sabemos que isso tudo vai dar na tal corrida de resistência da França, o 24 Les Mans, onde competidores devem correr pela pista por 24 horas. Toda a atmosfera dos vilões impessoais contra os homens de talento se paga quando os carros vão para a pista da corrida de 1966, materializada com computação e a fotografia de Phedon Papamichael, que nos faz pensar em como o sol na França cria padrões de cores muito mais ricas e humanas do que o eterno meio-dia do deserto americano. Nesse momento Mangold pode largar o freio de mão, pois praticamente tudo funciona, e Christian Bale pode finalmente homenagear os anônimos como Ken Miller, que fazem a coisa acontecer, independente das tramas que giram em torno de poder e dinheiro.
Ford Vs Ferrari possui já um público-alvo declarado, como os fãs de corrida e de automóveis, mas não fãs de filmes de ação como Velozes e Furiosos, que giram muito mais em torno da existência da ação do que os motivos por trás dela. James Mangold entende que qualquer cena tensa na pista envolvendo automóveis e pilotos só possui sentido se houver algo mais real em jogo do que planos de dominação mundial ou qualquer outra besteira que colocam nesses filmes onde pensar é opcional. Esse é um filme que glorifica elementos muito mais pessoais e por isso mesmo mais valiosos, como a integridade, a ousadia e o talento. Elementos que nenhum seguidor da filosofia Ford sequer irá notar a existência.
Logo antes da sessão de Os Parças 2 reli o texto do CinemAqui sobre o primeiro filme, para entrar no clima. Isso abaixou mais ainda minhas expectativas sobre o que viria. Mas não o suficiente. Agora o próximo passo é fazer terapia vendo algum filme ruim que pelo menos consiga divertir por tão ruim que ele é. Sharknado, por exemplo.
Em Sharknado a produtora Syfy junta o elenco que conseguiu arrumar para filmar um grupo de pessoas salvando uma cidade ameaçada por tubarões lançados por furacões vindos do oceano. A história é ruim e todos conseguem saber. Na produção sabiam disso antes mesmo das filmagens começarem, e esse detalhe é o único em comum com o filme sendo analisado. O objetivo de Sharknado é atrair fãs de trash que gostam da experiência de análise de cinema em tempo real de como fazer um filme ruim. O experimento deu certo e uma franquia de sucesso nasceu. No momento em que eu escrevo existem seis Sharknados catalogados no IMDB, sendo que o sexto já teve a decência de anunciar o fim da série.
Já Os Parças estão em seu segundo filme, e ele sequer serve como exemplo de como não fazer cinema, pois para isso seus criadores precisam ao menos tentar, mas um de seus astros, Tom Cavalcante, arrisca dizer que eles estão tentando preencher uma lacuna deixada pelos Trapalhões. Há sentimentos por trás de Os Parças, mas giram em torno de um mal estar generalizado, acredito que não por apenas um, mas por vários motivos.
O elenco do filme não é de atores, mas diverso, composto por comediantes, dinossauros como Tom Cavalcante e novidades como Tirullipa, e Whindersson Nunes, uma pessoa vinda do YouTube, onde ele faz enorme sucesso porque lá, diferente da mídia tradicional, há a liberdade de criar personagens, reais ou não, de bom gosto ou não, que caem no gosto de algum público. E como a internet vem mostrando, esse "algum público" que consomem esse conteúdo de humor está longe de ser desprezível (Nunes teve o canal com mais inscritos no Brasil por um ano e meio).
(Além desses comediantes há também uma pessoa chamada Bruno De Luca, ator de televisão em alguns papéis, mas que ficou mais conhecido nos tempos atuais pelo programa de humor na internet Porta dos Fundos, onde foi referenciado como Luquita da Galera. Além disso, conforme consta na Wikipédia, ele é conhecido também por ter pago 15 mil a um funcionário de hotel por ter sido processado e condenado ao chamar a vítima de "favelado".)
A produção desse filme se aproveitou do sucesso dessas pessoas. Em uma parceria entre Globo Filmes e 20th Century Fox, a recém-criada produtora Formata foi alavancada. Com seu primeiro filme, Os Parças, Formata é uma das que ajuda a solidificar esse modelo de engajar novas celebridades da nova mídia em projetos de exposição para outras mídias, como cinema. Dessa forma, todos ganham, comercialmente falando, mas a longo prazo todos perderão, pois o talento desses astros não está sendo usado para explorar o humor, e sim para gerar conteúdo futuro para a TV, em uma tentativa furtiva de "roubar conteúdo" dos canais de onde cada um faz sucesso.
O elenco é formado por pessoas talentosas, atores ou não, que conseguem público, cada um em seu próprio canal de entretenimento. O roteiro de Os Parças 2, escrito por Cláudio Torres Gonzaga, não usa as personalidades que tem à disposição para exaltá-los em material de qualidade, mas prefere utilizar um roteiro preguiçoso que continua a partir do primeiro filme e que usa pequenos truques de trama preguiçosos envolvendo um mafioso e o gerente de um hotel atrás deles junto de várias desculpas para que a ação ocorra em uma colônia de férias decadente para adolescentes.
A colônia não opera e serve apenas para lavagem de dinheiro, mas para conseguir levar a história adianta há uma colônia vizinha com recursos e outro grupo de adolescentes para formar volume e alguns conflitos artificiais que irão desencadear romance e importantes lições que todos irão aprender no último minuto do filme. Tudo isso para gerar situações de improviso para a turma formada por Tirullipa, Whindersson e Cavalcante, "apoiados" por De Luca (alguém para dizer algumas falas de encaixe).
A diretora Cris D'Amato não está no controle da situação. Ela apenas mantém o clima agradável para que seu elenco e produção façam o que já seria feito de qualquer forma, mas é em seus cortes e enquadramentos que a vemos perder a mão da narrativa, pois logo vemos que a câmera está onde obviamente deve estar, e não há tentativa alguma de criação falando de cinema, mas apenas diferentes palcos e cenários que na edição são unidos para compor uma comédia standup ao ar livre.
Justiça seja feita, é nos improvisos que surgem as piadas que essa turma consegue fazer, criando momentos que o espectador irá realmente apreciar de seus ídolos, mas em volta de tudo isso há uma história e um universo com humor zero, inspirado em novelas e séries televisivas em que não há a necessidade de desenvolver uma trama que nos envolva, mas apenas dar palco para que os talentos atuem.
Irreversível é essa experiência angustiante que vai desconstruindo uma história simples através dos seus momentos mais tensos. "O tempo destrói tudo" é o seu lema, e este é um filme que destrói o tempo antes que ele nos destrua.
Semelhante a Amnésia a cronologia começa pelo final voltando cena a cena, mas diferente do roteiro de Jonathan Nolan aqui o que torna o resultado palatável pelo espectador é a intensidade do que vemos, nos impedindo de esquecer o que move a história: o estupro de uma mulher e a vingança de seu namorado.
Este com certeza é um filme 18+ e seu diretor Gaspar Noé usa toda violência que o justifique, começando por um braço sendo quebrado de forma brutal seguido por uma cabeça sendo estraçalhada com um extintor, em um dos exemplos mais eficientes do quê a união de várias técnicas de efeitos visuais de nosso tempo consegue fazer. As ações ficam muito tempo em nossa memória, criam uma impressão forte, que será usada para a montagem de nossa percepção dos personagens, suas motivações e personalidades. É um filme imediatista, que se passa em apenas uma noite, mas isso não impede que nas entrelinhas haja espaço para refletirmos.
Note, por exemplo, como o amigo do personagem de Vincent Cassel, interpretado por Albert Dupontel como alguém que racionaliza até o ato sexual, e que se sente impotente ao que foi feito com sua ex (Monica Bellucci) ao encontrar o suposto culpado o agride até a morte certa, como um verdadeiro animal. E este é um filme sobre sexo e sexualidade, e o estupro é o momento central dessa discussão sobre o reflexo animal dos seres humanos, tão civilizados em alguns momentos, respeitando o fato que não estamos mais com uma pessoa como parceira sexual, até a traição banalizada, ou a possessão de um corpo pelo simples prazer e satisfação pessoal.
Este não é um filme moralista. Ele não se permite julgar as ações de seus personagens porque insiste em fazer o espectador pensar no que está vendo. Muitas vezes pensar no que está sentindo. Nós somos moralistas a maior parte do tempo, mas o que acontece quando um filme como esse coloca nossos instintos mais primitivos na nossa frente, como um espelho?
# Um Dia De Chuva Em Nova York
Caloni, 2019-11-07 cinemaqui movies [up] [copy]Um dia com um tempo incerto em São Paulo, variando entre sol, frio, calor e chuva, mas muitas pessoas compareceram para a cabine de imprensa. Em meio a uma carreira com altos e baixos, em que os baixos estão quase sempre acima da média, e uma agenda em que um trabalho é lançado a cada ano, diluindo as centenas de páginas geniais arquivadas de um diretor/roteirista dedicado nas últimas décadas a estar sempre filmando, a pergunta que gostaria de responder durante essa sessão era: Woody Allen ainda é relevante nesses dias? E nos primeiros quinze minutos de Um Dia De Chuva em Nova York, absorto nas entrelinhas existenciais de mais uma história banal em Manhatan, a resposta veio fácil, automática e enfática: relevante e necessário.
Necessário porque ninguém mais no mundo é capaz de discutir as mesmas questões que Allen coloca em seus filmes com tanto empenho e honestidade. Seus personagens reciclados como meros mecanismos de fala para seus diálogos servem ao plot, mas dentro de cada um deles há a essência de uma parte da humanidade que já resolveu as questões mais baixas da Pirâmide de Maslow e precisa urgentemente mirar no topo. Só que o topo para Allen é onde ele tem vivido por toda sua vida, e ele continua patinando no mesmo chão encerado das questões complexas dos relacionamentos entre duas pessoas, e tudo isso é inevitável para ele e para nós, pois relacionamentos nos definem e sempre serão uma questão mal respondida.
Neste filme ele se concentra em rever o relacionamento de dois jovens que se gostam e estudam na mesma faculdade do interior com base em suas experiências inusitadas em um fim de semana em Nova York. Gatsby Welles é filho de uma família rica em que a mãe define expectativas muito altas para sua carreira, e ele se revolta com estilo e classe ignorando qual carreira seguir, ganhando milhares de dólares em jogos de azar e desejando reviver a nostalgia de um tempo não vivido. Ashleigh Enright é uma garota do Arizona que está naquela fase de descoberta do que a fascina sem ter o conhecimento e a experiência de verbalizar. Ela consegue uma entrevista com um diretor que adora e com isso, em meio a imprevistos arrumados pelo roteiro, o casal arruma cada um sua própria agenda do que fazer na Big Apple.
Não é que o roteiro de Allen seja manipulativo. Isso nem seria uma acusação decente, pois todo roteiro precisa criar as situações para que seus personagens se desenvolvam, e nesse caso essas situações nem são tão desbaratinadas assim, são apenas extravagantes. Mas nós sentimos a pressão do roteiro em conseguir entregar o máximo de situações possíveis para que esses jovens estejam sempre em contato com si mesmos e revejam o que verdadeiramente desejam o mais rápido possível. E como Gatsby bem colocou, em uma mistura de auto-referência ao seu autor, "Nova York tem seu próprio cronograma".
O bom disso é que há espaço de sobra para os diálogos, que são a parte mais fascinante do filme, pois é nele que reside a reflexão dos seus personagens conforme eles vão cada vez mais se aprofundando no âmago do seu ser. Esta não é uma comédia romântica no sentido de nos divertirmos com encontros e desencontros para criar desentendimentos que geram tensão. Isso serial banal, mundano demais, para o estado atual da mente de Allen. Seus personagens são jovens, mas ao mesmo tempo maduros, ou pelo menos auto-centrados a ponto de entenderem durante o percurso o que precisam para se ajustar cada um à sua própria vida, e não apenas viver, como a maioria de nós, por comodidade.
Este não é um trabalho que realiza comentários sociais profundos e contemporâneos, muito embora haja aqui e ali alguma forma de encaixarmos o filme nesse aspecto. Porém, em sua essência este é um filme leve, que apenas percorre algumas possibilidades de nos divertirmos com personalidades alheias à nossa própria vida, e há várias delas no percurso, mas apressado, o filme não está interessado em se aprofundar em nenhuma delas exceto o casal principal. E apesar de Gatsby ser o protagonista e narrador, em uma atuação convicta, mas apagada, de Timothée Chalamet, é em Ashleigh, a personagem de Elle Fanning, que reside o tom que o filme deve ser visto.
Ellen Fanning está extremamente à vontade em seu papel e ela constrói algo além do que os diálogos de Allen conseguem. Ela é a própria vida materializada em sua beleza e juventude. Ingênua mas segura de si e sabendo detectar as segundas intenções de todos os homens que ela encontra em seu caminho, ela representa a inteligência e a segurança que gostaríamos de ver nas mulheres de hoje em dia. Há feminilidade jorrando na personagem de Fanning que não depende da existência de homens em sua volta para existir. E, no final do dia, é ela que decide o que fazer com o que lhe é oferecido.
Um Dia De Chuva Em Nova York talvez para alguns não seja "o melhor Allen" como as pessoas vivem esperando, como se houvesse algo além do topo do que o chão encerado. O fã do cineasta gosta de ser enganado com os próprios truques que ele colocou em sua carreira, e eventualmente o próprio diretor desvia dos seus princípios para simplesmente se divertir no processo. Porém, visto não como "mais um filme de Woody Allen", mas como uma divertida imersão nos anseios afetivos e existenciais de quem não tem mais nada que conquistar do que o próprio sentido da vida, esta provavelmente é a melhor sessão que você poderá ir esse ano sobre o assunto.
As tradições e os conflitos religiosos da Zona da Mata em Pernambuco são o pano de fundo de Azougue Nazaré, um filme que evoca seu tom de fantasia sobrenatural logo antes que poderíamos apostar de este ser um documentário. Primeira direção de Tiago Melo, este filme pode ser proposto tanto quanto um documentário da cultura da Zona da Mata quanto uma ficção solta sobre os conflitos atuais da região.
Melo, que já foi diretor assistente de Divino Amor, uma distopia social que envolve fanatismo religioso, vai buscar no realismo dos seus personagens a evocação do espírito de Nazaré da Mata, cidade de médio porte onde a maior parte da ação ocorre. Próximo do litoral nordestino, é lá que se juntam os poetas de repente, com seus cantos improvisados, e o Maracatu, um sincretismo religioso afro-brasileiro que envolve dança, música e religião. É lá também que observamos a invasão e opressão religiosa tomando conta na figura de um pastor evangélico que era um antigo mestre do Maracatu, além da revolta dos cristãos com as ações espirituais do pai-de-santo da região das plantações de cana.
Há uma mescla entre um elenco profissional e personagens reais da vida urbana que sugere um tom documental no início do longa que nos envolve na cidade e seus costumes. Apenas um olhar muito clínico ou a lembrança de trabalhos anteriores de Valmir do Côco (Bacurau) e Joana Gatis (Aquarius) que permite reconhecermos a ficção em meio à ação de transeuntes reais do dia-a-dia. Tiago Melo usa figurantes locais para dizer as falas, mas com isso o efeito, em vez de soar amador por não serem atores, soa mais intenso, comprovando um preparo de elenco impecável. Os repentistas do filme são um prazer à parte da história principal, mas Melo, junto do roteirista Jeronimo Lemos, faz questão de inseri-los no meio da narrativa como se fizessem parte dela, e os poemas que improvisam nos introduz à história principal, que gira em torno de um pai-de-santo evocando cinco figuras mitológicas chamadas de caboclos de lança.
Essas figuras fantásticas também não surgem destacadas da realidade, pois suas vestimentas são costuradas pelos habitantes da região, além de alguns apetrechos serem contemporâneos, como óculos protetores. Além disso, eles surgem através da rede elétrica que passa pela plantação de cana, em uma harmonização entre o real e o fantasioso que gera ainda mais tensão que a edição frenética entre esses momentos em uma trilha sonora mística e evocativa.
Ao contar a história de quatro a seis personagens centrais e as tensões entre eles envolvendo adultério e conflito religioso, Azougue Nazaré em muitos momentos nos larga para explorar mais a cultura e a tradição da região, e por isso sua narrativa é solta e exploratória. Sem querer explicar tudo ao espectador da forma convencional, somos levados mais a construir a historinha em nossas mentes ao observar cada novo detalhe que surge de maneira ocasional, quase aleatória. É dessa forma, por exemplo, que o personagem de Valmir do Côco descobre ter sido enganado pelo pastor a respeito de um versículo da Bíblia. Nada no filme nos diz isso claramente, mas a mensagem penetra mais fundo em nossa alma.
A Dark Song é um filme de terror minimalista, onde seu poder é construído pelas circunstâncias criadas em seu início e truques baratos de som e iluminação que funcionam justamente por causa do seu começo. Do jeito que eu descrevo parece o guia padrão para qualquer filme do gênero que se preze, mas infelizmente a grande maioria peca pelo excesso.
Aqui não. Este é um filme que desde o começo estabelece sua seriedade pela obstinada protagonista que encontra a ajuda que precisa e que não mede esforços nem dinheiro para realizar um ritual em que consiga evocar seres sobrenaturais que a ajudem a realizar um desejo. Sophia Horward é uma mãe em luto pelo filho e que fará de tudo em vida por um momento de paz.
Toda a atmosfera do filme é criada principalmente pelos diálogos entre ela e seu auxiliar, que é um babaca desde o início para não termos dúvida de que ele deve morrer no final. Mas de qualquer forma, a energia e o respeito pelos rituais de Joseph Solomon é o que nos mantém seríssimos a respeito desses dois, que irão se isolar em uma casa no campo por meses a fio na esperança de contato com o além-vida.
Essa dedicação e seriedade é o que não vemos em outros filmes, que inventam mitologias mirabolantes seguidas de imagens que impressionam pela falta de criatividade e de coerência estética. São sempre criaturas medonhas que habitam as mentes dos diretores de arte medíocres de Hollywood. Deve ser muito entediante a mente de um roteirista que vive em Los Angeles e que nunca teve contato com qualquer conhecimento ocultista.
A Dark Song é justamente o oposto: referenciando tudo e mais um pouco do que o homem já se utilizou para acessar algo além do que a ciência tornou enfadonho, os rituais deste filme estão sempre envoltos de um ar de respeito pela tradição. Não é que seus participantes precisem acreditar em algo. Eles apenas não têm alternativa a não ser seguir o que vários já tentaram e fizeram.
A dinâmica do casal enfraquece conforme o tempo passa, pois não acreditamos de fato que tantos meses se passaram. A relação e a aproximação entre eles pouco muda, e o que conversam sempre é em um tom informativo para o espectador, que é lembrado a todo momento de o quão sério e irreversível mexer com este mundo pode ser.
A loucura dos homens coincide com a loucura além-vida. No filme não há como saber se o que vemos aconteceu fisicamente ou na mente de Sophia. Exatamente como na vida real. Diferente dos filmes clichês, ninguém em sã consciência sai acreditando em tudo que vê e ouve, salvo se a pessoa já for uma crente (nunca é) ou, nesse caso, uma mãe desesperada, que aceita o salto de fé mais pela experiência de redenção do que para provar algo. É uma sinceridade inatacável, à prova de críticas dos mais céticos. Nesse sentido o filme é mais um drama intimista sobre os universos dentro de nossas mentes do que um parque de horrores que adolescentes querem ver na matinê.
A trilha sonora de Ray Harman nos introduz a cada novo momento da história reforçando o quão tudo aquilo é estranho. São notas dissonantes, feitas com instrumentos não feitos para serem tocados juntos. Não há rima, não há descanso nem harmonia. A música nos lembra para não relaxarmos, caso o dueto incansável de desentendimentos entre Sophia e Joseph não tenha sido muito enfático.
Este é um filme de terror sem sustos fáceis que se faz aumentando o som de repente. É antes uma viagem metafísica pelos nossos pesadelos de mesmo depois de mortos não haver descanso. Os efeitos e maquiagens são eficientes por nos lembrar que muito provavelmente o além-vida irá ficar devendo monstros horrendos demais, já que seres humanos em decadência, físico ou comportamental, já são esses monstros no dia-a-dia.
Por fim, A Dark Song pode ser acusado de desonesto em querer usar uma última reviravolta de uma jornada emocional insatisfatória. Isso acontece porque Sophia não é uma personagem complexa o suficiente para entendermos seus desejos. Ela se mantém apenas como um símbolo humano genérico e portanto incompleta para saciar nossos desejos de que pelo menos no fim um ser humano consiga a paz que tanto buscamos em vida. É frustrante, mas qual filme de terror bem sucedido não é?
Assisti Independence Day no cinema quando estreou. Levei minha mãe na maior sala da cidade de São Paulo, lá no bairro da República, próximo do Centro. O Cine Marabá, com quase 1000 lugares, que depois foi mutilado em mais um multiplex. A imagem da Casa Branca explodindo sob um raio vindo de uma nave alienígena gigantesca é uma das memórias mais vivas do cinema catástrofe da década de 90, e o resquício de uma época em que blockbusters eram filmes ainda raros, e que valiam o preço da viagem ao cinema, do ingresso e da pipoca.
A história é tantas dessas outras que Roland Emmerich se especializou em dirigir, como O Dia Depois do Amanhã e 2012, mas em meio à farofa, canastrice e a história sem sentido há um certo brilho que insiste em aparecer em uma cena ou outra. Pode ser quando o personagem do Will Smith abre a nave que acabara de vencer e dá um soco na testa do alienígena. Pode ser quando o personagem de Jeff Goldblum (na época famoso como o nerd de Jurassic Park) solta o seu "ops" depois que descobre que a nave-mãe mantém controle remoto da espaçonave onde está. Pode até ser quando o presidente interpretado por Bill Pullman resolve animar o último esquadrão disponível para chutar o traseiro dos aliens em um discurso que resume da melhor maneira possível o que significa esse inchado filme de ação. É sobre orgulho. Orgulho de fazer explosões soarem solenes.
Me lembro que este foi o primeiro filme a ser massacrado pelos nerds de computador de plantão. Ninguém comprava a ideia de hackear um sistema alienígena usando um vírus feito em um computador da Apple. Pessoas que estão tão compenetradas na história de uma invasão alienígena para reparar neste detalhe de falta de descrença já foram fisgados e estão apenas apontando o fio que segura o Superman voando aparecendo, mas que continuam admirando a capacidade de Christopher Reeve de voar.
Independence Day é o arrasa-quarteirões da década de 90. Possui uma história inadmissível que une diversos núcleos em torno de um vilão em comum. É a humanidade contra o efeitos visuais que ainda hoje impressionam (um pouco). E por mais que a poeira já tenha assentado nessas naves por mais de 20 anos, olhando de um certo ângulo ainda se pode perceber um brilho que insiste em existir.
# Retrato de Uma Jovem em Chamas
Caloni, 2019-11-11 cinemaqui movies [up] [copy]Apaixonado pela temática feminista, Retrato de Uma Jovem em Chamas é um filme que nos entrega o sabor de uma paixão que surge sem maiores explicações. Seus personagens são meras pinceladas de um passado histórico onde mulheres não possuíam muitas opções para viver, e a diretora e roteirista Céline Sciamma resolve dar essas opções por um breve momento e ver no que dá.
E o que surge é essa história que enquanto lembra um registro do passado sabemos ser ficcional pelo seu teor metafórico, apartado da "realidade" pelos tons das pinturas que cercam o filme. Sua protagonista, Marianne, é acompanhante, pintora e amante de Héloïse, uma garota que carrega o destino de sua irmã em estar comprometida para um homem do estrangeiro que nunca viu e com quem irá se casar assim que seu retrato estiver em suas mãos e o negócio for concretizado. Não é uma história com detalhes o suficiente para nos entreter porque Céline quer usar apenas esse gancho do mundo patriarcal para puxar discussões acerca da relação entre uma pintora independente da época e suas modelos femininas.
A fotografia de Claire Mathon no filme usa tons que foram tirados diretamente do estojo de Marianne. A iluminação diurna e noturna e os enquadramentos da diretora proporcionam um ambiente propício para vários "quadros" vivos que desejam representar o passado, como uma recém-chegada se servindo na cozinha de pão, queijo e vinho, três mulheres de status diferentes conversando na sala de estar, caminhadas à beira do mar e assim por diante. Essas imagens não querem dizer nada além de serem bonitas e evocarem um outro tempo, mas sem significado elas vão se tornando repetitivas e enfadonhas.
O minimalismo na trilha sonora, com apenas duas músicas, uma feita para o filme e uma clássica de Vivaldi, também evoca o espírito do tempo, em um mundo onde a única música cotidiana estava acessível na igreja. Marianne comenta que o lugar para onde Héloïse irá após casada, a cidade de Milão, respira música, mas ela já está sufocada antes de sair de casa. A dinâmica do filme caminha um bom tempo passando as mãos nas costas de Héloïse e lamentando a época vivida, e com isso denuncia ser um filme de época e possuir uma opinião simples e reciclada sobre a sociedade que critica.
A Marianne da atriz Noémie Merlant é por demais transparente, e quando reviravoltas acontecem não há surpresa alguma para o espectador; apenas impaciência. Céline se esquece que não existem amores proibidos entre duas mulheres em um filme feminista, e longuíssimas duas horas apenas descrevendo essa situação soa complacente, sem conflito, e faz a curiosa personagem de Noémie se perder no roteiro de Céline, adquirir papéis fáceis demais e rapidamente nos fazer perder o interesse.
Já a enigmática Héloïse de Adèle Haenel, cujo sorriso escapa à Marianne por boa parte do longa, é uma criação versátil que nos faz ficar curiosos por mais tempo. Infelizmente, mais uma vez o roteiro de Céline se revela por demais simplório, e todo o mistério por trás de uma personalidade reclusa e que acabou de perder a irmã suicida se revela banal demais. Todo o esforço de interpretação de Haenel é entregue a uma personagem que serve apenas ao propósito de encontrar brevemente um amor lésbico sem recompensa ou punição.
A diretora Céline Sciamma é especialista em retratar figuras humanas pelo sua situação específica. Seus filmes como Tomboy e Garotas são estudos de personagens reais e complexos em um universo que respeita suas histórias de vida. "Retrato de Uma Jovem em Chamas" ignora seus personagens, se apaixona por discursos fáceis e um romance esquemático conveniente. Tudo aquilo que não deveria haver em um filme sobre mulheres dirigido e escrito por uma mulher.
James Cameron cria uma mitologia no primeiro filme de uma série, em que ciborgues assassinos do futuro viajam no tempo para impedir que a humanidade tenha alguma chance de sobrevivência em uma guerra que não se sabe quem iniciou nem como terminará, mas que com certeza foi fruto da tecnologia, da impessoalidade e da paranoia de nossos tempos. Apesar dos efeitos visuais terem aumentado exponencialmente desde o primeiro filme, as várias cenas icônicas da saga vieram mesmo do filme original de 1984, que envelheceu mal e que sabemos quando Schwarzenegger é um boneco de plástico com olhos de ciborgue, mas ainda assim, causa tensão, suspense, terror e reflexões sobre reviravoltas e paradoxos em viagens no tempo.
A história envolve salvar Sarah Connor, a mãe do salvador da humanidade no futuro, John. As máquinas enviam um exterminador para o passado e os humanos enviam um soldado para impedi-lo. Este é daqueles filmes que vão escalando a tensão e durante a escalada a trama vai sendo explicada. A ação impulsiona o filme, mas não é uma ação descerebrada, pois sua importância está nas entrelinhas, em como o presente influencia no futuro.
Vemos pouco do futuro, mas o pouco que Cameron nos mostra é significativo. Dois civis se protegem de uma guerra eterna entre homens e máquinas. Elas estão atrás de uma TV destruída, e o que veem dentro dela são as chamas da destruição. Clichê seria se fosse dada alguma importância a essa cena, mas Cameron sabe disso e mostra de passagem, apenas como uma reflexão dos motivos que fizeram com que esse futuro apocalíptico ocorresse. Este é mais um filme sobre refletir no presente sobre as consequências do futuro do que brincar de viagem no tempo.
Os efeitos não são bons, mas o ciborgue interpretado por Arnold Schwarzenegger convence pela dedicação do ator em ser "robótico", com uma face de poucos amigos que nunca muda e o movimento de cabeça sempre dentro de um certo ângulo com um certo ritmo, uma atitude que soa engraçada no começo, mas com o tempo nos acostumamos a ver como uma ameaça. A transformação de Schwarzenegger de alívio cômico para este vilão eternizado no cinema é um mini-resumo do que representa essa mudança pela qual a humanidade irá passar. O filme espelha esse microcosmos de maneira sutil e brilhante, mais uma vez sem chamar atenção para si, pois este é um filme de ação para adolescentes.
Só que Cameron não brinca em serviço, e da mesma forma que ele faz em Aliens: O Resgate, é a figura feminina que é protagonista e dona de seu próprio destino, e se refletirmos a fundo sobre a mitologia de John Connor enxergaremos que o motivo pelo qual as máquinas voltaram até sua mãe é porque, assim como ocorre com Ripley de Aliens e seu instinto maternal, ninguém poderá pará-la uma vez que ela decide lutar pela sua sobrevivência e de toda a humanidade.
Michael Biehn, por outro lado, faz o soldado Kyle Reese, que sonha com Sarah e viaja no tempo para salvar a única esperança. Reese é um mero arquétipo, mas Biehn eleva sua dignidade para conseguirmos entender de onde virá o salvador; não geneticamente, mas ideologicamente. Para quem sempre ficou pensando na questão do ovo e da galinha, apenas lembre-se que o futuro pode ser reescrito, e podem haver diferentes pais para John, mas apenas uma Sarah Connor é que poderia gerá-lo e inspirá-lo.
Linda Hamilton ficou marcada como Sarah Connor por toda sua filmografia, mas aprendeu a fazer desse limão uma limonada. Em seu debut está apenas correta, mas o terror que vemos em seus olhos é o combustível necessário para se tornar a inspiração dos humanos que irão existir décadas depois.
A trilha sonora de Brad Fiedel soa profética e ao mesmo tempo tensa. Sua batida solene e constante, nos fazendo lembrar do ritmo de uma fábrica comandada por máquinas, será lembrada por tanto tempo como uma versão mais trash do noir de Vangelis em Blade Runner, mas muito mais inesquecível para os fãs de ação, muito mais numerosos que os cinéfilos adoradores do clima techno-noir do filme de Ridley Scott. É preciso também lembrar que os tons azulados que o fotógrafo Adam Greenberg escolheu para esse mundo onde a noite é mais presente convence por causa das inúmeras luzes da polícia em torno de onde ocorre a ação e da ponte que é criada com o futuro nefasto onde tratores passam por cima de crânios humanos como se fossem parte da pavimentação dessa distopia.
"The Terminator" não precisa que seus efeitos estejam impecáveis, pois como lenda ele permanece. Ele cria um universo fascinante, que desejamos revisitar de tempos em tempos, e mesmo que os novos filmes lançados não sejam sequer uma parcela do que vemos em seu original, ao menos gera a lembrança de como tudo começou e como ironicamente a tecnologia criada para impressionar se torna cada vez mais impessoal, tal qual as máquinas quando se voltam contra os humanos.
# DTLS Simples... simples?
Caloni, 2019-11-13 coding [up] [copy]O protocolo DTLS, grosso modo, é um addon do TLS, que é a versão mais nova e segura do SSL. Só que em vez de usar por baixo o TCP, que garante entrega na ordem certa dos pacotes, além de outras garantias, o UDP é permitido. Ou seja, datagramas. Em teoria essa forma de usar TLS é uma versão mais light, com menos overhead e menos tráfico de banda. E a pergunta que tento responder aqui é: será que isso é verdade?
A primeira tarefa é conseguir compilar e rodar um sample DTLS. Estou usando Windows como sistema operacional alvo (requisitos de projeto). Para criar um sample client/server de DTLS usando a biblioteca OpenSSL (no momento na versão 1.1.1d) precisei de alguns passos de setup, conforme especificados no tutorial do próprio OpenSSL. O repositório DTLS-Examples, disponível no GitHub, possui alguns starts para começarmos a compilar e rodar um pouco de código, mas nem tudo são flores na hora de rodar para Windows.
O exemplo que peguei, dtlsudpecho.c, como diz o nome, usa DTLS em cima de UDP. As funções de setup e de definição de callbacks e settings do OpenSSL são configuradas de acordo com o esperado, mas por algum motivo quando a conexão entre um server e um client é estabelecida o server dispara vários listenings e a conexão estabelecida pelo client permanece sem escrita e leitura.
Após compilar o OpenSSL e antes de iniciar os testes gerei os certificados, e analisando a troca de pacotes pelo Wire Shark descobri um erro no handshake envolvendo fragmentação. Tentando descobrir o motivo encontrei alguns issues no GitHub a respeito de problemas no OpenSSL, e a solução era definir um MTU (Maximum Transmission Unit) em vez de deixar o OpenSSL usar o default, que é pequeno demais para poder enviar as mensagens do handshake de uma só vez, requisito do protocolo.
Isso corrigiu o envio do ClientHello, mas após isso o handshake entrou em loop no envio do resto das mensagens até retornar com erro. Do roteiro descrito pela RFC faltam as mensagens Finished após ChangeCipherSpec, o que terminaria o fluxo, mas por algum motivo o Finished nunca chega em nenhum dos lados, e as mensagens a partir de ServerHello se repetem até o retorno de erro de conexão (SSLERRORSSL). O Sequence Number do server e client indicam que apesar da troca de mensagens estar ocorrendo existe um loop.
Encontrei um gist que acompanha passo a passo o setup necessário da biblioteca. Ao pesquisar mais a respeito encontrei um artigo de Christopher A. Wood, que também está explorando esse protocolo usando OpenSSL e que é o autor do primeiro repositório de exemplo de DTLS, que falha não por não funcionar, mas por estar usando TCP em vez de UDP ao usar a flag SOCKSTREAM em vez de SOCKDGRAM na criação do socket.
Depois de muito analisar o protocolo desenhando cada pacote na janela do escritório resolvi abandonar essa miríade de detalhes e dar um passo atrás, usando o próprio openssl.exe compilado com os parâmetros abaixo. E, surpreso, mas nem tanto (afinal de contas, a compilação do OpenSSL passou pelos testes pós-build) eu consigo executar o protocolo DTLS em UDP IPV4 sem nenhuma falha.
O passo seguinte foi entender o código e as diferenças com os samples que havia tentado fazer funcionar da única maneira que penso ser possível: depurando. Sem conseguir navegar em todos os detalhes do fonte do OpenSSL recompilei o projeto com full debug alterando as flags de compilação no Makefile gerado para Windows (/Od e /Zi ajudam) e iniciei os dois modos acima depurando em duas instâncias do Visual Studio. Encontrei uma ou outra chamada à biblioteca OpenSSL que não havia notado ainda, mas nada que parece fazer a diferença.
Mas nenhuma dessas mudanças fez efeito no projeto de teste. O próximo passo seria copiar cada chamada feita à lib OpenSSL pelo openssl.exe e colar no projeto de teste para descobrir onde está o pulo do gato que nenhum dos samples na internet parece ter encontrado (ao menos para Windows), mas há uma solução preguiçosa que é muito mais efetiva e testada: usar os fontes da própria pasta apps do projeto OpenSSL.
O próximo e último passo é customizar o código-fonte base no qual a OpenSSL valida o protocolo DTLS para o uso que pretendo fazer para ele: um executador de processos remoto.
# O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final
Caloni, 2019-11-14 cinemaqui movies [up] [copy]Sarah Connor foi a heroína no primeiro Exterminador do Futuro. Ela resolveu o conflito principal e virou dona do seu próprio destino. Em Terminator 2, James Cameron, auxiliado por William Wisher (que havia contribuído no original com diálogos adicionais), expande não apenas a figura da personagem interpretada por Linda Hamilton, que vira uma protagonista bad ass e narradora em momentos importantes da trama, como se torna, assim como Aliens: O Resgate (também de Cameron), um filme sobre instinto maternal e família elevado às últimas consequências: proteger a humanidade inteira do futuro sombrio que poderá surgir.
Terminator 2 consegue basicamente repetir a mesma história sem soar mais do mesmo, pois vem com anabolizantes no formato de novas reviravoltas (como o novo papel de Schwarzenegger) e uma tecnologia que envelheceu bem melhor que o original, já dotada de alguma criatividade na pós-produção com computadores. A Industrial Light & Magic, empresa fundada por George Lucas para a produção do primeiro Star Wars, foi responsável pelos milagres que vemos na tela, e Cameron o responsável por forçar a tecnologia a evoluir rapidamente para seu segundo filme. O resultado são efeitos de arrepiar os cabelos, que até hoje possuem uma integridade e até uma certa beleza por sabermos que todas as perseguições foram feitas com automóveis reais.
Porém, para ter uma ideia da complexidade envolvida na figura do novo Exterminador, o que conhecemos hoje como motion capture, captura de movimento, estava longe de existir, mas filmagens foram feitas com o ator Robert Patrick como o Exterminador mais high-tech T-1000 andando vestindo uma grade em volta de seu corpo. Essa grade foi usada pelo pessoal de TI para construir um esqueleto em movimento humano perfeito, e em cima dele construir toda a textura de seu metal líquido tomando as mais diferentes e loucas formas. Esse é o equivalente da época de quando os negativos dos filmes eram pintados quadro a quadro ou adicionadas outras trucagens.
Resolver o problema tecnológico que a história pede seria apenas uma barreira de duas (tecnologia e história repetida), mas o roteiro de Cameron e Wisher ultrapassam a segunda (não soar mais do mesmo) reciclando toda a ideia da humanidade amaldiçoada na mente de Sarah e seu filho John, que cresceram com essa ideia fixa e treinaram táticas de combate e uso de armas, em mais um exemplo do futuro transformando o presente que culminará no mesmo futuro se... sim, você já sabe. Se alguém não fizer alguma coisa a respeito. Essa volta completa de viagem no tempo da série de filmes é o motor engenhosamente criado desde o primeiro filme.
Além do novo Exterminador temos a figura de Schwarzenegger como uma versão inferior enviada pelos humanos, e agora quem antes era a soma de todos os medos para Sarah se torna a figura protetora de seu filho, que assume informalmente o papel de um pai que ele nunca teve. Um pai que o serve, o entende e aprende com ele. Arnold está bem mais à vontade em seu papel, e suas expressões robóticas se tornam mais eficientes na medida em que ele demonstra em alguns momentos seu lado humano querendo sair, como um sorriso que insiste em conter ambos os mundos, e nos faz sempre lembrar da nossa própria dualidade como seres humanos, dotados de amor afetivo e ódio racional, tentando criar nossas crianças como contradições ambulantes.
Quem repete o papel de Arnold no original é Robert Patrick, como o vilão impessoal e eficiente. A energia que vemos nas cenas com o ator é o que é necessário para acreditarmos em todas as transformações que o vemos realizar no filme, começando pela própria mãe adotiva do garoto que "deseja" matar, e coloco o verbo desejar entre aspas porque esse é o traço mais horrorizante deste vilão: ele não sente nada e apenas executa o que lhe foi programado para fazer. Patrick ainda usa um ou outro artifício que aprende na interação com os humanos, como elogiar a moto de um policial que sabemos que será usada por ele na cena seguinte, mas o filme se preocupa apenas em mostrar quão poderosa é sua inteligência, embora ele não tenha qualquer empatia.
Já o Exterminador de Schwarzenegger parece legitimamente interessado em aprender com John Connor, pois foi programado por ele no futuro em uma versão adulta. Não sabemos exatamente as diretivas que Connor do futuro usou, o que ajuda a não ficarmos super-analisando cada cena que Schwarz entra em ação. E ao mesmo tempo sabemos que ele faria tudo pelo garoto, e John ordenar que ele não matasse nenhum ser humano adiciona uma complexidade interessante às cenas de ação, que também cria ambiguidade.
Não é possível analisar esta história como um thriller de ficção científica impessoal como tantos outros filmes já feitos, pois há muito mais alma neste projeto do que pede um sci-fi clássico. Seus personagens são tão reais quanto de qualquer drama, e é essa única característica, não os efeitos, que eleva o filme a memorável mesmo quase 30 anos depois. Nos importamos com o destino de seus personagens, pois eles representam o destino de toda a humanidade a partir daí. Há tanta preocupação no presente que o filme, depois de iniciado, não nos mostra mais o futuro apocalíptico.
Edward Furlong é uma das melhores escolhas de ator-mirim em filme já feita. Tenso e enérgico quando necessário, Furlong consegue tornar o jovem John Connor bem-humorado em momentos pontuais sem soar manipulativo. Ele é uma criança criada por uma mãe paranóica presa em um instituto psiquiátrico, mas tudo o que ele sempre sonhou foi que ela tivesse razão em ser paranóica, e todo o seu lado durão com os pais adotivos se desmancha no momento em que ele confirma que ele compartilha a mesma realidade de sua mãe e que ambos agora estão de fato juntos por um objetivo em comum.
James Cameron sabe dosar momentos de ação com a calmaria. Ele entende que apenas depois que o espectador sabe exatamente o que está em jogo é que a ação pode escalar. E, rapaz, ela escala! A última hora de Terminator 2 soma momentos frenéticos e dramáticos tão perfeitos em sua dosagem que no meio do conflito entre robôs o mais importante é o ritmo da respiração humana, o batimento cardíaco de quem está assistindo ao filme.
O ciclo criado por "O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final" soa ligeiramente diferente do seu antecessor, pois dotado das premissas do universo de que o futuro pode ser alterado, cria-se o caos e os imprevistos necessários para um filme de ação ao mesmo tempo que se reflete sobre os múltiplos destinos que temos em mão quando o controle para qual caminho seguir pertence a nós. Dessa forma, o que parecia um filme engessado desde o começo e supostamente fadado ao fracasso pelo absurdo das regras do tempo vira seu próprio combustível para novos filmes. O que nós, espectadores, não sabíamos, é que essa seria a nossa verdadeira maldição no futuro.
# Por que esses Coringa e Pantera se tornaram fenômenos de bilheteria?
Caloni, 2019-11-16 movies [up] [copy]Muitos dizem que Coringa e Pantera Afro-Descendente se tornaram fenômenos de bilheteria por causa da identificação do público com esses dois personagens ou universos, mas se esquecem que muitos outros filmes campeões de bilheteria surgiram nas últimas décadas e que há uma correlação muito mais forte do que a mera identificação com protagonistas: são os filmes com o maior número de fundo verde da história do cinema.
O público de hoje em dia quer estar cada vez mais longe da realidade que o cerca. Vemos isso já nos smartphones. A massa de alienados percorrendo megalópoles grudados no celular e evitando pensar muito a respeito do verdadeiro caos, solidão, impessoalidade que a cidade grande gera. O mundo reluzente e piscante que nos mostra uma vida perfeita e inalcançável é mil vezes melhor do que pensar em procurar um emprego melhor, ou melhor, procurar um emprego.
No cinema não é diferente. Anualmente são lançados inúmeros dramas, norte-americanos ou não, intimistas, potentes, que nos fazem repensar nossa própria existência ou as nossas relações muito reais que nos cercam. E eles não são campeões de bilheteria. O motivo mais óbvio é que ingressos de cinema custam dinheiro demais para todos assistirem todos os filmes que estreiam, então há de haver um critério. E entre assistir uma reflexão sobre a própria vida real que compartilhamos todos os dias do ano (exceto férias), a imensa massa que só irá poder ver um ou dois filmes por ano na telona irá escolher o escapismo mais glorioso que ela já ouviu falar.
Isso explica porque as maiores bilheterias deste século são filmes de super-heróis, de viagens no espaço ou qualquer variante que envolva cada vez menos filmagens fora de estúdio. Avatar, Star Wars, Vingadores, Harry Potter e até Velozes e Furiosos 7, que deixou de ser sobre carros potentes e passou a ser uma versão medíocre de espionagem e conspiração, constam na lista de maiores bilheterias.
E se ainda resta dúvida sobre o que move o grande público para as salas, repousa atualmente em sétimo lugar O Rei Leão em sua versão live action, apontado por vários críticos como uma adaptação estranha da animação por conter animais "reais demais". Paradoxalmente, reais demais é o maior atrativo para alguém que deseja escapar da realidade do mundo cruel, pois por mais real que seja, esta é uma animação feita totalmente em estúdios, utilizando zero animais reais, e o espectador sabe disso, e ele quer visitar este mundo.
E aí entra Wakanda, a terra dos contos de fadas que todo afro-descendente quis que em algum momento da história fosse verdade. Isso é motivo de sobra para o inesperado sucesso de bilheteria deste filme da Marvel, e não podemos reduzir a explicação com identificação nem representatividade. O morador do gueto quer sonhar pelo menos uma vez na vida com um mundo onde ele e seus vizinhos detém a substância mais rica e poderosa do universo, e se sentir o povo escolhido.
Mas voltando ao Coringa, é óbvio que Gothan City/Nova York da década de 70 e 80 não é um ambiente irreal. Ela realmente existiu e é em uma versão Scorsese light para o cinema que o filme de Todd Phillips se passa. Porém, essa Nova York não existe mais, e nem Taxi Driver nem O Rei da Comédia são versões fantasiosas da cidade vindas da mente de um psicopata. As versões de Scorsese são reais demais, porque para um católico como Martin o drama (e a culpa) deve ser bem real.
Realidade não é o forte na mente de Todd Phillips, a quem foi dada liberdade criativa o suficiente para que o universo do seu filme e o seu "herói" tivessem os desvios morais tão conhecidos dos fãs do diretor de Se Beber Não Case e Um Parto de Viagem. Esse desvio moral pode não harmonizar muito bem com o resto dos filmes citados neste texto que elencam o top 20 de maiores vendas, mas é um escapismo de qualquer forma. Todo cidadão de bem já se cansou alguma vez de ouvir as reportagens do Datena e quis dar um tiro na cabeça do sujeito responsável por trazer sempre desgraças para seu lar. E eventualmente também já se sentiu na necessidade de questionar o que ocorre com o mundo onde tantos pobres engraçados pagam o pato e humoristas medíocres, de Jô Soares a Danilo Gentili, ganham milhões por fazer piadas de tio em rede nacional. E pensou em dar um tiro na cabeça de ambos, também, claro.
De qualquer forma, ninguém se identifica com o Coringa, pois isso é simplista demais até para a grande massa. O que todos compartilham é essa incompreensão do mundo em que vivemos, um mundo que acelerou demais sua tecnologia, onde as crianças que já nasceram com internet são versão diferentes demais da geração anterior. Esse gap crescente entre gerações causa um desconforto e uma alienação com a vida real que as opressoras mentes de primatas com quem somos obrigados a fazer as pazes precisamos de um escapismo.
Se você quer chamar isso de identificação ou representatividade, vá em frente. Reciclar nomes para significarem o que bem quisermos também é um traço do novo século. Portanto, se empodere, e tente ser feliz.
# O Exterminador do Futuro 3: A Rebelião Das Máquinas
Caloni, 2019-11-16 cinemaqui movies [up] [copy]James Cameron deve ter ficado bem chateado com o que fizeram com o universo tão bem idealizado do apocalipse das máquinas sendo evitado pela força de uma heroína feminina que no fundo é a protagonista dos dois filmes anteriores. Aqui Sarah Connor foi descartada como a protagonista que vinha sendo e uma nova história foi contada considerando finalmente seu filho, John Connor, como peça-chave para o destino da humanidade. O resultado é que não sentimos que nem John nem o filme fossem necessários à essa altura.
O problema com o filme é que ele não avança para nada de novo. Se trata de uma produção que busca apenas a satisfação visual de vermos novamente dois exterminadores do futuro na porrada, dessa vez com mais momentos de luta, mais explosões e mais efeitos. Porém, ignorando a questão, que era levada a sério nos outros filmes, de um ser tecnologicamente mais evoluído que o outro, as lutas soam falsas, e aumentando o barulho das explosões o filme deseja que ignoremos falhas conceituais como essa, e por nos oferecer mais efeitos visuais entramos na era de Hollywood em que estamos, atualmente, onde mais é mais, e muito mais é melhor ainda.
Terminator 3 está claramente influenciado e datado da época em que foi produzido, uma era iniciada em Matrix (Wachowski Brothers, 1999), onde a luta corporal foi resgatada e detonar peças de louça estava na moda. Influenciado e longe de influenciar, ele se torna retrógrado uma década após seu lançamento. Carros que são operados remotamente por um robô do futuro soam implausível em 2003 porque não há chipes de computador manejando o volante ou o acelerador, e até um leigo notaria o exagero na fantasia. É um efeito que quer ser mostrado para causar espanto no espectador apenas daquela época. Isso explica o efeito de ultra zoom em que a robô do futuro adentra os circuitos de um carro policial, outro clichê do ano, vindo de filmes que estreavam juntos, como Velozes e Furiosos 2.
Além de tecnicamente parado no tempo o filme é ideologicamente retrógrado, e hoje soa como piada a ideia de colocar mais mulheres no elenco para compensar a carência de Linda Hamilton como a bad ass Sarah Connor. Em vez de validar a presença feminina como uma força independente e necessária para proteger a humanidade da racionalidade destrutiva representada pela rede computadorizada consciente Skynet, o roteiro de John Brancato e Michael Ferris entrega ao Adão do filme, John Connor, sua Eva necessária para o par meta-romântico, nas mãos da atriz Claire Danes que a absorve com energia e sem alma.
Para a segunda mulher do filme, o Exterminador do mal se materializa pela voluptuosidade da figura feminina de Kristanna Loken, como T-X (um trocadilho com o cromossomo feminino?), que surge nua em uma bolha de dentro da vitrine de uma loja de roupas femininas, o que já é ofensivo a princípio, mas se torna mais ainda, pois ao invés da super-inteligência evoluída se virar para a loja de onde saiu e buscar por vestimentas ela ataca uma mulher aleatória no meio da noite em seu automóvel.
Já existe internet, e a Skynet soa como um plot completamente artificial inserido em um mundo já conectado. Em vez de utilizarem as possibilidades da era da informação os roteiristas preferem se manter em um nome e o que ele representa décadas atrás, usando literalmente robôs para destruir os humanos, em uma falta de sutileza típica de filmes de ação descerebrados. Essa falta de sutileza é exatamente a marca do fim da humanidade como a conhecemos, e o filme que torna o universo de Sarah Connor em um mundo onde as lutas e batalhas são mais importantes que as ideias por trás é o verdadeiro apocalipse, ao menos para essa série de filmes.
Como se as ideias de Brancato e Ferris já não tivessem gosto duvidoso, entregar o destino da humanidade nas mãos de um garoto viciado em drogas, dotado de problemas de auto-estima e excesso de sentimentalismo não apenas trai toda a educação e treinamento especializados que sua mãe o conduziu por toda a infância, mas também a própria figura de Connor representada por Edward Furlong no segundo filme. Se o Connor de Furlong ainda na idade pré-adolescente já era independente e esperto o suficiente, mesmo com a mãe trancada em um sanatório, a continuidade que Nick Stahl nos entrega trai a persona e as capacidades já adquiridas do herói do passado, que antes hackeava caixas eletrônicos e que hoje mal sabe sair da gaiola de uma clínica veterinária, sem contar que Stahl não possui nem uma pequena dose do carisma de Furlong, e soa tão deslocado que sequer parece estar no filme. Mas, voltando para o roteiro, este John Connor não é apenas contraditório, mas também não faz sentido com sua persona no futuro, e nem no presente, pois não há arco no filme que justifique sua mudança de personalidade para quem ele se tornará.
Este é um filme de ação high-tech com elementos de um universo já montado e que foi aqui desconstruído sem remorso, mas com grandes perdas de ideias. Há explosões e destruição suficientes para anestesiar a mente dos fãs dos efeitos, mas perde-se a violência baseada na dualidade razão e emoção, onde a razão era representada por um robô, uma criação humana paradoxalmente sem vínculos emocionais com os humanos, e a emoção um retorno ao que temos de mais importante: nossa vida. No lugar temos a T-X, que perde o conceito-chave e ganha um quê de assombração misturado com gore cibernético sanitizado, assim como as mortes do filme, próximas de nenhuma e quando ocorrem seu significado visual é muito direto, como uma mão que atravessa o banco do motorista para alcançar o volante. O que significa? Exatamente o que acabei de descrever, e nada mais.
Terminator 3 e outros filmes iniciam uma era de blockbusters que aproveitam os restos do progresso tecnológico catapultados por pessoas como James Cameron e George Lucas. Mais tarde, uma década depois, essa mesma tendência sofrerá uma inflação previsível nas mãos de uma mega-corporação que unirá franquias de filmes do espaço, super-heróis e fantasias recontadas sem personalidade em um conglomerado bilionário e onipresente nas mentes dos jovens que começa a nos fazer lembrar novamente de como era desafiador conceber uma vilã tão invisível, poderosa e impessoal quanto a Skynet.
# Circles and Squares
Caloni, 2019-11-17 movies [up] [copy]Retirado do blog Keeping My Brain Alive.
...It takes extraordinary intelligence and discrimination and taste to use any theory in the arts, and that without those qualitites, a theory becomes a rigid formula (which is indeed what is happening among auteur critics). The greatness of critics like Bazin in France and Agee in America may have something to do with their using their full range of intelligence and intuition, rather than relying on formulas. Criticism is an art, not a science, and a critic who follows rules will fail in one of his most important functions: perceiving what is original and important in new work and helping others to see.
...the first premise of the auteur theory is the technical competence of a director as a criterion of value.
‘A great director has to be at least a good director.’ But this commonplace, though it sounds reasonable and basic, is a shaky premise: sometimes the greatest artists in a medium bypass or violate the simple technical competence that is so necessary for hacks. For example, it is doubtful if Antonioni could handle a routine directorial assignment of the type at which John Sturges is so proficient (Escape from Fort Bravo or Bad Day at Black Rock), but surely Antonioni’s L’Avventura is the work of a great director. And the greatness of a director like Cocteau has nothing to do with mere technical competence: his greatness is in being able to achieve his own personal expression and style.
An artist who is not a good technician can indeed create new standards, because standards of technical competence are based on comparisons with work already done.
from Cocteau ‘The only technique worth having is the technique you invent for yourself.’
I would amend Sarris’s premise to, ‘In works of a lesser rank, technical competence can help to redeem the weaknesses of the material.’
...the second premise of the auteur theory is the distinguishable personality of the director as a criterion of value.
The smell of a skunk is more distinguishable than the perfume of a rose; does that make it better? Hitchcock’s personality is certainly more distinguishable in Dial M for Murder, Rear Window, Vertigo than Carol Reed’s in The Stars Look Down, Odd Man Out, The Fallen Idol, The Third Man, An Outcast of the Islands, if for no other reason than because Hitchcock repeats while Reed tackles new subject matter. But how does this distinguishable personality function as a criterion for judging the works?
Often the works in which we are most aware of the personality of the director are his worst films - when he falls back on the devices he has already done to death. When a famous director makes a good movie, we look at the movie, we don’t think about the director’s personality; when he makes a stinker we notice his familiar touches because there’s not much else to watch.
It is an insult to an artist to praise his bad work along with his good; it indicates that you are incapable of judging either... It’s like buying clothes by the label: this is Dior, so it’s good. (This is not so far from the way the auteur critics work, either.)
Sarris wants to see artists in a pristine state - their essences, perhaps? - separated from all the life that has formed them and to which they try to give expression.
The third and ultimate premise of the auteur theory is concerned with interior meaning, the ultimate glory of the cinema as an art. Interior meaning is extrapolated from the tension between a director’s personality and his material.
These critics work embarrassingly hard trying to give some semblance of intellectual respectability to a preoccupation with mindless, repetitious commercial products.
‘Interior meaning’ seems to be what those in the know know. It’s a mystique - and a mistake. . . They’re not critics; they’re inside dopesters. There must be another circle that Sarris forget to get to - the one where the secrets are kept.
The role of the critic is to help people see what is in the work, what is in it that shouldn’t be, what is not in it that could be. He is a good critic if he helps people understand more about the work than they could see for themselves; he is a great critic, if by his understanding and feeling for the work, by his passion, he can excite people so that they want to experience more of the art that is there, waiting to be seized. He is not necessarily a bad critic if he makes errors in judgment. (Infallible taste is inconceivable; what could it be measured against?) He is a bad critic if he does not awaken the curiosity, enlarge the interests and understanding of his audience. The art of the critic is to transmit his knowledge of and enthusiasm for art to others.
I daresay... the new breed of specialists know more about movies than some people and could serve at least a modest critical function if they could remember that art is an expression of human experience. If they are men of feeling and intelligence, isn’t it time for them to be a little ashamed of their “detailed criticism” of movies like River of No Return?
Those, like Sarris, who ask for objective standards seem to want a theory of criticism which makes the critic unnecessary. And he is expendable if categories replace experience; a critic with a single theory is like a gardener who uses a lawn mower on everything that grows. Their desire for a theory that will solve all the riddles of creativity is in itself perhaps an indication of their narrowness and confusion; they’re like those puzzled lost people who inevitably approach one after a lecture and ask, “But what is your basis for judging a movie?” . . . They want a simple answer, a formula; if they approached a chef they would probably ask for the one magic recipe that could be followed in all cooking.
And it is very difficult to explain to such people that criticism is exciting just because there is no formula to apply, just because you must use everything you are and everything you know that is relevant, and that film criticism is particularly exciting just because of the multiplicity of elements in film art . . . they seem to view movies, not merely in isolation from the other arts, but in isolation even from their own experience . . . And if they don’t have interests outside films, how can they evaluate what goes on in films? Film aesthetics as a distinct, specialized field is a bad joke.
Vulgar melodrama with a fast pace can be much more exciting - and more honest, too - than feeble pretentious attempts at drama - which usually meant just putting ‘ideas’ into melodrama, anyway.
# Is There a Cure for Film Criticism? by Pauline Kael (excerpts)
Caloni, 2019-11-17 movies [up] [copy]Retirado do blog Keeping My Brain Alive.
There is, in any art, a tendency to turn one's own preferences into a monomaniac theory; in film criticism, the more confused and single-minded and dedicated (to untenable propositions) the theorist is, the more likely he is to be regarded as serious and important and "deep" - in contrast to relaxed men of good sense whose pluralistic approaches can be disregarded as not fundamental enough.
Often the worst and most embarrassing part of a film is the accidental, the uncontrolled, the amateurish failure which exhibits its unachieved intentions; and the finest moment may be a twitch of the actress's cheek achieved on the fiftieth take. There are accidents which look like art and there is art that looks accidental; but how can you build an aesthetic on accident - on the ripple of the leaves?... How can you say 'accidents were the very soul of slapstick'? In comedy what looks accidental is generally the result of brilliant timing and deliberate anarchy and wild invention and endless practice.
The look of so many good movies during the period Kracauer was gestating this book becomes his definition of cinema itself.
"Film," he tells us, "gravitates towards unstaged reality" and "the artificiality of stagy settings or compositions runs counter to the medium's declared preference for nature in the raw." How and when did the medium declare its preference, I wonder? The trouble with this kind of Hegelian philosophy of Hegel in which the dialectic of thesis, antithesis, and synthesis is used as an analytic tool in order to approach a higher unity or a new thesis prose is that the reader is at first amused by what seem to be harmless metaphors, and soon the metaphors are being used as if they were observable historical tendencies and aesthetic phenomena, and next the metaphor becomes a stick to castigate those who have other tastes, and other metaphors.
The cruiser Potemkin and the oil derrick in Louisiana Story, are less feasible on stage, but how does that make them more cinematic than something which is easy to put in a theater? Both are, incidentally, much less interesting objects on the screen than they are generally asserted to be: the exciting action in Potemkin has little reference tot he cruiser itself (extras can run around on a stage, too) . . . Who started this divide and conquer game of aesthetics in which the different media are assigned their special domains like salesmen staking out their territories - you stick to the Midwest and I'll take Florida?
Film aestheticians are forever telling us that when they have discovered what the motion picture can do that the other arts can't do, they have discovered the "essence," the "true nature" of motion picture art. It is like the old nonsense that man is what differentiates him from the other animals . . . And what motion picture art shares with other arts is perhaps even more important than what it may, or may not, have exclusively. . . Except for the physical presence of the actors in a theater, there is almost no "difference" between stage and screen that isn't open to question; there is almost no effect possible in one that can't be simulated, and sometimes remarkably well achieved, in the other.
Perhaps the most lovable side of Kracauer is his desperate attempt to make musicals, which he obviously adores, fit his notion of cinema as nature in the raw. . . As if our delight in the performance of a song or dance depended on the degree to which it grew out of the surrounding material - as if our pleasure had to be justified! This is a variant of the pedagogical Puritan notion that you mustn't enjoy a poem or a story unless it teaches you a lesson: you mustn't enjoy a movie unless it grows out of "nature." . . . Phew! Our pleasure in song and dance, as in motion picture itself, is in the ingenuity with which man uses the raw material of his existence - not in the raw material itself, or in a visible link with it. . . It is this clumsy effort to make things look "natural" instead of accepting the stylization of song and dance which helps to make so many musicals seem simpering and infantile.
In the fall of 1961 New Politics, Ernest Callenbach writes "a letter to a young film maker" and says "Get thee to Cuba, and after that to Latin America elsewhere, and then Africa." Would the same advice be given to a young writer or painter? Why are moviemakers obliged to make history? . . . But suppose the young film maker doesn't know Spanish, can't stand the sight of blood, was drawn to the elliptical scenario on the uneventful life of Emily Dickinson? He'll probably make a terrible movie, but surely the first prerogative of an artist in any medium is to make a fool of himself.
Films are not made by cameras, though many of them look as if they were, just as a lot of dialogue sounds as if it were written by typewriters.
Art is the greatest game, the supreme entertainment, because you discover the game as you play it. There is only one rules, as we learned in Orphee: Astonish us! In all art we look and listen for what we have not experienced quite that way before. We want to see, to feel, to understand, to respond a new way. Why should pedants be allowed to spoil the game?
# O Exterminador do Futuro: A Salvação
Caloni, 2019-11-17 cinemaqui movies [up] [copy]Este é o quarto da série de filmes em que humanos e máquinas estão brigando, desde 1984, e de certa forma a primeira continuação aguardada. Se considerarmos o final de A Rebelião das Máquinas, onde o fraco John Connor interpretado por Nick Stahl é acompanhado por sua futura esposa, Kate Brewster, para um abrigo anti-nuclear horas após as máquinas controladas pela rede Skynet destruíssem boa parte da raça humana e iniciassem uma guerra sem precedentes, O Exterminador do Futuro: A Salvação é um filme previsto há décadas nos roteiros anteriores de James Cameron, Gale Anne Hurd e William Wisher.
Agora Connor está onde todos esperassem que ele estivesse: liderando a Resistência contra as máquinas. E por isso mesmo seu papel é entregue a um ator com mais presença de tela como Christian Bale, que emagrece entre um Batman e outro para fazer o carismático mas abatido líder que constrói empatia entre os sobreviventes do massacre articulado pelas máquinas através de discursos visionários sobre um futuro em que a humanidade irá vencer. Connor demonstra uma certeza absoluta disso e é visto como profeta pela massa, apesar de charlatão pelo alto comando dos militares restante. Este Connor é uma versão retroalimentada pela história contida nos filmes de 1984 e 1991, pois recebeu instruções de sua mãe, Sarah, sobre o que estava por vir, instruções essas que não existiriam se seu filho não enviasse seu próprio pai para salvá-la desde o princípio da história.
A trama principal é complexa e profunda, mas o diretor McG não se intimida por estar mexendo em uma arte abraçada por vários fãs e parte para a ação que muitos estavam esperando. Este é o filme com mais ação e efeitos de todos os anteriores, mas é o primeiro que não nos preocupamos tanto assim com a história, pois ela se amarra ao universo de Terminator apenas de passagem, e os novos personagens, que parecem ter vindo de outros filmes como Matrix, Jogos Vorazes e Ghost In The Shell, se adaptam de maneira pobre ao universo, como a incógnita ambulante do personagem de Sam Worthington, cuja reviravolta é boba e previsível desde a primeira cena em que vemos Helena Bonham Carter praticamente materializar a futura Skynet convencendo-o a doar seu corpo para a ciência.
Este é o primeiro dos filmes também em abraçar por completo a nova Hollywood, tomada pelo barulho de explosões cada vez maiores e cenas de efeito cujo sentido se encontra plenamente na catarse do escapismo emocional, mas sem nos envolver por completo por ignorar a construção de seus personagens. É a estética dos heróis dos quadrinhos que aos poucos começa a invadir o mundo realista de Terminator. Humanos são capturados por braços de um robô gigante e jogados a vários metros de altura para dentro de uma prisão onde serão mantidos. Por que a máquina se preocupa em manter prisioneiros? Não há motivos claros, exceto permitir que John Connor tenha humanos para salvar.
Com o uso da computação e o fundo verde praticamente em toda cena, boa parte do filme foi filmado em estúdio e trabalhado arduamente em pós-produção. E o resultado é um mundo pós-apocalíptico crível, embora saído dos melhores vídeo-games atuais, já que a fotografia de Shane Hurlbut usa um tom monocromático sem imaginação típico de jogos de computador de tiro em primeira pessoa que não podem processar tantas cores em tão pouco tempo. Dessa forma, aquele azul melancólico do início da série de filmes foi substituído por cores mais... militares. O design de produção focado em ruínas e poeira, no entanto, acerta em evocar um novo tipo de melancolia, do tipo que se pode vencer.
Criando novos personagens e máquinas pela diversão de acompanharmos as missões dos humanos na guerra contra as máquinas, "A Salvação" não é um filme ruim, mas se arrisca tão pouco em sua história que vira um passeio por um parque temático, onde os diálogos e as situações estão delimitadas para cumprir a função de trazer mais cenas de ação. E ao ignorar a diferença primordial entre humanos e máquinas, a reviravolta que conta com uma máquina explicando para outra máquina todo seu plano perfeito lembra as paródias de James Bond como Austin Powers em uma versão cibernética e incompreensível.
Por que uma máquina precisa ter o gostinho de explicar seu plano perfeito? A resposta é simples e direta: para o espectador do parque temático conseguir compreender toda a trama em apenas alguns minutos. Se você não estiver interessado em um pano de fundo para tantas cenas de ação, esse é momento de ir ao banheiro. Logo depois haverá mais cenas de ação e uma participação virtual de Arnold Schwarzenegger, fora do elenco principal, mas necessário para a história. Afinal, este é um filme da série Terminator.
Esta série de comédia com episódios curtos apresenta uma protagonista que quebra a quarta parede trocando olhares significativos para nós, espectadores. São significativos porque nós entendemos que eles devem ser. Nessa comunicação extra oficial ela desmente e prevê o tempo todo as pessoas com quem interage, criando assim uma segunda camada de interpretação do que seria uma comédia de situação como todas as outras.
Phoebe Waller-Bridge é a roteirista, atriz e produtora desta série. Quem dirige é Harry Bradbeer.
Há vários tipos de cenas em O Hospedeiro tradicionalmente feitas para serem impactantes e emocionantes. A indústria americana em Hollywood popularizou o formato de filme-catástrofe quase que em uma cartilha. E o diretor/roteirista Bon Joon Ho subverte tudo isso, escancarando tantas novas possibilidades que quase nos esquecemos da história principal. Ela pouco importa quando temos tanto a discutir sobre a linguagem cinematográfica em apenas um filme.
Mas existe um guia emocional por trás das divertidas subversões que o filme aplica nos momentos que mais esperamos deixar de pensar (por estarmos acostumados com o produto americano). Seu nome é Park Gang-Doo, e ele é um pai solteiro lento no raciocínio e distraído a respeito da vida que todos investimos, aquela sobre carreira e buscar sempre estar melhor no futuro. A criação de um verdadeiro idiota do ator Hang-ho Song (do ótimo Memórias de Um Assassino) não é nada sutil, mas é realista, e ganha nossa simpatia porque Hang-ho coloca a emoção de seu personagem sempre à frente de suas limitações.
Essa emoção é demonstrada principalmente pela dedicação por sua filha, Park Hyun-seo, que por ironia fina e sutil da vida, apesar de distraída como o pai, ela é esperta. Ambos são o núcleo da família que Bong Joon Ho irá conduzir para sequências de ação que contrariam as facilidades da ficção hollywoodiana. Para conseguir resgatar Hyun-seo a família precisa subornar todo funcionário do governo que encontrar pelo caminho até o rio Han, interditado pelas autoridades não porque um monstro assassino gigante mora em suas águas, mas porque alegam que ele carrega um vírus mortal.
Em uma inversão de valores absolutamente genial, as pessoas que tiveram contato com o monstro se tornam propriedade do governo, representado por pessoas míopes do cenário geral, cada uma dentro de sua área de especialização, e o monstro segue livre de interferências até que um produto letal (americano, claro) chegue até o país e dê um jeito no bicho.
A subversão do filme-catástrofe começa pelo exagero do luto da família Park em frente ao retrato da pequena Hyun-seo. Todos se encontram em uma catarse tragicômica que evita a necessidade de apresentação. Cada um tem sua vida, mas estas foram interrompidas com a morte da sobrinha/neta, e agora todos acreditam que ela ainda esteja viva. A partir daí o filme não para em nenhum momento, pois acreditem ou não esta é uma situação realista, e a menina sequestrada pelo monstro não tem o que comer. Quantos dias se passaram? Alguns, mas não observamos nenhum letreiro. Compartilhamos a desorientação dessa família durante essa busca quase impossível pelos esgotos que circundam o rio, e essas são pessoas comuns o suficiente para entendermos o misto de dor e de empenho em serem mais do que crentes do que vêem na TV.
Essa crença televisiva é demonstrada em um momento onde um funcionário com vestes amarelas de quem está organizando uma quarentena chega tropeçando para avisar às pessoas presas que elas ficarão ainda presas. A explicação ele não tem, mas tenta achar um canal de TV que tenha. A incompetência das autoridades coreanas é tão escrachada no filme que torna a intervenção americana quase que desejada, mas a cena inicial onde um cientista americano manda dispensar litros e litros de uma substância química tóxica no rio Han, provavelmente criando depois de um tempo o monstro do filme, nos permite enxergar uma alegoria inteligente e indizível sobre política e sociedade que apenas precisa bater na tecla da incompetência através do humor para entendermos o recado.
O Hospedeiro usa o formato que pretende atacar quase de como um guia sobre comos filmes desse tipo nunca abordam as inevitáveis situações de maneira honesta. Este é um filme em que tudo é difícil, porque na vida real é assim. E cômico, também. Há incontáveis momentos em que não sabemos se é uma cena para rir ou chorar, e a trilha sonora mais do que conveniente de Byung-woo Lee mistura drama com comédia de situação de maneira tão natural que ambas soam familiar sem nenhuma delas dominar a cena. Para o espectador é uma catarse tentar identificar qual o clima vigente e descobrir que a resposta não é tão fácil assim. Esse é um filme que mistura gêneros.
Há um monstro criado por computação, e é o que menos convence. Mas queremos acreditar que sim, já que todo um excelente filme depende disso. De qualquer forma, sua estética foge por completo dos monstros que estamos acostumados a ver nos filmes. Seu formato é estranho, incompreensível, e é a grande metáfora da história. Ele representa o desconhecido, o que temos medo, e o que inventamos para ignorar sua existência. Como o aquecimento global, este monstro não parece real, e é exatamente assim que ele deve ser para cumprir seu propósito de como sociedade desgovernada nos confundir. Você pode dar um novo significado ao monstro, o que tiver enxergado no momento, e ele provavelmente será válido, mas O Hospedeiro entrega também a versão conformista para os que não aguentam filmes com pontas soltas. E a versão conformista é a mais feia de todas.
Lento e cheio de detalhes revistos pelo menos três vezes, A Criada é um filme que se constrói apenas pelas suas reviravoltas. Isso suga a alma de seus personagens, e já não estamos mais interessados em suas vidas a partir da segunda cena. A não ser que você goste de tramas que sabe que haverá reviravoltas e elas são mais interessantes que a história em si.
Tudo se passa em algum momento do passado, em uma mansão que é um misto das culturas britânica e japonesa, denunciando o quão falsa pode ser uma história. Essa mansão parece criada em computador, tamanha a higienização de suas fachadas e interiores. A luz que o fotógrafo Chung-hoon Chung aplica nos cenários transforma todas os tons de cores tão vívidos em filmes japoneses, por exemplo, em cores primárias de novela televisiva. Perdemos a magia épica de um filme no passado para ganhar uma textura límpida para brilhar em sua TV de 60 polegadas.
A relação entre uma nova criada da casa e sua patroa poderia ser algo avassalador, mas aqui soa clichê, pois mesmo que você não tivesse visto essa história ainda, você espera ardentemente por isso. Ardentemente porque seu diretor, Chan-wook Park, inspirado nas cenas de amor livre entre duas jovens (aka soft porn) de trabalhos como Azul é A Cor Mais Quente, nos coloca na situação de achar que a razão do filme existir é mostrar cenas de sexo picante entre duas asiáticas. Em um tempo de libertação da mulher e uma nova onda de feminismo esse filme é o mais próximo de retrógrado existe, pois acaba atraindo exatamente os homens mais tarados e obcecados pelas relações lésbicas. Ou seja: todos os homens. E por asiáticas. Ou seja: todos os homens vezes dois.
Claro que reviravoltas são empolgantes. Aqui há duas, uma seguida da outra. Quando elas acontecem você levanta um pouco da cadeira, para tentar não dormir novamente. E quando chega a segunda reviravolta, é tarde demais. Já estou nos braços de morfeu, sonhando com duas asiáticas em pleno ato de amor físico, declarando a libertação dos seus corpos. Acordo molhado.
# Boonie Bears: Aventura em Miniatura
Caloni, 2019-11-26 cinemaqui movies [up] [copy]"Boonie Bears: Aventura em Miniatura" é um filme divulgação da série de animação chinesa que desde 2012 tem feito sucesso na China e no mundo. Depois de mais de 600 episódios e seis filmes, essa é uma receita desgastada e entregue sem maiores cuidados com seus personagens nem com um espectador desprevenido que tenha o primeiro contato. Ao reciclar a dupla de ursos, o lenhador e vários dos personagens previamente criados e utilizados várias vezes, a dupla Leon Ding e Huida Lin estão dirigindo no automático cenas que se encaixam mais em jogos interativos do que em uma narrativa de filme. Além disso, seu uso 3D data dos anos 2000, quando objetos eram lançados na sua cara em câmera lenta. Porém, mesmo que você nunca tenha ouvido falar de Boonie Bears ou usado um óculos 3D não irá se interessar por nenhuma dessas coisas, pois tanto os personagens quanto a terceira dimensão artificial são irritantes do começo ao fim.
A intenção sempre foi comercial da tecnologia 3D, lançando um atrativo que a TV não tinha. Em uma Hollywood que lança filmes como parque de diversões e não como histórias envolventes, o objetivo dessa nova reencarnação foi causar assombro na hora que o filme "invade a sala" com seus apetrechos sendo lançados em nossa direção. A animação chinesa chega tão tarde nessa tendência que o máximo que este filme consegue causar com isso hoje é desconforto visual, para adultos e crianças (exceto se for a primeira vez na vida de uma criança, talvez). Há um limite até onde você pode forçar a perspectiva de profundidade sem irritar os olhos do espectador ou fazê-lo enxergar dobrado. Os chineses ignoram esse limite. Pagaram caro pelo efeito e vão usar na potência máxima.
Mas antes fosse o 3D o pior dos problemas, pois ele conta com uma história medonha cuja infantilidade beira o autismo. Seu núcleo afetivo gira em torno de um dos personagens principais da animação, o lenhador Vick, e sua relação com o pai tão próxima e profunda que literalmente não vemos a face da mãe. É como se Vick fosse órfão de mãe ou tenha se esquecido de como ela era em suas memórias. Pai e filho brincam juntos o tempo todo e são felizes o tempo todo, o que quase nos faz vomitar, até que a promoção do pai o faz ter menos tempo para as brincadeiras e a relação entre eles beira o ódio mútuo, o que também nos faz vomitar.
Enxergando o mundo do ponto de vista de uma criança de seis anos, Aventura em Miniatura parece ter sido escrito, dirigido e produzido por uma. Os personagens secundários vão sendo jogados durante o filme como se o espectador já os conhecesse, e muitos deles desaparecem na cena seguinte para nunca mais voltar. Eu nunca tinha visto uma narrativa tão bagunçada desde The Room, que também tinha uma criança (mental) por trás da produção. Porém, diferente da animação, o projeto icônico de Tommy Wiseau acaba sendo hilário por uma sequência de erros de roteiro que até espectadores menos atentos percebem. (E, justiça seja feita, nem Wiseau criaria uma trama tão desprovida de lógica. The Room pode ser acusado de simplista, mas nunca de maniqueísta; ele é incapaz desse feito.)
Apenas para ter uma ideia da bagunça, peguemos aleatoriamente um dos heróis do filme: um gafanhoto que usa a casca de um ovo como armadura e que luta kung-fu como ninguém. Na primeira conversa ele já sai contando seu ponto fraco para um monte de gente que acabou de conhecer e nem suas habilidades de luta nem o ponto fraco são relevantes para a história. Ele continua na história até o final, mas em algum momento ele vira uma versão guerreira de um grilo falante que surge apenas nas ocasiões convenientes. Ele também possui o poder de sumir quando o perigo precisa prevalecer por mais alguns minutos.
Esse foi apenas um exemplo de vários erros estruturais, que só são vários porque a história acumula elementos demais para dar conta. Há uma máquina que altera o tamanho das coisas que homenageia (ou denigre) o inventor histórico Nikola Tesla, há uma investigadora ecológica que visita a região para saber o que tem feito os salmões pararem de se reproduzir, há criminosos que jogam lixo no rio e que surgem nos minutos finais da história para dar alguma explicação para o caso, há um mundo subterrâneo em miniatura cujo único objetivo é fornecer um drone para nossos heróis, há uma dupla de macacos realizando um ritual pagão sem qualquer explicação, mas que precisa da lanterna do garoto para justificar uma perseguição. E a lista não terminou.
Tudo isso são momentos que cansam no filme, por não acrescentarem nada além de tempo de projeção. Chega um momento que não queremos mais personagens. Só queremos ir pra casa. Talvez essa seja a mini-aventura do título. A história de espectadores de cinema que ficam presos em uma sessão horrível que parece interminável. Agora um pequeno spoiler: ela termina. Mas há sequelas muito além dos efeitos 3D.
Você já sabe como funciona. Frozen, um novo filme de princesa, arrebata multidões por não ser um "filme de princesa", mas sobre a relação essencial entre duas irmãs, misturada com a história de um reino nórdico que sugere lendas e valores sem apontar diretamente para nenhuma em específica, exceto sua inspiração inicial, o conto de fadas do século 19 do dinamarquês Hans Christian Andersen, A Princesa do Gelo. Como diria a versão capitalista do Tio Ben, "com grandes bilheterias vêm grandes continuações", e eis que surge Frozen 2, que chega com a ideia fixa de um começo e um fim, e no meio uma nova aventura, que demonstra tanto a beleza do ápice da arte digital dos estúdios Disney quanto sua incapacidade de criar algo novo partindo de suas próprias premissas.
Frozen 2 acaba, então, virando conteúdo para TV, mas é TV Premium, com uma direção de arte (encabeçada por cinco pessoas) e efeitos criados por artistas digitais (encabeçados por cinco times de futebol) tão sensacionais que nos faz colocar a beleza do primeiro em perspectiva. Para a direção de arte, note apenas os detalhes do chale da mãe de Elsa e Anna, assim como todo o figurino da família real harmoniza com uma paleta mais sóbria que remete ao frio e ao mesmo tempo um ambiente acalentador. E para a arte digital, basta observar cada movimento do busto de Elsa conforme ela se move para cantar ou a forma de se movimentar em nada difere de uma mulher de carne e osso. Este é o estado da arte da animação, e continua havendo um enorme abismo entre a arte Disney e o segundo melhor estúdio.
Porém, toda essa beleza vai esvanecendo conforme ouvimos a primeira, a segunda e a terceira canções, e vamos percebendo que este não será o filme que conta com a imortal sequência de Elsa se tornando a poderosa Princesa do Gelo ao som do hit Let It Go, ou na versão menor brasileira, Livre Estou. Nem será um filme totalmente diferente, que subverte ou expande sua história original para criar algo novo, mas apenas mais um trabalho burocrático e comercial, visualmente belo, mas preso pelo rótulo de continuação, apenas emulando as mesmas sensações do anterior.
O que nos mantinha compenetrados na história do original de 2013, a sua força, residia na introdução poderosa da relação entre Elsa e Anna, que a move do começo ao fim, pois nos importamos com essas personagens assim que descobrimos que o poder de Elsa era visto como um problema em sua infância, e causava ainda mais problemas ao conviver com sua estabanada irmã. Ao tentar replicar os mesmos elementos de personalidade das duas sem inserir qualquer conflito minimamente complexo ou desafiador, a mesma equipe de roteiristas começa com um problema básico e intransponível na continuação: gerar o interesse no espectador através do perigo de algo que possa ser perdido, algo que deve ser arriscado. E nada neste longa chega perto de representar uma ameaça física real.
Para suprir a carência de sentido surgem as piadas engraçadíssimas de Olaf, o boneco de neve mágico criado por Elsa no primeiro filme. Na versão brasileira foi usada a dublagem do comediante, ou seja, um não-dublador, Fabio Porchat, que inseria um sotaque estranho em sua criação, como se bonecos de neve tivessem um sotaque diferente por terem gelo na boca e uma cenoura como nariz. Nessa segunda aventura a voz vem mais natural, com menos daquela estranheza que Porchat tentou inserir. Agora há uma dicção mais profissional, afiada, mas ao mesmo tempo engraçada, que evita que pensemos por muito tempo quem está por trás dessa voz e nos concentremos mais na presença de espírito e sabedoria inusitados de um personagem tão ingênuo e eficiente.
Porém, ao se aproveitar demais do alívio cômico, o segundo longa, que já não contava com um conflito forte o suficiente para nos interessarmos por seus heróis, enfraquece mais ainda. As duas irmãs já estão com sua relação bem resolvida, e a insistência no clichê de uma estar preocupada com a segurança da outra acaba virando uma muleta em toda cena onde se espera que haja algum tipo de obstáculo na aventura criada para inserir Elsa, Anna, Olaf e outra dupla de alívio cômico, Kristoff e Hans, mas que vai se desfazendo de seus personagens conforme a aventura avança por mera conveniência.
A presença de Kristoff na aventura, por exemplo, é a mais problemática, pois em muitos momentos além de não ter serventia gira apenas em torno do pedido de casamento a Anna que tanto deseja fazer, e que apesar de gerar cenas engraçadas com um comentário social sobre a incapacidade de homens e mulheres se entenderem em frases muito soltas, o tema constante da proposta não deixa de ser retrógrada no universo concebido de Frozen para ser algo mais libertador para as mulheres. A consequência nefasta desse tipo de participação de Kristoff é transformá-lo em um ser patético cuja única função é ter sido escalado para o segundo papel de alívio cômico, atrás de um boneco de neve falante, sem nenhum motivo para denegrir o personagem, exceto talvez pelo fato de ser homem em um filme de mulheres.
Mas não é só de história que animações Disney são feitas, e é possível sentir quando alguma música deles se torna inesquecível, como é o caso de Let It Go, e é uma lástima que na continuação de uma obra que era tão recheada de músicas fáceis e envolventes não haverá um momento sequer que será lembrado após o filme. Preferindo o exagero do que a qualidade nos números musicais, para dar chances a todos os personagens de cantar, a história não se expande através do canto, mas se encolhe em coreografias burocráticas que dão a impressão de parar a ação toda hora. Mesmo criações mais irreverentes como a concebida para o pseudo-galã Kristoff (Não Sei Onde Estou, na versão brasileira), cantada em uma performance engraçadinha como se fosse um video-clipe de um astro pop de persona sofredora, vira apenas uma distração itinerante, uma curiosidade esquecível. Além disso, a aposta de novo hit para a música de Elsa, Vem Mostrar na versão brasileira, soa como uma música feita para se tornar um hit, mas não tem força para existir como um novo hino para a Princesa do Gelo. E não há como evitar concluir que cada canção está formatada no filme para logo depois fazer parte de um musical na Broadway, e pela falta de coreografias marcantes já notamos que não será uma produção tão cara (spoiler: mas os ingressos, sim, continuarão caros).
A única força possível do filme, as lendas por trás do reino de Arendelle, são narradas desde o começo de uma forma que já entendemos que há algo de errado por trás de um conflito com o povo da floresta que a tornou amaldiçoada e presa em uma neblina, e se você entender o mínimo sobre a ideologia vigente, saberá que o que houve de errado no passado com certeza será culpa dos antepassados de Elsa e Anna, em uma versão barata e previsível da popular culpa branca. Mas o que soa patético nem é a alegoria política, feita às pressas de maneira preguiçosa, mas o design de produção dessa parte em específico, simplório demais para uma animação com orçamento largo, que nos apresenta, tanto de um lado quanto outro, cerca de uma dúzia de soldados lutando em uma batalha épica. Nesse momento notamos que não houve imaginação suficiente para enriquecer uma trama que começa básica, mal explorada e soando repetida e no automático, e quando percebemos que toda a história gira em torno de uma floresta mágica orquestrada pela força dos quatro elementos da natureza, a única forma de reagir a isso é suspirando "ah, de novo os quatro elementos."
Elsa nunca foi uma heroína viável para aventuras físicas. Desde o início ela é poderosa demais para haver vilões à altura, exceto ela mesma, como visto no original. E mesmo que houvesse um mal à altura, ele nunca poderia sequer tocá-la ou ameaçá-la de um risco mortal. O ponto fraco de um filme de aventura que envolva riscos é um herói forte demais, tão forte que quando vemos Elsa vulnerável é mais fácil entender como uma atribulação passageira do que como uma real ameaça à sua vida. Para entender a diferença de intensidade nos riscos envolvidos podemos colocar a questão em perspectiva de gênero e imaginá-la como um Príncipe Guerreiro (do Gelo), e perceberá o quão risível são os desafios encontrados pelo herói neste filme. Em vez de estar à altura de ser chamado de aventura, Frozen 2 se torna um fim de semana atribulado no reino de Arendelle.
Este é um Antes do Amanhecer feito com diálogos medíocres e um elenco menor que Ethan Hawke e Julie Delpy, que nasceram para seus Jesse e Céline. De certa forma Seguindo o Coração ironiza a perfeição com que os filmes de Richard Linklater trata seus adoráveis personagens se desenvolvendo. O realismo por trás das falas do casal de Before Sunrise é apenas aparente, pois funciona bem demais por muito tempo.
Já neste filme do diretor Aadish Keluskar existe um ultrarrealismo de uma relação abusiva que se arrasta por um ano em diálogos muito mais pé-no-chão, mas igualmente condensados no espaço de um dia para enfatizar os papéis de vilão e vítima de maneira a não esquecermos quem é a vítima. E não há muito o que fazer, pois o filme inteiro é tomado por esse sentimento. A única maneira de evitar é parar de assistir, um desejo que pode surgir em alguns momentos no começo, mas que tende a desaparecer conforme avançamos para o final.
A câmera de Keluskar desfila pelo casal de nome desconhecido em uma Mumbai viva e sem preparo de filmagens, pois seria absurdo parar uma de suas avenidas mais movimentadas por vários quarteirões, que é onde o filme começa. Mas a câmera desfila de uma maneira caótica, e vem à mente a desconfiança de que ela está desviando de transeuntes que não foram previstos no trajeto. Às vezes olhamos para a margem do rio, outra para a avenida, e pensamos mais nisso do que o que essas pessoas estão conversando, pois não interessa tanto assim o texto, mas sim suas personalidades e seus objetivos tão díspares.
É um casal onde o homem é dominante. Ele fala muito sobre si, julga as pessoas em volta, a sociedade, o governo, e é incapaz de perceber o que está fazendo com esta pobre moça. Ou talvez até perceba, mas no fundo ele não liga, pois ela é feia, não tem muitos atributos desejáveis em seu corpo e seu único motivo em estar com ela é o sexo fácil disponível a qualquer hora.
Ela surge como uma mescla entre a mulher independente e a antigona submissa que precisa se casar por ordens da mãe, ordens implícitas ou explícitas. Essa pressão ainda existe na Índia, mesmo nas grandes cidades, e pode ser vista em outros filmes recentes, como Retrato do Amor, onde um fotógrafo amador precisa arrumar uma pretendente para exibir para sua avó antes que ela morra.
Estamos olhando para uma vítima de abuso físico e psicológico em sua dolorosa escalada em busca de sua libertação, pois há de haver uma. Esse casal nunca deveria estar juntos, como toda Mumbai e todos nós, espectadores, podemos testemunhar. Mas apesar dela ser independente financeiramente não consegue viver sem alguém, mesmo que este alguém a maltrate como a um cachorro abandonado que ninguém liga, não por ser mulher, mas pela idade e por não ser bonita a ponto de chamar atenção.
Seguindo o Coração observa tudo isso e exala tanta ironia por se achar esperto demais que acaba por se auto-sabotar em alguns momentos de reflexão pós-filme. Através de situações reais demais para ser verdade ele nos entrega um plot aparentemente acima de qualquer crítica, pois liga de maneira intensa e única uma história de amor contrária a tudo que Hollywood tenta vender. Seu próprio título brasileiro já ironiza o que vem a seguir, embora o original em inglês seja mais honesto (Lovefucked). Fico imaginando o que espectadores da Netflix devem achar deste filme da metade para o final, pois sua sutileza acaba no título. Depois fica mais escuro. E não há canções. Apenas uma no começo e outra no final. E a do final, apesar de muito longa, ainda é imperdível.
Finalmente Livres é uma comédia francesa que escala de maneira tão dinâmica suas ideias no decorrer da suas quase duas horas que é possível ignorar a falta de criatividade e de coerência em uma história tresloucada e cheia de energia.
O filme lida com a reviravolta inicial tanto na ação desenfreada quanto na reação psicológica da protagonista, a Tenente Yvonne Santi, interpretada pela sempre eficiente Adèle Haenel, que descobre que seu falecido marido não era o herói que todos achavam que fosse, mas um policial corrupto que colocou um inocente na cadeia pelo roubo de uma joalheria, o traumatizado Antoine. O roteiro escrito por Benjamin Charbit, Benoît Graffin e Pierre Salvadori, que dirige o longa, busca explorar a todo momento a troca de papéis entre o lado da justiça e dos criminosos, e com isso nos fazer dar uma risada socialmente consciente das situações bizarras que monta.
Salvadori aproveita toda a dinâmica entre Yvonne e Antoine e a explora de maneira ativa na direção, buscando sempre o melhor enquadramento e movimento de câmeras para ressaltar o absurdo com toda a ênfase que as trocas de papel merecem. Sua energia em conduzir as cenas é o que as torna tão hilárias, e com a ajuda de três editores cria uma imersão difícil de resistir em um mundo visto através de uma sarcástica lupa que ao mesmo tempo que se diverte realiza uma crítica social sem maiores pretensões.
O filme mostra ter coração com facilidade, mas para isso a ponta interpretada por Audrey Tautou é primordial. Ela faz a companheira de Antoine que repassa em sua cabeça todos os momentos perfeitos que terá depois que ele sair da cadeia. Tautou, vale dizer, realiza um trabalho dúbio em sua carreira, que oscila entre a obscuridade de um ser ou para próximo do papel que a deixou internacionalmente conhecida, a doce, meiga e tímida Amélie Poulain. Mas Salvadori a traz aqui pela segunda vez em um papel mais dramático. Em Amar Não Tem Preço ela fazia uma golpista cínica, enquanto aqui ela esbanja desilusão através de seus traços de velhice e cansaço que valorizam seu pequeno papel.
Já a mais jovem e ágil Adèle Haenel, embora permaneça como a escolha acertada para personagens flexíveis ao mesmo tempo que auto-centrados, como em A Garota Desconhecida ou o mais recente Retrato de Uma Jovem em Chamas, aqui ela é desperdiçada em um filme de ação que oblitera sua capacidade de na mesma história fazer rir e chorar. Sua burocrática e moralmente flexível tenente serve apenas como suporte para manter a loucura do Antoine de Pio Marmaï em ação. É difícil capturar a essência de sua Yvonne pelos olhos de Haenel, que está em um ritmo e intensidade diferentes do elenco. E tudo isso porque Haenel sabe que terá que encontrar seu equilíbrio nas cenas finais em uma conclusão conformista e insatisfatória. O roteiro a torna refém de seu desfecho evitando que ela brilhe em sua transição.
Ela e Marmaï já haviam trabalhado em filmes anteriores, como Aliyah, e aqui exibem uma química invejável, como se pode notar na facilidade com que estabelecem uma conexão após terem se jogado no rio. Marmaï está fora de controle fazendo seu homem comum injustiçado e que agora vítima de seu período na prisão perdeu sua bússola moral e tenta compensar se tornando de fato uma pessoa agressiva e criminosa. Não é um personagem que convence, mas ele é a força que move a história, e aos pouco nos acostumamos com sua caricatura sobre as injustiças do mundo porque é divertido ver a reação da sociedade.
Finalmente Livres é uma comédia com vários momentos que são engraçados por si só, mas ao mesmo tempo deseja através das inúmeras versões do pai contados pela Tenente Yvonne ao seu filho-dispositivo-de-roteiro realizar o comentário social sobre como a narrativa muda por completo quem é o herói e quem é o vilão da história. Essas histórias para criança dormir são as histórias para boi dormir da sociedade como um todo, que precisa acreditar em alguma dessas versões para seguir adiante.
# Vcpkg: Bootstrap
Caloni, 2019-11-29 coding [up] [copy]A versatilidade do vcpkg, gerenciador de pacotes multiplataforma da Microsoft, é permitir modificar tudo no projeto, desde código-fonte, pacotes instaláveis e a própria origem do repositório. Através do controle de fonte um vcpkg pode ser alimentado por diversas fontes, e por cada pacote existir em uma pasta separada permite a coexistência de várias versões e origens. Além disso, a forma de compilar os projetos e o código-base pode ser alterado exatamente da forma com que o projeto precisa.
Sabendo de tudo isso, a única coisa que você precisa em um projeto isolado é um script de bootstrap que baixe um repositório vcpkg customizado para o projeto, compile, instale os pacotes necessários e integre com o Visual Studio antes de iniciar a compilação do próprio projeto. Dessa forma é possível montar o ambiente de maneira automática e sanitizada para qualquer membro da equipe ou máquina de build.
Vejamos como seria um bootstrap.bat:
@echo off if not exist vcpkg ( git clone https://vcpkg.git ) else ( echo vcpkg detected ) if not exist vcpkg\vcpkg.exe ( pushd vcpkg call bootstrap-vcpkg.bat popd ) else ( echo vcpkg detected ) if exist vcpkg\vcpkg.exe ( pushd vcpkg vcpkg update vcpkg install pkg1 vcpkg install pkg2 vcpkg install pkgN vcpkg integrate install popd )
Com esse script na pasta raiz do seu projeto ele irá criar uma subpasta chamada vcpkg e após realizar as operações descritas acima integrar ao Visual Studio. Dessa forma quando for compilar o projeto os includes e libs já estarão disponíveis para que ele funcione, mesmo diretamente de uma máquina limpa.
Esse script pode ser integrado à lib principal do projeto ou o projeto da solution que primeiro deve compilar (porque todos dependem dele). Para isso existe o Pre-Build Event nas configurações de um projeto do Visual Studio. Os comandos que estiverem lá serão executados sempre antes da compilação.
<PreBuildEvent> <Command> pushd $(SolutionDir) call bootstrap.bat popd </Command> </PreBuildEvent>
O único passo não-descrito neste artigo é baixar o projeto e iniciar o build, tarefas triviais de integração.