Esta série Netflix que acompanha a tendência do Brinquedos Que Marcam Época empolga por trazer o making off de trabalhos consagrados que hoje são reconhecidos como clássicos pelo grande público. Começa com os filmes Dirty Dancing: Ritmo Quente, Os Caça-Fantasmas, Duro de Matar e Esqueceram de Mim. Eu comecei vendo este último, que passa por toda a história necessária sob os olhos dos entrevistados que faziam parte do elenco de produção e que toparam participar da série. Os que não toparam ficam no vácuo, são citados de passagem e inseridos por colagem.
O resultado é dinâmico, divertido e superficial. Nada que uma passada na Wikipédia não revelasse, mas há algo além ao ouvir da boca dos seus criadores os problemas de produção, escolha de elenco, fotografia e tantos outros. A narração em off é burocrática, mas consegue também ser engraçadinha. Pulando de tema em tema, e voltando eventualmente, esta é uma série de improvisos bem editada e que com certeza agradará aos fãs dos filmes que aborda, mas, infelizmente, depois de quase uma hora de episódio, apenas atinge a superfície do tema que pretende explorar.
É gostoso assistir a uma série nova e sua ideia fresca, com algumas sacadas que revisitam temas anteriores, mas sob um novo olhar: o olhar brazuca. É assim que chega Ninguém Tá Olhando na Netflix, um trabalho conjunto entre uma cineasta de curtas documentais de aspecto social (Carolina Markowicz), o autor da terrível série 3% (Teodoro Poppovic) e um editor de filmes com forte fundo social, como Tropa de Elite e Cidade de Deus (Daniel Rezende), que justamente por conta de seus criadores e do formato televisito da rede de streaming vira uma maçaroca de dar dó já no seu terceiro episódio.
Narrando uma história confusa sobre um sistema burocrático de anjos criados por Deus em uma repartição pública dos céus, Ninguém Tá Olhando sonha desde o começo em ser uma série tão eterna quanto seus seres alados e engravatados, mas apesar de suas boas ideias iniciais, como quatro regras que os anjos não podem violar, semelhante aos dez mandamentos dados aos humanos, ambas as listas criadas para serem desobedecidas, ou todo o mecanismo por trás da escolha dos pares entre anjos e humanos que serão ajudados pelos primeiros, o fato é que a lógica desmorona tão rápido quanto começa.
Por exemplo, ao descobrir que o sistema de escalação de anjos é algo completamente aleatório e não está sob controle divino, nós, espectadores, imediatamente nos perguntamos por que os mesmos anjos, então, continuam sendo escolhidos para os mesmos humanos (como o rapaz que gosta de jogar video-game e se masturbar, a cargo do anjo novato criado para explicar todo o sistema a nós). E depois de explicar tantas regras por trás do funcionamento deste além-mundo, elas vão sendo quebradas uma a uma e sem uma forma fácil do espectador entender o que pode acontecer, tornando as possíveis consequências convenientes aos olhos dos roteiristas e igualmente aleatórias.
Será que um rato está por trás da escrita do roteiro desta série?
Escrito e dirigido pelo diretor afegão estreante em longas de ficção Siddiq Barmak, "Osama" se aproveita do timing trágico pós-atentado das Torres Gêmeas em Nova York, o ataque orquestrado cujo mandante foi o jihadista Osama Bin Laden, inimigo público número 1 dos EUA e do mundo dito civilizado. Esse timing nada tem a ver com o que se vê neste filme, que ficcionaliza uma realidade muito próxima do próprio elenco que participa do filme.
Barmak pesquisou sobre o povo muçulmano tomado pelo medo dos grupos extremistas talibãs para compor o cenário onde se passa essa história de uma garota que precisa fingir ser menino para conseguir trabalhar e assim ajudar sua família de apenas mulheres a sobreviver. O filme aproveita a história para ilustrar diversos aspectos da doutrina, como a submissão completa da mulher, além de demonstrar o resultado catastrófico em uma sociedade como essa, onde medo e miséria convivem por muitas gerações.
Seus atores são retirados diretamente dessa realidade, e nela voltam através de um diretor totalmente influenciado pela escola soviética, que influenciou o renascimento do Cinema por lá após a invasão russa. Dessa forma, há pouco enquadramento e muita montagem. O que vemos está sendo descrito de maneira dramática e exagerada porque seu idealizador respirou a teoria do autor de O Encouraçado Potemkin durante sua formação. O resultado é um filme tenso e necessário, embora exagerado para os dias de hoje, mas é seu exagero que nos informa o imediatismo e a urgência em que a história se passa.
Diferente do burocrático Bohemian Rhapsody, cujos títulos das músicas, sua concepção e sua letra jamais nos permitem adentrar em um verdadeiro drama de quem já tem fama e dinheiro, Rocketman da metade para o final se torna um mergulho íntimo para dentro das dores de um ser e de sua existência.
A energia que o ator principal nos remete através da figura do cantor britânico Elton John nos faz lembrar por contraste da situação incômoda que Rami Malek nos deixa, ainda que de forma involuntária, com seu Freddie Mercury sanitizado. Aqui não há esse controle e é justamente essa falta de controle que nos permite aproximarmos deste ser humano falível e único. Taron Egerton, da série Kingsman, possui grande mérito pela sua performance estonteante, e maior mérito, portanto, o diretor Dexter Fletcher, por escolhê-lo para o elenco.
A direção de arte, coordenada por Tim Blake (de O Garoto de Liverpool), nos faz querer evitar os duros anos 60 que John passa sua infância lhe sendo negada a mínima afeição dos pais, e querer viver para sempre nos aconchegantes, liberadores e hippies anos 70 em Los Angeles, uma L.A. que é o oposto da sensação em Era Uma Vez... Em Hollywood (pois Tarantino é o artista da violência em detrimento das sensações). E cada novo espalhafatoso figurino vestido por John, parecendo um capricho de quem quer ser inadequado para mostrar a si próprio, vira o disfarce perfeito de quem está sendo esmagado pela própria couraça que criou para se proteger.
O seu amigo compositor das letras, Bernie Taupin, mesmo não fazendo parte integrante da história entrega tanto em tão poucos momentos que ele não soa deslocado e itinerante, mas como o único refúgio de sanidade em uma vida cercado de tanto ódio e falsidade, até em seu próprio lar. O ator Jamie Bell entrega Bernie como um porto seguro eventual em meio à loucura pela qual o talento inegável de John representa um perigo iminente em uma vida problemática desde a infância, mas que é potencializada por fama e dinheiro.
Para entendermos essa bad trip as transições de cena cada vez mais rápidas e cada vez com menos profundidade de campo do diretor Dexter Fletcher marca uma viagem introspectiva sob o efeito de todas as drogas ao mesmo tempo que é uma parte itinerante na carreira do músico. Sua mescla entre os diálogos e os personagens performando os números musicais do filme é triste e doloroso. Este não é um filme para te deixar para cima, mas para entender por que tantas pessoas famosas se matam ou ficam eternamente para baixo.
Não duvidamos em nenhum momento que aquelas frases horríveis ditas pelas pessoas mais vitais para sua sanidade, sua mãe e seu namorado/empresário, de fato não tenham sido ditas. A bem da verdade, o único resquício de incredulidade repousa em entender que o real Elton John se permite uma caracterização tão crua em sua biografia, e ao abrir a porta de seu lar e das suas emoções mais íntimas demonstra uma coragem que vai além do simples sair do armário. Este não é um filme, como o do Freddie Mercury, que trata a homossexualidade ou a liberação sexual de maneira especial e asqueirosa, mas apenas como parte de uma personalidade complexa tentando se expressar. E a dor quando percebemos que isso não é mais possível depois que você passa a valer 25 milhões de libras é forte demais para ser ignorada pelo espectador.
Rocketman é o anti-Bohemian Rhapsody. Todas as virtudes por trás do longa escancaram os defeitos inerentes da produção dirigida por Bryan Singer. Enquanto a biografia de Mercury parte do princípio de explicar a razão de existir tanta fama e sucesso por trás da banda inglesa, o filme desse pianista britânico vai no sentido oposto, tentando entender como é possivel que em meio a tanta fama e dinheiro ainda possa existir um ser humano completo.
Uma Mulher Alta é uma incursão estranha nas mentes e corações dos russos pós-guerra. Com a economia destruída e as relações sociais radicalmente alteradas, o filme de Kantemir Balagov realiza uma obra que parte da intimidade do triângulo amoroso mais bizarro que você verá esse ano para nos revelar as idiossincrasias que emergem de uma sociedade sem amor.
O resultado prima pela distorção dos valores mais burgueses, como família, pois ignora os sentimentos como se eles fossem inexistentes. Balagov está olhando com uma lupa quebrada para essas pessoas e vai com ela desvendando alguns pedaços do desconhecido, que começa na revelação de que o filho de Iya, a mulher alta do título, na verdade é de Masha, sua colega de guerra que usou sua beleza e seu poder de sedução para sobreviver no fronte. Iya, que pela altura exagerada conseguiu se defender mesmo sem sexo, voltou da guerra com um trauma que a paralisa repentinamente por um tempo indeterminado, o que faz com que ela acidentalmente mate essa criança, o que inicia esse drama pesado.
Mas o peso das relações entre Masha e Iya parece esvanecer nas interações entre essas duas e o resto do mundo. Mesmo ligadas agora para o resto da vida pela dívida impagável de um filho que se foi, o espectador é movido a observar mais os detalhes de uma Leningrado minimalista e impessoal através dessas duas, e o filme vai nos entregando cada vez mais através do resto da sociedade, que mecanicamente vive em um microcosmos em suspensão. A guerra acabou, mas levou embora a alma do povo russo.
Viktoria Miroshnichenko vive Iya com ajuda da direção sensível de Kantemir Balagov, que captura os pouquíssimos momentos íntimos de uma atriz de uma nota só. Por outro lado, a vida e a energia entregues por Vasilisa Perelygina vivendo Masha acabam compensando e complementando as diferentes personalidades das duas. Uma depende da outra para que nasça uma personagem só.
Personagens secundários como Andrey Bykov, que vive um cínico doutor do hospital onde ambas trabalham, e Konstantin Balakirev, que vive o namoradinho burguês Stepan, fecham o ciclo necessário para que haja uma conexão mínima com o mundo que elas vivem. O esforço do filme em nos manter o mais distante possível do que ocorre do lado de fora das quatro paredes é estonteante e reflete diretamente a visão da vida pós-guerra de Masha e Iya.
Feito para acompanhar o ritmo irregular da vida de Iya e seus ataques de paralisia, a música de Evgueni Galperine é a única coisa no longa que irá chamar muito a atenção. Com um ritmo irregular e repetitivo, nos créditos finais é possível observar com mais cuidado, mas o cuidado de Galperine em dar o tom com que essa inusitada história se desenvolve é primordial para entendermos o ponto de vista de Iya, cuja vida é uma sucessão de catarses sem recompensa. Catarses essas que resumem muito bem o último século da história russa, desde a revolução socialista.
Ideias brilhantes soam óbvias depois de ditas, e Klaus está amparado pela ideia brilhante do animador Sergio Pablos de tal forma que é difícil se desvencilhar de sua beleza intrínseca, ainda mais se considerarmos que o espírito de natal nunca esteve tão desgastado.
A história dessa animação sem inspiração nos traços, mas com muita identidade nas cores, é contar a história de como surge uma lenda sem pé nem cabeça como a de Papai Noel. Inventada através de uma mistura entre folclore e atualizada como lenda urbana, hoje para muitos o velho Noel é um acumulado de absurdos. E "Klaus" se insere dentro desse contexto para resgatar o que há de mais importante, no meio dessas lendas de renas voadoras ou uma pessoa robusta entrar pela chaminé: a força de ajudar as pessoas sem querer nada em troca. Apenas pela gentileza.
É claro que todos os filmes sobre o Natal tentam fazer isso, mas Klaus está muito bem adaptado aos novos tempos, os cínicos novos tempos, pois usa como protagonista o filho de um milionário que não quer mais nada a não ser ficar de boas pelo resto de sua vida. Enviado para ser carteiro pela empresa do pai no lugar mais inóspito do planeta, mais ao norte possível, lá ele encontra uma alegoria que critica as tradições impensadas de um povo que se divide em dois por uma rixa histórica. E seu interesse próprio é apenas conseguir cartas para atingir a quantia que precisa para sua volta para casa.
Não há mais nada de novo no filme exceto a surpresa que ele contém. Usando uma narrativa falsa no começo por tempo o suficiente para acreditarmos, a história de Sergio Pablos subverte o jogo dos protagonistas para apresentar o seu personagem-título quase na metade da história. E ele é o personagem com menos falas possíveis. O contexto fala por si próprio, e o belíssimo design de produção em torno de sua casa, de suas casas de passarinhos, seus brinquedos empoeirados e o machado estiloso. Este é um filme que esbanja contexto pelo seu visual.
A trilha sonora é de uma simpatia que mistura previsibilidade com emoção. É previsível que essa história nos emocione, mas a música de Alfonso G. Aguilar apenas nos acompanha, sem forçar a situação. Quando vemos, todo o conjunto -- direção, roteiro, arte e trilha -- combinam em uníssono essa força mágica que quer resgatar o espírito de natal em tempos cínicos, onde muitos dizem que irá terminar com o conceito de família, ignorando que conceitos se transformam. A essência, nunca.
# A Primeira Tentação de Cristo
Caloni, 2019-12-09 cinemaqui cinema movies [up] [copy]Já virou tradição de natal o grupo de comediantes do Porta dos Fundos em parceria com o serviço de streaming Netflix lançar no final do ano mais uma revisita bem-humorada ao clássico dos clássicos (pelo menos para o cristão). E em A Primeira Tentação de Cristo há mais um divertido estudo de personagens, que provoca tanto os mais dogmáticos quanto os mais heteroflexíveis.
A historieta de menos de uma hora de duração é sobre o aniversário de 30 anos de Jesus, momento em que seu pai, seu verdadeiro pai, Deus (Antonio Tabet), irá revelar sua paternidade. Toda a brincadeira do roteiro escrito por Fábio Porchat e Gustavo Martins gira em torno das escolhas divinas de Jesus, a nova divindade que será finalmente revelada, o que significa entrar para a patota formada por Buda, Shiva, Alah (em uma divertida aparição) e até o deus do Tom Cruise (outra divertidíssima aparição).
O humor do Porta sempre girou em torno de pegar temas delicados e mundanizá-los até o nível de escracho, e com isso vêm à superfície uma humanidade que aproxima as pessoas. É esse o humor que une em vez de dividir, e por mais que religiosos fanáticos discordem, os trabalhos do grupo que giram em torno de cristianismo é uma senhora propaganda à religião que seguem, pois não denigre as imagens sagradas, mas apenas atualizam e rediscutem as figuras históricas sem alterar seus valores sob a ótica do homem comum contemporâneo.
É por isso que é engraçado o contraste entre a ótima Evelyn Castro (repare o embate entre ela e o amigo de Jesus, interpretado por Porchat), que faz a sempre pura (pelo menos nos livros) Maria, e a periguete que um dos reis magos traz para o rolê, interpretada pela eficiente Thati Lopes, que poderia fazer uma versão de Maria Madalena como protagonista e segurar a bronca. Claro que todos esses atores e atrizes são ótimos em fazer rir, pois são comediantes conduzidos pelas infinitas sacadas da mente dos roteiristas do Porta. Mas, além disso, há aqui e ali momentos que permitem enxergamos um pouco do talento de timing desses profissionais.
Note, por exemplo, Gregório Duvivier como Jesus Cristo. Suas já batidas feições de ingenuidade ou introspecção emo são perfeitas para um Jesus que está em uma fase de auto-descoberta, que passou 40 dias no deserto explorando sua sexualidade com seu amiguinho e que agora precisa voltar para casa e enfrentar os desafios da fase adulta, como ser o dono do mundo, por exemplo. Duvivier aqui, assim como todo o elenco, não cria personagens, mas são os fios condutores para releituras nada sagradas das histórias que como cristão aprendemos a venerar, mas como seres humanos entendemos que há um fundo de humor em cada uma delas (minha preferida é a do burro falante, em outra parte dos evangelhos).
A Primeira Tentação é um trabalho teatral filmado com pomposidade por uma equipe que está cada vez mais afiada, onde o uso de luzes azuis e vermelhas nas mãos dos atores é o tipo de detalhe divertidíssimo de observar, pois diz muito sobre a união entre produção técnica e artística. Sua virtude é não fazer humor apenas para atacar figuras religiosas, mas unir as diferentes formas de ser. É um hino de amor a todos, que estão perdoados de seus ódios em 2019 com política, futebol e religião, temas que apenas dividem e que precisam ser abordados com mais humor.
Portanto, esqueça os extremos, e foque no seu coração. Que você, caro leitor, tenha um ótimo natal e um excelente ano-novo. E que consiga passar essa virada sem ninguém fazer a piada do pavê. Será que conseguiremos quebrar essa tradição?
Se você já assistiu a O Poderoso Chefão e Os Bons Companheiros, O Irlandês fica no meio do caminho. É um filme mais agitado e com muito mais violência gráfica que o clássico de Coppola, mas muito menos apressado que o filme de gângsters de Martin Scorsese. Cito Goodfellas não porque tem Joe Pesci no elenco, mas porque fala sobre um caso real de máfia e possui o ponto de vista de alguém que viveu aquilo de perto.
Scorsese é obcecado pela máfia. Quanto mais próximo do real para ele melhor. E por isso ele vem se especializando em roteiros baseados em biografias, de preferência em primeira pessoa. Se em Silêncio, seu filme anterior, o diretor usa o material de Shūsaku Endō, um raro escritor japonês católico, para descrever um momento histórico onde essa religião encontra as terras nipônicas, em O Lobo de Wall Street ele acompanha as desventuras no mundo de especuladores da própria fonte pelo golpista Jordan Belfort.
Em "O Lobo" não é possível escapar da ideologia católica, baseada em culpa e pecados como a cobiça, e aqui essa mesma culpa em sua forma capital encontra respaldo nos últimos dias de Frank Sheeran, o assassino do famoso sindicalista Jimmy Hoffa. Esta história é baseada no livro do investigador Charles Brandt, I Heard You Paint Houses, que sugere que ele seja o assassino de um ícone político americano cujo desaparecimento nunca foi descoberto.
Sheeran é interpretado por Robert de Niro, que volta a atuar com o diretor depois de longo hiato. Ambos produzem esse filme que apresenta um protagonista indeciso sobre sua própria postura. Há um caráter moral muito forte nas decisões de Sheeran e a meia-vida que de Niro traz ao personagem é perfeita para uma personalidade ambígua, de quem não consegue se desvencilhar de quem é ou de quem se tornou, e que vai até as últimas consequências de sua existência, mesmo que para isso atravesse a sua própria consciência.
O momento em que ele decide viver por essas regras cuja cautela sugere amoralidade pode passar despercebido, mas é quando ele recebe um "favor" de um amigo que faz na estrada, Russell Bufalino, que já está na máfia há tanto tempo que seus movimentos automáticos soam naturais. O favor é não entregar Sheeran para a máfia judia por conta de uma possível traição que ele estaria prestes a fazer se metendo em negócios que não lhe dizem respeito. A passagem é contada com tanta economia pelo roteiro de Steven Zaillian que cabe a Scorsese nos iluminar com imagens nítidas que mantém esse fato na memória no decorrer das três horas e meia de filme.
Pode não parecer, porque Scorsese faz o filme com uma naturalidade tão ímpar, e sua montadora, Thelma Schoonmaker, atravessa a narrativa com uma fluidez tão invisível, mas este é um filme batido em que o hitman irá precisar dar cabo de alguém que lhe é querido, e a terceira ponta da trama fica nas mãos de Al Pacino como o todo influente, engraçadão e impulsivo Jimmy Hoffa. Ele enxerga a lealdade de Sheeran em sua postura não apenas correta, mas afetivamente envolvente, o que para um homenzarrão é algo surpreendente. Você olha para Frank e é como se já o conhecesse de outros carnavais, ele está sempre onde se precisa, não faz perguntas e age imediatamente. Esse é um homem que faz o serviço, em extinção, e qualquer um o teria como braço direito.
Hoffa adora Sheeran, e adora sua filha, Peggy, que é uma criatura cujo papel é tão obscuro que a culpa católica do diretor não permite que ela vá para a superfície. Ela é menina e depois mulher, e as mulheres deste filme se limitam a servir como suporte invisível aos homens. Nada mais natural, pois a máfia é um ambiente de homens, mas Peggy surge em momentos pontuais para nos lembrar que ela é especial à sua maneira. Somos apresentados a ela quando seu pai arrebenta a mão do dono da mercearia por ele ter brigado com sua filha, o que em uma cena já nos diz o que precisamos saber sobre o temperamento de Sheeran, como ele lida com sua família e como Peggy o enxerga.
Personagens como Peggy nos fazem lembrar que este é um filme longo e sutil, o que pode incomodar muita gente interessada na história. Mas a história nunca te dará a profundidade de sentimentos que emergem conforme acompanhamos cada cena em que De Niro, Pesci e Pacino contracenam. São os olhares e as observações secas de Sheeran que dão o tom ao filme a todo momento, muito mais que os diálogos ou a ação. Apesar de sua duração, este é o filme mais minimalista de Scorsese, que tem um elenco no estado da arte do minimalismo, exceto Al Pacino, porque ele precisa ser Al Pacino/Hoffa.
Mas observe como Pesci e De Niro ao longo de suas carreiras foram abraçando o dogma do "menos é mais", e aqui eles nos entregam o menos possível. E é lindo. Alcançando uma complexidade de personagens da máfia que até agora apenas trabalhos como os de Coppola conseguiam entregar, O Irlandês não é apenas uma prova que os melhores atores envelhecem como o vinho, mas aos 77 anos, os diretores também. Scorsese não precisa dirigir este elenco, pois Pesci e De Niro entregam os papéis de suas vidas. Até agora apenas o Noodles de De Niro em Era Uma Vez na América conseguia tamanha profundidade com tão poucos diálogos. Agora a conta foi zerada.
Enquanto isso, Schoonmaker prevalece como a montadora definitiva sobre dramas violentos biográficos da história do cinema. Não é apenas o roteiro que possui uma estrutura de tempo elegante e sem maniqueísmos, onde o passado encontra o presente que remete ao futuro sem anúncios, mas a passagem dos anos não é anunciada, mas ainda assim sabemos que esta é uma viagem psicológica na mente de um indivíduo. E quantas transições podem ser feitas sem percebermos que estão ocorrendo? Schoonmaker quebra o recorde aqui, nos entregando todas. Não há cortes abruptos. Nem a elegante rima de Peter Zinner em O Poderoso Chefão conseguiu tal feito.
A fotografia de O Irlandês preparada por Rodrigo Prieto (Babel) favorece a passagem dos anos dos personagens, mas não é nas suas cores, mas no seu uso do grão, grosso, que ele nos atinge mais. O realismo que é trazido por cenas menos límpidas seria inconcebível com a direção de Scorsese, e é Prieto que o auxilia a manter a trama entre os pilares de biografia dramática e uma ficção quase documental através dessa granularidade das cenas, em alguns momentos feia, mas como todo grande trabalho de cinema, por um bom motivo: o que vemos na tela não deve ser estilizado. Scorsese entende isso e seu fotógrafo atinge o equilíbrio.
Este é um filme tecnicamente impecável que faz suas mais de três horas passar depressa e que ao mesmo tempo deve gerar cansaço na maioria dos espectadores que se aventurarem e assistirem no serviço de streaming. Isso irá acontecer porque não há muitas piadas no filme para amenizar seu clima, que começa pesado e termina insuportável. É daqueles filmes que faz pensar no final, mas em um nível de introspecção sobre assuntos que talvez fosse melhor não pensarmos por muito tempo.
Um russo tudo fala na frente de um gravador. Em inglês. Ele prepara seis fitas cassete e deixa em um local premeditado para não serem descobertas pela KGB. Logo em seguida se mata. O clima de conspiração em plena União Soviética não impressiona mais. Na verdade é até esperado. Só não é esperado que russos falem em inglês.
Chernobyl é uma minissérie em cinco capítulos de cerca de uma hora cada narrando os acontecimentos reais de uma noite fatídica e os dias e meses seguintes em uma cidade que começa observando a beleza das cores no céu vindas de um incêndio na usina nuclear e termina enterrando seus mortos em concreto. Toda a ignorância de uma população a respeito dos assuntos do Estado vai sendo revelada aos poucos, conforme conhecemos as patentes do alto escalão de funcionários públicos do governo, burocratas e cientistas, os diplomas de uns não servindo aos propósitos políticos de outros.
Esta é uma série pesada, pois são acontecimentos que de fato abalaram o planeta enquanto a maior parte de nós já existia ou logo existiria. Dezenas de milhões de vidas em jogo e boa parte da Terra ameaçada por milhares de anos. Em uma escala que lembra filmes de catástrofes fictícias como um meteoro em Armageddon, o peso reside justamente no fato de que tudo que estamos vendo realmente aconteceu. E esta é uma oportunidade única para entendermos um peso ainda maior: o problema geopolítico.
Ainda que o filme tenha a cara do lugar onde se passa a história, a Rússia comunista, ou União Soviética, um conglomerado de burocratas jamais visto na história humana, este é um alerta para o perigo de manter o poder concentrado em qualquer lugar do mundo. O design de produção e os personagens centrais nos dão um tom orwelliano como a apontar a universalidade do alerta sobre o mundo que vivemos.
Porém, a série também explora, ainda que de maneira caricata, essa hierarquia alienígena entre o povo russo e os que estão no poder. Trocando os czares por burocratas amadores herdeiros dos bolcheviques, as distorções de uma estagnação econômica e aceleração tecnológica forçada de uma sociedade é vista a olho nu, e o acidente na usina nuclear se torna o único momento honesto para que isso acontecesse. E mais uma vez o sacrifício da classe trabalhadora. Não que eles já não estivessem acostumados em sua história.
O que torna Chernobyl também um exemplo universal é essa constante tensão entre os cientistas e os que estão no comando. A cortina de fumaça ainda está erguida, mas a imagem internacional da URSS começa a desmoronar conforme outros países acusam seu vizinho de espalhar radiação em seu território. Pouquíssimas pessoas estão verdadeiramente cientes do potencial desastre que pode ocorrer caso medidas drásticas não sejam tomadas no espaço de dias, e essa luta contra a realidade é travada através de inúmeras reuniões com os burocratas que dirigem o país e os heróis do filme, os únicos físicos cientes da magnitude da ocasião.
Por esses motivos essa é uma série que documenta a maioria dos eventos e personagens reais da História (ou presta homenagem a uma porção deles na figura de uma mulher física), e ao mesmo tempo presta a devida homenagem aos que se sacrificaram e foram vítimas desse desastre ecológico que merece ser lembrado pelo resto da história do planeta.
A direção é precisa em abordar a narrativa ficcional quase como um documentário, pois nos remete para a realidade das pessoas que se foram: as que moravam na áreas condenadas, os soldados e civis coordenados em uma leva de sacrifícios que vai desde a mergulhar abaixo da usina até limpar seu telhado em uma operação sincronizada. Há uma cena inicial no quarto episódio que além de nos dar de maneira definitiva a perspectiva do povo russo sob o olhar de uma anciã que viveu desde os czares, também acompanhamos no decorrer do mesmo episódio o abatimento de animais. A relação não é acidental.
Para abordar tudo isso de maneira realista a câmera gira em torno da ação, o design de produção recria boa parte dos cenários com uma precisão que evoca os anos 80 comunistas com primor e um quase saudosismo de uma época mais simples. As proporções da tragédia são colocadas com precisão por esse ritmo de filmagem.
Mas o que mais impressiona sempre é a trilha sonora. Ela é a melhor parte. Sempre distorcida, ela comenta cada estado de espírito do momento sem nos tirar esse momento. Ela apenas nos acompanha em nossos devaneios mais utópicos de um desastre além da compreensão humana, pois nada se vê. É um determinismo científico invisível que devemos acreditar, mas a mobilização das pessoas e a música distorcida nos faz abraçar o contexto.
O roteiro está recheado de frases de efeito que reverberam até a cena seguinte. Não há pressa entre as cenas para dar tempo de entendermos a profundidade de cada momento, seja para a posteridade histórica ou para entendermos o que esse acidente em particular tem a dizer sobre a humanidade, seus governos, suas próprias falhas cognitivas. Muito se fala sobre a importância de se dizer a verdade, e isso fica cada vez mais evidente conforme se caminha para o final e observamos que uma série como essa demorou meio século para ser produzida, e muitas mentiras, como a radiação, pairam sobre o ar russo, sobre a nova política da autoridade acima da ciência.
A ideia por trás de um sistema multipath de rede é fornecer mais de um caminho para o tráfego de pacotes. O objetivo pode ser diminuir a perda de pacotes por causa da instabilidade da infra, mas também fazer com que a velocidade da comunicação seja maior pela diminuição da razão da perda de pacotes, além da melhor rota acabar sendo por onde os pacotes irão chegar primeiro, em uma espécie de seleção natural da arquitetura.
O projeto MPTunnel é uma implementação em user space de UDP multipath. Assim como a contraparte em sua versão TCP, você pode estabilizar várias conexões entre o servidor local e o remoto.
MPTCP (MultiPath TCP) é uma boa ideia para tornar a conexão de rede mais robusta, mas apenas funciona em TCP, e em um ambiente multiplataforma não há soluções em kernel mode exceto o ECMP desenvolvido no último Linux, cujos artigos de Jakub Sitnicki explicam os detalhes. E foi através da minha busca por uma implementação de MPUDP que encontrei essa ferramenta feita por greensea, um usuário do GitHub.
Existem dois servidores: Server A e Server B. A conexão de rede entre Server A e Server B é instável (com uma razão alta de perda de pacotes). Dessa forma, nós gostaríamos de estabilizar um túnel multipath entre Server A e Server B, esperando que a conexão entre ambos se torne mais confiável, diminuindo a razão entre perda e envio de pacotes. Com o broadcast dos pacotes por vários caminhos o resultado a longo prazo é uma comunicação cuja performance é prioridade.
Server A |- mpclient |- bridge 1 |- mpserver |- Server B |- bridge 2 |- mpserver |- Server B |- bridge 3 |- mpserver |- Server B
Mpclient é a parte cliente do mptunnel que roda no Server A. Você deve dizer a ele a informação dos servidores bridge. Uma vez que é iniciado, o mpclient abre uma porta local UDP para escutar e redirecionar qualquer pacote de e para os servidores bridge.
Mpserver é a parte servidora do mptunnel que roda em qualquer lugar que acessa o Server B. Você deve dizer a ele a informação desse Server. Uma vez que é iniciado, o mpserver irá redirecionar qualquer pacote para o Server B.
Os servidores bridge são simples, eles apenas redirecionam os pacotes do mpclient para mpserver, ou pacotes do mpserver para mpclient. Você pode usar as ferramentas nc ou socat para entregar um servidor bridge.
Para a solução ser rodável em Linux, Windows e Mac OS os fontes compilam em um ambiente POSIX mínimo, já disponível nos três SOs, sendo que para Windows este ambiente é o Cygwin. O resumo para compilar em Linux é instalar o gcc, o make, o git, as dependências, baixar o projeto e compilar. Esses passos devem funcionar em qualquer Linux e foi testado em Ubuntu.
Para Windows o primeiro passo é baixar e instalar o cygwin com os seguintes pacotes adicionais ao padrão: gcc-core, socat, git, make, libev, libev-devel, libintl-devel. Em seguida deve-se baixar o repositório do mtunnel e de dentro de um terminal Cygwin executar o build.
Dentro do repositório deste post há como exemplo de um modelo cliente e servidor em UDP, udpclient.c e udpserver.c. Eles se comunicam de um lado para outro enviando mensagens de hello com um número na frente que é incrementado pelo servidor.
udpclient udpserver | | |--- 1 hello cli ----->| | | |<-- 2 hello srv ------| | | |--- 2 hello cli ----->| | | |<-- 3 hello srv ------| | | |--- 3 hello cli ----->| | | |<-- 4 hello srv ------| | | |......................| | |
Agora eu quero conectar em meu udpserver, mas a conexão é instável e a razão de perda de pacotes é alta, gerando um throughput muito pequeno. Para aumentar o throughput, ou seja, diminuir a perda de pacote, eu posso rodar um MPUDP para o servidor e estabilizar uma "conexão" UDP através da redundância das bridges.
O udpserver está em listen na porta 6666 UDP e eu executo o mpserver no servidor da seguinte forma: "mpserver 2000 localhost 6666". Localmente executo o mpclient da seguinte forma: "mpclient 4000 client.mpclient.conf". Abaixo está o conteúdo do arquivo client.mpclient.conf:
# mptunnel localhost 4001 localhost 4002 localhost 4003
Em cada "servidor bridge" (no exemplo está tudo local, mas não precisaria) use socat para redirecionar os pacotes: "socat udp-listen:4001 udp4:localhost:2000", "socat udp-listen:4002 udp4:localhost:2000", "socat udp-listen:4003 udp4:localhost:2000".
Os servidores bridge irão ficar em listen nas portas 4001, 4002 e 4003 e redirecionar qualquer pacote recebido para localhost:2000, e vice-versa. Agora eu faço o cliente conectar em localhost:4000 que o mpclient está em listen ele irá estabiizar uma conexão sobre o MultiPath UDP tunnel.
Dois scripts estão disponíveis para iniciar e parar a arquitetura de exemplo acima chamados respectivamente sample.start.sh e sample.stop.sh.
Para observar a performance da solução os exemplos de client e server servirão para medir a eficiência de uma comunicação onde as bridges se tornam instáveis, e para isso eles precisarão de uma rota remota entre as bridges. Este teste requer ao menos uma máquina a mais que esteja acessível na rede pelas portas a serem usadas (pode ser uma máquina virtual). Altere a execução das bridges da seguinte forma, trocando o endereço remoto pelo correto:
Isso fará com que três dos quatros bridges sejam remotos, enquanto o último estará funcionando totalmente local. Ao iniciar o mptunnel nesta configuração a comunicação entre udpclient e udpserver continuará funcionando na mesma velocidade mesmo que a comunicação na rede seja interrompida, graças ao quarto caminho totalmente local.
Outros cenários podem ser desenhados, levando em conta a velocidade de uma rede ou sua instabilidade.
Mptunnel adiciona alguma informação de controle dentro dos pacotes, incluindo informação síncrona. O mpserver e o mpclient devem ser iniciados ao mesmo tempo. Se o mpclient ou o mpserver terminar, você terá que reiniciar ambos para restabelecer o túnel.
Atualmente você pode especificar apenas um único host alvo. Alguém sabe se existe uma biblioteca C de proxy SOCKS5? Penso que ao tornar o mpclient como um servidor proxy SOCKS irá torná-lo mais fácil de usar.
Mptunnel não encripta os pacotes por padrão, apesar de ter essa opção, pois isso irá diminuir o throughput. Em alguns testes o throughput atual é 3Mbps enquanto usando três túneis com criptografia, e após desabilitar a criptografia o throughput sobe para 300Mbps. Se você ainda quiser que o mptunnel encripte os pacotes, defina a variável de ambiente MPTUNNELENCRYPT=1.
Para compilar o mptunnel, a biblioteca libev é um requisito. Para uma uma solução similar para multipath UDP em TCP dê uma olhada no projeto mlvpn.
# Panetone
Caloni, 2019-12-11 cooking [up] [copy]Testei por alguns anos receitas diversas. Cheguei a um cálculo bem simples de seguir que não é tão trabalhoso, embora exija paciência na hora de sovar. Para um panetone médio você vai precisar de:
Em cima dessa base se insere sabor usando essência de panetone e essência de baunilha, que se encontram em casas de confeitaria ou até supermercados. Meia a uma colher de sopa cada. Pode adicionar opcionalmente um tantinho de mel.
Ainda sobre o sabor, para trocar o chocolate pelo tradicional de frutas secas e cristalizadas use o mesmo peso, mas deixe-as embebidas em álcool, de preferência rum, por pelo menos 8 horas.
Mais ainda sobre o sabor, você pode fazer sua própria essência de panetone caramelizando açúcar e água (mesma medida para ambas) com especiarias como canela, noz-moscada, baunilha, o fruto de laranja e limão e um pouco das raspas da casca de ambos. Reduza cerca de 3/4 ou até o formato viscoso de xarope e use o triplo da essência de indústria. Nesta base sugerida você pode experimentar novos sabores.
Para mais maciez pode-se adicionar opcionalmente 15g de leite em pó.
Você pode preparar um panetone no decorrer de um dia, mas pode também fazer a longa fermentação da massa na geladeira, o que pode demorar de um a dois dias. Pode também fazer manter as frutas secas em infusão com o álcool no decorrer de uma noite. Pode usar fermento natural. Cada novo passo artesanal irá adicionar complexidade e tempo à sua receita, o que exige paciência e dedicação. O que segue é uma sugestão prática que mantém um equilíbrio entre tempo e eficiência.
Prepare a isca de fermento e as frutas secas se for usar.
Para as frutas, deixe-as embebidas em rum ou outra bebida alcoólica de sua preferência (ou água) em temperatura ambiente por pelo menos 8 horas (pode deixar mais tempo). Antes de usar se lembre de retirar o excesso de líquido (pode beber, fica gostoso).
Para a isca de fermento misture 50g da farinha já listada acima, 50g de água que você beberia e 3g de fermento instantâneo seco (uma colher de chá cheia) ou 25g de fermento natural. Deixe fermentando por cerca de 1h, quando ele deverá estar ativo e cheio de ar. Para seguir com o polish, mais aromático e com longa fermentação, deixe uma hora em temperatura ambiente e na geladeira de 16 a 24 horas. Retire da geladeira um pouco menos de uma hora antes de usar.
Jogue em uma bacia a isca de fermento e misture com os ovos. Depois coloque todo o resto da farinha da receita até misturar tudo, mantendo a farinha hidratada. Pode usar a mão. Cubra com o pano e descanse por 10 minutos a 1 hora. Isso vai iniciar a autólise e ajudar um pouco na hora de sovar.
Após esse tempo jogue na bacia o resto dos ingredientes exceto o recheio: sal, açúcar, essências, manteiga cortada em pedaços pequenos para derreter mais fácil. Adicione também os opcionais leite em pó e mel. Misture novamente por alguns minutos. Você pode misturar na bacia com uma mão até que a massa fique mais coesa e você consiga levantá-la com a mão, tempo em que você pode jogar em uma bancada limpa e começar a sovar.
A sova de um panetone bem hidratado como esse e sem usar mais farinha é difícil. O método de dobra que você deve conhecer é muito problemático. Eu prefiro o método de levantar a massa com as duas mãos e jogar sobre a bancada, dobrando na sequência. Repita ad infinitum até que a massa fique mais coesa ainda e mais elástica. Depois disso continue. Essa massa precisa de muito glúten para segurar todos os ingredientes.
Apenas quanto o glúten estiver estupidamente bem desenvolvido, o que quer dizer que você consegue esticar a massa e ver uma rede transparente que você pode inclusive encostar com o dedo sem rasgar, a massa está pronta para receber o recheio. Deixe descansando por mais um 10 minutos para relaxar a rede de glúten e depois abra um pouco a massa e jogue o recheio, dobrando em seguida e formando uma bola.
A primeria fermentação começa depois que você forma essa bola. Guarde a massa em um pote untado com óleo (ou qualquer recipiente fechado) e espere dobrar de tamanho. Isso pode ser feito em temperatura ambiente para assar no mesmo dia ou na geladeira para uma fermentação mais longa. Se tiver feito mais de uma medida já pode também dividir a massa no número de panetones.
Se a massa estiver na geladeira retire com uma hora de antecedência antes de mexer nela. Polvilhe um pouco de farinha na bancada. Só então retire o ar da massa que cresceu pressionando uniformemente com as mãos, bem de leve, e faça uma nova bola dobrando as pontas. Coloque esta bola delicadamente na forma do panetone. Cubra as formas de panetone com um pano e espere a massa quase chegar na borda.
Quando o centro da massa estiver no topo da forma preaqueça o forno de 160 a 170 graus. Faça um pequeno corte em X em cima e coloque por cima um cubinho de manteiga. Algumas receitas também untam ovo por cima. Agora ele pode ir para o forno de meia-hora até uma hora se for necessário. A massa deve dourar, mas não antes de meia-hora. Se dourar antes coloque um papel alumínio para não dourar demais ou diminua o fogo e aguarde assar o resto, com um termômetro verificando a temperatura de cerca de 98 graus ou enfiando um palitinho no meio e verificando a consistência, exatamente como um bolo: o palito deve voltar quase limpo.
Lembre-se: esse é o momento mais delicado do processo, onde você não deve deixar o panetone muito seco, mas completamente assado.
Quando for retirar do forno é aconselhável deixar ele esfriando de ponta-cabeça para diminuir o risco de desabar. A esse método damos o nome de morcegar o panetone. Para isso você pode enfiar dois desses espetinhos de churrasco na base, um de cada lado, e usá-los para pendurar o panetone de ponta cabeça em qualquer lugar que você conseguir. Quando já estiver frio pode voltar à posição normal. Está pronto!
Não é recomendável já sair cortando ele quente. Aguarde pelo menos uma hora para ele chegar próximo da temperatura ambiente, ou o ideal, deixe ele dormir uma noite. No dia seguinte você terá a consistência final. Boas festas =)
Aqueles Que Ficaram acaba sendo um bom filme mesmo abrindo tantos caminhos dramáticos e nunca se aprofundando em nenhum. Sua ambiguidade no relacionamento-chave entre um quarentão viúvo melancólico e uma adolescente carente e traumatizada vai sendo alimentada com vácuo em sua menos de uma hora e meia de duração, e a consequência é você se esquecer dessa história assim que pisar o primeiro pé para fora do cinema.
Adaptado do livro de Zsuzsa F. Várkonyi por dois roteiristas, e você pode sentir a cisão temática entre duas mentes trabalhando no mesmo conteúdo, este é o filme húngaro escolhido para representar o país no Oscar do ano que vem, e por isso vem fazendo campanha pelo mundo. É sobre a vida dos judeus que sobreviveram ao Holocausto em um país pós-segunda guerra cercada pela Rússia comunista e seus agentes que usam a melhor hora da noite para fazer pessoas desaparecerem. Para a época a emoção exibida no filme se mantém tão fechada entre quatro paredes que é como se toda a catarse de ter perdido a família e quase ter perdido a vida silenciou aquele povo e restringiu ainda mais as regras sociais.
Embora o pano de fundo seja histórico, o filme dirigido por Barnabás Tóth adquire um tom de telenovela por sempre nos mostrar a realidade apenas sob o ponto de vista estreito da vida que começa a ser compartilhada entre Körner Aladár, um ginecologista que vivia sozinho e dividia seu tempo entre o consultório e tentar ler os livros de medicina em alemão que tem disponível, e a jovem Wiener Klára, uma adolescente brilhante mas traumatizada pelos pais desaparecidos, que acabou de chegar no seu período fértil, ao mesmo tempo o símbolo da vida e sinônimo de hormônios obcecados por uma figura paterna, figura essa que, embora o filme insista em velar, no sentido mais freudiano possível.
Na grande maioria do tempo você irá pensar que esta poderia ser uma refilmagem de Lolita para judeus por causa da atuação de Abigél Szõke, como uma garota de 16 anos que apesar do fato de estar traumatizada esbanja vida frente à tela, o que se reduz em falar muito e demonstrar sua curiosidade pela vida, mas acaba sendo expansiva de qualquer forma comparada com o mundo onde vive, escuro e cheio de cores pastéis, pintado pelo fotógrafo Gábor Marosi, que parece ter capturado apenas a essência do outro personagem, o médico vivido por Károly Hajduk com uma melancolia entediante e um distanciamento tão respeitoso que soa como um guia de como adultos devem se comportar na presença de garotas traumatizadas pela guerra.
O fato é que o mundo do politicamente correto parece petrificar certos assuntos na arte que considera tabu, ainda que em outros, como religião, seja o bastião do progressismo. Aqueles Que Ficaram se esforça muito mais em conter sua tensão sexual do que em explorá-la. O filme inteiro é um pedido de desculpas por ter que abordar esse tema com esses personagens. Haveria uma maneira melhor de pedir desculpas: esquecer essa história e não filmá-la.
A música de László Pirisi acompanha o tom telenovela pedido pelo seu diretor, e se esquece de soar pelo menos interessante. Ele comenta sentimentos que não vemos, em uma fórmula de começo, meio e fim que apenas escancara a gigantesca artificialidade da narrativa, que pula de um ponto a outro burocraticamente, como que um guichê comunista a carimbar todos os protocolos para se chegar a uma relação paterna construída "naturalmente". E no final Körner recebe o direito legal de abraçar Klára.
A dor implícita de cada um dos sobreviventes em Aqueles Que Ficaram nunca se torna o assunto tratado no filme, e por consequência a relação pai/filha da dupla de atores sempre soa estranha e distante. Isso porque aquelas pessoas não estão verdadeiramente ali. São sombras de um passado sombrio tão fresco e um futuro ameaçador tão pesado que se tornaram projeções de um filme dentro de um filme. A única saída vista por Barnabás Tóth para seu filme conseguir contar uma história que não seja sobre a guerra ou o comunismo nessa época é se esquecer que seus personagens poderiam ser pessoas de carne e osso. E isso ele consegue muito bem.
"Portanto, assim diz o Senhor: Eis que trarei sobre eles mal, de que não poderão escapar; e, se clamarem a mim, não os ouvirei."
Um grande filme não começa dizendo isso de primeira. Ainda mais em um gênero tão maltratado quanto o terror. Ele te pega pela mão em um momento inocente, e através desse momento constrói toda uma mitologia cheio de camadas em que as camadas irão sendo reveladas ao espectador sem pressa, durante a projeção, após os créditos e na hora de dormir. E após assistir "Nós" a sensação estando na cama é que até dormir será difícil.
O momento inocente do segundo filme dirigido, escrito e produzido por Jordan Peele, do ótimo "Corra!", é quando acompanhamos o pequeno devaneio da pequena Adelaide, acompanhada dos pais no parque de diversões em uma praia de Santa Cruz, na Califórnia. São os saudosos anos 80, o que nos remete não apenas à época, mas ao gênero terror (e os filmes produzidos nessa época de ouro). Os pais de Adelaide não estão prestando atenção e ela percorre sozinha o parque descendo em direção à areia. Lá ela encontra uma atração chamada "Conhece a Si Mesmo", com um índio desenhado no banner. É um labirinto de espelhos, e você sente que será um grande terror quando a catarse da cena acontece e não há nenhum aumento repentino no som para nos assustar. O medo puro é o que não precisa de efeito sonoro para nos atingir; ele penetra em nossas almas pelo que vemos e não deveríamos ver.
Essa é a história sobre Adelaide crescida e com família formada, seu marido e um casal de filhos. De férias. Em Santa Cruz. Nós sabemos que a agora mulher Adelaide tem um trauma, pois alguns flashbacks nos ajudam. E nós sabemos que haverá uma reviravolta, pois este é um filme de terror e ele começa com uma música cerimoniosa pop e que vai se tornando tragicômica no decorrer do longa enquanto Jordan Peele vai conduzindo sua câmera para cada vez mais longe de dezenas de gaiolas onde estão encarcerados coelhos de diferentes raças, em uma alusão e brincadeira a um outro filme envolvendo cartolas, que caso você conheça poderá te colocar uma pulga, desses coelhos, talvez, atrás da orelha, e mesmo que não tenha a cena servirá múltiplos propósitos no roteiro, das tais camadas que comentei.
Muitas pessoas entrarão e sairão de uma sessão de "Nós" não entendendo nem mesmo 20% de todo o contexto, mas ainda assim acharão este um terror de qualidade, frenético, que não possui pausas, que não trata o espectador como idiota, que sabe a hora de evitar clichês, como a chegada de uma segunda família e os acontecimentos que se seguem a partir de uma chamada para a polícia, e sabe o momento em que usá-los é uma piscada inteligente para quem assiste, como a forma acrobática com que alguém acaba caindo morta. Este é um filme que não apenas conhece o gênero onde está inserido, mas conhece seu espectador, o respeita e o admira. Do ponto de vista de um cinéfilo, você se sente abraçado por um filme desses.
Diferente de "Corra!", os momentos cômicos ou a comicidade dos personagens de "Nós" são contados nos dedos, e muito melhor utilizados. Há um respiro no filme, mas bem pouco, quando esses momentos chegam. Mas Peele não quer que você respire muito. Apenas o suficiente para conseguir chegar no final e ter energia para entender a complexidade com que a frase "Conhece a Si Mesmo" do lado de um índio, espelhos, a frase "somos americanos" e macacões vermelhos, por incrível que pareça, se relacionam da maneira mais bonita e poética possível, e não gritam significados para o espectador, pois não são importantes para a trama principal, que é um slasher bem básico que todo mundo consegue se divertir.
(Porém, a partir da chegada da segunda família ao filme ele deseja que o espectador pelo menos se comprometa em refletir a respeito do que tudo isso significa. Sabe como é: a camada básica. Porque se nem a básica, a que está no título do filme, o espectador não se sujeitar, ele poderá de maneira inacreditável achar este um filme chato.)
São tantas questões levantadas pela história de "Nós" que corremos o risco até de fazer perguntas que o filme nem estava preparado para responder. Por exemplo: quem come carne vermelha a vida toda tem um potencial de ser mais ágil e forte de quem não come? E uma pergunta despropositada como essas ainda assim estará inserida em todo o contexto histórico que o filme nos propõe, ao comparar classes distintas de indivíduos e o que leva aos membros de um grupo ser considerado livre e o outro não, ou que um grupo tenha alma e o outro não. Esse filme gera esse efeito das perguntas se profilerarem, e não cabe a ele ter todas as respostas. Apenas as básicas, quem vai se salvar e o que acontece depois.
Eu me admiraria se a trilha sonora de Michael Abels não fosse indicada a nenhum prêmio, mas só porque o gênero terror surge renovado nessa década e é levado em conta. Escolhendo acompanhar a cadência tanto física quanto mental do espectador e dos personagens, Abels investe em pausas aparentemente sem ritmo e sentido que reflete perfeitamente o nosso processo de digestão do filme e das cenas de suspense, em um equilíbrio quase perfeito entre tensão física e compreensão intelectual. E a dica é plantada desde o começo, com a chegada da família à casa de campo com uma música tocada no rádio, que assim que eles chegam para abruptamente.
Já a fotografia de Mike Gioulakis consegue nos manter em uma versão que abraça os anos 80 ainda que a grande maioria do filme se passe nos "tempos atuais", pois entende que filmes de terror desse nível devem se encontrar nessa década, mas ao mesmo tempo, em vários momentos, é a melhor luz que sobressai. Dessa forma, é por isso que quando acaba a energia na casa do campo somos levados para uma atmosfera cheia de sombras, pois é a apresentação das sombras que iremos testemunhar, ou uma luz de colégio amarelada soa mais correta em uma sequência que envolve longos corredores e salas impessoais.
Em filmes de terror geralmente o elenco é o que menos importa, mas a presença e a criação de Lupita Nyong'o prevalece o tempo todo. Ela faz Adelaide crescida, mas é na criação de suas personagens que ela toma o protagonismo do filme inteiro para si. Lupita é multifacetada, cria personagens completamente diferentes nos filmes que trabalhou, como 12 Anos de Escravidão e Pantera Negra, e aqui tem a chance de nos conduzir pelo horror de um simples diálogo dito com uma distorção de voz angustiante. E não é só isso, pois as expressões no rosto da atriz soam deliciosamente ambíguas em retrospectiva.
Jordan Peele tem o controle do roteiro e da direção e aqui se torna um mestre do terror, privilegiando a talentosa equipe que conduziu a esta experiência profunda de sensações e de significados. Os significados podem ser buscados pelo espectador, um a um, mas sabendo que este é o mesmo diretor de "Corra!" se torna mais fácil perceber que este não é apenas um slasher de qualidade. Os melhores terrores, assim como os melhores sci-fi, estão sempre nos trazendo as melhores reflexões sobre o mundo real. E US não poderia ser diferente.
# Professor Marston e as Mulheres-Maravilhas
Caloni, 2019-12-17 cinema movies [up] [copy]Este é um filme que não entende muito bem seu papel no mundo. Ele quer afirmar que não há nada de errado em um pai e duas mães constituírem família, mas toda essa compreensão sobre formas diferentes de amar não serve para compreender que o resto do mundo não é mal, mas apenas vive em sua própria época, seguindo seus próprios valores.
Essa afirmação que o incomum pode ser normal sabota a estrutura de "Professor Marston e as Mulheres-Maravilhas", que já no título centopeico denuncia seu tom novelesco, pronto pra TV. Começa no julgamento de um comitê de ética e segue com flashbacks por completo, quase sem ligação com o tempo atual. É preguiçoso em seu máximo. Não entendendo a mina de ouro que é a história que ela está sentada, a diretora e roteirista Angela Robinson adota uma postura tão blasê ao narrar os acontecimentos reais em torno do criador da Mulher-Maravilha que a única coisa que chama a atenção são os acontecimentos, e que chamariam a mesma atenção em um verbete da Wikipedia (e gastaria bem menos tempo do espectador).
Não é possível também, em pleno século 21, que seja escalada uma diretora mulher para conduzir um material cujo protagonista é um mero representante do patriarcado acadêmico, além de um homem de sorte. Ele é um professor doutor em psicologia e trabalha com sua linda esposa e se relaciona com sua estonteante secretária. Ao mesmo tempo. Sua desculpa é validar uma teoria sobre papéis de dominação e submissão que permeiam o imaginário popular hoje em dia com enlatados repulsivos como a série 50 Tons de Cinza.
Ele também é o inventor do detector de mentiras, que gera uma cena absurda e obtusa em que a inquisidora mulher do professor deduz um detalhe técnico que não tem a menor relação com ética apenas para uma personagem feminina poder afirmar que outra personagem (feminina) foi responsável pelo principal detalhe de sua invenção, e não um homem, como se imagina. Porém, quando observamos outra cena em que a secretária dá seu pitaco, soa tão irreal frente a dois doutores que a impressão é que uma secretária está diante de dois doutores incapazes de constatar o óbvio de sua própria pesquisa.
Por outro lado, o lado pessoal, "Prof. Marston" caminha gradualmente em torno de sua mensagem de amor livre, mas as emoções sentidas pelo trio soam falsa desde o início, ou no mínimo formulaico. É óbvio que eles estão destinados desde a primeira cena a se tornar um ménage, mas metade do filme é gasto para desenvolver o óbvio, e acaba soando bombástico quando no fundo é auto-evidente. O único freio na inevitabilidade do amor a três seria a sociedade e os valores de cada um, mas esses valores nunca são expostos o suficiente para serem postos à prova, desafiados, e assim quebrados. Nunca sabemos realmente quem são essas pessoas, e por isso nos conectamos mais à sua história genérica do que às suas personalidades.
Unindo História e vida pessoal o filme ainda tenta estabelecer o necessário elo entre a polêmica heroína fetichista iniciada pelo Professor como forma de divulgar suas ideias não-ortodoxas pela via popular, e para isso utiliza os mesmos personagens em papéis funcionais e nunca orgânicos. É daí que surge o avião invisível a partir de um aviãozinho de plástico, ou o chicote entre os primeiros aficionados de BDSM antes mesmo de ter esse nome. Tudo soa muito artificial e conveniente, pois falta espírito na aventura.
Após os anos 80 tudo mudou, e por isso este não é um filme espetacular sobre um serial killer, nem um resgate aos lúdicos anos mágicos. É mais uma repaginada sobre o que mudou desde então, quando os mocinhos e vilões deixaram de serem fáceis de reconhecer. Ou se era um ou outro. Agora heróis como Walter White são o mais comum e família feliz e perfeita existe apenas nos comerciais e nas redes sociais.
Há uma tarefa em desmistificar essa década, que é vista como perfeita por adultos que nunca a viveram. Ela não é mágica e perfeita como nos filmes de Spielberg, até porque se você se lembra de todas as partes do filme desse diretor vai perceber uma proximidade com o mundano que nos esquecemos de apreciar. E assim como os que endeusam os tempos da ditadura há uma certa idealização de uma geração que convivia com os mesmos problemas que nós. E não, o celular não estragou a infância dessa garotada.
A direção de arte de Summer of 84, assinada por Catriona Robinson, é um primor de detalhes catalogados em estúdio que ganha vida graças à fotografia não exatamente saudosista de Jean-Philippe Bernier, mas antes imersiva. Note como as cores básicas viram elementos para pontuar a paleta, mas nunca são iluminadas pela mágica da preguiçosa pós-produção, que transforma tudo em mais do mesmo, como visto em Stranger Things. Nós queremos viver na época criada pelas equipes de Robinson e Bernier, e o início do filme é vital por nos permitir ser inseridos naquele mundo aos poucos e sem pressa. Não é correto apressar espectadores já quase vomitando de tanto conteúdo 80's para um repeteco.
Essa lógica de aos poucos segue nos personagens-mirins, que são sequer estereótipos, mas símbolos de todos os personagens já vistos nos filmes da época e sobre a época. Isso não é ruim. É delicioso participar mais uma vez de uma aventura da "gangue da rua" movida a bicicletas e walkie-talkies, principalmente quando esses elementos estão aí para sabotar essa impressão errônea que muitos irão ter de ser mais uma aventura saudosista.
Saudosismo está muito longe da verdade por trás do trabalho desses três diretores, que já trabalharam juntos em outros projetos (como Turbo Kid) e aqui estão prontos para dar vida ao roteiro assinado por Matt Leslie e Stephen J. Smith, que não parecem se esforçar muito para serem econômicos nas descrições e nas cenas, mas que exatamente por isso, ainda que inadvertidamente, se crie essa atmosfera falsa de revival enquanto bem nas entrelinhas mais escuras reside a mórbida diferença entre nosso imaginário audiovisual e a vida real, vista sob os olhos de espectadores da década 2010 dispostos a colocar tudo isso abaixo.
A história é básica: garotos investigam, puxados por um maluquinho conspiracionista, o possível envolvimento do policial do bairro nos assassinatos em série de garotos de idade semelhante a deles na região. Quanto mais a fundo os garotos vão, mais descobrem que não há nada que incrimine o aparentemente normal e quase simpático Wayne Mackey (um trabalho refinado de Rich Sommer). A vergonha alheia vai tomando conta dos meninos, mas você já sabe o final. Depois de termos descoberto o drama pessoal de cada um deles entre as quatro paredes de suas famílias não tão perfeitas assim, o longa passa a se tornar mais pesado e desesperançoso. E finalmente a mensagem está sendo entregue.
É preciso uma certa coragem para empreender um trabalho tão minucioso e bem produzido para nos entregar quase nada de novidade, ainda mais quando essa novidade é um belo de um adeus ao saudosismo da década mais amada atualmente. Todos os objetos que vemos em cena para nos fazer lembrar com carinho desses tempos vão se revelando como uma isca infame, embora não muito arrebatadora. Summer of 84 é sutil demais para chamar atenção para seus detalhes, exceto a reviravolta final, que destoa de todo o resto do filme.
Como consequência, devemos nos apaixonar novamente pela época para finalmente a destruirmos. Como o protagonista e narrador afirma, existe um serial killer morando perto de cada um de nós. A questão é que não é apenas isso o perigo de apenas viver a perfeita vida americana entre quatro paredes quando divórcio, violência e apatia tomam conta da sociedade.
A lógica de A Jaqueta de Couro de Cervo é simples, direta e escalável. É daqueles filmes curtos que exploram um tema até seu inevitável final, não nos permitindo sair dos trilhos. Nos limitamos a ficar tensos, aguardando quando as coisas começarão a dar errado, enquanto assistimos nossa própria incompreensão de quando começa o fascínio por uma história de cinema.
Jean Dujardin (O Artista) vive Georges, um ser que se desconstrói no primeiro momento do filme, enfiando sua jaqueta dentro de uma privada no meio do nada e nunca olhando para trás. Mas não se engane por esse pequeno ato. Georges está relaxado e focado. Sua raiva reacionária é demonstrada de maneira econômica e pontual, e seus atos amorais são efetuados sob um véu funcional que não nos permite ignorar sua seriedade.
Já Adèle Haenel, dos ótimos A Garota Desconhecida e Finalmente Livres, faz basicamente o nosso papel de espectadores, como a garçonete que só se empolga de verdade no primeiro momento selvagem de Georges que ela assiste, o que automaticamente define e acusa a desconstrução que é o Cinema, que parte de um Zé Ninguém de história ou premissa em busca de sua verdadeira identidade, na transformação do nada em algo.
Georges vive em função dessa jaqueta-título, que é o protagonista de fato, e cria um acessório humano para satisfazer os desejos mais fetichistas de nossa sociedade consumista, materialista e assassina, escolha o rótulo que quiser atacar. De brinde há um pouco de thriller e slasher, embora este não seja o principal, mas o instrumento pelo qual a discussão é posta na tela. Enquanto isso Adèle vive a persona mais fascinante, pela sua atuação mais sincera e com menos maneirismos, além de nos entregar um retrato honesto de uma personagem de filme francês. Pelo pouco tempo de tela disponível para a atriz ela nos entrega mais presença que Georges, pois compreende que para este filme tresloucado de Quentin Dupieux é primordial que a câmera esteja invisível.
Uma trilha sonora anos 60 comenta sem interromper a espiral de loucura do protagonista, a jaqueta, em uma viagem metalinguística que vive pelas referências vagas do cinema, mas principalmente pela auto-referência. O próprio trabalho de edição é desconstruído, como podemos ver nos diálogos entre Georges e sua jaqueta, sem o disfarce que Georges é quem faz a voz da jaqueta. Por fim, a direção de arte não nos permite sair daquele mundo solitário e acre fotografado sem maiores surpresas, exceto nos banhar de western em um filme francês. Essa é a mágica das cores do cinema, como a própria fachada do cinema da cidade onde se passa a ação, que com um misto de azul e principalmente vermelho já nos indica de imediato o perigo da ilusão. "Sozinhos" no escuro da sala, o cinema será sempre esse perigo de nos envolver além do recomendado em uma vida inexistente. E quando acaba é repentino e fugaz. A única coisa que permanece são as jaquetas de pele de animal. Que filme, que filme.
Dupieux é o diretor estonteante do cult ou quase-cult Rubber, O Pneu Assassino. Ele nutre esse fetiche materialista de maneira aberta e nos traz reflexões sinceras sobre o quanto os objetos exercem esse fascínio, mas no proceso percebemos que o próprio filme pode ser esse objeto.
É um filme de sustos, com efeitos melhorados desde Mama, com efeitos de câmera que tentam fugir um pouco do lugar comum, como alguns planos-sequência, a câmera tremendo seguindo as emoções da cena, atuação de um elenco-mirim acima da média (pontos para a presença espontânea de Jaynee-Lynne Kinchen), que tenta se inserir na saga Annabelle apenas por fazer parte de um universo onde o sobrenatural existe e há um personagem em comum: o padre que tudo vê. É uma trilha sonora afiada, embora sem imaginação, e uma direção de arte eficaz em unir cenários reais com ultra estilização geradas por computadores. Nunca somos apresentados à casa onde a ação ocorre, e portanto estamos sempre perdidos nela, e em uma aventura sem personalidade. Com o tempo a história, a maldição, se torna mero pretexto para um filme parque de diversões, casa do terror, mas é bem feito, ou apressado o suficiente para não pensarmos tanto. No começo ele esboça um tema a respeito de abuso infantil e famílias vulneráveis, mas nunca consegue desenvolver o suficiente, usando apenas como um aumentador das impressões da casa do terror. A mãe é intensa em defender seus filhos, e é uma viúva, mas é esperado de qualquer mãe essa garra, então ela também é genérica. O curandeiro tem a vantagem e a limitação de ter um ator de uma nota só (Raymond Cruz), onde o exagero na seriedade e afetação são alívios cômicos o suficiente. Elementos da maldição vão sendo acrescentados no terceiro ato, como a árvore onde foi cometido o infanticídio, e por isso não se torna tão relevante para o conjunto da obra, que tenta ser completa, mas acaba sendo mais um episódio da saga da boneca maldita e da produtora de James Wan, diretor de Invocação do Mal e a série Jogos Mortais.
Bibliografia blasê e de conveniência, com matemáticos se dando tanta importância que chega uma hora que não importa mais. É a história de um indiano sem estudos formais que com a ajuda de um professor de Cambridge consegue publicar alguns trabalhos relevantes para outros matemáticos. Tudo é muito abstrato, incluindo as personalidades desses personagens, eternamente em um palco de teatro. Seus diálogos nunca se unem como nas supostas fórmulas elegantes desse indiano. É uma sucessão de frases de efeito que sequer tentam criar alguma importância real para a história, apenas vivem repetindo como é importante. Uma direção de arte e produção de filmes televisivos, mas com um elenco de primeira que nunca consegue entregar a coisa real. Exceto Dev Patel, como sempre absorto nas obsessões de seu personagem, incapaz de esboçar um sorriso que não implique em seriedade. Jeremy Irons não consegue salvar seu personagem do destino de um narrador glorificado. É como se diz hoje em dia sobre biografias, se você vai movimentar uma equipe inteira para mostrar visualmente o que é possível aprender em quinze minutos lendo a Wikipédia, prefira a Wikipédia.
Esse último trabalho do diretor sul-coreano é uma crítica social, e diferente do Hospedeiro, não é tão óbvio assim. Se trata de uma história mais complexa, que lida com questões sobre identidade em uma sociedade estratificada em basicamente duas camadas, ricos e pobres, e esta é uma análise de ambos. Começando pelos pobres, que se dividem em empregados e desempregados. Eles competem como selvagens por uma chance de subir na vida, e graças a uma amizade com alguém que passou na faculdade este rapaz consegue empregar a família toda na casa de ricos ingênuos e gentis. Por que ricos são assim é um dos questionamentos que essa família se faz no melhor momento do longa, pois é quando a questão finalmente se abre. Lidando com a história como um meio para se chegar em um momento catártico envolvendo uma faca onde Parasita encontra Coringa, mas dessa vez com a mensagem que o mainstream quer defender, Bong Joon Ho usa a relação vertical para estruturar todas as relações do filme. A família dos pobres vive no porão, e a casa onde trabalham fica no local mais acima da cidade, para chegar nela ainda se precisa subir uma escadaria. Todo evento no filme leva essa marca, como o que acontece quando chove. Este é um filme com boas atuações, mas a matriarca dos pobres se destaca. Os diálogos e situações possuem um pouco do que torna O Hospedeiro tão mágico na questão de fusão de gêneros, mas é sutil demais para relaxar. Se torna um filme tenso do começo ao fim, e o único descanso é a ação.
Assisti a segunda vez. E dessa pareceu mais blah ainda. A construção inicial já não parece tão boa. Os personagens são mais estereotipados ainda. Fora alguns méritos técnicos na direção, edição, fotografia, o roteiro empalidece, o que poderia ser uma coisa boa, em prol das amarras soltas de um universo se despedaçando, mas antes o filme se despedaça sozinho em seu próprio universo. A facada fatídica continua sem sentido algum, um lapso de emoção compreensível, mas desprendido da atmosfera. Uma catarse sem sonhos. Deprimente. E reprimível.
Engraçado como Hollywood embaça a visão dos que amam a arte. Não duvido que daqui uma geração todas estas obras com gente colorida passe como uma piada de mau gosto. Existirão coleções desta era trash pós moderna, antes da IA ditar o que é arte popular.
# Tradicional Mensagem de Feliz Natal e Bom 2020 Versão Cinema
Caloni, 2019-12-21 [up] [copy]Tudo começou há mais ou menos... não me lembro. O que eu sei é que meu grande amigo Pikachu me colocou em um aviso anual sobre compilar uma mensagem de final de ano com referências a filmes que foram lançados esse ano no cinema (ou algum filme mais antigo de vez em quando, se surgir a oportunidade). Esta é a primeira vez que transformo essa mensagem em um post.
O ano de 2019, imitando 2016, foi escrito e dirigido pelo Tarantino, onde até um Era Uma Vez... em Hollywood consegue virar umA Maldição da Chorona. Com ou sem um Parasita atazanando a vida.
Houve os momentos bons, como testemunharmos finalmente o Ultimato dos Vingadores, apesar que todas essas aventuras em fundo verde serviram para nos cansar de tantos efeitos e perceber que toda essa correria das Marveletes foi uma verdadeira Odisseia dos Tontos. E assim como tontos, cambaleando para fora da sala do cinema depois de ter visto uma atrocidade como Os Parças 2, perdemos muito no meio de discussões que não levam a nada. Esquecemos até o idioma, e trocando português por espanhol perdemos até "El Camino".
Mas nessa nossa Vida Invisível em que entramos naquela salinha escura e nos descobrimos novamente atingimos nosso próprio Bacurau, bem No Coração do Mundo. E quando isso acontece fica difícil dizer que o cinema nacional vai mal, quando entendemos que O Paraíso Deve Ser Aqui. Não há melhor Retrato do Amor.
Eu sei que vivemos em tempos difíceis, onde até uma criaturinha singela como um Pikachu pode virar detetive de um filme noir. Tempos sombrios, onde temos nossa Privacidade Hackeada e parece que nada podemos fazer. Às vezes dá vontade de largar o emprego e viver como um Irlandês, fazendo servicinhos para a máfia, se sentindo O Rei Leão em um trabalho fora da Legalidade e Fora de Série, que satisfaz nossos desejos mais violentos. É como sobreviver Um Dia de Chuva em Nova York e dar Adeus À Noite, em uma passagem de Dor e Glória.
Mas muita calma nessa hora. Não se deve confundir arte e vida real. Toda Arte é Perigosa. Não adianta sermos infantis e gritar Shazam!, esperando sair pelos ares, como um Rocketman, virar um Homem Aranha da vida (ainda que Longe de Casa) ou uma espécie de Anjo de Combate. Não podemos ceder ao nosso sentimento mais Maligno; até porque todos Nós temos em alguma parte de casa um teto de Vidro, e flertar com a vida de um anti-herói pode fazer de nós no mundo real um trágico Brinquedo Assassino, mesmo que esperássemos um Parque dos Sonhos.
Por isso, esqueça as trevas, não seja o dono ou A Dona do Mal. Olhe para O Farol no fim do oceano, estreando dia 2 do ano que vem, 2020. É sinal de paz e Ascenção, nossa ou de Skywalker. Iremos Rumo às Estrelas, esquecermos nossa Mente Perversa e torcer por coisas boas, como uma competição inocente entre Ford vs Ferrari, e não o calor inconsequente de um Retrato de Uma Jovem em Chamas, nem o frio congelante de um Frozen 2. Vamos pelo equilíbrio, reconstruir um novo mundo.
Afinal, Deus é Mulher e Seu Nome é Petúnia. Espero que este estreie também em 2020 =)
Todos estão compenetrados em seus celulares, mas Earl Stone continua vivendo sem o uso de aparelhos. A triste história é que o último filme de Eastwood é o clichê do pai ausente, mas a boa notícia é que ele tira sarro de justiceiros sociais com certa sutileza, ou às vezes não, como quando um latino está sendo enquadrado pela polícia e fica repetindo como aqueles cinco minutos são os mais perigosos de sua vida, sendo latino e tudo mais. Ele teme por sua vida baseado em estatísticas que nem ele sabe direito traduzir, em uma tradução simples e eficiente de como o pensamento liberal americano está corrompido por uma lógica vazia que tenta sustentar sentimentos contraditórios com a realidade. Enfim, é sempre bom poder ver um novo filme do velho Clint.
Aqui ele não inventa muito. Baseado em um roteiro simples, embora eficiente, de Nick Schenk, que se inspirou em um artigo do New York Times escrito por Sam Dolnick sobre um caso real, Clint Eastwood faz um noventão que ignorou sua família a vida inteira para se dedicar a suas flores, pois lhe davam notoriedade entre os colegas. "Elas apenas florescem uma vez", ele diz sobre suas flores, e tem que ouvir um "e a sua família não?" de sua ex-esposa. Eastwood parece um pouco mais sentimental aqui, embora nunca sentimentalóide como a geração atual, o que garante ao seu personagem, Earl Stone, o mínimo de dignidade necessária para viver.
Convenhamos que o ator/diretor é a melhor coisa em A Mula, e isso sendo à frente ou atrás das câmeras. Ele dá conselhos sobre como levar a vida para Bradley Cooper, e os significados se multiplicam mesmo que a história seja simples e direta: após ter que fechar sua floricultura, Earl recebe uma proposta para digirir da sua maneira extremamente segura e carregar quilos e mais quilos de cocaína entre fronteiras. Enquanto isso acompanhamos uma história mal desenvolvida que envolve um investigador da narcóticos (Cooper) vindo de outro estado e que pretende retomar sua carreira descobrindo um grande caso como esse.
Sempre em defesa da liberdade individual acima de tudo, mas deixando claro que o respeito mútuo é a máxima desse princípio, seja você negro, branco, pobre ou rico, A Mula é um colírio para qualquer olho cansado de ver o mesmo lenga-lenga vitimista nos cinemas da última década, acostumado preguiçosamente a criar narrativas de opressão como se ela fosse a regra vigente. Aqui Earl é o dono do próprio destino, ainda que velho, acabado e errado. Impotente no que diz respeito à força física, seu espírito continua intacto, e quando ele decide visitar sua ex-esposa enferma não é porque ele foi acometido por uma crise de consciência. Não há mudanças nos personagens deste filme. Ele apenas decidiu que agora era o momento de revê-la, e não é difícil perceber que este é um filme que enaltece as pessoas que criam seus próprios caminhos em vez de ficar reclamando o que a vida lhe tem feito passar.
O humor está presente no filme através do quão ridículo é um cartel de drogas ficar à mercê de um senhorzinho à beira da morte. Ele é um ótimo motorista, não há dúvidas sobre isso, e os capangas em torno da briga de chefões são seres humanos que aos poucos se entregam à humanidade do sujeito. Há muitas lindas mensagens sobre relacionamento no filme, e todas elas criticam duramente como o papel de vítima é uma praga que deve ser extirpada. Como é bom ver um novo filme do velho Clint.
# Fermento mais ou menos azedo (How to Make Sourdough More or Less Sour)
Caloni, 2019-12-26 cooking [up] [copy]Pesquisando sobre como tornar o fermento (e o pão feito com ele) menos azedo que o tradicional pão de fermentação longa, encontrei este artigo dividido em duas partes. Essas anotações dizem respeito à primeira parte.
É muito fácil não gostar dessa série por causa dela não explorar um tema que você goste e esteja na sua zona de conforto, e muito difícil deixar de gostar depois que você entende seu tema pueril. Ela é um respiro de ar livre de tensões fictícias, heróis e vilões, explosões e o salvamento do mundo, ou até como lidar com um poder inusitado. É apenas a história de um menino e uma menina pré-adolescentes. Eles sentam um ao lado do outro na escola e ela o provoca de maneira inteligente, como mulheres costumam agir, e ele encara as provocações como uma competição, como homens parecem encarar toda sua vida.
A maturidade da série em explorar esta lúdica situação eternamente é uma das melhores coisas que surgiu na Netflix em anos. É simples, mas não simples demais; apenas o suficiente. A complexidade das relações homem/mulher emergem naturalmente, em traços tão significativos que não requer muitos diálogos, e nunca falas que expõem o que está realmente acontecendo, e por que existe essa tensão entre eles.
É quase imperativo que seja assim, pois se tratam de crianças, mas é na maneira ingênua que é possível entender melhor como agem os homens e mulheres depois de adultos, além de nos lembrarmos como agíamos nessa idade, e entender que pouca coisa mudou, pelo menos para a maioria.
Que homens são imaturos por natureza não é novidade, mas o frescor com que a série apresenta a contraparte desse fato, através de uma menina adorável que contraria as regras orientais de etiqueta para seu gênero, que deve ser tímida por obrigação, é um dos pontos fortes. Pode não parecer para nós, ocidentais, mas esta menina de 12, 13 anos está desafiando o status quo dos papéis da sociedade japonesa.
Os colegas de classe complementam a série, servindo como estereótipos em situações conhecidas por todos espectadores. O ritmo é lento e contemplativo, e por isso mesmo valioso. Cada segundo de não-ação contribui para aproximarmos nossos próprios pensamentos em situações lúdicas que se disfarçam de infantilidade para os que ainda não perceberam que adultos são crianças crescidas, mas ainda assim eternas crianças.
# Harry Potter e a Câmara Secreta
Caloni, 2019-12-27 cinema movies [up] [copy]Esta segunda aventura da série de adaptações cinematográficas dos livros infanto-juvenis da escritora J. K. Rowling já soa mais episódica que seu primeiro e antecessor, mas mantém na magia, nas reviravoltas e nas ótimas atuações de seu elenco um pouco do lampejo de seu original. É óbvio que esta é uma produção que quer chamar mais atenção para seus efeitos, que convertem o fundo verde em torno de um carro "voador" para a magia de sobrevoar os céus de Londres em plena luz do dia. Mais detalhes sobre as relações entre bruxos e trouxas são revelados, e principalmente entre bruxos e bruxos.
Este é um filme para apresentar novos personagens-chave que farão diferença em toda a saga, como Lucius Malfoy, pai do menino irritante da família rival da escola de Hogwarts onde Harry Potter e seus amigos vivem sua costumeira aventura anual. Esta também é uma aventura que nos mantém alertas para o mal presente do vilão da saga, Lord Voldemort, que não está presente em corpo ainda, mas que justamente por isso alimenta ainda mais nossa imaginação.
A grande atração dos computadores é um servo baixinho e de outra espécie chamado Dobby, dublado por Toby Jones, em mais um ponto para o grandioso e sério elenco britânico elevando a qualidade da série. Dobby está por trás de tantas reviravoltas que se torna cansativa uma revisita ao filme, que é facilmente desvendado, e cujos elementos fantásticos não sobrevivem muito além de pura diversão, o que se traduz para o mundo dos adultos que já conhecem toda a saga como sonolento. Mesmo observando as mágicas daquele início de século em computação, como uma aranha e uma cobra gigantes, falta substância que una as diferentes criaturas nesta parte da saga. É como se a continuação tivesse perdido o fôlego ainda que faltando vários livros por adaptar, mas que precisasse entregar mesmo assim este livro para o fim de ano.
# Harry Potter e a Ordem da Fênix
Caloni, 2019-12-27 cinema movies [up] [copy]A série de filmes começa a parecer uma série televisiva, inchada para pouca recompensa no final do episódio. A suposta genialidade de J. K. Rowling em recriar a mitologia Star Wars acaba se tornando óbvia demais nesse episódio onde apenas pessoas específicas morrem para que haja algum peso dramático, e a dicotomia entre progressistas e conservadores seja novamente usada como uma óbvia alegoria em nosso século onde seguir as tradições é usado como a marca da besta.
O filme não se diferencia por muito mais que isso dos outros. Apresenta novos personagens que serão usados na batalha final e para aumentar a diversidade com novos elementos femininos. É curioso como a participação de Gary Oldman como Sirius Black parece ter sido pincelada para pouco tempo de tela e muito impacto narrativo. Assim como Dumbledore e outros adultos que antes apenas eram portas de entrada para as crianças bruxas e as leituras desses livros.
Mas a ideia geral é a troca de gerações, e nada como um bando de jovens liderados pelo bruxo escolhido Harry Potter para que outra alegoria muito usada, a dos jovens revolucionários, tome as rédeas de um mundo cínico onde a mídia é controlada pelo mais alto grau dos bruxos. O medo de perder poder acaba atrasando o progresso e a elucidação de fatos que a autora tanto venera em seus livros: o mal está de volta (ele sempre está, não?) e precisamos de mais força para impedir.
Aliás, não deixa de ser irônico que um controle mais conservador em Hogwarts impeça os alunos de aprenderem a se defender (ou atacar, mas não se usa como sinônimo), enquanto o lado mais progressista na vida real seja o mais entreguista possível, assim como a contradição entre usar o nome de Voldemort para impedir que o nome ganhe poder enquanto usar a expressão sangue sujo para mestiços entre bruxos e trouxas é ofensivo e deve ser evitado.
Enfim, alegorias muito simplistas tendem a entregar resultados superficiais. Aqui conhecemos o lado mais adulto de Rowling, e ele não é nada maduro.
# Harry Potter e o Cálice de Fogo
Caloni, 2019-12-27 cinema movies [up] [copy]Quarta aventura da série de filmes adaptados dos livros da escritora infanto-juvenil J. K. Rowling, este é o último ainda adolescente e que não envolve tragédias muito acenturadas no dia-a-dia dos estudantes bruxos da escola de Hogwarts. Ele termina com essa transição para o mundo adulto, onde a morte pode e deve acontecer de forma mais frequente para os protagonistas da história. É um arco, mas como filme serve para múltiplos propósitos dentro de uma série, como evoluir as relações do núcleo Harry, Hermione e Ron, além de revelar novas facetas do mundo dos bruxos, como sua existência em outros países, além do perigo sempre iminente que o Ministério da Magia no Reino Unido sofra ataques indiretos pelos capangas do mal maior no universo, representado por Lorde Voldemort.
Ainda não está claro qual é a grande maldade de Voldemort, embora ele flerte pesadamente com a figura de Darth Vader, já que a existência entre bem e mal absolutos é marca de sagas fantasiosas como ambas. Além disso, as sugestões elitistas dos bruxos mals, que estão sempre atacando os bruxos mestiços, também sugere essa analogia que a escritora J. K. Howling aplica em seu mundo.
A direção de Mike Newell empolga, mas é burocrática demais para criar alguma personalidade. O mesmo universo é revisitado e as novidades não parecem ornar muito bem com o que já conhecemos. Parece um show off desnecessário do ponto de vista da história, embora seja muito empolgante assistir à Copa Mundial de Quadribol ou a existência de grupos de estudantes fazendo intercâmbio.
Trabalho menor dentro da saga, seu aspecto comercial hoje prevalece. Menos infantil, é claro, que os dois primeiros filmes, seu pecado é tanto tempo de tela apenas para expor os eventos sem explorá-los como cinema.
# Harry Potter e o Enigma do Príncipe
Caloni, 2019-12-27 cinema movies [up] [copy]Uma tragédia anunciada com todo o ritmo que isso exige. Este é o filme mais caprichado desde Azkhaban. A fotografia é densa, possui a textura do livro e de um épico, vários quadros inesquecíveis pela beleza. Sentimos o livro sendo aberto e lido com os visuais estonteantes e significativos na trama. São tempos sombrios na escola de Hogwarts, e aprendemos isso pelos nossos sentidos, não por diálogos.
Segundo filme do diretor David Yates na saga, ele aprende a controlar o universo que tem em mãos e nos entrega o trabalho mais maduro até então, conseguindo um trabalho que flui pelos eventos como se todos eles de fato importassem, e não apenas como enchimento de linguiça. Soma-se o fato que estamos acostumados com os personagens, e uma nova aventura com Harry, Hermione e Ron é sempre bem-vinda.
# Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban
Caloni, 2019-12-27 cinema movies [up] [copy]O bruxo Harry Potter e seus amigos atingindo uma idade em que a história começa a ficar ligeiramente mais interessante e menos infantil, menos magia por magia, menos efeitos tomando conta da história, embora os efeitos em si criam uma nova dimensão ao entretenimento.
Aqui a troca de direção só faz bem, pois há uma mudança na linguagem visual que torna esta a aventura mais dinâmica até agora, com transições elegantes, como uma coruja mudando a estação durante o vôo, e uma câmera mais interessada em seus personagens do que em espaço de fundo verde. Alfonso Cuarón já provou ser um exímio narrador de fábulas, como em A Princesinha, e aqui seu lado lúdico se une ao dramático. Ele consegue dialogar tanto com os espectadores mais novos quanto com os mais maduros através da história da escritora J. K. Howling.
A fotografia é mais sombria que nos filmes anteriores, mas ao mesmo tempo mais afiada, onde trevas e luz estão conversando a todo momento e a magia é usada para o bem como uma luz que ilumina as sombras dos temidos dementadores. Este é o filme com a arte mais humana quando se observa o efeito das magias com varinha; elas soam mais natural, fazem parte do mundo onde se passa a história, e não um mero apetrecho de palco, como os sabres de luz em Star Wars várias vezes nos faz sentir.
Esta é uma história bem construída e sem uma reviravolta boba como as anteriores, geralmente envolvendo de maneira preguiçosa um novo professor. Além disso, seu terceiro ato é um exemplo do uso de viagem no tempo sem chamar tanta atenção ao efeito e mais em autoconhecimento. Como toda viagem no tempo possui seus furos lógicos, mas é a experiência que conta, e esta é uma das melhores já vistas no cinema.
O trio principal está mais crescido e podemos observar a evolução de suas interpretações. Ronnie de Rupert é o mais desafiado, pois deve sair de sua caricatura cômica e amadurecer sem esquecer suas origens. Hermione demonstra o controle inteligente da atriz Emma Watson. E Harry está mais à vontade do que nunca nas mãos de Daniel Radcliffe, em um terceiro filme que já demonstra o sucesso de um projeto de oito distribuídos por dez anos.
Como existirão muitos episódios ainda a escritora J. K. Howling não sente a pressão de envolver todos os personagens principais com tempos de "tela" artificiais. Ela e o roteirista que adapta entendem que este é apenas mais um episódio de uma história maior. Detalhes serão reveladores para o conjunto, mas no momento ele só se preocupa com o ano letivo.
Ninguém menos do que o próprio diretor entende isso. Ele não chama atenção para si mesmo e seu filme, entende e abraça o conceito de um grande filme em movimento a cada novo ano, e realiza um salto elegante entre começo e fim que nos entrega visualmente o que muda na vida de Harry esse ano.
Diferente da trilha sonora anterior, que flertava com uma mistura entre Esqueceram de Mim e ET, a adaptação de John Williams respeita o tema principal, mas resolve diminuí-lo pelo bem de um episódio mais dramático e movimentado que a fantasia infantil dos anteriores.
Apesar de sempre mudar no futuro e sempre gerar acaloradas, intermináveis e fúteis discussões entre cinéfilos, as famigeradas listas dos melhores ajudam a colocar uma certa época ou gênero em perspectiva, nos permitindo avaliar melhor através desses exemplos a coleção completa. Claro que cada um terá sua lista e a defenderá até o fim, mas é justamente essa a graça de conversar sobre arte: cada pessoa tem sua experiência muito particular sobre o todo.
Eu, por exemplo, tive alguns dos meus melhores momentos do ano dentro da sala de cinema, e mesmo assim não quer dizer que considero 2019 um grande ano para a sétima arte; muito pelo contrário. Filmes excelentes eventualmente irão estrear, mas continuam sendo raridade, e a cada ano mais escassos, e por isso para mim foi uma dificuldade selecionar dez que foram lançados no Brasil este ano. O que torna um filme excelente para mim pode não ser para você, mas há de convir que quando um de nós o encontra fica difícil se esquecer, ainda que você o tenha assistido no comecinho do ano.
Como Homem-Aranha no Aranhaverso, por exemplo, um filme que estreou nos cinemas brasileiros nas férias escolares do início do ano e que manteve sua marca durante todos os 12 meses seguintes. Não me lembro de ter visto nenhum trabalho de animação ou até de filmes de super-herói que tivesse explorado tão bem essa ponte entre o universo dos quadrinhos e a telona, seja no quesito estético ou narrativo. Todos que adoram o personagem de Peter Parker e seu alter-ego foram obrigados a torcer o nariz e afirmar que, mesmo não sendo um live-action, Aranhaverso foi um dos melhores filmes a explorar o adorável conceito criado por Stan Lee e Steve Ditko. Além disso, acaba sendo uma aventura divertida para crianças de todas as idades e que não se permite trazer problemas ou soluções fáceis apenas por ser divertido. Ele empolga justamente porque sua trama é complexa na medida para nos deixar presos na poltrona do cinema até o fim. Além, é claro, de uma produção artística que ambiciona ser referência do tema, e consegue com louvor, e com folga. Descanse em paz, Stan Lee. E muito obrigado por este e outros presentes.
Seguindo logo o herói mais bem representado do ano vem o vilão mais bem representado. Pelo menos se considerarmos que se trata do mesmo vilão visto nos quadrinhos, ou uma encarnação realista à altura. Estou falando de Coringa, o filme que atraiu multidões para as salas este ano justamente porque este vilão fala diretamente ao grande público sobre coisas que a crítica especializada busca evitar, especialmente da maneira irresponsável com que o diretor Todd Phillips explora neste longa protagonizado por Joaquin Phoenix em criação à parte do personagem. Coringa é sobre política e é impossível se desvencilhar desse assunto durante todo o filme, apesar de estarmos assistindo a um drama intimista e subjetivo sobre a vida de um desequilibrado mental. Em sua superfície o filme parece simplório em sua mensagem, mas é nos detalhes sórdidos, nas entrelinhas, que o filme se entrega de coração ao que é esperado de uma obra de arte: provocar-nos.
Nem sempre os heróis e vilões possuem histórias excitantes com arcos dramáticos impossíveis, e para isso é que existe toda a subjetividade do cinema, que faz qualquer drama de qualquer pessoa se tornar vital no momento que assistimos. Diferente da semi-biografia pausterizada de Freddie Mercury do ano passado, Rocketman é uma biografia e um musical que não possui uma grande tragédia para se manter na mente das pessoas, nem um músico que a grande maioria aprendeu a amar. E é justamente por isso que o filme de Dexter Fletcher consegue se desvencilhar do convencional e ir bem fundo no drama de um artista que lutou boa parte de sua vida apenas para existir como ele é. Eis um filme que ao narrar sobre a vida privada de um cantor pop ainda vivo extrai das particularidades o drama universal dos famosos em ser incapaz de lidar com tanta fama em sua vida pessoal. E além disso é um musical tão empolgante que mesmo sem substância ele já seria interessante.
Quando pensamos em filmes sem substância que podem ser tão bons que nos esquecemos da falta de conteúdo logo nos vem o gênero terror à mente. E ao vir o gênero terror é impossível não se lembrar em 2019 de Nós, que chega como o segundo filme do diretor de Corra! esperado como algo próximo, mas que acaba entregando um trabalho de um cineasta que parece ter amadurecido rapidamente, em uma direção de quem tem o controle absoluto e uma trama (também escrita por Jordan Peele) que nos entrega tantos símbolos vagos que eles se encaixam na mente de praticamente qualquer espectador interessado nas camadas mais profundas da história. Este thriller funciona em tantos níveis que sua maior crítica é ter tantos níveis, a ponto do significado se perder rapidamente ao final do filme. Porém, isso não importa nem um pouco, já que o medo é algo tão subjetivo que a escolha do espectador ligar seus próprios pontos acaba virando uma ideia de gênio, de quem pode ter escrito algo muito particular, mas com sua habilidade vira uma carta aberta para todos que adoram enxergar padrões.
Já menos interpretativo, mas muito mais profundo e adulto em sua abordagem, é Guerra Fria, trabalho do cineasta Pawel Pawlikowski que à primeira vista pode não parecer nada demais, mas que oferece através principalmente de sua estética uma visão que consolida as diferentes visões que as pessoas costumam ter da época-título, mas principalmente, nos entrega uma interpretação muito viva e muito atual da nossa realidade, dentro de um embate ainda sendo travado, ainda que de forma inconsciente, entre o jogo de poder e estrutura que vista atingir a humanidade com base na força, e a força implacável e impessoal do capitalismo em seu materialismo sugador de almas.
E o que nos torna humanos? Essa é uma pergunta sempre presente no cinema, e que Border flerta responder esse ano em um filme inusitado e inspirador, embora muito difícil para a maioria dos espectadores. De qualquer forma, quem estiver disposto a olhar com a mente aberta encontrará não apenas um filme fantasioso, mas uma discussão honesta sobre encontrar humanidade independente da espécie que a originou e sobre a tolerância entre seres de diferente natureza. Border é uma desconstrução muito bem-vinda, pois é uma mensagem sobre respeito a diversidade que todos deveríamos aprender. Infelizmente, o filme deve atrair apenas os que já estão aptos a abraçar o diferente, ou pelo menos não tratá-lo como uma aberração.
As discussões sobre nossa sociedade eventualmente recaem no fascínio que muitos de nós possuem com a violência e como ela se estrutura entre nós. Um dos gêneros mais populares no cinema são os filmes de máfia, e um dos especialistas ainda na ativa deste gênero é Martin Scorsese, que lança esse ano por um serviço de streaming O Irlandês, que embora não lembre nem Os Bons Companheiros nem O Poderoso Chefão, é uma amálgama de ambos, pois possui a vivacidade do primeiro com a sobriedade do segundo, sem perder o lado comercial de uma produção de cinema. Isso, claro, se você se render a três horas e meia de um filme que flui quase que de maneira sobrenatural, com uma edição impecável, excelentes atuações e muito mais virtudes técnicas que é possível enumerar nesta breve memória de um filme que merece constar nesta lista.
Agora que se foram os que considero de menção obrigatória para 2019 chega o momento de eu comentar sobre alguns filmes que podem passar despercebidos ou esquecidos, seja por serem produções menores ou pelos valores que carregam. Da primeira categoria tenho No Coração do Mundo, produção mineira que é um estudo social de primeira qualidade e que merece ser visto acima de muitos outros filmes brasileiros da época porque consegue sintetizar vários assuntos sendo tratados no cinema nacional em apenas um filme. É um trabalho fruto de um estudo muito peculiar sobre o estado de Minas Gerais, com atuações muito valiosas para a história, que é montada para mesclar um filme de ação/golpe em cima de uma camada social dramática que é deixada para interpretação pelo próprio espectador. É um combinado muito bem sucedido entre arte e indústria em terras tupiniquins.
Dos dois filmes que fazem parte dos esquecidos pelos valores conflitantes com o status quo talvez Um Dia De Chuva Em Nova York seja o mais injustiçado, pois traz um Woody Allen, mais uma vez na direção e roteiro, completamente coerente com quem foi e quem é o cineasta, mas ao mesmo tempo com personagens, diferente do acusado pela maioria dos críticos, atualizados à nova era para as mulheres. Os ataques a "Um Dia de Chuva" ignoram completamente o livro arbítrio da personagem de Elle Fanning e atacam o trabalho de Allen baseados em uma cartilha de pensamento compartimentado e automático, e o fato de seu último filme ser alvo de argumentos impensados é uma ofensa ainda maior ao cineasta que sempre priorizou em seus filmes o raciocínio, às vezes até exagerado, sobre a vida, o universo e tudo mais. Ironicamente, este que é um dos melhores filmes do ano é um exemplo perfeito de Allen de que seus filmes pararam de fazer novas perguntas porque as pessoas hoje em dia estão prontas para atacar o que eles consideram as respostas erradas.
Por fim, embora longe da perfeição e entregue a um roteiro fraco, ainda que eficiente, A Mula, dirigido e atuado pelo velho de guerra Clint Eastwood, é mais um exemplo dos filmes cujos valores "errados" acabam passando reto ou por longe em premiações, o que diz menos sobre o filme e mais sobre nossa época. Eastwood gosta de sua persona de reaça aposentado, próximo do fim da vida e cuja única razão de viver é saber, no fundo, que está com a razão. Se torna extremamente divertido observar o contraste das mensagens de seu último filme com os valores vitimistas e intolerantes do grande resto cinematográfico, e acaba se tornando um prazer para mim inseri-lo na lista de melhores do ano, que assim como Coringa, prova seu valor não por estar certo em sua mensagem, mas por provocar em nós, espectadores, alguma reação. Qualquer reação. Nesse sentido, ao analisar arte, todos nós deveríamos manter sempre vivo o nosso lado mais reaça possível.