O cinema do Oriente Médio em geral exporta para o mundo filmes que esmiuçam relações sociais e familiares, e têm se saído bem no Ocidente por nos oferecer essa discrepância de culturas. Sem Túmulo não é exceção, e constrói através de sua pequena janela de dois dias uma compilação de sentimentos remoídos do passado de uma família, mas se esquece de se conectar com seu espectador.
O que inicia a história é a morte de um homem já idoso, no fim inevitável de sua vida. Porém, uma informação importante que é guardada por muito tempo é que ele se matou com a ajuda de Majid, seu cuidador, que tem passado uma década ao lado dele. Os motivos por trás desse ato final e das motivações de Majid serão revelados em momento oportuno durante a viagem para seu sepultamento, com seus dois filhos e filha, em um vilarejo que ninguém conhece, mas que faz parte do último desejo de seu pai.
Se você não é um espectador de primeira viagem já consegue imaginar sem muita dificuldade onde tudo isso vai dar. Entretanto o diretor estreante Mostafa Sayari nos entretém construindo um clima tenso entre os envolvidos, sozinhos na estrada e com muitas questões mal resolvidas pelo caminho. É o drama clássico da falta de comunicação entre os integrantes da jornada.
Os enquadramentos que Sayari compõem evocam significado melhor que os diálogos escritos a seis mãos. Uma mulher se aproxima timidamente do seu irmão mais impulsivo e sua face fica escondida por trás das paredes do automóvel que os separam. Ainda dentro do mesmo automóvel um homem observa o passado de seu pai, mas é o reflexo no espelho que nos indica a direção no tempo. Existe uma metáfora óbvia que a história sugere sem nunca afirmar: a diferença entre pais e filhos não ser suficiente para libertá-los do seu destino de repetir as mesmas ações. Neste filme a metáfora é mais sutil: observamos o comportamento dos filhos tentando entender a personalidade do pai, que nunca vemos vivo.
Mas quisera eu que o filme fosse tão significativo assim. No fundo ele não é, e o que o Sayari mais faz é brincar com possibilidades, sem nunca se decidir qual caminho tomará em sua mensagem. E na impossibilidade de concluir, resolve pela passividade e introspecção, o que é frustrante a ponto de questionarmos se no fundo nunca valeu a pena nos dedicarmos a observar essas pessoas.
Sem Túmulo não se beneficia de suas atuações de maneira tão clara quanto sua fotografia, que revela através das sombras e das luzes em seus atores o humor do momento. Mas isso não é suficiente para que haja conexão com o espectador. Há longas pausas no filme que serve mais para contemplarmos que beleza de fotografia, que harmoniza com o deserto a sua paleta árida de cores, mas nunca temos muita ideia do porquê.
Até a violência no filme é insípida e frustrante. É sugerida uma vez, onde apenas vemos como consequência alguém limpando o punho sangrando, e mostrada em outra, e em nenhuma delas gera qualquer reação no espectador. Sabemos que há atrito entre essas pessoas, mas o ato inevitável se torna meramente simbólico; uma simbologia inacessível, que aos poucos se torna banal.
Se revelando como mais uma novela de costumes para entreter o ocidental que deseja sentir momentos de uma vida impossível em sua própria cultura, Sem Túmulo não é universal de propósito. É marketing iraniano, desses para crítico de cinema aplaudir. Mas o que o espectador comum não sabe é a dificuldade de se aplaudir um filme apenas por ter sido produzido no Irã. Às vezes até de assisti-lo. Felizmente neste caso não é para tanto.
Afterlife, filme do diretor/roteirista estreante Willem Bosch, é uma experiência leve, mas não divertida, pois usa sua leveza apenas para abordar temas delicados como morte de parentes e suicídio. Sua protagonista é Sam, uma adolescente de 16 anos, e para concebermos como uma história com adolescente e com esses temas delicados pode ser levada adiante sem se tornar um drama pesado passamos a entender por que a abordagem de Bosch é nos deixar à vontade desde o começo com a questão da morte, para logo depois explorar algo além da vida.
Para isso ele utiliza uma narração em off que lembra de maneira muito auto-contida a introdução de filmes como O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, onde a música lúdica e os cortes rápidos em sucessão, do nascimento ao crescimento da pequena Sam até a idade dos 14 anos nos faz imaginar que esta é uma aventura mais próxima do romance do que do drama. Porém, nessa idade sua mãe vem a falecer, e então percebemos que o tom do filme é usado para não nos fazer pensar duramente sobre isso, além de que pelo próprio título do filme sabemos que haverá algum tipo de experiência após a morte.
E no além-vida surge uma possibilidade tão otimista que acho difícil que mais alguém tenha criado algo mais cor-de-rosa do que isso: depois de você morrer será conduzido por um anjo para duas opções possíveis de continuar sua existência: em uma delas você reencarna e tem a chance de viver novas aventuras, e na outra você descansa pela eternidade na companhia dos parentes que já se foram (o que algumas pessoas chamariam de paraíso, mas eu chamo de inferno).
Baseado nessa premissa, temos algumas reviravoltas iniciais que culminam em Sam ganhando a chance de salvar sua mãe da morte. Sim, parece um filme que você já viu, mas continue nele. Este trata as coisas de uma forma diferente. Há um quê de espiritualidade e religiosidade que não cai na doutrinação, mas se mantém presente, como valores invisíveis que estão lá, e só começamos a nos dar conta de qual é a verdadeira história do filme conforme aprendemos a buscar as pistas certas. São pedaços de pão jogados na trilha que irão ensinar o espectador a verbalizar as entrelinhas, que nunca são ditas.
O trabalho de Willem Bosch no roteiro é orgânico em descrever como funciona esse mundo através de sua história, mas na direção ele corre o risco de estar sendo sutil demais para o espectador médio. Aqui cabe a observação de que não é fácil inovar na abordagem de uma história comum sem dar um salto de fé para que o espectador capte a mensagem por uma espécie de telepatia audiovisual. E se estou sendo por demais vago é porque eu desejo que você tente trilhar este caminho que trilhei. Para facilitar um pouco, lembre-se de olhar para o anjo. Ele sempre estará por perto. O que isso significa? Isso é você que terá que dizer, provavelmente a si mesmo.
É surpreendente como a atuação da estreante Sanaa Giwa consegue abraçar o protagonismo sem chamar atenção para si mesma. Giwa constrói uma Sam que atingiu a adolescência com certa maturidade, mas que ainda precisa absorver o mundo à sua volta para conseguir dar seu passo final em torno de uma vida com significado. Sua paixão inicial foi o desenho, algo cortado repentinamente de seus sonhos com a morte da mãe. Mas Sam continua a observar o mundo com sua maneira peculiar, e Giwa é responsável por nos entregar esse olhar misto entre um quase conhecimento da vida aliado à saudável curiosidade de uma jovem que ainda não se rendeu.
Afterlife possui uma ótima premissa em mesclar questões existencialistas na mente de uma garota órfã e nos fazer refletir sobre nossa própria existência, mas sua leveza e sutileza exageradas diminuem a força de sua mensagem. Felizmente a participação energizada de Sanaa Giwa no papel de protagonista mantém um equilíbrio entre leveza e realidade, que aliado ao poder do fantástico na mente do espectador consegue garantir uma experiência no mínimo intrigante. É como sair do cinema procurando por um segundo pensamento, e não são todos os filmes que colocam a reflexão acima do drama fácil.
Tem início a Quinta Mostra de Cinema Chinês em São Paulo, dessa vez homenageando e focando nas diretoras mulheres de um país fechado que merece ser redescoberto. O filme da abertura, por exemplo, este "Lembre-se de Mim, Por Favor", é o último filme de Xiaolian Peng antes do seu falecimento. É uma pena que ela tenha se ido tão cedo, pois ela estaria neste evento, junto de sua colega, a diretora Liu Miaomiao (seu filme Flores Vermelhas e Folhas Verdes também será exibido na Mostra).
Membro da quinta geração de diretoras mulheres da China, Xiaolian Peng manteve a tradição coletivista cultural da Academia de Cinema de Beijing, mas destoa na narrativa, buscando evocar a individualidade e empoderamento de mulheres inseridas nesse contexto, além de um interesse/obsessão pela cidade de Shanghai. Dois de seus filmes mais famosos, Era Uma Vez em Shanghai e Women's Story, refletem esses interesses da cineasta que permearam seu cinema ao longo da vida, seja no roteiro ou na direção.
"Lembre-se de Mim, Por Favor" acaba sendo uma espécie de antologia do cinema chinês que Peng participou. O filme evoca dois personagens populares para os cinéfilos: o diretor que não consegue parar de filmar e sua atriz, que não consegue parar de incentivá-lo. Juntos eles passarão por dificuldades morando em uma casa prestes a ser demolida, representando as mudanças aceleradas da economia chinesa e a crescente e frenética transformação dos horizontes das grandes cidades.
A antologia se constrói a partir do personagem do diretor. Documentarista por vocação, o personagem interpretado por Yiping Jia resgata a história do cinema chinês através de depoimentos dados por verdadeiros cineastas da época. Xiaolian Peng está interessada em contar uma história de elementos clichês, subvertendo-os no processo, e o faz criando uma estética ainda crua, mas fascinante justamente por causa disso. Truques como refletir o passado em um espelho ou criar movimento através de uma sequência de selfies não são apenas elementos técnicos quando estão em um filme sobre a história do cinema.
Enquanto isso a atriz principal, a belíssima e cômica Wenjuan Feng, faz o que toda mulher acaba fazendo nos bastidores: ajudar o homem a se mexer. Ela protagoniza as cenas mais dinâmicas, representa o coração do filme e o espírito libertador das amarras da decadência. Enigmática em seus objetivos, a personagem de Feng está pronta para partir em um épico, como a cena da escada comprova, mas lhe falta substância para atuar.
Este é o típico filme que merece mais cortes. Ele pode transcender de homenagem para referência se algumas cenas fossem descartadas pelo bem do mistério e da ambiguidade. Se alongando em seu terceiro ato, com dois ou três finais, "Lembre-se de Mim, Por Favor" estica o pedido que faz no início pela memória do cinema além do razoável, não entregando um desfecho satisfatório para o casal do filme, preferindo torná-los representantes dessa inconclusão das mudanças no panorama da sétima arte chinês. Incomoda, mas não permanece em nossa memória.
A Quinta Mostra de Cinema Chinês apresenta nove filmes dirigidos por mulheres do dia 3 a 13 de outubro. Em sua maioria dramas, com pequeno espaço para aventura e família, é uma pequena janela que se abre pela quinta vez sobre o potencial cinematográfico de um país que cresce em todas as áreas em uma grandeza que desafia a lógica. É bom saber que as mulheres estão inseridas no processo.
Viver Para Cantar é inspirado livremente no documentário A Folk Troupe (Gang Zhao, 2013), que conta a história real desse grupo tradicional de ópera chinesa lutando para continuar apresentando peças milenares em um espaço condenado pelas autoridades. A ficção de Johnny Ma alimenta a mesma tradição da ópera chinesa, mas a atualiza para o tempo das cidades crescendo, se modernizando e demolindo todos os valores culturais de uma nação.
A história segue pelo caminho seguro do drama do grupo de ópera que vai perder seu teatro que será demolido. Seu público está cada vez mais velho e está morrendo. O peso da perda dessa tradição repousa em sua chefe/matriarca Zhao Li (Zhao Xiaoli), que ainda precisa lidar com a perda de sua sobrinha a quem considera filha, mas as duas mudanças estão relacionadas. É a modernização dos costumes, ou sua ocidentalização.
O que o filme trás de novidade é sua narrativa, que não chega a ser uma ópera porque quase não é cantada, mas vai aos poucos se entregando ao estilo, o que cumpre duas funções bem claras: trazer a arte para a vida comum e um final feliz a respeito do que o governo chinês é em sua maioria responsável. Se por um lado há o lirismo adentrando no dia-a-dia, enriquecendo a aventura do homem e da mulher comum, não deixa de ser uma solução hipócrita unir valores com os próprios vilões, sendo que talvez seja a censura falando mais alto.
Mas não podemos ignorar que a cultura oriental, fortemente coletivista, pode influenciar na visão chinesa a respeito das mudanças frenéticas de virada de século. Todas as óperas mostradas no filme trabalham com transição. Alguém pula de uma ponte e borboletas aparecem. Há referências mistas que envolvem peças de Shakespeare a filmes de Ozu. Tudo trabalha para que a sensação de que a arte, não importando de onde ela surja, mas principalmente sua narrativa, pulsa e luta para sobreviver frente à modernização das grandes cidades.
O que destaca "Viver Para Cantar" é que essa luta vira a própria narrativa, e lembrando sultimente filmes recentes que trabalham essa junção do contemporâneo com a tradição fantástica, como Lazzaro Felice (ganhador de Cannes por melhor roteiro), é o contraste entre os dois mundos que alimenta nossa imaginação. Isso cria uma ruptura na tradição de histórias clássicas que mantém valores imutáveis na mesma medida em que a própria China está se transformando rapidamente, destruindo no processo boa parte de seu passado.
Exibido em Cannes e agora disponível na Mostra de São Paulo desse ano, "Viver Para Cantar" demonstra todas as contradições presentes hoje na nação chinesa, que elimina a pobreza em níveis recordes ao mesmo tempo que alimenta seus céus com poluição e seus tratores com a violência sistemática e desumana das agora capitais do mundo, como Xangai, Beijing e outras. O fato do diretor Johnny Ma ter transformado a ação dos tratores em trabalho de demolição em um show à parte é apenas mais um capítulo desses contrastes.
Coringa começa já em seu título a pretensão de determinar um início definitivo do icônico personagem dos quadrinhos revisitado em sua terceira encarnação (Jared Leto não conta) nos cinemas. Em um mundo onde truques narrativos, como narração em off, flashbacks e tempo não-linear substituem qualidade, o filme dirigido por Todd Phillips (Um Parto de Viagem) e escrito por ele e Scott Silver (O Vencedor) ignora tudo isso e segue o formato mais convencional possível para contar a história de um doente mental: começa no começo, termina no fim. Apenas essa decisão já constitui declaração de guerra à tão megalomaníaca quanto convencional Hollywood, disposta a sempre mutilar roteiros, além de abusar de efeitos e explosões para acobertar sua mediocridade.
Agora contrariando o próprio roteiro deste Coringa, vou eu mesmo seguir a cartilha de reviravoltas de Los Angeles e voltar no tempo. Surge um marco na transposição entre quadrinhos e cinema chamado Batman: O Cavaleiro das Trevas. Nele somos apresentados à performance definitiva, na arte e na vida, do que constitui esse personagem de palhaço psicopata realista. Heath Ledger em seu papel de 2008 consegue roubar ao mesmo tempo o filme do meio da trilogia do diretor Christopher Nolan, o protagonismo do ator Christian Bale e, por fim, uma insanidade cuidadosamente planejada nesta adaptação livre e realista do vilão de A Piada Mortal, a graphic novel de Alan Moore. Como se não bastasse, em um ato que torna a vida maior que a própria arte, Ledger morre de overdose seis meses antes da estreia, fincando o pé por definitivo no hall da fama. Oito meses após a estreia é condecorado por um Oscar póstumo, em um dos dois sinais de como se faz para ganhar um Oscar em filme de super-herói: morrendo ou sendo negro.
O monumento tragicamente erguido por Ledger ergueu um muro para a continuidade do personagem (vamos nos esquecer novamente por completo de uma coisa chamada Esquadrão Suicida), e apenas um ator com desenvoltura superior em retratar semi-caricaturas fragilizadas como Joaquin Phoenix poderia assumir este fardo sem ele próprio erguer seu monumento. Joaquin galgou este posto aos poucos em sua carreira, arriscando no início personagens repulsivos que dependiam da empatia do espectador para funcionarem (O Mestre) e finalizando com homens de caráter duvidoso que agiam conforme nossas necessidades de reação mais primitivas (Você Nunca Esteve Realmente Aqui). Não foi uma escolha difícil para os chefões da Warner autorizar Phoenix a entreter os fãs mais adultos da DC Comics. Difícil foi decidir mostrar violência nua e crua que elevou a censura do filme para 16 anos na maioria dos países.
Mas tanto o nível de censura nos filmes de fantasia quanto a persona de Phoenix representar o homem comum viraram traços do nosso tempo. Com a crise de 2008, o ano de estreia de Dark Knight, se arrastando indefinidamente, a população está convencida que os ricos são a causa de todos os males e agora culpam o sistema por trás de tudo isso. É a sensação de esgotamento mental que todos estavam esperando ver nos cinemas, e para isso o roteiro de Phillips e Silver mais uma vez deturpa as expectativas, retratando não uma Ghotam City/Nova York pós-Dark Knight, mas a imortalizada pelo diretor de filmes de máfia Martin Scorsese. Uma Gothan para fumantes, para psicopatas e para sequências cartunescas que flutuam livremente entre um trem em movimento ou um delírio de fama na mente de seu protagonista.
Joaquin Phoenix é Arthur Fleck, um homem perturbado por problemas psicológicos que desenvolve um distúrbio que o faz rir mesmo que não esteja achando graça de nada. Trabalhando como palhaço eventual para segurar cartazes nas ruas ou entreter crianças em hospitais, Fleck é o que podemos chamar de fim da linha, exceto por ainda conseguir um teto sob sua cabeça e de sua adoecida mãe Penny (Frances Conroy) e por se manter sob controle de medicamentos cedidos pelo programa social do governo, desde que participe de sessões de entrevista com uma subalterna alienada, em cujo escritório bagunçado repousam todas as insanidades dos pacientes que foi obrigada a receber.
Em uma história que se move através da doença alucinógena de Fleck e como ela vai retomando o controle de suas ações conforme as circunstâncias entregam cada vez mais poder a quem não deveria ser permitido sequer ter uma vida social, "Coringa" é um filme de história simples que prefere investir nas suas ideias de entrelinhas, cuja função é alimentar a mensagem anárquica essencial para o personagem: muitas pessoas são grosseiras, desonestas e se aproveitam deste homem doente até o momento em que ele descobre que não se sente mal por violar princípios morais e descarrega a sua arma demonstrando o novo princípio que irá reger sua nova persona. A escalada da loucura é milimetricamente conduzida de forma que o espectador não sinta em nenhum momento que houve um salto no comportamento do personagem. Fleck sempre foi assim, estava apenas anestesiado temporariamente.
Com a narrativa convencional sob controle, o diretor Todd Phillips passa a investir no design de produção de sua equipe. Dessa forma, o teto do andar onde Fleck mora surge levemente torto em relação ao chão, horizontal (o mundo continua com os pés no chão, mas a cabeça humana transforma tudo). A trilha sonora de Hildur Guðnadóttir (A Chegada) mantém tons fortes, altos e dissonantes, com uso de instrumentos que não combinam, criando uma orquestra inexistente para a mente de um lunático em funcionamento numa cidade que perdeu sua humanidade. A fotografia de Lawrence Sher não quer harmonizar as cores de um palhaço em uma cidade fria que vive nas sombras do que um dia foi, mas ao mesmo tempo suas roupas e maquiagem, apesar de coloridas, vão sempre nos lembrar da origem humilde e suja de sua personalidade.
Este é um filme político, ideológico e sob forte pressão comercial. Ele depende de suas referências para ganhar importância, e por isso ele assume a responsabilidade de resgatar um pouco da história do cinema americano das últimas décadas e de fazer uma leve homenagem a Chaplin (Tempos Modernos), que já espalhava essa mensagem há 100 anos. Além das obrigatórias passagens por The Dark Knight (Coringa olhando pela janela de um veículo) as referências vão mais longe, com um flerte sutil sobre o estudo de personagem em Taxi Driver e sobre a loucura da mídia de Rede de Intrigas. Às margens de interpretação também nos lembramos da co-dependência doentia entre marketing e drogas (Requiém Para um Sonho) e a face menos desejada do humor (O Rei da Comédia). Sim, o filme mira alto, como para trabalhos de Martin Scorsese com participações de Robert de Niro. E seu clímax, transmitido ao vivo pela TV, ainda realiza uma ação que reforça o status quo desses filmes, brincando com seus símbolos.
Quem conhece a história de Batman e Coringa nos quadrinhos e as adaptações do cinema não deveria ficar surpreso com a óbvia tentativa de ventilar novas ideias dentro desse universo, sendo a maior delas transformar o personagem Thomas Wayne, pai do futuro Batman e que tradicionalmente após sua morte era visto como um mártir da cidade. Bilionário e com conexões políticas, Wayne utiliza a mídia para propagar a imagem de salvador e conseguir apoio dos cidadãos alienados. O pai do Cavaleiro das Trevas nunca foi visto dessa forma em nenhuma história antes, mas seria uma surpresa se não houvesse neste filme carregado ideologicamente a representação do alvo mais visado da esquerda política, e que em um cenário político pós-Trump é o vilão da vez para as artes: um homem duro, cruel, que muito provavelmente (mas nada provado) usa de artifícios repulsivos para ganhar notoriedade e mais poder.
Essa nova visão do universo de Ghotam City, enquanto reinterpreta Batman, pode ser interpretado por nós, também, como um mero artifício narrativo de adentrar na mente doentia de Arthur Fleck e enxergar a realidade através de sua máscara de palhaço. Apenas dessa forma conseguiríamos entender por que há tantos movimentos de revolta usando como símbolo um lunático, já que do outro lado do ringue há também de certa forma um maluco, cuja única diferença é ter mais dinheiro e vociferar palavras de ordem, desde que ele e sua trupe tenha o controle das armas.
No epicentro desse furacão social construído sob os fortes alicerces das obras já referenciadas e do momento político e social do século surge a interpretação mais do que adequada de Phoenix, que reconstrói a lenda sob os holofotes atuais sem diminuir seu predecessor e sem destruir o monumento de quem, podemos dizer, se sacrificou pela arte e pela imaginação humanas. Arthur Fleck possui o senso de humor completamente deturpado na mesma medida em que ele ri nos momentos mais impróprios de sua vida. Ele consegue entender a graça de humoristas bem-sucedidos como Murray Franklin (de Niro) mas é incapaz dele próprio fazer parte deste show de horrores. Ele é o homem comum que ri das desgraças do cotidiano e sequer sabe do quê está rindo. Ele não acredita em nada. E ri sem nenhum motivo.
As expressões de Joaquin Phoenix mantém o mistério do personagem ao mesmo tempo que constroem uma nova lenda. Não podemos dizer que foi uma entrega completa do ator, pois entregas completas trairiam a leve ambiguidade do vilão, que pode ser reinterpretado a cada geração. O diretor Todd Phillips auxilia Phoenix nessa função, evitando mostrar o significado do seu olhar, usando e abusando de perfis em ângulo discreto. Phoenix, por sua vez, se mantém cabisbaixo, mas não com uma postura derrotista, mas como uma forma diferente de enxergar a vida: levemente na diagonal. Torta, violenta e sem sentido. Ele dança não como resposta emocional, mas como o rolar dos dados. Às vezes ele dá risada, às vezes ele esmaga uma cabeça na parede. É a personificação do caos, quando apenas o caos geraria tédio. O maior trabalho de Phoenix é trazer personalidade ao filme, enquanto cabe aos tempos atuais colaborar com o caos de onde ele surgiu.
# Seleção de Filmes da 43a MostraSP
Caloni, 2019-10-07 lists cinema movies [up] [copy]Foi divulgada a lista dos filmes para a mostra desse ano. Já conheço alguns diretores por filmes anteriores.
Quando a Go Pro encontra o poeta. A tecnologia de filmagens com câmeras de alta resolução e drones possibilitam a qualquer um, até quem não tem muito o que dizer, a fazer seu próprio filme. O seu documentário da vida real, digamos assim. E é assim que o diretor Fernando Spiner concebe este projeto, A Boia, obcecado mais pelo experimento do que pelo filme em si.
Apesar de documentário, este filme não segue o formato entrevista; ele emenda pequenos momentos da vida do diretor que quer resgatar a história de seu amigo poeta. Ambos viviam em uma vila à beira mar. Seu amigo era farmacêutico a mando dos pais, e demorou muito anos até que ele finalmente conseguisse escrever seu primeiro livro de poesias. Mas mais do que essa história, o filme fala das poesias sobre o mar, e com momentos filmados no mar.
Dois nadadores a centenas de metros da costa perfazem junto dos experimentos com sobreposição de imagens a melhor experiência do filme em tentar transformar poesia em filme. Não é a linha narrativa que nos conduz, mas a soma dos seus momentos. Um homem pesca um bagre e o cozinha para seu amigo. Vemos tudo em primeira pessoa, e quando é em terceira é como se fosse a mais falsa das histórias. Duas pessoas repetindo falas que soam como os grupos de poesia durante o filme: eles sabem ler, mas não julgam sentir, ou pelo menos sentir o suficiente para serem filmados.
Então o poeta proprietário de uma Go Pro decide começar a fazer o caminho oposto que havia feito. Em vez de acelerar seu caminho pela estrada em direção para sua cidade-natal ele reduz a velocidade das pessoas que frequentam a praia. As ondas quebram em uma câmera lenta sob o som de uma trilha sonora reflexiva feita especialmente para o filme. O efeito visual parece feito para impressionar ou, o mais provável, testar possibilidade de como filmar.
Há um bom filme querendo nascer dos experimentos de Fernando Spiner. Uma noção de ritmo e de abertura para experimentar revelam um olhar cirúrgico para o cinema; cirúrgico, preciso, mas estéril. Ele tem uma boa história e boas ideias, mas abusa de técnicas que não dialogam para criar uma narrativa. O filme inteiro são de curtas unidos em uma narrativa maior que se estende quando Spiner descobre os truques para a última cena. Ele faz várias, fade out após fade out, até não sabermos mais como ele pretende acabar.
A Boia tem cara de um filme que começou de um jeito e terminou do outro. Ele começa como um retrato intimista sobre a amizade, o mar e poesia, mas termina homenageando os salva-vidas da praia e vai adotando cada vez mais a postura de documentário para TV. Vejam a vila onde nasci. Vejam o povo. Agora mais um fade out.
Terceiro filme de Kleber Mendonça Filho, que começou com o ótimo O Som Ao Redor seguido do excelente Aquarius, Bacurau demonstra que o diretor não tem o mínimo jeito para lidar com personagens humanos nem com filmes tensos de ação. Todas suas reviravoltas são previsíveis e não sentimos por nenhuma das mortes. Se trata de uma análise de natureza morta, a intelectualização da condição humana sob o prisma pseudo-humanista de um historiador pensando em Brasil sem olhar diretamente para os brasileiros.
As pessoas do filme, devidamente divididas pelo DNA, feição e cultura, existem nos livros de história e nos estereótipos de uma esquerda à beira de um colapso nervoso. Não os culpo, dados os eventos recentes é compreensível (e risível) tamanha preocupação, mas considerando que nem um ano da derrota nas urnas se passou e sua arte já vocifera discursos de ódio mais abjetos que os lançados pelo inimigo, confesso que estou é esperando por mais.
Agora, se você não se importa com toda essa politicada, é capaz que ache o filme pelo menos angustiante, do começo ao fim. É o sentimento de não saber para onde ele vai, ainda que tenhamos em nosso instinto que ele não pode ir para lugar algum senão uma chuva de clichês, envolvendo futuro pós-apocalíptico realista com referências divertidas à sétima arte (o drone é a melhor parte) e aquela farofa do povo se armando contra os bandidos de fora.
Mas apesar dos clichês e da forma preguiçosa de apresentá-los, Mendonça (auxiliado por Dornelles na direção e roteiro) também exibe o que o torna um cineasta que se deve prestar atenção: suas ideias, visuais ou temáticas. Minha preferida é a de um caminhão trazido pelo prefeito da cidade que despeja centenas de livros, muitos já maltratados, no chão de terra batida. Em sua visita o prefeito também doa alimentos vencidos. Fazia tempo que não via uma imagem tão rica ideologicamente no cinema nacional, e esse momento rivaliza com vários do igualmente ideológico -- esse sim, visionário -- Arábia.
Mas a comédia acaba nessa cena. Mendonça quer sangue. E primeiro entrega parte do sangue do "seu povo" para depois retomar com juros, na melhor forma de referenciar seus filmes anteriores. Bacurau é uma cidade perdida no meio do nada, e em um futuro próximo está prestes a ser riscada do mapa. Literalmente. A região foi vendida para os gringos via negociação estatal com capangas do Sudeste. Eu me divertiria muito mais se esse pano de fundo fosse engraçado.
Mas, infelizmente, a comédia mesmo acabou. E essa alegoria de como a esquerda enxerga política não pode receber sua dose de humor. O que é uma pena, pois humor é a forma mais eficaz de fazer pensar. Elevando a tensão rapidamente a partir do momento que dois motoqueiros de capacetes invadem a cidade, "Bacurau" não nos faz mais refletir; apenas acompanhar uma história com tons de faroeste e com personagens nada interessantes (detalhe para Sônia Braga totalmente perdida sem ter o que fazer com sua personagem e Udo Kier criando um personagem para outro filme, um enlatado americano).
É uma adaptação de livro? Poderia ser. Chuvas Suaves Virão explora essa possibilidade lúdica de livro infanto-juvenil com suas ilustrações de início de capítulo junto da frase principal, e nos coloca em contato com uma aventura protagonizada por crianças que estão sempre segurando lanternas, a la Stranger Things, mas argentinas, menos barulhentas e mais maduras.
Não há muitos diálogos, mas há muita observação quando em um belo dia os adultos amanhecem dormindo e nunca mais acordam. As crianças se reúnem e começam a explorar este novo mundo sem eletricidade e sem pais lhe indicando o caminho para viver.
Não é um filme de narrativa, mas de sensação. Não acontecem grandes coisas porque o diretor Iván Fund quer que observemos essa nova realidade através dos olhos das crianças e sem interferência do que pode ser feito a respeito. E aos poucos nos livramos das amarras de uma trama, apenas observando os pequeninos, de diferentes idades, se agrupando amigavelmente. Porque é isso que humanos deveriam fazer sem ideias pré concebidas.
A trilha sonora é primordial a esse respeito. Com acordes dissonantes e um ritmo aparentemente desconexo, aos poucos surge uma música. Como é possível? Nós montamos esse padrão na cabeça. A lógica musical estava aí todo tempo, só precisava alguém nos inspirar a ver o invisível. Eliminado o mundo como o conhecemos fica mais fácil enxergar o que existe além.
Chuvas Suaves Virão não possui mensagens a serem decodificadas nem lições sobre amadurecimento. Nem é sobre ecologia, pois não há catástrofe. Ou talvez a catástrofe maior tenha desaparecido. Sem adultos não há fronteiras, nem propriedade e nem agressões. Apenas um bando de filhotes de primatas nômades explorando este mundo pacífico herdado, ou dado de presente.
É interessante perceber que o roteiro escrito por Tomás Dotta e Iván Fund evita tomar decisões radicais como pais mortos justamente para não perdermos essa leveza que acontece ao constatar que estão todos bem. Apenas ausentes. Então, no melhor estilo "quando os gatos dormem os ratos fazem a festa" as crianças se organizam, mas não se trata daquelas comédias onde eles comem um monte de doce e existe algum perigo que deve ser combatido. É um filme exploratório da ideia apenas.
Não é para quem é impaciente, e muito menos para quem espera uma resposta maior. Mas há uma explicação, nas últimas cenas, mas ela se une à experiência como um todo de maneira orgânica. Entendemos porque os adultos dormem e não morrem, e imediatamente entendemos os motivos das coisas acontecerem dessa forma quando o mistério é revelado. Muitos e muitos filmes já nos ajudaram a antever como as coisas podem dar muito errado se fosse de outra maneira. Mas as crianças... as crianças são parte do mundo que não é conflito. Elas não são o problema, mas talvez parte da solução, se você for pensar nesses méritos.
Ou no fundo é apenas um filme com uma fotografia cinza que se descobre ensolarado depois que o pior já passou. E vem a chuva, limpando nossas concepções, nossos preconceitos, nossos medos. Uma experiência de renovação, curta e singela.
A peça de Raul Brandão, escritor português, inspira um cineasta da região de Açores, Rodrigo Areias, a documentar uma vila de pescadores portugueses de onde veio sua família, e como consequência somos brindados com Hálito Azul, onde a poesia, a cultura, a religião e a ecologia do local, não são perdido no tempo, mas transformado em algo a mais.
Esse algo a mais escapa do autor e diretor, mas por muito pouco, pois ao nos mostrar a vida dos pescadores como protagonistas de sua vida e encenar momentos belíssimos dentro e fora do mar o filme já mergulha em uma simbologia rica em detalhes visuais, restando desenvolver suas histórias. O palco está pronto para aventuras, mas o ensaio é eterno.
Acompanhamos a vida dos habitantes sob a ótica do cuidador do farol, cujo papel de narrador, visual de barba que molda a cara e touca característica veio direto da imaginação de obras sobre o mar, seja Mobi Dick e 20 Mil Léguas Submarinas ou Camões. Ele e tantos outros cantam justamente o que estão fazendo no momento: "estou procurando minhas chaves para abrir a porta da frente de minha casa". Involuntariamente isso cria um universo à parte que vira combustível para novas histórias que serão lembradas daqui a quinhentos anos.
Mas os mais novos são vistos sem trabalho ou sem interesse em frequentar a escola, premeditando tempos difíceis de transformação em um país e um continente que vivem de crise em crise se esquecendo do seu passado. O mar não é mais o mesmo e existem cotas de pesca para não exaurir as forças da natureza. Entre dominar e destruir o ecossistema há uma linha tênue muito fina que já foi lançada e quebrada no século passado.
Não é certo enxergarmos beleza em Hálito Azul, mas o filme o faz de qualquer maneira. Ele está apaixonado pelo tema e nos traz uma das línguas mais belas já faladas pela humanidade, o português raiz, estranhamente dublado, ou vilipendiado, nas legendas em inglês, o que será uma pena para o espectador estrangeiro, mas uma impossibilidade intransponível em filmes falados que tivemos que nos acostumar. Brasileiro que sou mal entendo um pescador português falando, ainda mais nos Açores, mas não se trata da frase completa, mas da sonoridade das palavras e seus significados ocultos a um não-falante.
Curto e grosso e sem história para contar, Hálito Azul é um breve panorama do mundo hoje em um porto secular. Cumpre seu papel documental sem honras, pois não há guerra, não há conflito e não há documento, pois boa parte da história é ficcional, construída por Rodrigo Areias e Eduardo Brito para dourar a pílula. Os assuntos estão soltos, jogados ao mar. É filme de mostra, de festival, que não pretende ir mais além. Em termos das grandes navegações do passado, fica eternamente ancorado pela sua própria contemplação.
Imagine conciliar as histórias de uma criança escrava de um sweatshop morta a pauladas, seguido da vingança de um ninja de pelúcia com o espírito de um guerreiro e, para finalizar, o desafio comum de um garoto apaixonado pela garota popular da escola. Agora responda rápido: quem deve assistir a esse filme? Crianças ou adultos? Seriam crianças com uma mente de adulto ou adultos que adoram humor negro, mas têm um coração de criança (guardado em um pote na dispensa)? Ninja Xadrez é um filme que mistura elementos pesados em uma narrativa infantil, conseguindo agradar, ou melhor dizendo, desagradar, adultos e crianças ao mesmo tempo.
Ele tem uma animação tecnicamente competente, uma trilha sonora até que bacana, mas uma dublagem apática (as vozes que ouvimos nos créditos finais são melhores trabalhadas), impedindo uma conexão com seus personagens. Você não irá se lembrar muito bem dos detalhes da animação cinco minutos após assistir, pois são genéricos demais, cumprindo apenas a função primária de acertar seus estereótipos, seja uma criança tailandesa, um adulto dinamarquês ou um cachorro de raça agressiva.
Esse é um filme que "revela" as maldades do terceiro mundo ao mesmo tempo que aponta o dedo para a apatia do primeiro mundo, ou alguma similaridade no jogo de poder de ambos. Os vilões são pessoas da vida comum que justificam suas ações com o velho "se não fosse eu outro o faria", e os heróis são o espírito milenar de um ninja protetor de crianças e uma criança que só quer viver em paz na escola e em casa. Mas a criança irá se tornar a exceção a esta regra "se não fosse eu" que torna o mundo cada dia pior. O problema é que quando isso acontece é tarde demais e o filme já acabou.
Eu não creio que possa recomendar esse filme para pais levarem suas crianças, mas poderia para pessoas que gostam de animações com temática semi-adulta e um certo humor negro que luta para não ir longe demais. É o filme que faríamos quando crianças, mas apenas as que cresceram nos anos 80 e 90 para justificar o politicamente incorreto.
O diretor Thorbjørn Christoffersen possui a imensa vantagem de colocar a câmera como quiser, mas a desperdiça, pois está viciado nos velhos planos de live-action sem computação. Pior do que isso, em alguns momentos são maus planos, que se unem pela movimentação errada da câmera, confunde o espectador, que ele corrige voltando para planos abertos e mostrando onde a ação se passa tudo de novo. Esta não é uma decupagem para melhor localizar o espectador, mas uma série de story boards que não se imaginou que terminariam em um filme.
As piadas utilizadas por Christoffersen e Anders Matthesen, que assinam o roteiro, são velhas demais, mas você pode rir de algumas se não assistiu muitas animações ou comédias na vida. Para o resto de nós reconhecemos as piadas com um acenar de cabeça. E ficamos imaginando enquanto isso se haverá alguma parte da história que irá nos surpreender. Além disso, o roteiro junta elementos por coincidência, como o garoto é vizinho do empresário malvado e tem o nome idêntico ao do pai da garota que está afim. E quando a ação é movida para os minutos finais, a tensão é chapada, no estilo que o mocinho consegue ou não consegue. Não há elementos secundários para nos entreter. Até uma criança bocejaria se um ninja feito com cashmere não fosse tão fofinho.
Para fazer continuação de contos de fadas o "Era Uma Vez" se torna "Eram Duas Vezes", "Três Vezes" e assim por diante. O limite é o momento em que o mundo criado para contar a mesma história infinitas vezes começa a colapsar diante do cansaço inevitável da plateia. "Malévola: Dona do Mal" é o segundo round do conto da Bela Adormecida reciclada que ganhou notoriedade graças à presença de Angelina Jolie no papel-título, mas que agora se torna uma atriz pequena para um tema maior e, seguindo os passos de seu antecessor, melhor explorado em seu design de arte digital do que em sua narrativa.
No primeiro filme, sobre revisionismo histórico, vilões foram desmacarados e Malévola foi reinterpretada de bruxa má para uma criatura apenas diferente, mas com boas intenções. Seu instinto materno justificava sua presença durante o sono eterno da Bela Adormecida (Elle Fanning). A desculpa totalmente esfarrapada para "Malévola 2" voltar ao ponto de origem é dado na narração inicial do novo filme: as lendas vão sendo repetidas e aos poucos a população volta a acreditar no que elas dizem, o que quer dizer que a criatura de chifres e asas continua ou novamente é mal vista no reino dos humanos. O único problema dessa explicação é que pouquíssimo tempo se passou entre um filme e outro, sendo improvável que todos envolvidos ignoraram por completo o que aconteceu. No fundo o que o filme realmente nos pede, ainda que educadamente, é ignorar como as peças voltaram à posição inicial do tabuleiro.
Mas depois que a partida recomeça ela se desenvolve com novos movimentos, alguns mais interessantes, iniciando com o pedido de casamento do príncipe Tanto Faz o Nome com Princesa Aurora, significando não apenas a união do casal, mas de dois reinos separados pelas diferenças do passado. Podendo ser a chave para paz entre as criaturas da floresta e os humanos, só há bons motivos para a união do jovem casal, mas a Rainha Ingrith (Michelle Pfeiffer) insiste em lançar indiretas para a mãe de sua futura nora, em provocações bem elaboradas, com subtexto político inclusive, que diverte enquanto assistimos, mas que em retrospectiva peca por não ser sutil e porque já vimos esse filme antes.
Este é uma continuação que sabota toda a boa fé que o espectador colocou no original para explorar novos caminhos para a trajetória da criatura com dois chifres e um bom coração. Menos ambígua ainda do que era, a Malévola de Jolie é uma conquista estética admirável, seja pelos chifres desenhados para completar seu vestido negro e suas asas ou pela forma do seu rosto que continua as curvas nada suaves de sua forma robusta, exceto pelos seus seios, voluptuosos e que indicam um instinto materno pela sua filha de criação e que justifica todos os esforços que faz para dialogar em termos amigáveis com os humanos responsáveis por atrocidades cometidas contra as criaturas da floresta, mas que falha de uma maneira divertida e significativa quando não entende o código básico de conduta entre os humanos, como iniciar papo furado.
Mesmo que esta seja uma nova história, ela é novamente sobre desentendidos, e só é possível acompanhá-la porque sua direção de arte, que exige um trabalho digital colossal, nos transporta facilmente para a magia de dois reinos e criaturas mágicas, e é bom viver um pouco por lá. Não nos importa muito para onde toda a trama irá -- até porque intuitivamente já sabemos -- desde que possamos observar por mais tempo as diferenças entre as vestes e construções humanas, que priorizam o uso de metais, pérolas e figuras geométricas retas, e as criaturas da natureza, orgânicas, caóticas aparentemente, mas pertencentes a sua própria lógica de funcionamento.
Claro que por ser digital muito da magia se torna irreal demais, e o insistente uso do efeito sonoro quando algo mágico está sendo usado acaba banalizando os momentos que seriam importantes percebermos esse recurso. Da mesma forma, sua trilha sonora empolga, mas ela insiste tanto em comentar cada pequeno pedaço de emoção que acaba se tornando uma experiência angustiante, sem pausas, e logo vira barulho de fundo. Há captura de movimentos, de expressões e o uso de panorâmicas completas pelos cenários fantásticos, mas tudo muito rápido, impedindo que o espectador se maravilhe por cinco segundos em qualquer um dos trabalhos magníficos da equipe de artistas da computação. É como se todos os esforços precisassem priorizar sua história não muito original.
Angelina Jolie é uma atriz talentosa, e tem seus momentos inspirados no jantar com os noivos, mas aqui o diretor Joachim Rønning pede que ela apareça em muitas cenas sem falar absolutamente nada (ou nada que mova a história, pelo menos). Ficou claro que o roteiro de Noah Harpster e Micah Fitzerman-Blue (baseados na história icônica de Linda Woolverton) não prioriza seu personagem-título, e Rønning precisa então encaixar uma atriz milionária como Jolie onde for possível para justificar uma obra que analisada de maneira mais ampla envolve muito mais coletivos do que indivíduos.
Por falar em coletivos, é óbvio que há um subtexto político em cada novo detalhe que se desdobra sobre o conflito de dois reinos, o dominador e o subjugado. Esse subtexto já foi utilizado tantas vezes nessa década que hoje ele demonstra mais preguiça intelectual de seus idealizadores do que uma tentativa de oxigenar as ideias sobre o mesmo tema. Sim, nós já entendemos que só há perdedores em uma guerra e que temos que abraçar as diferenças. E, sim, esse é o slogan de campanha de apenas um dos lados do jogo: o lado que você concorda. Ainda assim, não é de todo mal algumas ideias que se inserem de forma orgânica, como um personagem baixinho que realiza pesquisas nefastas no subterrâneo do castelo.
E como vilões geralmente são mais atraentes, acompanhar os truques e artimanhas de Michelle Pfeiffer no papel de Rainha Ingrith é tarefa mais prazeirosa do que admirar os revezes dos heróis. Pfeiffer é uma atriz maravilhosa quando se trata de ser ambígua e poderosa, mas se no caso de Jolie não havia nada para dizer, as falas de Ingrith são unidimensionais, pois não há oponentes à altura para um embate verbal. Há momentos em que seu sarcasmo é delicioso, mas ela os desfere mais como se estivesse atuando em um palco do que fazendo parte da ação, o que acaba sendo um problema para atores que veem fundos verdes no lugar de cenários por tempo demais.
Malévola: Dona do Mal" acaba descambando eventualmente para a ação, que contém seus elementos notáveis, mas soa repetitivo por nunca interessar mais do que suas ideias iniciais sobre respeitar diferenças. Seu final se revela inevitavelmente esquemático, passivo, pois suas heroínas não estão na mesma página. Há personagens demais querendo espaço nos últimos minutos, talvez para permitir que lembremos de todos que voltarão em um possível "Malévola: Eram Três Vezes", que é bem provável que eu veja ansioso. Há algo de mágico no visual computadorizado dos contos de fadas.
Em um ano, há mais de 500 crianças desaparecidas na Sérvia, mas essa é uma banal estatística exibida nos créditos finais de Cicatrizes, prêmio do público no Festival de Berlim e agora na Mostra de São Paulo. Ela não nos diz nada sobre as famílias que aguardam eternamente por essas crianças. E o que dirá, então, dos que vivem um luto que pode não ter acontecido.
Mais do que remoer o passado, a direção de Miroslav Terzic demonstra em seu filme um absoluto controle de nossas percepções mais básicas da realidade. Aproveitando ao máximo o econômico e eficiente roteiro de Elma Tataragic, a falta de diálogos na maior parte do tempo é porque tudo que teve que ser dito nesses 18 anos de luto pelo bebê perdido já foi dito, e por isso prestamos atenção completa nessa mãe, Ana (Snezana Bogdanovic) que já não tem mais palavras, e que caminha incessantemente em busca da resposta verdadeira sobre o paradeiro do seu filho, dado como morto após o parto, mas cujo corpo nunca foi revelado.
O que o filme quer que sintamos não se traduz em palavras. Por boa parte do tempo é o peso enorme carregado por Ana, que acorda todos os dias sem uma resposta satisfatória do destino de seu filho. Ela realiza mecanicamente suas tarefas do dia. E no dia do aniversário de 18 anos, recebe alguns sinais, inuitivos e objetivos, de que deve retomar sua busca, e com isso vamos desvendando seu passado ao mesmo tempo que nos conectamos com seu presente: é como se sua vida estivesse suspensa todo esse tempo. É angustiante, pavoroso e inesquecível.
Miroslav Terzic a coloca em primeira pessoa boa parte do tempo, porque ela é responsável pela nossa percepção por boa parte do tempo, embora não seja a única. A transição final que é feita entre a visão de diferentes personagens da história é linda, pois é transparente, e sentimos apenas nos momentos finais. Há um momento que sua filha toma as rédeas da investigação conduzida por Ana, mas não há estranheza do espectador, mas alívio, pois finalmente o peso de Ana começa a ser dividido com sua família. Esta é a história da busca de uma mãe atormentada, mas se universaliza no seu terceiro ato.
Cicatrizes também é uma luta do indivíduo contra um sistema impessoal, engessado e corrupto. Boa parte do filme vemos Ana caminhando, minúscula, através de imensos corredores, prédios imponentes, guichês vazios. Ela transita por velhos e novos caminhos e não dá ouvidos a ninguém que a tente dissuadir ou mesmo ameaçar. Mas sua família e amiga estão cansados de ver esta mulher ausente por tanto tempo, e não se pode julgá-los. Um acontecimento traumático desses pode consumir o resto da vida de uma pessoa, definir a sua existência. Por isso se torna tão importante a luta de Ana.
Os recursos que ela dispõe para investigar o caso de seu filho são quase inexistentes, o que cumpre múltiplas funções, desde a economia na complexidade da trama, onde o resultado de uma busca da base de dados do hospital pode mudar toda sua vida, até a facilidade com que a corrupção se instala em todos os lugares em que ela clama por uma resposta, seja o hospital ou até mesmo a ineficiência policial, o que acaba sendo um tipo de injustiça.
Cicatrizes é um retrato simples, mas tenso e efetivo, que ilustra uma situação da vida de muitas pessoas. E guarda um verdadeiro tesouro em sua cena final, um movimento sutil que é a cereja do bolo que assina um trabalho impecável do cinema em trazer a impressão exata da arte de extrair significados complexos em banais imagens em movimento.
Mente Perversa pode causar extremo desconforto a mentes mais sensíveis, mas é um filme da categoria necessário por vários motivos, sendo o principal deles fazer você pensar pelo ponto de vista de alguém cuja natureza o impede de viver plenamente. O motivo? Seria um crime horrível.
Esse julgamento ético e moral poderia ser dado a homossexuais antigamente (ou em alguns países ainda hoje) e serial killers em qualquer lugar do mundo. Porém, existe um grupo de pessoas em que suas ações não dependem apenas da conivência dos participantes, nem são tão brutais quanto assassinar uma pessoa: os pedófilos.
Markus (Max Riemelt) é um deles; arquiteto bonitão, vem tentando viver sem fazer mal a nenhuma criança. Ele tira e revela fotos de garotos de sua TV e da piscina, e se masturba compulsivamente, além de usar o boxe como escape. Recusa investidas de qualquer mulher que queira se aproximar, além de evitar se socializar com conhecidos por medo das situações que podem envolver perigos para seu comportamento. Portanto ele é recluso e tudo estaria bem se ele pudesse manter assim, mas as circunstâncias não estão a favor do auto-controle de Markus depois que uma mãe e seu filho Arthur vêm morar no apartamento do lado.
"Mente Perversa" foi escrito e dirigido por Savas Cevik conseguindo abordar praticamente qualquer dúvida que teríamos sobre se seu protagonista não poderia resolver seu problema de alguma forma sem machucar crianças. Indo além, ele torna óbvio que o próprio Markus está ciente do que pode acontecer se um dia perder o controle e não desejaria em nenhum momento ser quem ele é. Acompanhamos sua escalada em direção ao inevitável abuso infantil de maneira intensa, mas é quando ele se encontra com um psiquiatra que o filme assume uma forma muito mais densa e depressiva.
Empregando uma fotografia escura e cinzenta com pouquíssimos tons coloridos, o filme está drenado de qualquer sinal de alegria que poderia haver. Até o vermelho da sala escura onde Markus revela suas fotos se assemelha a sangue. Markus não acende as luzes de sua casa por vergonha de si mesmo, e os espectadores do filme devem ficar receosos de começar a se identificar com um pedófilo e sentir o seu inescapável drama, o que reforça mais ainda seu problema, já que se nos sentimos culpados apenas por compactuar com o que deve estar se passando pela cabeça de um pervertido, imagine o que a sociedade em geral não pensa dessas pessoas.
A abordagem na atuação de Max Riemelt é ser exagerado em sua atração por garotos porque o diretor Savas Ceviz utiliza planos muito próximos de Markus para harmonizar com os planos-detalhe dos garotos que está observando. Se na mente do protagonista a ação se passa em um nível extremamente íntimo, a qualquer momento em que ele perceba que pode estar sendo observado a câmera volta a se afastar, gerando nessa dinâmica uma sensação de desconforto no espectador que se aproxima ou sugere o que acontece internamente para o arquiteto.
Se no começo o desconforto é evidente por começarmos a entender o drama de um pedófilo que sabe que a conclusão dos seus atos seria um ato horrível contra seres humanos ainda em desenvolvimento, no final "Mente Perversa" nos convida a pensar nas contradições da vida humana, entre sermos parte animais e parte moralmente responsáveis. E ele consegue isso com quase nenhum texto descritivo. Se trata apenas da observação da contradição em pessoa vivendo em nossa sociedade. Se você nunca pensou a respeito desses dilemas, este filme com certeza é uma ótima oportunidade.
Parte da biografia oficial de Giacomo Casanova, uma mistura entre aventureiro, bon-vivant e relator dos costumes da época, O Último Amor de Casanova é um filme absurdo, lamentável e terrível. Ele não possui um elenco necessário, apenas objetos no cenário para dizer suas falas. Não estabelece conexão com o espectador, mas flerta com a possibilidade de acharmos seu protagonista e suas aventuras amorosas dignas de importância por motivos históricos.
Ele gira em torno do único interesse amoroso do conquistador que de acordo com ele próprio não se tornou sua amiga, e por "conquistador" entenda por alguém com dinheiro e fama que compra suas companheiras, e "amiga" por alguém que ele tem acesso aos seus órgãos genitais. Essa pelo menos é a impressão do filme, muito embora não esteja muito longe dos costumes da época. A biografia de Casanova se tornou por muito tempo uma visão fiel (e abominável) do final do século 18 na Inglaterra.
Casanova só fala francês, mas podemos ouvir pessoas falando inglês por toda a parte, em uma imersão de um forasteiro em terras estrangeiras. Tudo isso são metáforas? Há alguma mensagem codificada nos detalhes do longa? Nunca saberemos, pois há uma distância entre espectador e filme intransponível. A fotografia é muito escura, naturalista, que vai piorando com o tempo. Se há algo claro em "Casanova" é que ele faz um esforço sutil, mas constante, em destituir esse período da História de todo glamour, pomposidade e romance que estamos acostumados de outros filmes.
A ideia por trás da fotografia escura lembra filmes como Barry Lyndon, de Kubrick, que insistiu em usar iluminação da época, velas e candelabros, para iluminar não apenas o cenário, mas o set de filmagens, o que se torna uma diferença prática que contou com uma tecnologia desenvolvida na Nasa. Porém, em "Casanova" o clima sempre é cinzento, o que faz com que até durante o dia tudo seja escuro e apagado de vida.
Isso é uma descaracterização, pois projeta no espectador a impressão que as pessoas da época enxergavam daquela maneira. Causa perda de cores, e todos aqueles figurinos vistosos que estamos acostumados a ver se tornam meros rabiscos eventuais em torno de um cinza quase opressivo. A trilha sonora também paga o preço, sendo inexistente ou apenas dentro da história. E a filmagem das cenas são feitas em planos longos que trazem um aspecto realista pelo movimento e onírico pela câmera que flutua, o que remete diretamente a Arca Russa, trabalho monumental do diretor russo Alexander Sokurov que quis e conseguiu filmar um longa inteiro em uma única tomada.
Todos esses traços estéticos são possíveis de serem notados sem pressa porque a história de Jérôme Beaujour se arrasta. Quase totalmente centrada na conquista frustrada de Casanova e sua pretendente, contada em flashback no momento em que ele escrevia sua biografia, com a ajuda de uma mulher, claro, a história não tem uma trama em si, mas se recarrega a cada novo momento dessa conquista. E enquanto vemos mais do mesmo refletimos sobre fotografia, sons e objetivos.
A direção nem sempre coesa de Benoît Jacquot (3 Corações) também não ajuda. Jacquot não possui o menor interesse que o espectador se interesse, preferindo deixar a história fluir no automático. O problema aí é que não se trata de uma história lá muito empolgante, e fica ainda pior quando o diretor não nos mostra o caminho para fora desse labirinto de caracteríticas escolhidas a esmo.
O Último Amor de Casanova possui uma virtude frente a tantos trabalhos que retratam a nobreza da época como algo mais pulsante. Ele é chato. Intragável. Em uma versão oposta de A Favorita, comédia de época empolgante do diretor grego Yorgos Lanthimos, este é um filme de época que realmente nos dá a impressão de como era fácil se entediar naqueles anos. E nem junto das aventuras de Casanova nos salvamos.
"Eu não tenho nada. Você tem a noite."
Você Tem a Noite é daqueles filmes que ficamos durante o tempo todo tentando descobrir se estamos conseguindo acompanhar alguma história ou há algo mais do que vemos na superfície, e essa inconstância interpretativa no nosso cérebro não significa que o filme é ruim.
A falência de uma empresa centenária causa a demissão de funcionários habitantes de uma cidade portuária, e o que testemunhamos através das melancólicas lentes do diretor Ivan Salatic (que assina o roteiro) diz respeito ao colapso da sociedade atual visto através dos tristes eventos de uma família, inserida nesse panorama a tal ponto que se tornam representantes dessa decadência.
Trocando em miúdos, esta é uma história sobre transição. O seu resumo pode ser ouvido de um homem velho, que lamenta seu infortúnio de não poder parar de trabalhar, e se antes, na juventude, o trabalho quebrava suas costas, pelo menos havia o "espírito coletivo" como significado, que compensa pela vida dura. Agora, destituído dos valores da camaradagem, indivíduos como ele sofrem ainda mais, destituídos até do significado de tal sofrimento.
Ele está obviamente comparando os modos de produção comunista e capitalista, regimes pelos quais sua geração fez parte, respectivamente. E esta não é necessariamente uma ode aos velhos tempos, mas o questionamento em aberto do que se ganhou nessa transição. Agora o velho perde tudo, exceto seus conhecimentos de sobrevivência primitiva, como pescar e vender. Mas lhe faltam os equipamentos. O corporativismo, tornando os pequenos barcos obsoletos, tornou seus trabalhadores incapazes de sobreviver às crises como a que eles estão vivendo.
"Você Tem a Noite" possui uma narrativa estruturada, mas prefere seguir por caminhos mais "artísticos". A beleza do filme reside em suas tomadas, enquadramentos que lembram quadros vivos e que dizem mais sobre o vilarejo e as pessoas que nela moram, seus costumes e valores, do que mover a história de fato. Formado por fragmentos, a narrativa é meio caminho para percorrermos essa parte da História acontecendo diante de nossos olhos. Há enormes dúvidas na composição do filme, e elas alimentam o tom melancólico do que vemos.
Um garoto tem o braço mordido por um cachorro. A tentativa de consertar um motor para a reforma de um barco dá errado. Um mergulhador morre. Casais se separam. Os fragmentos em si só não dizem nada, mas é a junção que Ivan Salatic faz que termina extraindo um pouco de significado em meio a este passeio panorâmico sobre Montenegro.
# Bellingcat: A Verdade Em Um Mundo Pós-Verdade
Caloni, 2019-10-15 cinemaqui mostra cinema movies [up] [copy]Bellingcat é um documentário sobre esse grupo de jornalistas investigativos amadores que conseguiram construir a partir de evidências extraídas da internet o caso que ligou a queda do avião MH17 sobrevoando a Ucrânia por militares russos.
O objetivo do filme é demonstrar como a tecnologia que nos conecta há mais de 20 anos tem mudado nossa percepção da verdade. Se antes não tínhamos dúvidas do publicado na mídia tradicional, hoje ela ganha um concorrente à altura com a união indireta entre pessoas que estão no momento da notícia ou que possuem informações privilegiadas, que compartilham essa informação online, e pessoas que possuem a habilidade e o interesse em juntar essas informações em um caso muito mais cheio de evidências concretas do que o modus operandi antigo de confiar nas autoridades.
A introdução do filme nos prepara para esta nova realidade com uma citação de Foucault que relaciona poder e verdade, e conclui com pertencimento a ambígua frase de Obama durante os acontecimentos da queda do avião: "let the truth out", que no inglês pode significar tanto trazer a verdade à tona quanto manter a verdade fora da equação.
O núcleo do filme, que caracteriza seu início, desenvolvimento e fim é a investigação sobre a queda do avião da Malasya Airlines, mas esse é um gancho que permite ao diretor, roteirista e cinegrafista Hans Pool mostrar ao espectador de uma forma muito didática como trabalhar os dados online disponíveis a qualquer pessoa com acesso à internet.
Ele começa com um exemplo trivial, e que hoje é mais trivial ainda: reconhecimento de face. Através de padrões no rosto do líder de um movimento supremacista que junto de sua gangue espancou uma pessoa o jornalista investigativo consegue encontrar tudo sobre a vida do sujeito, seus amigos e familiares. E como um dos jornalistas fundador do grupo Bellingcat, cada vez mais essas evidências são usadas e aceitas nos julgamentos.
Mas o mais impressionante mesmo são as evidências coletadas da origem e destino dos mísseis russos, sendo um deles responsável pela queda do avião. Unindo dados de vídeos pessoais publicados na internet e a funcionalidade de "voltar no tempo" as imagens de satélite do Google Earth, o habilidoso jornalista consegue rastrear um caminhão com quatro mísseis, mais tarde visto apenas com um. O mesmo tipo de investigação permitiu identificar o tanque lançador e um jipe russo. Os detalhes que são extraídos das ferramentas online começam a soar mais poderosos que a mídia mainstream.
E de que forma isso impacta a forma como enxergamos as notícias de hoje? Se trata de uma verdadeira revolução, e bem-vinda, na época em que propaganda estatal ou corporativa vira verdade (vide Privacidade Hackeada) a serviço de interesses alheios à verdade dos fatos. O filme mostra os exemplos mais marcantes, como vídeos de crianças assassinadas na Síria, as execuções do Isis e a explosão de um carro noticiado como um atentado terrorista, mas o formato do filme nos permite imaginar infinitas possibilidades.
"Bellingcat" é sobre um serviço de investigação jornalística e pode também ser visto como propaganda do canal homônimo, mas o que um dos fundadores diz a respeito da diferença entre eles e uma BBC da vida é crucial: um jornalista da BBC pode usar o nome do jornal para o qual ele trabalha como argumento. Eles não. Assim como na ciência, ninguém precisa acreditar na notícia, pois basta percorrer os mesmos caminhos que o jornalista. Para isso basta que suas fontes estejam ligadas à notícia. Esse apelo à transparência, um verdadeiro serviço de notícias pela busca da verdade é um sopro de vento fresco em torno de tantos filmes pessimistas sobre o uso da informação.
Vivir Ilesos começa deixando claro, talvez até demais, que é um filme de baixo orçamento. Ele se aproveita de um elenco medíocre para fazer referência a filmes policiais lado B dos anos 70. Por que ele faz isso? Porque o resultado é risível.
E isso é importante porque a história escrita pelo diretor Manuel Siles é muito absurda, e ele precisa que abracemos esse nonsense desde o começo. Um casal de golpistas (Magaly Solier e Oscar Ludeña) é pego por um milionário inescrupuloso (Renato Gianoli) que sequestra a mulher e a toma como amante. O marido se recompõe e tenta descobrir seu paradeiro. Enquanto isso a força policial, representada por um delegado saído de alguma ditadura militar (Javier Trujillo), lentamente avança sua investigação.
O filme é escrachado por usar atores de segunda categoria e tomadas com detalhes que você fica se perguntando por que foram filmadas. Alguém consegue o número de telefone e vemos o bilhete onde ele está escrito. Alguém olha para um prédio e vemos sua fachada. Algumas cenas não fazem muito sentido, como uma arma que dispara na piscina com uma reviravolta inverossímil no final (apesar de ser um dos melhores momentos). O filme quer de todas as formas evocar a fantasia e a metáfora por trás da história.
Isso porque, pra variar, esta é uma crítica social. Fala sobre a impunidade dos mais ricos e poderosos e blá blá blá. Mas sobre isso você já deve saber, já que 12 em 10 filmes independentes falam sobre isso. O engraçado aqui é que o casal de golpistas tem princípios morais cuja consequência é que rejeitam trabalhar para viver, o que também é um clichê, mas aqui ganha uma certa comicidade por conta deles próprios se tornarem vítimas de uma versão mais sênior de si mesmos.
E esse detalhe cumpre dupla função, já que até aquele momento no longa os ladrões de galinha do filme ainda não ganharam nossa empatia, mas agora, assumindo papéis sociais, ou pelo menos admitindo uma certa moral, por mais torta que seja, se tornam os heróis anônimos de uma sociedade corrompida, indo cair nos braços de quem acredita que isso se chame luta pela justiça.
Apesar de tantos personagens criminosos, Vivir Ilesos é um filme leve, com a violência psicólogica maior que a física e com um formato tão despretensioso que ele consegue se tornar divertido ao mesmo tempo que faz pensar. Mas não pensar demais.
É uma moda constante os filmes com "A Garota...". Este A Garota com a Pulseira é um filme de júri, o que já faz 90% do trabalho, chama atenção automaticamente do espectador, que vai querer desde o começo até o final saber a resolução do caso (e corre o sério risco de não saber, pois este é um filme francês...). Porém, este não é um roteiro 100% preguiçoso, apesar de usar velhos temas de júri e de julgamentos que fazemos das pessoas todos os dias.
O primeiro elemento que chama a atenção é que o circo é montado de imediato, com policiais abordando a família Bataglie na praia e levando a filha mais velha em custódia, mas há um corte de dois anos, ela está com uma tornozeleira e iremos assistir ao seu julgamento, o que permite aos personagens e ao espectador acompanhar o processo de um ponto de vista mais frio e retrospectivo.
Isso dá uma certa frieza à personagem da filha, Lise, uma adolescente que parece ter sérios problemas de relacionamento. Ela faz sexo casualmente e seus pais com tendências liberais aos poucos aprendem a defender seu direito de explorar o próprio corpo sem nem imaginar que sua libertinagem pode ser o sintoma de fundo psicológico, em uma moral bem francesa e destacada da realidade de que a menina é reu de crime de homicídio e não faz a mínima questão de ganhar a simpatia de ninguém.
Haveria motivos de sobra para os pais se preocuparem. De família de classe alta com tanto o pai quanto a mãe trabalhando para sustentarem seu estilo de vida com casa na praia, seria de se esperar que antes mesmo do ocorrido Lise já não teria a atenção merecida dos pais. No entanto, este é apenas um artifício manipulador para que nós, espectadores, fiquemos na eterna dúvida se ela é ou não criminosa. Além disso, não sabemos de fato como era a família antes do ocorrido, e temos que confiar no que eles dizem sob juramento.
Outro fator que aumenta a ambiguidade da trama é não existir qualquer outro suspeito para o caso, e se você já está acostumado com filmes franceses deve saber que mesmo se no final Lise for inocentada o caso pode muito bem ficar sem uma resolução. Então não se chateie, curta o processo por si próprio, analisando de que forma o julgamento de uma adolescente libertina e antipática pode ser tema de como julgamos as pessoas de forma errada. Exceto pela parte libertina e antipática. Isso podemos ter certeza sobre Lise.
Filhos da Dinamarca junta o tema óbvio do momento político atual de extremos com uma pesada dose de drama shakespeariano, e para isso nada como estar na Dinamarca. E há algo de podre nesse reino.
Um tanto fora do cenário europeu de refugiados, onde Alemanha, França e Suécia são os países mais noticiados, o diretor e roteirista Ulaa Salim abraça a causa com uma história, assim como o brasileiro Bacurau, em um "futuro próximo" (mas nesse caso não tão distópico), quando partidos nacionalistas estão próximos de chegar ao poder. Já tendo fechadas as fronteiras, o próximo passo é expulsar os imigrantes recentes, e junto disso o país vira uma panela de pressão que cozinha extremistas de ambos os lados.
Delineando sua história primeiro do lado de extremistas muçulmanos que se unem em um movimento político da maneira que podem, planejando assassinar o líder político do partido que representa uma versão neonazista no cenário dinamarquês, o filme muda sua visão de maneira inteligente a partir da metade e de uma reviravolta esperada pela duração do filme, chegando a alterar o protagonista de maneira orgânica.
O roteiro força algumas situações inusitadas, mas nada que fuja das possibilidades dos seus personagens. A direção é coesa e consegue contar uma história com vários detalhes em pouco tempo. Possui a vantagem de um afiado elenco, com destaque para Zaki Youssef como Ali, que comunica muito com os olhos.
Sem conseguir uma produção mais cara, Filhos da Dinamarca evita cenas externas e confia mais no uso da sua luz, em uma fotografia límpida que exibe pelo tom as diferenças entre bairros dinamarqueses e de imigrantes, além de evocar com sua música uma dramaticidade que nos deixaria extasiados se o que estivéssemos vendo estivesse à altura. Infelizmente a obviedade do filme em escolher lados da questão impede que o tema se aprofunde, e não merece maiores reflexões.
# Meu Verão Extraordinário Com Tess
Caloni, 2019-10-17 cinemaqui mostra cinema movies [up] [copy]Meu Verão Extraordinário com Tess é uma comédia leve, de amadurecimento, baseada no livro de Anna Woltz que deve ser tão gostoso de ler quanto o verão, fictício ou não, que Sam passou naquela praia.
Com cores quentes sem exagerar para a fantasia, mas uma fotografia clara que ressalta o brilho da areia iluminando as roupas adolescentes da jovem e contagiosa Tess, esta é uma comédia sutil que não gera gargalhadas, apenas sorrisos, e o humor funciona através de uma doce melancolia do pequeno Sam, que já pensa desde seu primeiro dia de férias em sua inevitável morte.
Sua preocupação pode já ter passado pela sua cabeça alguma vez na infância, naquela época que devaneamos facilmente. Com certeza passou pela minha: depois que meus pais morrerem serei apenas eu no mundo, solitário, aguardando minha própria morte. O que talvez não tenha passado pelas nossas cabeças, mas passou pela de Sam, é fazer algo a respeito. E o seu plano, aproveitando seu tempo de folga com a família, é treinar a solidão, ficando duas, quatro, dez horas sozinho, aumentando o tempo a cada dia. Essa é a melhor forma de nos fazer pensar a respeito da solidão iminente. Além de ser uma péssima maneira de passar as férias de verão.
Mas quando ele encontra Tess, uma garota de sua idade, seus planos correm risco de serem adiados, pois ela tem seus próprios planos, e mais urgentes. Criada pela mãe solteira, Tess descobriu quem é seu pai e o atraiu para onde ela mora para conhecê-lo melhor. Enquanto Sam, como a própria Tess e sua mãe gostam de falar, tem um "típico problema de homem", essa garota de 12 anos literalmente faz as coisas acontecerem em sua volta, e a amizade entre os dois cresce de uma maneira torta, e por isso mesmo admirável.
O roteiro de Laura van Dijk adapta o livro de Anna Woltz e consegue unir todos os elementos acerca da discussão sobre solidão de Sam em um filme que nunca para de te surpreender. Um evento puxa o outro e sempre estamos curiosos com seus personagens. É daqueles trabalhos que celebra a vida acima de tudo, e valoriza seus momentos. Por isso mesmo a edição é ágil, unindo os melhores planos do diretor Steven Wouterlood, que evoca significado sem diálogos. Vemos Sam sozinho na praia e de repente o brilho das areias dá lugar ao escuro lodo que ele visita.
Há uma certa profundidade em "Meu Verão" que cativa nossos pensamentos ao mesmo tempo que diverte. Este pode ser um filme para crianças e jovens, tão bem quanto para adultos, desde que eles estejam tão intereressados na vida quanto Sam e Tess.
O Desejo de Ana faz lembrar como a culpa cristã e o puritanismo americano impedem uma abordagem mais honesta do incesto. Se para Hollywood a paixão entre primos já seria um tabu forte demais para a telona, imagine o espectador médio assistindo sobre um romance entre irmãos.
Mas este acaba sendo um filme leve na maioria do tempo. Juan vem visitar sua irmã Ana na cidade e dorme alguns dias no sofá de sua casa. Eles compartilham um passado, mas agora ele irá ter um filho e ela tem um garoto sagaz, responsável por todas as risadas do filme, e está noiva de alguém que não faz sentido.
A maneira velada de abordar o tema concebido por Emilio Santoyo (que dirige) e Gabriela Vidal se desdobra aos poucos, como as pétalas das flores que Ana cultiva na varanda do seu apartamento. O cheiro e aroma aqui são usado como metáforas para relações autênticas, que vão além da mera conveniência. São mais forte que nosso ser, ou melhor, o definem. Ana e Juan não têm vergonha do que são, e o filme então só tem a explorar essa tensão crescente, tão usada nos romances e thrillers.
A dupla de cineastas teve um problema a ser resolvido e acabaram usando a seu favor. Seus personagens não criam tensão moral alguma. Bem resolvidos, estão revisitando sua essência, então o filme se volta para as reações do seu espectador, já que este sim, provavelmente, possui alguma tensão moral a respeito de incesto.
De qualquer forma, O Desejo de Ana nunca consegue se tornar algo a mais que a revisita do passado e nossas reflexões sobre o assunto. Ele não explora as nuances, está preocupado demais com os excessos, que é combustível para o conflito do título. Diferente do escândalo que poderia causar em Hollywood se lá fosse feito (é produção mexicana), acaba sendo rápido, fugaz e esquecível.
O Século da Fumaça parece uma reprise. Eu me lembro de ter visto um filme muito semelhante em outras mostras há um bom tempo, mas a data de produção de 2018 aponta para sua triste atualidade.
Se trata de um documentário sobre as condições dos habitantes do interior de Laos, ainda produtor e exportador de Ópio, uma droga altamente viciante e que geralmente consome rapidamente a vida dos viciados. Nessa região acompanhamos uma família e seus vizinhos. A maioria dos homens dessa geração estão no vício e as mulheres são responsáveis por trabalhar no campo, além de dividir a criação dos filhos.
O "pai de família" explica que parar de fumar ópio envolve fortes dores no corpo e a incapacidade de se levantar. Ele já está viciado há um ano e espera que o governo proíba a produção para que ele seja forçado a parar, não havendo mais ópio por perto. De acordo com ele seria a única maneira de ele conseguir se salvar, pois sua força de vontade é insuficiente (ele coloca a culpa na genética da família). E ele se sente grato por ter casado com uma mulher forte que possa trabalhar no campo.
O Século da Fumaça se chama assim porque este é um ciclo de 100 anos que ainda não acabou. Por mais que a produção de ópio seja coibida no mundo ainda há mercado, e as consequências podem ser vistas em primeira pessoa neste filme. A morte do primogênito na família é motivo de muita dor e sofrimento dos pais, o que os levou a ingerir também da substância. Simples, mas sábios pela idade, eles entendem o básico que seu filho vivo precisa: fazer qualquer coisa que envolva sair do vício. Sua mulher já pensou em se matar, mas precisar cuidar dos filhos é um sentimento maior. Este não é um filme fácil pelos fatos que estão aí.
O filme é auto-contemplativo. Não há uma narrativa, serve mais como denúncia e fazer pensar. Há vários momentos parados como reflexo do ritmo de vida do local, cujo clima tropical faz variar o tempo religiosamente com a chuva do final do dia. E há 100 anos se explica o vício como a maldição de uma princesa muito bonita cuja flor que nasce do seu túmulo hipnotiza quem a inalar. É um filme sobre vidas em suspensão, onde o sofrimento se resolve inalando a fuga da realidade.
Wasp Network faz o melhor com o que tem para contar uma história confusa sem protagonista definido, e o diretor/roteirista Olivier Assayas nos traz um filme leve quando essa opção seria a única que não poderia ser escolhida.
Com várias estrelas, Penélope Cruz, Wagner Moura e Gael Garcia Bernal, cuja posição política já é conhecida por todos (porque eles simplesmente não conseguem se conter), sabemos desde o começo que a história envolvendo uma Cuba pós-queda da URSS em plena decadência econômica se trata de uma fachada pobre e sem imaginação quando um piloto de Cuba foge para Miami, é acusado de desertor pelo governo e fala coisas horríveis do regime comunista, em uma trama que irá se desdobrar de maneira impressionante e inexplicável.
Porém, esta é a história inicial que acompanhamos por mais da metade deste longuíssimo filme: cubanos se unem em um movimento humanitári em solo americano para resgatar e dar apoio a refugiados que fogem do país sem condições de sobrevivência. Este movimento paga bem aos pilotos dispostos a lutar pela causa, então não há problema em ser patriota e ao mesmo tempo ganhar a vida em Miami. É como se diz na América, uma situação win-win.
O que faz este ser um filme longuíssimo é que ele se desdobra em outra história muito tarde, e por mais intensa que seja sua reviravolta, nos forçando a reinterpretar rapidamente os objetivos de cada um na história, ela continua soando rasa. Isso porque unindo tráfico de drogas, terrorismo e militância, o roteiro de Assayas se esforça para não fugir muito dos fatos históricos (apesar dos letreiros dizer ser apenas inspirado em fatos reais) e ainda precisa tornar interessantes as trajetórias pessoais de cada um dos envolvidos.
Porém, assim como Bacurau, este é um filme sem protagonistas e com a bússola moral quebrada. Ele define a alegoria (ou espantalho) de uma Cuba comunista onde as pessoas morrem de fome de maneira porca, para logo depois convenientemente atacá-la. E da mesma forma que o filme 100% brasileiro de Juliano Dornelles e Kléber Mendonça Filho, que une gêneros e realiza truques de camadas para não soar tão ruim, Wasp Network não se importa com a narrativa, desde que haja mais e mais eventos sendo empurrados goela abaixo do espectador.
Para piorar, o design de produção está preocupado em tudo menos a história. As músicas usadas para caracterizar cada época (ano?) é completamente desproposital, virando música de fundo que inicia um novo capítulo, e os letreiros de localização, quando não apontam um lugar que todos sabem onde fica, como Havana e Miami, são inúteis.
De qualquer forma, Wasp Network não consegue ser um filme ruim. Ele tem a direção do competente Olivier Assayas (Personal Shopper), que nos entrega, cena após cena, momentos que nos deixam interessados em seus rasos personagens independente de seu pano de fundo. Isso quer dizer que ser um filme leve pode ter sido uma péssima ideia, mas, assim como a equivocada comédia As Aventuras de Hugo Cabret, de Martin Scorsese, nas mãos de um diretor habilidoso funciona mesmo assim.
A Vida Invisível é um retrato tão fiel e acolhedor de um Brasil patriarcal que em alguns momentos ele corre o risco de estar fazendo apologia, simplesmente por recorrer às nossas memórias afetivas e culturais de uma época, e memórias não funcionam em termos de boas ou ruins. Todas elas são uma mistura só, e o filme de Karim Aïnouz demonstra isso com elegância e sem discurso fácil.
A Direção de Arte de Rodrigo Martirena materializa esta época de duas gerações atrás, nos transporta para ela através de uma série de sensações afetivas com nosso passado. Digo isso não como alguém que viveu os anos 50 no Rio de Janeiro, onde a história se passa, mas como brasileiro que teve pais influenciados através de seus próprios pais, e três gerações ainda mantém um elo cultural muito forte para ser descartado.
Essa sensação familiar vai desde os detalhes dos cenário e figurino para mais além, para as cores, as luzes. Uma fotografia inspirada em textura dessas luzes resgata as formas e estilo do passado. E tudo vem à mente de uma só vez: as paredes simples, os azulejos no corrimão que dá para um jardim caótico de plantas, ambientado pelos sons suburbanos geralmente ouvidos pelas donas de casa, que ficam o dia inteiro enfurnadas em seus domicílios.
Mas apenas impressões visuais não seriam suficiente para nos transportar. A criação das duas personagens principais, Eurídice e Guida, no roteiro e nas atuações, é um exemplo de como não forçar a situação com diálogos artificiais e exagerados. É dessa abordagem que também surge o humor do filme, como o exemplo prosaico de quando Guida coloca um vestido justo e perfeito que a faz ter vontade de ir no banheiro. É o humor extraído de situações banais para quem vê de fora, mas indissociáveis do imaginário e cultura popular.
É por isso que sabemos que o pai delas, um português, além de seguir o estereótipo e ter uma padaria é rígido demais com as meninas. Mais do que rígido, na verdade. São tempos (os últimos) em que os homens de fato controlam por absoluto o destino da mulher. Mas os homens do filme não são maquiavélicos ou vilões por escolha própria. São meio bobões, até, alheios à existência de um ser humano por trás de sua esposa ou filha. Tão acostumados que estão aos costumes chegam a ser patéticos seus comportamentos. Eles mal sustentam um personagem.
E por isso a escalação de Gregório Duvidier, comediante do canal no YouTube Porta dos Fundos e palpitador de assuntos que não conhece em outros lugares, é a escolha perfeita para Antenor, marido de Eurídice. Por que ela o escolheu como esposo? Nem esse detalhe merecemos saber, mas podemos inferir, pois não que ela tivesse um leque apetitoso para selecionar. O mais provável é que ele fora a opção que parecia mais inofensiva para ela, e de fato é. Duvivier aqui reproduz uma persona comum em seus papéis no Porta: um homem sensível (leia: mimado) egocêntrico que nunca vai crescer.
Já Eurídice e Guida, interpretadas respectivamente por Carol Duarte e Julia Stockler, exibem uma afinidade com seus papéis que podemos usar a expressão "viver a personagem" de forma literal ao nos referirmos a essas irmãs. Não que elas possuam características que as individualizem, pois são meros símbolos do que era ser mulher na época. No entanto, elas são questionadoras do status quo. Principalmente Guida, a mais velha, à frente do seu tempo e representa tão bem essa transição de costumes, que foram se perdendo na geração de imigrantes para dar lugar a pequenos lampejos de emancipação que a tornam uma protagonista forte, inquisidora, e perfeitamente plausível. Ela é tão boa que nos faz desejar que ela existisse, mas tão dolorosamente real que ficamos felizes por não.
A mensagem social mais importante do filme, que não se priva de também ser um melodrama de qualidade, é nos fazer refletir sobre o erro que é pensarmos que todas as mulheres viviam satisfeitas naquela sociedade simplesmente por costume, sem questionar nem querer uma vida diferente. Sem apelar para discursos feministas inflados, que correriam o risco de afastar o espectador mais conservador, o filme sugere de maneira sutil, mas inquisidora, que talvez a maioria das mulheres, diferente dos homens da época, não agisse por costume, mas simplesmente não tinha outra opção. Surge daí a função primordial do longa em elevar alguns exemplos dessas mulheres na superfície para enxergarmos melhor as correntes que as prendem.
Além de uma aventura dramática de época que nos faz viver aqueles momentos como se fizessem parte de nossa própria vida, há no final uma participação especial de Fernanda Montenegro, que com tantos anos continua um monstro de atuação, e o faz com tão poucas expressões e uso de voz que suas poucas cenas no filme emocionam tanto pela história quanto pela beleza intrínseca na forma de Montenegro trabalhar. Uma das melhores atrizes de sua geração, sem lançar spoilers posso dizer que ela continua representando o Brasil que queremos ver, aqui e pelo mundo, através das décadas que virão. É a brasilidade que não se imita, e nem se arranca de ninguém.
As qualidades de A Vida Invisível são difíceis de ser atribuídas individualmente, mas o roteiro naturalista é arrebatador em usar a narração das cartas de uma irmã para a outra como marcador de tempo e momento na vida de uma, e a direção mais ainda em não forçar nenhum corte artificial que prejudicaria o fluxo do tempo. E quando cortamos de um ano a outro, ou avançamos 50 anos à frente o eficiente efeito acaba sendo o mesmo: nos faz pensar no que mudou. Resta ao espectador que sair do filme refletir a respeito. Principalmente as mulheres.
Swallow, ou da tradução "errada", Devorar, é daqueles roteiros que começa com uma ideia tão inusitada que você vibra quando acontece, porque é um respiro de ar fresco. Mas além disso ele trata de temas repetidos de uma nova forma, não expandindo, mas apenas mudando nosso ângulo de visão.
Sua história é a de Hunter (Haley Bennett), uma mulher que, conforme a introdução avança, somos apresentados à sua vida perfeita, prestes a se casar com um bom partido, filho do dono de uma importante empresa, morando na casa perfeita, com uma piscina linda de frente para uma vista panorâmica. Perfeita seria a definição se não estivéssemos testemunhando visualmente essa apresentação, que o diretor Carlo Mirabella-Davis o faz transformando radicalmente a perfeição em um sufocante inferno. Como é possível isso?
Bom, primeiro pela nossa atual pré-disposição em desconfiar de executivos, ricos em geral e tudo o que os cerca. Mas, além disso, desconfiar de situações perfeitas demais. O melhor exemplo é a casa, perfeitamente simétrica, em certos momentos lembrando uma casa de boneca. E Hunter é a Barbie dessa casa de boneca, que fala (ou repete) o que deve ser dito, age como deveria agir e sorri nos momentos apropriados. Seu único defeito é ter o cabelo curto, e seu marido gosta de cabelos longos, mas ela já recebeu o conselho de sua sogra para deixar crescer.
Esta é uma família que controla por completo a vida da estranha a ponto dela ser um mero detalhe em suas vidas. Disposta como uma decoração de enfeite necessária para a vida do seu bem-sucedido marido, as pessoas sequer a esperam terminar de falar, ou simplesmente não prestam atenção. E quando ela de repente começa a engolir objetos perigosos, como uma bola de gude, um pino e uma pilha, qual a solução dessa "família"? Mais controle, é claro!
Mas mesmo partindo dessa premissa inusitada não conseguimos achar a ideia de engolir objetos estranha demais: pelo contrário, ela parece fascinante. Grande parte dessa proeza de mudança de expectativas é sua protagonista, interpretada de maneira completamente entregue por Haley Bennett. Ela não imita uma caricatura da esposa americana, pois isso iria nos jogar para fora do filme, mas sabemos que ela sofre por dentro. Por quê? Porque diferente dos outros em sua volta, ela não é uma natural. Ela se esforça para ser o ideal para eles. E só nós vemos os micromomentos em que ela se esforça.
Devorar é um thriller psicológico e um drama eficiente conforme sua inusitada premissa vai se transformando em algo mais familiar. O roteiro, também de Mirabella-Davis, não escolhe partir para expandir o tema engolir coisas literalmente, preferindo usá-lo como uma metáfora de como na vida às vezes precisamos passar por experiências desagradáveis, processá-las e seguir em frente. Se chama amadurecer. Que forma fascinante de oxigenar velhos temas.
System Crasher evita a todo custo julgar sua jovem e impossível protagonista, mas não se pode dizer o mesmo dos espectadores, que saíram da sessão vociferando palavras de ordem e disciplina como solução para uma menina de uns 10 anos que com inteligência acima da média e ataques explosivos é uma versão em miniatura de uma delinquente juvenil. Mas a grande questão para quem quiser analisar além das emoções primárias que o filme evoca é sua camada imediatamente superior: quais os objetivos de um filme como esse?
Estamos em um país de primeiro mundo e a pequena Benni já passou por mais de 30 instituições de correção juvenil. Jovem demais para ser presa no que seria a daqui extinta Febem, acompanhamos os ataques de raiva da garota enquanto ela provoca e agride crianças, ou foge dos adultos que a estão supervisionando.
O filme escrito e dirigido por Hora Fingscheidt se entrega completamente ao ponto de vista de Benni para nos tentar dar sua visão, falhando miseravelmente, pois ninguém conseguiria se identificar mesmo. Com fontes coloridas e infantis, e música animada e frenéticas durante seus ataques, os movimentos de câmera da diretora pretendem emular o comportamento da mente desta criança que foi traumatizada desde muito pequena, adotada duas vezes e devolvida muitas outras.
A dinâmica para filmar a jovem atriz Helena Zengel é uma das mais tensas já vistas com atores-mirins. Com certeza fruto de trucagens, nós espectadores a testemunhamos dizendo palavrões de gente grande e agredindo gravemente muitas crianças, além de si mesma. A atuação da atriz é primitiva, e podemos dizer com certa confiança que ela está representando uma versão muito próxima dela mesma e exibindo sorrisos e expressões falsos, mas pelo menos isso conseguimos relacionar com crianças saudáveis.
Este é um filme adulto que pode chocar adultos. Há cenas fortes, mesmo que não explícitas, mas que mexem com nossas emoções. Benni faz basicamente o que quiser e vemos adultos impotentes diante de uma criança. Em vários momentos do longa a dúvida de quais os objetivos dessa tortuosa e frustrante história começam a incomodar.
No que chegamos na grande falha do filme: não nos dar resposta definitivas. E por que esta seria uma falha, já que de acordo com seu próprio título de trata de um filme de alguém que quebra o sistema de tratamento de crianças desse país? Bom, não adianta descrever uma situação fictícia se você não tem nada o que falar sobre ela. Depois de uma hora e meia o filme anda em círculos por mais meia hora, gerando simpatia apenas pela assistente social que acompanha Benni desde o começo, quase como uma muleta emocional para não nos deixar sem nada.
Para chegarmos em uma conclusão sobre o filme não nos resta outra opção do que entender que esta é uma crítica velada ao sistema educacional que está sendo usado em crianças de países que não possuem mais nenhum problema real, exceto lidar com crianças mimadas que nunca tiveram sua vontade sob controle. Este é o fim da humanidade como se conhece, incapaz de impor disciplina em suas próprias crias. Nem as sociedades dos países mais pobres teriam um sistema tão podre quanto este, como o próprio longa sugere, citando mais de uma vez um bem-sucedido programa educacional no Quênia.
Mas esta é minha visão. Posso estar sendo enganado pelas minhas emoções. O filme nos faz todo o tempo buscar por uma solução, sem nunca nos entregar uma luz no fim do túnel. Este é um mérito dele, afinal de contas. Se não ele se chamaria Consertador de Sistemas.
Este filme nos presenteia com uma visão do passado do cineasta que homenageia, Jean-Louis Jorges, cineasta da República Dominicana, e ao mesmo tempo nos faz pensar em cinema não apenas como uma história sendo contada, mas como uma visão muito particular da realidade.
Sua estrela é Geraldine Chaplin, que faz Vera, uma diretora em fim de carreira, dirigindo seu último filme por opção e por idade. Todos seus colegas e amigos estão morrendo, e por esta ser a filha de 75 anos de Charles Chaplin o filme já nos diz desde o começo que é uma viagem metalinguística, onde realidade e ficção se misturam.
Podemos ver isso também na própria produção do filme dentro do filme, que abraça a visão de seu homenageado, com dança, vampiros e uma relação muito próxima entre o real e o sobrenatural. Há momentos no filme que ele irá entregar uma cena que não deveria estar ali, e isso cria uma sensação diferente no espectador que espera pela conclusão da história principal.
E se esse espectador continuar esperando por essa lógica infelizmente irá se frustrar, muito embora exista uma história implícita, que é menor que a força da ficção de pontas soltas e de sensações que o filme entrega.
Ao mesmo tempo temos também uma visão particularmente única dos problemas de produção em filmes mais autorais e independentes. Isso não é novidade, já vimos em clássicos como O Retorno de Sweetback, que conta sobre a produção sofrida de Sweet Sweetback's Baadasssss Song, filme produzido e dirigido por Melvin Van Peebles, mas aqui há uma junção única entre uma homenagem a um cineasta e a construção da arte.
Em cada lentilha um Deus mostra como é difícil manter uma narrativa em documentários sem roteiro. Esse é um deles. Acompanhamos as memórias e reflexões sobre Luis, um roteirista que ajuda o irmão e o primo a escrever um livro sobre a culinária do restaurante da família. Nessa viagem culinária nosso único guia são os pratos do "L'Escaleta".
Este acaba virando um passeio gastronômico próximo da experiência de um episódio da série Chef's Table, que explora as origens dos ingredientes e da história do cozinheiro por trás de um restaurante premiado. Só que diferente de uma série de streaming este filme tem a personalidade de seu idealizador, Luis Moya, que junto de Miguel Ángel Jiménez definem uma certa lógica por trás das cenas filmadas.
Luis busca, de acordo com ele mesmo, uma certa ordem no caos, seja em ficção ou documentário, e sua introdução faz o duplo papel de filme intimista e um pedido de desculpas antecipado por sua história não ir pra lugar algum. Talvez aguardando por uma estrela Michelin para um final derradeiro que nunca acontece.
Mas não ter ordem não é desculpa para esta não ser uma experiência no mínimo agradável. Eu falo de maneira parcial porque gosto de degustar bebidas e alimentos que têm uma história pra contar, e isso é exatamente o que o diretor Miguel Ángel faz, acompanhando Luis em sua jornada nos mostrando não apenas a história de sua família nem apenas a origem local dos ingredientes principais dos pratos, mas a origem dos próprios artefatos onde o alimento irá ser servido.
Inspirador nos momentos que o autor fala sobre passagem do tempo entre gerações e o que nos torna quem somos, constrangedor quando ouvimos sua opinião não muito embasada sobre a sociedade atual e para onde ela deve caminhar, "E Em Cada Lentilha" poderia ser um desastre completo por não ter começo, meio e fim, mas se transforma em uma série de experiências documentais em uma ficção que não é forçada, mas simplesmente surge. Assim como os melhores pratos.
No começo de Eu Prometo Ser Sensato testemunhamos o último desastre de Franck, um diretor de teatro completamente fora de controle. Não é uma situação engraçada, mas trágica, para o elenco, o público e ele mesmo. E este ironicamente é o resumo do filme inteiro de Ronan Le Page: sem sentido, sem paixão e sem controle. Não há nada neste filme que você irá sentir falta quando ele acabar.
A história é sobre o que Franck faz depois do desastre inicial que vemos. Interpretado de maneira tresloucada e automática por Pio Marmaï, do muito melhor Beijei uma Garota. E ele arruma um emprego temporário como assistente de museu. Acompanhamos sua tentativa de se adaptar e no meio dela descobrirmos que ele é um personagem completamente desbaratinado, um enigma. Simplesmente não dá para entendê-lo, e isso nem é por ser francês. Encontrando outra louca, interpretada por Léa Drucker e que cria uma personagem muito mais interessante apenas com trejeitos e expressões (vamos esquecer os diálogos), o circo da comédia francesa está formado.
Essa é a história dos que não se adaptam, dos fora do sistema. Incapazes de manter um emprego estável, essa turma vive de galho em galho. E isso não teria nada de errado, muito pelo contrário, se seus personagens fossem minimamente interessantes. Mas não são. Apelando para estereótipos fáceis, como a garota que usa misticismo como resposta para tudo, ou sequer caricaturas, como os dois personagens principais, "Eu Prometo" é o que existe de pior na comédia francesa na última década: comercialmente preparada para uma turnê mundial, mas incapaz de entender o próprio cosmos onde foi criada.
O fiapo de trama do filme relaciona antiguidades não-catalogadas de um museu, farmacêuticos tarados por relíquias de sua profissão (e com dinheiro para pagar por eles, o mais absurdo), uma personagem com dislexia leve e que é tratada como uma maluca e muitas piadas que não funcionam. Você já sabe onde e quando o filme vai acabar lá pela metade. Depois disso poderá deixar a sessão sem peso na consciência. Se não houve nada para rir até o momento, vai ficar ainda pior.
Com a ascenção vertiginosa vem a queda dura. E O Fantasma de Peter Sellers é o trabalho do diretor Peter Medak que vem revisitar o maior desastre da carreira deste diretor, que teve a péssima ideia de usar Peter Sellers como seu galã em uma produção em alto-mar e foi acometido pela maldição dos espíritos dos piratas.
Brincadeiras à Parte, Peter Medak conversa bastante sobre os fatores que levaram seu projeto de uma comédia sobre um navio pirata a naufragar, e faz até uma auto-análise sobre seu complexo de culpa que precisa ser expurgado por um filme a respeito. E ele tem razão, pois ao explorar os motivos que levaram O Fantasma do Sol de Meio-Dia chegamos às mesmas conclusões que seu diretor: este projeto nunca deveria ter sido feito, e não necessariamente Sellers é o único culpado.
Este é um filme que tem a virtude de falar abertamente sobre erros de produção de filmes, e como na década de 70 haver um diretor de sucesso era motivo suficiente para arrecadar dinheiro para seu próximo filme mesmo que ele ainda não tivesse um roteiro definido. Note que existe uma diferença para os tempos atuais, onde projetos comerciais mais parrudos não estão nas mãos de uma única pessoa, mas são escritos em grupos e revisados por outros tantos.
O que é uma pena, pois desastres monumentais como este filme dirigido por Peter Medak possuem menos chances de acontecer, e este documentário de Medak é tragicamente delicioso ao abrir a ferida entrevistando os que ainda estão vivos e participaram das filmagens. Embora possa parecer comum um projeto desses, acredite: não é. Estamos falando de um diretor que depois de décadas quis resolver de uma vez por todas um assunto que ainda permanecia em seus pensamentos, e que teve a humildade de ir até as últimas consequências.
O filme é montado como Peter Medak indo atrás dos responsáveis e buscando por memórias e registros do que de fato aconteceu. Você pode não estar interessado necessariamente neste filme-desastre, mas se for cinéfilo com certeza irá achar interessantíssimo os detalhes de produção e filmagens. Há um quê de aprendizado em rirmos dos problemas do passado, e graças a Medak agora temos a oportunidade de assistirmos a um documentário dirigido por um ótimo diretor que acredita ter comedito um grande erro no passado. No final das contas, "O Fantasma do Sol de Meio-Dia" foi uma coisa boa.
Querência, quem diria, é uma cidade de verdade, localizada no estado de Mato Grosso. Mas o que acaba não sendo nem de verdade, nem de mentira, é este filme escrito e dirigido por Helvécio Marins, que cria uma ficção com personagens da vida real, e demonstra uma das péssimas formas de unir duas formas de filme em um resultado insosso e sem alma.
Acompanhamos o drama de Marcelo Di Souza, um gerente de uma fazenda de gado que é assaltada. Cem cabeças de gado são levadas, o maior roubo de gado já registrado. É um caminho natural Marcelo se mudar, preocupado com sua segurança e desestimulado pelo acontecimento, e o filme enquanto acompanha essa mudança vai nos apresentando o ambiente do Centro-Oeste brasileiro e os outros personagens da vida real. No meio do caminho ele faz algumas críticas aleatórias sobre política que agrada algumas pessoas e este filme acaba ganhando prêmios (inclusive lá fora).
Querência tenta unir vida real e ficção gravando ou reproduzindo conversas durante sua história, mas a posição das câmeras, mais de uma, durante as cenas criadas, acaba revelando a "farsa", mais ou menos o efeito contrário que a câmera única na mão tem, de evocar realismo. Esse estilo foi usado também em outro filme exibido nesta Mostra de São Paulo, "E Em Cada Lentilha Um Deus", mas no caso do filme de Miguel Ángel Jiménez ele nos mantém presos na narrativa pela história pregressa do protagonista. Aqui não há esse artifício.
O que vemos neste filme não é muito diferente de outros filmes da região. Pessoas do interior isoladas da internet conversando dos estranhos hábitos do pessoal da cidade grande de chamar "tomar uma pinga" de "happy hour", rodeios, o evento principal da cidade, e o roubo dos gados, o acontecimento da região, e que será comentada por muito tempo, já que praticamente nada acontece por estas bandas, como o ritmo lento e as tomadas de pores do sol repetitivas. Lindas, mas repetitivas.
É uma ode ao pequeno pecuarista brasileiro? Um mini-documentário sobre costumes da região? Uma tentativa de ficcionalizar a realidade? Talvez nenhum, talvez todos. Mas nenhum deles é o tema principal, desconhecido talvez até dos idealizadores. Mas Querência não mostra cenas ruins. Ele apenas não sabe o que fazer com elas.
# A Verdadeira História da Gangue de Ned Kelly
Caloni, 2019-10-22 cinemaqui mostra cinema movies [up] [copy]Desde 1906 (The Story of the Kelly Gang) se fazem ficções que buscam contar os acontecimentos em torno do fora-da-lei australiano Ned Kelly. Agora, no século 21, a partir do livro de Peter Carey, que busca contar os mesmos acontecimentos pelo ponto de vista de Kelly, surge essa adaptação cinematográfica de Shaun Grant, A Verdadeira História da Gangue de Ned Kelly, que é uma bagunça talvez comparável ao que se passava na cabeça do pobre bandido.
Mas que pelo menos conta com ótimos astros, como George MacKay (Capitão Fantástico), Essie Davis (O Babadook), Nicholas Hoult (Mad Max: Estrada da Fúria) e uma pequena parte com Russell Crowe.
O maior problema enfrentado por Grant nesta adaptação é conseguir encontrar uma bússola moral para seu herói. Tentando vitimizá-lo no início de sua vida, ainda com 12 anos, em uma confusão de sentimentos envolvendo o pai incapaz, a mãe que se vendia para membro do exército britânico e a má fama dos colonos, o pequeno Ned Kelly interpretado por Orlando Schwerdt convence demais em seu papel de uma criança que precisa assumir responsabilidades que envolvem inclusive uso de violência.
Aliás, o uso de violência no filme de Justin Kurzel se sobrepõe às boas ideias de Shaun, pois chama a atenção na caracterização de uma Austrália árida e hostil, desprovida de qualquer virtude para ser colonizada. É uma versão exótica de um velho-oeste americano, que nesse caso sequer possui cidades.
A progressão da biografia de Kelly chega em um certo momento tão confuso que não importa mais a belíssima fotografia de Ari Wegner (Lady Macbeth), que ressalta a paleta acre de uma Austrália sem sol, mas com neve e os arbustos que nomeiam o que o protagonista irá se tornar: um bushranger, um nome que se originou na figura de Kelly e outros fora-da-lei e que passou a ser usado para qualquer bandido que faz assaltos à mão armada.
A Verdadeira História da Gangue de Ned Kelly é introduzido com um letreiro "nada nesta história é verdade". Mais preciso seria dizer que nada nessa história faz sentido.
Alva nos captura desde o começo como um documentário sobre a vida de uma pessoa pacata que parece inofensiva, mas vai no decorrer de sua duração nos mostrando o ponto de vista de alguém que vive dentro de cada um de nós, ainda que não saibamos disso. E melhor prova disso é nós torcermos por este personagem, inconscientemente, apenas porque começamos o filme simpatizando com sua rotina.
O longa de Ico Costa usa a linguagem da câmera na mão e cenários simples para nos enganar como patinhos. Apresentando o ator Henrique Bonacho completamente possuído (na falta de uma palavra melhor, tamanho o talento de Bonacho) pela figura de uma pessoa do campo simples e humilde, que mora sozinha e fala pouco, a história verdadeiramente começa quando há essa quebra da crença em um documentário quando este protagonista faz algo impensável se ele fosse uma pessoa real.
Porém, apesar de vermos o que ele fez e momentaneamente ajustarmos nossa suspensão de descrença, continuamos acreditando no tom documental. Isso nos mostra que a linguagem que Costa está nos impondo acaba exercendo um poder muito maior de nos convencer sobre qual o tom da história sendo contada. Após esse momento catártico, acompanhamos unicamente pelo ponto de vista dessa pessoa o que ela faz a seguir, mais curiosos ainda sobre onde isso vai dar.
Simples e sem qualquer elemento a mais do que seja a sobrevivência mais primitiva de um ser humano, Alva é uma jornada que apesar de ser entregue em um ritmo super-lento nos mantém em alerta por todo o percurso. Anestesiados pela identificação com o protagonista, note como quando ele encontra um amigo no bar nos sentimos no direito de julgar o que o amigo fala em seguida, e entenderá que maluquice é essa que o filme fez, de nos colocar como cúmplice ideológico de uma pessoa para logo depois condenar os que assim o fazem.
Fazendo um trocadilho com o filme icônico de Leos Carax (Boy Meets Girl), Boy Meets Gun é uma mistura de drama, comédia e investigação policial que consegue entreter com o mundinho criado pelo roteirista Willem Bosch, que também é o escritor do roteiro do cativante Afterlife, também em exibição nesta Mostra.
A parte mais inusitada e divertida do longa dirigido por Joost van Hezik é que a narradora, apesar de não ser uma personagem no sentido de realizar alguma ação propositada, é uma pistola Desert Eagle (se você já jogou Counter Strike sabe que arma que é; para quem não jogou imagine uma pistola de mão que faz metade do estrago de um rifle). Bonita e estilosa, ela conta a sua história de como foi parar nas mãos de um professor de filosofia, em uma sequência nada sutil, mas que serve para nos jogar na ação facilmente.
Toda a trama é desenvolvida considerando que o detentor de uma Desert Eagle irá aumentar seu nível de "macheza" exponencialmente, e esse professor de meia-idade já se perguntando se existe de verdade acaba virando o jogo a partir do momento em que ele guarda essa arma na gaveta de sua mesa, não sem antes cuidá-la com carinho (a narradora agradece).
Minimamente interessante, essa premissa vai aparentemente se tornando insuficiente, pois Willem Bosch começa a entregar um segundo filme de investigação policial junto de um drama de um jovem com a face descaracterizada que deseja fazer uma operação e aumentar sua auto-estima, já abalada de ter que conviver com seu sinistro pai, um "colecionador" de armas com um olhar que você não gostaria de cruzar na rua (e ele faz uma referência não muito inteligente com o vilão de Javier Bardem, Anton Chigurh, de Onde os Fracos Não Têm Vez, usando para isso o cabelo estranho como artefato).
A história vai piorando conforme novos elementos vão sendo acrescentados ou expandidos, como uma aluna universitária que vira o interesse do professor em sua sala ou a incrível coincidência da investigadora de polícia conhecer um desses personagens. De certa forma, Boy Meets Gun é cercado de boas ideias, algumas são aproveitadas, outras não, mas a melhor delas nunca é usada: economia nos conceitos. Este filme ficaria infinitamente melhor se dividido em dois pelo menos.
Ecos pode ser muito chato para algumas pessoas e fascinante para outras. É um filme feito de pequeníssimos momentos que não significam nada sozinhos, mas que pela sua soma geram uma sensação de existência. E é bom existir.
A proposta do diretor Rúnar Rúnarsson é capturar cenas de sua terra natal, a Islândia, nas semanas de Natal e Ano Novo, e quando eu digo capturar tanto pode a vida real sendo filmada ou uma dramatização de momentos possíveis. São cenas belíssimas, amplas e que capturam aquele momento chave de cada lugar, que varia entre temas natalinos, locais de trabalho, o lar das pessoas ou lugares públicos. Um filme de observação dos seres humanos na metade do século 21.
Mas como os diálogos e as situações são montadas, é claro que existe o viés do seu idealizador, que usa o filme para capturar o que ele acredita ser a síntese de nossa era, como a incessante luta de classes, discussões políticas e sociais, a frieza nas relações, a diversidade da formação de famílias e até o sufoco percebido por nós do impacto que geramos aos pets com fogos de artifício, um dos muitos exemplos de contradições construídas pela humanidade.
Este é um filme curto onde o ponto de partida são os preparativos de Natal e seu final é o início de um novo ano. Para muitas pessoas essa é uma época significativa e um dos objetivos do filme é buscar esse significado através da observação de como os humanos da Islândia vivem, e de certa forma como as pessoas da Europa. E se França, Alemanha e até Portugal podem se nomear primeiro mundo, a Islândia é o primeiríssimo mundo, onde uma placa de acidentes de trânsito indicam 15 mortes ao total em um ano. Enquanto para eles é uma análise do presente, para brasileiros pode ser visto como ficção científica, em um futuro distante.
Fotógrafo de Guerra é um filme quase cru, sem substância, cujo titulo já anuncia sem rodeios seu conteúdo, que pode ser chocante para a maioria das pessoas, mas como espectadores nos acostumamos com o que vemos.
De qualquer forma, o que vemos, a rotina de um fotógrafo de guerra nas guerras do Oriente Médio, não se compara com fotos das guerras mundiais, pois diferente dessas muitos civis estão morrendo e fugindo de onde sobrevivem no século 21. Deveríamos estar mais abalados do que nunca, mas algo mudou em nossa percepção do absurdo humano. Talvez o fato que o palco desses conflitos seja em um lugar muito longe do primeiro mundo.
O filme explora vagamente este distanciamento quando o protagonista encontra um colega fotógrafo e ambos falam sobre as qualidades das lentes e como hoje em dia todas as fotos exigidas pela mídia devem ser totalmente nítidas, sem espaço para uma interpretação da luz que tanto acrescenta ao momento. "Não há mais espaço para emoção", diz o fotógrafo que está há duas semanas no fronte e não parece temer pela própria vida.
De fato não há mais espaço para algumas emoções, como solidariedade e empatia. Ao combinar as rotinas de pai e fotógrafo no mesmo filme vamos percebendo como são vidas distintas a de Marie Bitsch-Larsen, e seus quatro filhos possuem seus assuntos pessoais do dia-a-dia, além do drama pessoal de ter uma mãe à beira da morte. E nada disso se confunde com os momentos em que Marie está a trabalho, nunca os assuntos chegam a convergir, exceto no lado prático, como quando uma das filhas precisa do material do seu pai para um trabalho de escola.
Com isso o filme ganha uma distância dos acontecimentos brutais da guerra que o próprio Marie aparenta ter pela frieza com que descreve e trabalha, uma frieza provavelmente desenvolvida como forma de auto proteção e preservação. E a despeito de provavelmente estar sofrendo de estresse (ele não consegue mover uma parte do rosto) o que vemos não é uma viagem introspectiva na vida desse fotógrafo, mas o que ele consegue extrair de sua profissão -- as fotos -- e o que precisa fazer para isso, onde precisa estar.
Desconfio que Fotógrafo de Guerra tenta em vários momentos se tornar um retrato mais intimista, mas a falta de algum acidente em seu protagonista ou um diagnóstico mais grave do seu médico frustram a exploração de mais uma tragédia: os efeitos psicológicos dessa profissão. Restam, então, as fotos, uma mais bela que a outra, que ilustra essa nossa era dos extremos.
Este filme se chama Bulbul Pode Cantar porque é a única coisa de divertido que ela pode fazer com a aprovação da sociedade em que vive. Infelizmente, ela não consegue cantar direito em público, se sente envergonhada. E é aí que começa mais um drama de valores de uma sociedade oprimindo as mentes jovens deste século.
A história gira em torno de três amigos, duas garotas e um garoto, em que o garoto é gay, ou afeminado, e sofre bullying praticamente todo dia por causa disso, e não sabemos se é por isso que ele prefere a companhia das meninas. Boa parte do filme os vemos na escola e se divertindo após as aulas. Uma paixão entre Bulbul e um menino vai se desenvolvendo, mas nós não sabemos dos perigos que é se beijar nessa idade caso alguém descubra.
Ao olhar nos créditos finais fiquei impressionado pelo trabalho de Rima Das. Ele assina roteiro, direção, edição, produção e mais alguma outra coisa. Junto dele, com o mesmo sobrenome, surgem vários atores do elenco e extras, além de mais dois ou três sobrenomes idênticos. Das é o produtor de um filme feito entre família e amigos, mas em nenhum momento este soa um trabalho caseiro. Apesar de lento, ele é ritmado, e sua fotografia profissional.
Há momentos de Bulbul Pode Cantar que você provavelmente ficará pensando na vida. Ver jovens fazendo coisas de jovens nem sempre é algo empolgante. Mas aguarde. Da metade para o final coisas horríveis irão acontecer. Coisas terríveis. E tristemente reais até hoje. Há uma cena muito triste e uma certa melancolia. Mas irá passar. É importante para nós refletir se é benéfico que valores sejam mudados na sociedade indiana (um exercício fora da caixa para não-indianos).
# Deus é Mulher e Seu Nome é Petúnia
Caloni, 2019-10-23 cinemaqui mostra cinema movies [up] [copy]"Eu tenho valor", diz a protagonista em Deus é Mulher e Seu Nome é Petúnia, "Petúnia é inteligente e trabalhadora", diz seu pai, "O único problema de minha filha é não ter um emprego", diz sua mãe. E nenhum deles parece ter razão.
Petúnia aos 32 anos se formou em história e nunca trabalhou. Com problemas de peso e baixa auto-estima, muito provavelmente infringidos pela própria mãe, o único gostinho de vida dessa mulher aparece quando ela consegue capturar uma cruz sagrada lançada tradicionalmente ao rio para que homens a peguem. Ao vencedor deste ritual diz-se que tem um ano de sorte, e agora Petúnia será criticada, xingada e escrutinada por homens radicais, o sacerdote da igreja e o comandante da polícia.
O filme da diretora da Iugoslávia Teona Strugar, escrita por ela e por Elma Tataragic, consegue estabelecer uma maravilhosa ideia em seu início, que permite a discussão de até quando tradições religiosas ainda são pertinentes e o quanto elas devem influir em um Estado secular (resposta sensata: nada). Toda a fúria e o alvoroço causado pelo incidente é o estopim perfeito para esses temas, principalmente se repararmos que apenas uma parcela ínfima da população realmente se preocupa com essas ninharias religiosas.
Zorica Nusheva faz Petúnia com uma energia presente em cada cena. Seu olhar muitas vezes já diz tudo que é necessário, e na maioria delas é melhor seu olhar do que seus diálogos. Ela é a alma de um filme que merece personagens mais trabalhados.
Isso não serve apenas para a protagonista, mas todas as pessoas dessa história estão servindo apenas como catalisadoras da discussão, sem estarem inseridas organicamente. As situações criadas pela dupla de roteiristas soam jogadas e conveniente em uma trama que nunca consegue manter a tensão inicial do filme.
De qualquer forma, "Deus é Mulher..." demonstra que é possível pegar temas batidos e fazer uma reciclada a partir de novos cenários e situações. E mais importante que isso é saber desenvolvê-la em algo que permaneça em nossa memória, e não seja esquecido cinco minutos após a projeção, como é o caso.
O diretor palestino Elia Suleiman encontrou uma maneira divertida de mostrar ao mundo as diferenças da visão de um cineasta do resto de nós, mortais. Em O Paraíso Deve Ser Aqui ele próprio é o protagonista, vestido como costuma se vestir, e observa da varanda de sua casa as situações do dia-a-dia, mas que através de suas lentes saem muito mais atípicas do que estamos acostumados a interpretar.
A brincadeira segue uma dinâmica simples: vemos Elia obervando algo à sua frente enquanto está sentado na calçada de uma cafeteria, ou em sua casa, ou no portão de sua casa ou, na segunda metade do longa, viajando por Paris e Nova York. Enquanto vemos o observador, nossa mente já se prepara não para o que ele está vendo, mas a forma que ele está vendo.
Pessoas nesse filme se comportam de maneira diferente do que há na realidade. Um homem na frente dos policiais toma um refrigerante e estilhaça a garrafa na parede. Enquanto isso, cinco guardas escoltam uma senhora que se arrasta pela plataforma do metrô de Paris. E em Nova York, na companhia de Gael García Bernal fazendo ele mesmo, acompanhamos uma anedota sobre como um estúdio americano quer filmar a conquista espanhola com atores falando inglês. E, infelizmente, isso pode muito bem não ser mentira.
"O Paraíso Deve Ser Aqui" é uma visão peculiar e divertida da mente de um criador enquanto este vive situações do cotidiano, montadas com muito esmero. Cada cena é belíssima, um verdadeiro quadro, pincelado da realidade que a maioria de nós não enxerga. Mas está ali. Pelo menos vamos acreditar no diretor.
Nas últimas 72 horas este é meu décimo-quinto filme e texto da Mostra de São Paulo, mas O Relatório não me cansou em nenhum momento pela história que quer contar. O que me desanimou profundamente foi constatar que estava assistindo a um documentário político em forma de ficção com uma das escalações mais inúteis que tenho memória.
Seu protagonista é interpretado por Adam Driver porque ele é um astro em ascenção (mais ainda depois que se tornou vilão em Star Wars), mas não porque este é um papel para ele. Sua atuação é inexistente, mas não é sua culpa. Driver não foi feito para fazer um funcionário público com motivações de investigar milhares de horas de depoimentos documentados pela CIA para descobrir por que eles apagaram 20 horas de vídeos de seus arquivos. Este filme não é Snowden, e Scott Z. Burns não é Oliver Stone.
Após nos dizer que esta história é baseada em depoimentos e registros da CIA, o filme nos introduz com um Daniel Jones (Drive) aparentemente sendo incriminado por desviar documentos da agência de investigação americana após ter se dedicado por ininterruptos cinco anos de pesquisa de um escândalo envolvendo torturas realizadas após o ataque terrorista às torres gêmeas. O filme irá voltar para este mesmo ponto em seu terceiro ato, mas com uma desonestidade incrível refilmado em outro tom, como se não tivéssemos percebido a mudança. E esta aparentemente é a grande reviravolta do projeto, fora o fato de nos créditos finais sabermos também que o filme inteiro é baseado em um artigo de jornal.
A primeira meia-hora de O Relatório pode ir de tedioso a insuportável, dependendo da paciência do espectador. Acompanhamos o início dessa investigação de Dan Jones e seu desenvolvimento ao lado da senadora que o propôs (Annette Bening, desperdiçada). Vamos aos poucos sendo apresentados aos outros personagens de ambos os lados desta história e para o outro lado é escalado Michael C. Hall (da série Dexter) como uma cara conhecida para lembrarmos qual o outro lado, que irá dizer alguns diálogos inúteis em um personagem que sequer conseguiremos nos lembrar a cada nova cena em que ele aparece.
Porém, após essa meia-hora e a descoberta de um elenco inusitado (para dizer o mínimo) a trama começa a engrenar. Nós não entendemos praticamente nada do que aquelas pessoas estão falando, mas a própria dinâmica que o filme introduz se torna ferramenta importante para aos poucos conseguirmos interpretar o resto do filme. E aí a história fica interessante. Não instigante, nem empolgante, pois não há tensão alguma por não sermos apresentados a nenhum protagonista com conflito construído. Adam Drive só está aí para ser uma das caras conhecidas e aumentar ou diminuir o tom de voz dependendo do estado das investigações, mas até o que ele fala é intraduzível. Apenas seus esforços é que são compreendidos e os obstáculos que ele encontra no percurso. Que é o suficiente para nos interessarmos.
O Relatório pretende ser um filme de investigação política empolgante como Snowden e tantos outros que o precederam. Ele se baseia em fatos documentados da história recente americana e possui um pano de fundo apelativo o suficiente para ser relevante. Um fã da série House of Cards daria por satisfeito em 80% do filme, pois ele lida com detalhes legais e conflito político interno. Já um fã da série 24 Horas provavelmente já desiste na primeira meia-hora. Esse começo provavelmente é o verdadeiro muro que separa leigos dos aficionados pela Casa Branca.
# Partida
Caloni, 2019-10-23 cinemaqui mostra cinema movies [up] [copy]Eis que me preparo para mais uma sessão da 43a. Mostra de São Paulo e chega um homem de microfone na frente da tela, junto de mais meia-dúzia de pessoas. Ele comenta que se chamar toda a equipe para descer até ele o cinema vai esvaziar. São 13:30 e das 200 poltronas da sala umas 40, no máximo, estão ocupadas. Ele se apresenta e apresenta o projeto: essa trupe de colegas e amigos após as eleições do ano passado fretou um ônibus e foram se encontrar com o ex-presidente do Uruguai, o Mojica. E eis que 6 dias depois (tirando a pós-produção, claro) surge Partida, um filme pré-boteco, daqueles que você vê para depois ir pro bar começar uma discussão política.
Muitas horas foram filmadas pelos dois cinegrafistas do projeto, e Caco Ciocler realizou o trabalho mais difícil: editar todo o marasmo de uma viagem dessas para os momentos mais interessantes. E esses momentos giram em torno das conversas de duas pessoas com visões políticas opostas. Uma delas é Georgette Fadel, auto-denominada no filme de comunista. Vou considerar que ela estava montando um personagem.
Através de estereótipos que todos nós conhecemos a respeito de esquerdistas e direitistas (ou talvez não, podem ser pessoas reais), Partida nos leva para um road-movie (ou road-doc) que a diversão é observar como era divertido acompanhar discussões políticas entre os amigos no bar. Era divertido. Há muito tempo que as amizades foram desfeitas.
Este é um documentário necessário? Com toda certeza que não. Mas ele é ruim? Nem um pouco. É uma história até que coesa, e que tem Georgette, que é uma diversão à parte. Ela é o tipo de mulher inteligente, enérgica, que possui opiniões fortes, mas que não deixa de ser uma pessoa interessante para bater um papo no bar. Era o que eu faria se não tivesse uma próxima sessão assim que o filme acabou. Bom, fica pra outra vez. Bar e jogar conversa fora são duas riquezas que não faltam em solo brasileiro.
Amazing Grace é o resultado das horas gravadas de duas noites em uma igreja em Los Angeles pela Warner Brothers. Quem eles gravam? Ninguém menos que Aretha Franklin, uma das maiores cantoras que já pisou na Terra. De volta às origens, ela canta Gospel não como um anjo, mas como uma força da natureza vinda para o bem. Ela representa tudo o que podemos esperar de uma cantora completa.
Não sei se Deus existe, mas sei que se Ele existisse sua porta-voz nesse mundo seria Aretha Franklin. Com ela cantando qualquer um se convence dos milagres da natureza. Aqui ela canta músicas que exigem tons altos e baixos, e Franklin dá conta de todas elas, emocionada ou não. Não são músicas famosas para quem não é evangélico, talvez nem sejam tão boas assim. E ainda assim Aretha transforma em um dos melhores álbuns que já se ouviu.
Gravado em 1972, nunca foi finalizado por problemas técnicos. Até agora, e está em exibição na Mostra de São Paulo. Portanto, arrume uma sala com bom sistema de som, pois é o som que deve suportar todos os tons que essa cantora é capaz.
É um filme (ou um show, se quiser chamar assim) emocionante? Pode ter certeza que alguns momentos desafiam nossa razão, mas além disso ele é tecnicamente impressionante. Embalado nisso temos o lado religioso, mas olhe para as pessoas do coral indignadas com tamanha a qualidade na voz de Aretha, e a forma com que o Reverendo, que faz uma ótima apresentação, fica ao lado dela. Não há demonstração tão genuína. Qualquer um que estivesse presente em qualquer uma daquelas duas noites estaria reagindo da mesma forma.
A potência da voz de Aretha é um presente do universo, mas sua técnica e sua emoção são o toque final que tornou possível este fenômeno. A cantora que havia estourado todos os recordes musicais em sua época volta às origens. E nunca é demais ouvi-la mais uma vez. Este filme comprova que músicas são detalhes para cantores de sucesso.
Tempos difíceis geram homens fortes; homens fortes geram tempos fáceis; tempos fáceis geram homens molengas; homens molengas geram tempos difíceis. "Dinamarca" é uma história que se passa em nossos tempos difíceis e com um de seus homens molengas, um homem que não fará nada a respeito de sua própria vida exceto tentar se manter sendo servido por alguém.
Contado como uma comédia que vai se tornando dramática, o roteiro por Jeff Murphy começa contando a história de Herb (Rafe Spall), um homem que perdeu seu benefício de saúde por não estar mais doente. Com inteligência limitada, Herb não se lembra qual foi a última vez que tinha um emprego. Não por acaso, ele tem um filho que não mora com ele e o ignora. A única coisa boa que aprendemos deste homem é que aparentemente ele conserta qualquer eletrodoméstico, quase como que por mágica.
A atuação de Rafe Spall é uma melodia de uma nota só chamada melancolia; ele olha para a câmera em dois ou três momentos do filme porque seu diretor, Adrian Shergold, não tem a menor noção de como conduzir esta trama. Já o texto de Murphy vai nos levando conforme a correnteza nos diz onde deve ir. Depois de uma série de acontecimentos que não movem em nada o filme, Herb vê uma propaganda paradisíaca sobre os presídios na Dinamarca e resolve ir para lá ser preso. Devemos ficar tristes por ele? Esperançosos? Refletir sobre a incompetência de toda uma geração representada em figuras como Herb?
É aí que a comédia vai aos poucos e sem muito aviso se transformando em um drama, mas nunca nos entrega um herói. Herb é apenas como um bebê chorão e perdido, que ninguém lhe dá oportunidade porque ele próprio não se dá, além dele se esquecer do princípio básico da vida que oportunidades não são dadas, mas conquistadas. Este filme pode ser visto como a ode do sistema contra o homem comum, sendo que o triste de tudo isso é que Herb é o exemplo que temos hoje de homem comum.
Sem conseguir se desvencilhar do fato de não ter alguém por quem devamos torcer, Dinamarca permanece eternamente como um filme morno, onde as coisas vão acontecendo porque sim, e em seu terceiro ato coincidências irão acontecer porque o filme precisa acabar. É sobre aprender uma lição, mas a história se arrasta demais para aprendermos algo. Exceto que Herb é de fato bem incompetente na vida.
Não me Ame é cinema experimental, e eu admiro isso. Porém, seus símbolos vão se multiplicando a cada diálogo em um ritmo indecifrável, e isso não tem perdão.
Brincando em espanhol com uma história de guerra no estilo invasão do Iraque misturado com o folclore bíblico, a ideia concebida por Sergi Belbel e Lluís Miñarro (dirigido por este último) nunca foi uma coisa boa, nem no começo, quando filmes como Cães de Aluguel e diretores como Kubrick são citados. Referências do diretor? Espero que não, ou isso quer dizer que nas aulas de cinema da atualidade os rolos de filmes são mais cheirados do que vistos.
Mas falando, agora, sobre a história desse filme me veio à memória alguns de seus momentos. Quase todos sensuais. Sua protagonista é a filha do general, Salomé, que é bela e se encanta com o prisioneiro de guerra que seu pai mantém escondido em uma caverna.
Ele é chamado de profeta, preso em cavernas subterrâneas e não falando coisa com coisa. Há um acampamento militar ao lado, onde se bebe vinho e se fala sobre filosofia. Em um futuro muito presente, os poderosos do mundo acertam como em um contrato qual será a próxima guerra entre eles. Qualquer semelhança com a realidade foi expurgada do filme, que não faz o menor sentido.
Mas as cenas são bonitas. A fotografia também. Sei de pessoas que só por isso já falariam que este é um filme de respeito. Os cenário, teatrais, cumprem seu papel onírico, cercando personagens movidos por impulso. Podemos estar acompanhando fragmentos ligados no espaço-tempo. Vai saber... melhor não.
Love Me Not é sobre a perdição do cinema americano. Ele pega desde as séries, apresentando os atores como se fizessem parte de uma, para saltos temáticos que existem apenas como provocação vazia ao espectador. É uma aposta, como todo filme experimental. Porém, ter uma direção de arte, figurino, fotografia e edição impecáveis em um filme desses... isso não tem perdão.
O Pai é um filme que vai se percebendo o drama aos poucos. Ninguém está narrando a história, então você terá que acompanhar os detalhes pelos diálogos. E depois de um filme inteiro, sua última frase ressignifica tudo o que havíamos visto anteriormente.
A história é simples: Pavel (Ivan Barnev) precisa urgentemente voltar para seu trabalho e casa após o enterro da mãe, mas seu pai, Vasil (Ivan Savov), está agindo estranho e precisa da proteção do filho nesse momento frágil. O filme gira em torno do filho tentando se livrar do pai sabendo que ele está seguro, e talvez o ponto mais fraco do longa, é óbvio que seu pai não estará seguro por boa parte da história.
Este é um trabalho em conjunto de dois diretores e roteiristas búlgaros Kristina Grozeva e Petar Valchanov. Ambos estudaram na mesma academia de cinema, e já trabalharam em vários projetos. Eles realizam uma comédia de situação que se transforma em um drama sem ninguém forçar nada no roteiro. Acompanhar a história é tão natural que parece fácil chegar nesse nível de fluidez.
E isso porque há vários elementos que são iniciados e vão sendo explorados em paralelo. O mais tocante é o pedido da mulher de Pavel: trazer uma geleia caseira de um sabor específico. Esse pedido vai sendo realimentado pela história em vários momentos que soam naturais -- uma cena em uma delegacia parece o ápice dessa piada, mas não termina por aí -- e é justamente isso que torna "O Pai" um filme que vai te levando sem você nem perceber direito.
Os Olhos de Cabul veem tudo, menos que se está falando francês em pleno Afeganistão. Essa animação ganhou o prêmio Um Certo Olhar em Cannes e agora está sendo exibida na Mostra de São Paulo. Uma viagem honesta e sutil de uma realidade crua de uma sociedade tomada pela opressão e violência, mas que vez ou outra surgem seus heróis.
Mas esses heróis estão acabando. As pessoas aprendem o status quo por repetição. Crianças já se divertem jogando pedras onde um cachorro bebe água ou jogando futebol com cordas de enforcamento na trave. Por mais bons que sejam, homens vivendo nesse ambiente se corrompem lentamente. A história contida aqui mostra um pouco desse processo.
Começa com um apedrejamento. Um ex-professor de história, enquanto assiste à barbárie sendo ocorrida em local público, de maneira mecânica lança também a sua pedra. Ele não sabe por que, mas ele realiza a ação, e logo depois a ideia do que acabara de fazer o assombra.
Sua mulher é uma desenhista, e é claro que não pode fazer nada exceto se trancar dentro de casa. Antigamente o casal ia de mãos dadas na livraria, ou até no cinema da cidade, agora em ruínas. Há uma sequência particularmente tocante que faz a transição das duas épocas. Essa mulher acredita em um futuro melhor e claramente é quem torna aquele homem transtornado um ser humano melhor. Mas isso tem prazo de validade. A moral imposta pela lei muçulmana da Sharia é impetuosa e aos poucos entra na mente dos que resolveram continuar na cidade se Cabul.
Há outro casal no filme, mais velho e que já se encontra possuído pelos valores daquela sociedade. O filme adentra no pouco que resta de humano daquelas pessoas. Ele é o carcereiro que toma conta das mulheres que serão executadas. Ela sofre pelo seu câncer terminal, mas se mantém servil ao seu marido, cozinhando uma comida que ele não sente mais vontade de comer. No momento em que a vida desses dois casais se encontram algo mágico acontece, mas a essa altura do longa fica difícil acreditar na magia.
Os Olhos de Cabul é uma animação de traços despojados que entrega uma história simples que se revela em seus detalhes a sua mensagem. Ela não procura exaltar seus poucos heróis, mas demonstrar como eles ainda são possíveis. E nos faz pensar até quando será possível.
Fermín Perlassi, personagem de Ricardo Darín, acaba de explicar seu plano de empreender em uma cooperativa local onde a economia da vida de vários moradores servirão para o início do projeto. Ele termina dizendo a famigerada pergunta retórica "o que pode dar errado?", e duas linhas de letreiros "respondem", uma após a outra, deixando claro que A Odisseia dos Tontos não poderia ter um título melhor. A primeira linha: Argentina. A segunda linha: agosto de 2001.
A primeira linha já assusta ou faz rir de nervoso, pois a Argentina é o país conhecido internacionalmente por sua economia ligeira: quebra a cada década. A segunda linha, mais técnica, indica que estamos às vésperas do que acabou ficando conhecido como Corralito, uma menção à clássica corrida aos bancos que ocorre sempre que a liquidez dos depósitos de seus clientes está em xeque. O mesmo aconteceu nos moldes brasileiros na época do governo de Fernando Collor, quando houve o confisco das poupanças de todo o país.
Mas este não é um filme como A Grande Aposta, que quer ensinar ao espectador conceitos complexos de economia, pois ele se atenta apenas ao básico necessário para entendermos que aquela pobre gente foi enganada em um jogo que nunca poderiam ganhar. Porém, assim como o filme de Adam McKay, este também fala sobre crise moral, e de onde emergem os heróis, no caso os tolos, que têm todas suas economias confiscadas e irão à forra pegar o que lhes é de direito.
Baseado no livro de Eduardo Sacheri, "La Noche de la Usina", o filme dirigido e escrito por Sebastián Borensztein começa com o clímax do final para em retrospecto contar sua história no estilo filme de roubo, onde cada passo será explicado e cada obstáculo ultrapassado. Ele é didático, pois lida com problemas da vida real, onde abrir o cofre não é tão difícil quanto impedir que seu dono descubra.
O pano de fundo justiceiro usado para justificar as ações dos seus heróis não poderia ser mais enfatizado. A gangue montada é de pessoas simples, pacíficas e sem intenções de tornar aquilo uma carreira. Há uma perda do personagem de Darín, o que entrega um certo peso dramático ao personagem, mas que nunca é explorado direito, apenas contando como agravante. O vilão do filme, um advogado, além de ter uma profissão tradicionalmente odiada por todos, ainda é ganancioso, materialista, mau-caráter e explosivo. Não há nuances de nenhum dos lados. Esta é a vingança dos argentinos da classe-média, explorados sempre que possível, dos párias que exploram o sistema econômico de seu país.
# Andrey Tarkovsky: Uma Oração de Cinema
Caloni, 2019-10-26 cinemaqui mostra cinema movies [up] [copy]"Andrey Tarkovsky: Uma Oração de Cinema" é o documentário dirigido pelo filho de um dos mais importantes cineasta da história do cinema. Sim, o filho dirige seu primeiro longa, e é sobre o pai. Apenas isso já deveria chamar sua atenção de cinéfilo, mas se não fez efeito talvez nem o resto desse texto faça.
Tarkovsky (Andrei Rublev, Solaris, O Espelho, Stalker), podemos dizer sem inventar nada, foi um poeta da sétima arte. Seus filmes são recheados de longas introspecções sobre o homem e a natureza, em busca da essência de ambos. Filho de um dos poetas mais relevantes da literatura russa, Arseny Tarkovsky, logo se vê que esta é uma família em que a arte respira através de versos, sejam escritos ou visuais. O neto de Arseny é um grande admirador da poesia de seu avô, e através de seus versos ele caminha através da cinegrafia do pai, ligando os pontos de sua biografia e que homenageiam suas origens.
O filme de Tarkovsky neto utiliza versos do avô e cenas dos filmes do pai para compor essa trajetória, não como uma simples exposição burocrática da obra de ambos, mas erguê-los aos olhos do mundo, ambos de uma só vez. O resultado é hermético demais, então ele usa entrevistas do pai sobre momentos de sua vida enquanto estava dirigindo cada um de seus filmes. Quando menos se espera estamos olhando para um "Tarkovsky by Tarkovsky", o que faz muito sentido estando tudo em família.
# El Camino: A Breaking Bad Film
Caloni, 2019-10-26 cinema movies [up] [copy]Aaron Paul é um ótimo ator, mas isso podemos dizer de qualquer um do elenco de personagens de Breaking Bad, a série mais relevante da última década da TV americana. Através da escolha de elenco e da direção coletiva de uma equipe coesa e competente em manter o design de produção da série em evidência, ainda que deixando escapar seus estilos pessoais, nós nos acostumamos a esperar nada menos do que o estado da arte em narrativas que falam de assuntos mais profundos que sua superfície pop.
Dessa forma, ainda que Paul não fosse capaz de segurar o protagonismo de seu personagem em seu episódio especial de duas horas (aka filme), a atmosfera idealizada e implementada por Vince Gilligan e sua equipe daria conta sozinho disso. E essa foi a estratégia de Gilligan em dirigir mais este episódio após o último, também dirigido por ele. Ciente de que os fãs esperam por um retorno ao que tornou Paul o Jesse Pinkman que aprendemos a amar, desde seu ar malando e sarcástico até sua ingenuidade de "ele ainda é um garoto", Gilligan é o especialista definitivo da série e também entende que são as interações com determinadas pessoas que moldaram quem Pinkman se tornou no último episódio, e com isso o autor da série consegue dizer para onde esse agora homem irá a seguir.
E como apenas contar o final estendido desse personagem seria tarefa para um curta de quinze minutos, o que Gilligan faz é unir os conceitos que moldaram Pinkman em uma revisita aos momentos de interação do ainda garoto com quem o ajudou a se tornar um homem e uma trama a la Breaking Bad, com obstáculos para que o herói da vez conseguisse se livrar dos ecos de Helsenberg, em uma trama pra lá de convencional, mas que conquista pela maneira inteligente de conduzi-la, indo ao passado resgatar os detalhes não vistos que serão importantes para a história do presente.
Há saltos temporais admiráveis em El Camino por explicar visualmente o contexto das ações presentes de Jesse sem precisar de diálogos expositivos. Sabendo que nunca poderá viver sem a referência da série, mas ciente da inteligência do seu espectador, o filme abraça sua dependência sem apelar para o fácil caminho de reverência, mas mais do que abraçar, ele expande o universo da série na medida em que precisa, sem mudar mais nada para trás.
É instrumental, por exemplo, o momento que Jesse precisa entrar em um apartamento obstruído para investigação. Não sabemos o que esse lugar significa, mas assim que ele entra há um corte no passado para o exato momento que ele o conhece, junto do mesmo elemento de perigo (o vizinho enxerido), e a visita de dois policiais nos faz lembrar em como são importantes as pequenas pistas colocadas no início de uma cena para identificarmos em seu final que não fomos enganados, apenas levados pelo momento (pista e recompensa).
O filme entrega alguns easter eggs divertidos para os fãs da série (meu favorito é a Bola de Cristal com Todd e sua "amada"), mas seu maior presente são as interações com os personagens do passado. Em particular com uma cena inusitada, quase descartável, mas ainda cabível, com Walter White. Nesse flashback eles estão no início de sua aventura de cinco temporadas, mas a cena foi filmada para o filme. A maior surpresa e satisfação nem é vê-los juntos mais uma vez, mas constatar através das diferenças de seus personagens no início da história em como Bryan Cranston e Aaron Paul são de fato ótimos atores, que se transformaram pelo bem da série, e essencialmente, pelo bem da arte.
# O Mês Que Não Terminou
Caloni, 2019-10-26 cinemaqui mostra cinema movies [up] [copy]Entre as dezenas de documentários que surgiram sobre o momento político do Brasil, "O Mês Que Não Terminou" é finalmente o que entendeu a maior dificuldade em traduzir esse momento para os dois lados que o país se dividiu: empatia.
Os cineastas Francisco Bosco e Raul Mourão conseguiram unir racional e emocionamente a dupla narrativa que evoluiu de maneira paralela e interdependente nos últimos anos no Brasil, as chamadas esquerda e direita. Se até o momento o que havia surgido nos cinemas brasileiros foram tentativas infrutíferas de tentar defender esse ou aquele lado (e não irei aqui dizer quem é esse nem quem é aquele lado), o trabalho de Bosco/Mourão pega nas mãos das duras frentes e ensina uma à outra o caminho da compreensão: ouvir o outro lado.
Com o pano de fundo da narração de Fernanda Torres de um texto milimetricamente ancorado em uma fala sóbria e equilibrada, vamos acompanhando a história recente do Brasil através de gravações de protestos e imagens de notícias e pessoas ligadas a esta história. Economistas, cientistas políticos e psicanalistas (?) são chamados para amparar a argumentação de ambos os lados para cada evento significativo. Há uma tentativa honesta de explicar um fenômeno pra lá de complexo.
Sua introdução é instrumental pelo tom de baixar as armas e dar créditos a ambos os lados por explicações válidas para a realidade que vivemos, seja no âmbito econômico ou social. É apenas a partir desse cessar fogo que o filme se faz possível, e explicações mais elaboradas começam a ganhar corpo, e o espectador tem a chance de poder entender não apenas o lado que ele defende, mas principalmente o outro.
"O Mês Que Não Terminou" é mais do que focar no equilíbrio de opiniões. É um mergulho intelectual denso que busca iluminar os obstáculos que vivemos hoje para a compreensão do outro, e assim, quem sabe, podermos finalmente darmos as mãos novamente, e retomar aquela amizade perdida por briga de política.
É um sentimento profundo, que vai além da razão, testemunhar uma floresta ser devastada. Árvores caindo ao movimento de um trator e a fumaça denunciando um incêndio não muito longe dali marcam o início de O Que Arde, terceiro filme do diretor Santiago Fillol escrito pelo seu parceiro usual, Oliver Laxe, e ambos não deixam fácil extrair algum significado disso tudo.
Amador Arias faz Amador Coro, um homem que acabou de cumprir a sentença de dois anos por iniciar um incêndio criminoso. Ele não é exatamente bem-vindo na cidade onde vivia, mas retorna para morar com a mãe e três vacas em uma vida serena no campo, não nos deixando perceber que este homem é um criminoso, o que nos faz pensar como é que um crimoso deveria ser. Sua mãe, que leva o mesmo primeiro nome de sua intérprete, Benedicta Sánchez, nos faz pensar como o roteirista Oliver Laxe não está interessado em criar personagens, pois sequer lhes dá um nome diferente para o elenco. Sánchez, é necessário dizer, também não se comporta como a mãe de um criminoso.
Quando o filme de Santiago Fillol nos entrega essa relação mãe e filho no campo e sabemos o que o filho pode ter feito -- não há uma relação causal na história que nos permita afirmar convictos disso -- o que ele está fazendo no fundo é usar a tensão inicial de árvores sendo derrubadas para sequestrar 100% de nossa atenção para o que virá, mas o que vem é a rotina completamente banal dessas pessoas, onde ações como esquentar o pão da manhã usando o fogo do fogão a lenha ou dizer algo contra os eucaliptos não é suficiente para apontar dedos.
Ele também evita usar o caminho contrário, mostrando como Amador é um filho atencioso ou carinhoso, e por isso suas ações passadas estão no passado. Entender um ser humano apenas através do pouco que conhecemos dele nos torna os piores juízes possíveis.
O Que Arde, por ser tão banal, acaba se tornando insuportável para a maioria dos espectadores. É uma história reta e sem emoções, mas estamos acostumados a nos chacoalhar no cinema, e acompanhar o tratamento de uma vaca enferma pode não ser o tipo de diversão que valeria um ingresso. No entanto, se o que busca é uma outra visão de aspectos mais internos do ser humano, como a questão da moralidade e da convivência em sociedade, este é um filme que lhe entrega justamente isso. Questões complexas são o combustível para pensar, e assistir um filme desses pode acender o pavio.
Pablo está com um problema, e sua família se reúne para ajudá-lo. Quem não sabe da sinopse de Tremores pensa se tratar de um filme sobre vício em drogas pesadas, mas quando se revela a homossexualidade do protagonista, entendemos que o filme de Jayro Bustamante expõe a ferida, a vergonha e a irresponsabilidade humana das religiões cristãs de vertente protestante.
Vindo de uma família cristã tradicional (e rica), o personagem interpretado por Juan Pablo Olyslager corre o risco de virar tema de melodrama sobre um escândalo extraconjugal gay, mas a sobriedade com que Jayro Bustamante conduz a história mantém sempre em foco o tema da intolerância, que assume contornos tão doentios que podem ser confundidos pelos mais esclarecidos como estupidez ou cegueira religiosa. O mais icônico de tudo é entendermos que o próprio Pablo está em dúvida, mas não é difícil termos essa percepção, afinal ele foi criado sob os mesmos valores.
De qualquer forma, as caricaturas por trás dos personagens de Tremores estão sempre na corda bamba para virarem inverossímeis ou apenas manipuladores. O amante de Pablo, apesar dos hormônios masculinos bem ativos, é bondoso e compreensivo demais com a situação de seu companheiro. A mãe de Pablo é uma maquiavélica fácil de se traduzir, e antes de virar uma ameaça para a felicidade do filho acaba virando alvo de deboche. A jovem esposa de Pablo, alheia à realidade em sua volta, é uma pessoa impossível de existir.
Conforme acompanhamos os conflitos resultantes do roteiro de Bustamante nos damos conta da fragilidade de seus personagens, mas o longa ganha um ritmo novo em seu terceiro ato, quando testemunhamos descrentes os métodos de tratamento utilizados pela igreja. Sem entrar em detalhes, digamos que reunir homens gays para tomarem banhos todos juntos a princípio não me parece uma boa ideia de mantê-los longe do pecado.
Filmes independentes como esse do diretor estreante Josef Fares podem ter muitos defeitos na produção que soam ridículos na tela. Um ritmo esquisito, cortes abruptos, péssimo casting, posição da câmera de vídeo caseiro e trilha sonora brega. Diferente das produções caras, de estúdio, com grandes astros, não há muito a perder, exceto a reputação de seu diretor, que a essa altura da carreira está próxima de zero.
Então surge essa comédia divertida e sem pretensão de se tornar algo memorável (não que uma coisa tenha a ver com a outra). É um filme feito para que Fares exerça o seu estilo, produzido com seus familiares e amigos para rirem juntos do resultado final. Ele depende do estado de espírito de seu espectador, que não pode se levar muito a sério. Apenas absorva o ridículo da edição sem ritmo, dos zooms exagerados, dos sons de comédia pastelão e curta um ensaio sobre como fazer filmes após a faculdade.
Fares é um libanês que imigrou para a Suécia aos 10 anos de idade com a família, mas não parece muito interessado em esclarecer nenhuma das duas culturas, mantendo sua exploração de temas ao nível de novela. Temas como casamento arranjado e impotência sexual são desculpas de programa de humor para que seus personagens, garis que folgam o tempo todo, saiam da inércia e busquem resolver os problemas que acabaram de surgir em suas vidas.
Quando a narrativa tende a esfriar, o inexperiente Fares coloca todo mundo para brigar ou correr. Ou os dois. A trilha sonora frenética surge como em uma tentativa risível de imitar os mestres da edição de sua época. Como um Guy Ritchie em "Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes" sem alguns milhões para gastar, Josef Fares é influenciado, mas não consegue influenciar. No máximo terminar seu trabalho de conclusão de curso.
Está resolvido o mistério de por que havia tanta preocupação com spoilers vindos dos irmãos Russo, diretores do filme, a respeito de "Vingadores: Ultimato". O clímax desse longa metragem de 3 horas e 1 minuto precisa ser visto em primeira mão, sem nenhum amigo te dizendo o que vai acontecer, porque de outra forma toda a magia construída ao longo desses incontáveis filmes não será a mesma. E se você, fã da Marvel, concorda com o que acabei de dizer, deve concordar também que revisitas a este filme serão inúteis, pois o efeito supostamente catártico que seus idealizadores imaginaram para o grand finale só pode ser aproveitado uma vez apenas, sem spoilers, e isso quer dizer que se você foi correndo assistir à segunda versão lançada logo depois nos cinemas para arrecadar os últimos milhões que faltavam para a quebra do recorde de bilheteria mundial (sem correção inflacionária), deve entender que não foi para seu próprio prazer, pois não ganhou nada além do que já viu. O seu prazer implícito não estava ligado nem à arte nem ao entretenimento, mas em prestar um serviço financeiro a uma corporação que detém a grande maioria do mercado mundial de fantasia, o verdadeiro monopólio de blockbusters deste século, um gigante que em processo semelhante aos Vingadores do filme, também se formou a partir da montagem de vários outros gigantes, um a um, dando origem ao momento que menos requer imaginação nos incríveis efeitos digitais que invadem nossos olhos na telona dos cinemas.
A aventura idealizada por tantos roteiristas e diretores é um capítulo inédito na indústria. Nunca tantos bilhões se moveram para empreender tamanho parque de diversões para adultos consumidores de quadrinhos e todos os seu derivados. Quer dizer, os leitores de HQs foram os primeiros a monetizar essa empreitada, mas com apenas eles não seria possível continuar fazer jorrar a cornucópia mágica de dinheiro. Dessa forma, novas atrações foram sendo incluídas, primeiro em uma mídia, depois na outra, às vezes em ambas, com o objetivo de aumentar o leque de fãs. É a inclusão social do gênero fantasia. Agora há super-heroínas lado a lado com a masculinidade tradicional dessas obras, apelos aos valores familiares de alguns personagens, conceitos de amizade no estilo My Little Pony enfatizados... esse estilo de amizade tem um grande atrativo, pois ele não requer muita afinidade entre os personagens. Alguns, como Tony Stark, podem no início querer apenas fama, dinheiro, poder, mas aos poucos os princípios de cada super irão convergir para o bem em comum, seja pela própria natureza da história ou porque algumas mudanças na personalidade podem ocorrer em um nível subconsciente, porque no fundo quem é fã desse universo precisa que isso seja verdade. A mensagem implícita dessa convergência nunca pode ser cínica como o mundo real. Ela precisa estar contida na mesma bolha que o mundo dos pôneis: "Nós, fãs da Marvel, somos inclusivos, então todos os supers vão ser super-amigos". Por um simples motivo óbvio: mais heróis na mesma produção gera mais espectadores, fãs deste ou daquele herói, na fila comprando ingresso. Super-heróis podem ter suas diferenças de vez em quando, porque é divertido vê-los brigar por alguns minutos; mas, no final do round, a amizade vence. Porque a amizade é mágica.
E é por isso que a partir da primeira parte do filme, onde todos dão as mãos por um bem comum, fica fácil imaginar um mundo onde, apesar da metade da população mundial tenha sua existência exterminada, em meio a um caos social que se estendeu por cinco anos, esses super-amigos arrumem forças para lutar novamente na última esperança que lhes resta. E se não for isso, não haverá salvação. E, coincidência, eles têm a poção mágica contadinha que irá dar essa última chance a esses protótipos de Superman. Digo protótipos porque são necessários vários deles para combater o mal, mas todos eles possuem o gene da retitude moral. E, diferente da época que Christopher Reeve alçava voo, nenhum deles segue mais a ordem e a justiça defendendo os valores americanos. Não fica explícito isso, mas se entende o recado conforme a figura de Capitão América é posta mais e mais em escanteio. É a derrocada dos Estados democráticos e a vinda da super-heroína, que vende melhor e tem marca registrada: Capitã Marvel®. Ela corta o cabelo do jeito que ela quiser e ainda fica linda e brilhante. Ela é o ser mais poderoso junto do mega-vilão Thanos, mas é tão poderosa que só ela pode decidir intervir no destino da humanidade e do universo. Ah, e caso esteja se perguntando, não, ela não precisa depilar as axilas. Não que alguém se importe.
Os aspectos técnicos sequer precisam ser exaltados tamanho o capricho da pós-produção. E esta é uma aventura que divide bem seu tempo entre diálogos que amarram as tramas de aventuras passadas e entregam um pouco de conforto à despedida dessa fase que saberemos que irá ocorrer assim que terminar este filme, e a ação que estamos todos esperando, onde finalmente vemos o/a nosso/a super favorito/a dando umas porradas nos vilões com roupas monocromáticas para fácil detecção e sem rostos humanizados para serem assassinados sem qualquer remorso (e sangue). Muitos compararam os 2 minutos dessa batalha épica com o final da trilogia nos cinemas O Senhor dos Anéis, o que nos diz mais sobre o espectador de hoje em dia do que sobre esses dois filmes. O espectador de hoje enxerga um significado essencial equivalente entre a batalha entre super-heróis cujos poderes relativos são sempre difíceis de estimar e cuja bússola moral está permanentemente apontando para "Amizade é Mágica" como um mantra mal elaborado para jovens mal resolvidos, e uma batalha que reúne com grande esforço diferentes raças lutando pela chance de sobrevivência de seus povos em paz e sem escravidão. Não é nada justo colocar na mesma balança a maldade visceral e causadora de sofrimento real que define a figura de Sauron com um ser extraterrestre grande e roxo cuja única ambição é destruir para construir, uma filosofia tão profunda quanto os livretos de auto-ajuda de Augusto Cury.
"Vingadores: Ultimato" entrega com louvor o que ficou devendo para seus fãs, mas para o cinema ele deixa um gosto ruim na boca. Às vésperas do final necessariamente feliz, ainda que às custas de um sacrifício ou outro que soa como término de contrato com alguns dos atores de mais longa data, o sentimento geral, que entende filmes de super-heróis como uma pequena parte da vasta possibilidade da arte, mas ainda arte, é um certo receio de que a próxima fase do Universo Marvel não seja tão diferente do que acabamos de ver nos últimos 11 anos. Uma vez que a bilheteria continue respondendo, não há motivos comerciais para se alterar o modelo de sucesso de seus filmes-capítulos, e a única responsabilidade que os chefões da indústria possuem no momento é entregar mais ossos ao público cativo, seja pelo bem da diversidade, protagonismo de minorias, levante contra microagressões ou qualquer moda que estiver ganhando volume de massa, que se traduzirá em novos recordes de bilheteria. Espero que esteja errado, e que este seja um final de um projeto ambicioso. Feliz ou não, mas um final.
# O Paradoxo da Democracia
Caloni, 2019-10-28 cinemaqui mostra cinema movies [up] [copy]O problema de documentários como O Paradoxo da Democracia é o mesmo que o youtuber Pirulla enfrenta sempre quando ele critica a divulgação de teorias da conspiração e informações anti-científicas: as pessoas misturam mentiras e verdades em um mesmo pacote, e como existem algumas verdades embutidas no discurso conspiratório fica mais difícil desmentir a parte falsa sem desmoronar todo o frágil edifício construído em torno da teoria. E no caso do trabalho documental de Belisario Franca e Pedro Nóbrega, se torna uma tarefa ingrata contra-atacar a argumentação falaciosa usada contra o que pessoas de esquerda adoram chamar de neoliberalismo. Essa mania é universal na política, não importando o lado: inventar neonomes para conceitos mais antigos.
Neonomes são a maneira escolhida em nosso tempo como ataque verbal de um lado para conseguir se posicionar como um intelectual informado e ciente do quão nocivo é o outro lado. Comportar as versões do século 21 da direita e da esquerda na política exigem reciclagem de termos, já que o próprio filme começa afirmando, através da voz de um entrevistado, que sempre haverá o que chamamos tradicionalmente de direita e esquerda. E ele define de maneira rica e direta cada um dos lados, o que faz surgir a dúvida: por que os próprios documentaristas responsáveis pelo filme permitem contradições gritantes dentro da narrativa?
Não é preciso pensar muito para responder. Franca e Nóbrega estão contratacando, assim como praticamente qualquer trabalho documental contemporâneo, a vitória nas urnas da direita, no Brasil e no mundo. Eles agem de maneira instintiva. Os entrevistados, cientistas políticos, economistas e sociólogos, são escolhidos a dedo para corroborar a narrativa escolhida: o capital é incompatível com as democracias modernas. E eles chamam essa narrativa de paradoxo, já que não houve ainda nenhum golpe de direita neste novo século, e os únicos exemplos recentes da História provém de países onde não há democracia ou onde houve golpes de esquerda disfarçados de democracia, como Venezuela, ou nem isso (Coreia do Norte). De qualquer forma, este filme é justamente um alerta para a possibilidade de testemunharmos movimentos extremistas e autoritários de direita, e o único exemplo que temos é a Rússia de Putin, citada no filme através dos conflitos na Ucrânia.
O Paradoxo da Democracia não nos diz nada de novo do que já está aí sendo discutido por praticamente toda a população brasileira, que desde os protestos de 2013 vem se politizado em grande escala, e a despeito das "fake news" sempre serem usadas como bodes expiatórios, a inclusão digital, como o próprio filme admite, tem grande papel nisso. Agora, se você prefere não se envolver em discussões políticas, é de esquerda, e prefere acessar um conteúdo já mastigado, este filme é um bom ponto de partida para tudo o que está acontecendo desde a crise de 2008. E se você é de direita, não irá ganhar nada, pois já deve conhecer as informações, o discurso já está pronto e você não deve mudar de lado apenas assistindo a um documentário.
Regina Casé é um colírio de interpretação para os olhos. Ela torna a caseira Madá uma representante da brasilidade pobre da periferia do Rio de Janeiro convivendo com figurões de uma família de ricaços, e isso é o suficiente para sustentar "Três Verões" sozinha, do começo ao fim.
Porém, além de Casé, a direção de Sandra Kogut de um roteiro escrito por ela e Iana Cossoy Paro é hábil em entender que ela possui uma atriz de peso muito díspare para se concentrar apenas na visão sócio-econômica do Brasil entre os anos de 2015 a 2018. A premissa básica é observarmos o que acontece com essa família de ricos e sua casa à beira-mar conforme o pai de família é acusado e preso por crimes contra o patrimônio público, mas a sacada de mestre é observarmos tudo isso sob os olhos da simples, não tão ingênua, Madá.
Madalena é uma cria direta da personagem Val que Casé também interpretou em "Que Horas Ela Volta?", um filme que lida com outras questões sob o ponto de vista da empregada doméstica de uma família de ricos de São Paulo. Curiosamente, o filme e a história são de 2015, e é como se Três Verões acompanhasse essa progressão nos anos seguintes do que é fazer parte da vida dos ricos neste novo período. Porém, Val é totalmente o oposto de Madá. Ambas são simples, mas Val é ingênua de fato, emigrante do Nordeste e grata eternamente aos patrões, mesmo que eles se desfaçam dela depois de uma vida de convívio ao surgir a menor das dificuldades.
Madá não é ingênua. Ela é empreendedora, com a visão que a vida lhe permitiu chegar. Ela tem o sonho de montar um quiosque ao lado da rodovia que chega no Rio de Janeiro, e quando o filme começa ela está arrumando um financiamento com seu patrão. Mal ela sabe que está sendo feita de laranja, e o filme tampouco se prende em explicar esses detalhes para o espectador, que anos e anos acompanhando a Operação Lava Jato já está careca de entender todo o linguajar e os procedimentos que os políticos corruptos usam para desviar a verba pública, que, como bem colocado pelo Senhor Lira (Rogério Fróes, ótimo), representante da geração anterior, um dinheiro que iria para hospitais e escolas. Mesmo que não fosse, é uma forma simples e visual de entendermos as implicações diretas da corrupção na população.
A beleza de Três Verões está em não parar a ação para explicar detalhes da trama, e focar mais na interpretação de Casé. Com isso o espectador se interessa muito mais pelo desenrolar da história que mexe com acontecimentos reais no Brasil, e que através das piadas sempre eficientes, naturais da personagem de Casé, desarma nosso senso crítico para entendermos melhor todo o contexto social em que o drama se desenvolve.
A única grande falha do filme é de fato se apaixonar por Casé e no terceiro ato criar uma cena que envolve uma equipe de filmagem na casa que captura o testemunho belíssimo de Maná sobre o seu passado. É um dos melhores momentos no cinema de Casé, digno de lágrimas e aplausos, mas ele foi inserido em uma cena descartável para a história, jogada sem se ligar ao que está acontecendo, e de maneira paradoxal soa artificial justamente pela gravidade dos acontecimentos narrados pela empregada. É uma pena um momento tão lindo ser inserido por isso, e não por fazer parte do próprio filme.
Ainda assim, Três Verões está muito acima da média dos melodramas que vemos por aí. É um filme autêntico, dirigido com a competência de quem sabe o que faz com sua atriz, que brilha quase que sozinha, mas que, considerando o gabarito de Casé para o papel, não há por quê fazer diferente.
Lemebel é trabalho da diretora estreante Joanna Reposi Garibaldi sobre o ensaísta, crônico e novelista Pedro Segundo Mardones Lemebel, um ativista político no Chile em plena ditadura de Pinochet. Sua maior conquista em toda sua vida? Ser abertamente gay nessa época.
Sim, o trabalho de Joanna Garibaldi é relevante como documentação da História, mas não, essa nem de longe é uma história que vale a pena ser vista. Garibaldi não deixa fácil para o espectador que não conhece o artista plástico/escritor, e deixa irrelevante este filme para todas as outras pessoas que conhecem e que gostariam de saber mais. Focada nas exposições que envolviam o uso do corpo de Lemebel na época que ficou conhecido, em especial suas exibições de auto-pirotecnia (botar fogo no próprio corpo), o filme é um repertório de testemunhos e imagens de arquivo sem qualquer conexão lógica.
Os testemunhos são frases do próprio Lemebel sobre como os gays estão sendo massacrados junto de todas as outras minorias, mas são frases genéricas que não dizem respeito a nada exceto sua própria visão pessoal da questão. Ele é um ativista orientado a sentimentos, não possui dados nem uma visão objetiva do que é de fato ser gay, o que nos faz lembrar a manipulação de números hoje em dia para validar a narrativa do oprimido. Quando ouvimos falar que essas vozes não são ouvidas, nos lembramos que é difícil querer ouvir vozes que estão o tempo todo berrando.
E Lemebel (o entrevistado/homenageado/documentado) tem uma resposta para tudo, desde que ele faça as perguntas. A reposta fundamental é que para se erguer minorias podem usar de violência em alguns casos. É como tudo começa, e ele dá o exemplo das primeiras feministas. Esse é um ponto válido. Infelizmente nós sabemos que origens violentas acabam gerando uma resposta, necessariamente violenta, e mais uma vez, as estatísticas são infladas de acordo com a cartilha do oprimido.
Ainda que houvesse algo de valor em Lemebel (o filme), seu conteúdo é mal trabalhado. É mais uma homenagem e menos um documentário. Uma homenagem-gay, diga-se de passagem.
Lost Holiday engana a princípio, pois lembra aqueles filmes de conclusão de curso ou independentes estadunidenses que usam como muleta a estranheza de personagens para levar uma história nem tão inspirada adiante. Porém, a estreia dos irmãos Matthews na direção (e no roteiro) aos poucos se desdobra em uma trama inteligente justamente por não se colocar em evidência. É na estranheza de seus personagens, ou em sua banalidade, que se esconde a alma de um filme que soa inseguro o tempo todo, mas que tem todas suas amarras sob controle.
Tudo começa quando Margaret, interpretada por Kate Lyn Sheil como uma versão exagerada dela mesma, visita no feriado de Natal e Ano Novo sua cidade natal, Washington (que é a cidade natal dos diretores), e por causa de suas memórias escolares arruma qualquer coisa para se divertir. Esse qualquer coisa acaba envolvendo Henry, interpretado por um dos diretores que também é ator, Thomas Matthews (do filme Trapaça), como uma versão exagerada de qualquer amigo chato que você já teve, que também está de volta, e é o único solteiro divertido afim de se divertir. Os dois passam a investigar um sequestro noticiado na cidade, e assim nós temos uma noção mais palpável de qual é a definição de diversão dessa dupla.
Vendido como road movie, mas apenas porque na maioria do tempo a dupla está andando de carro por Washington DC, nós testemunhamos as reviravoltas que vão surgindo durante esse feriado muito louco como se estivéssemos fazendo esses rolês com eles, pois esses são personagens baseados em pessoas que todos nós conhecemos na vida real. Barulhentas, cheias de piadas ruins e de se achar, é horrível conviver com extrovertidos como Henry e Margaret, mas os vendo através de uma telona é menos insuportável. E temos a chance de assistir a uma confusão que a maioria de nós nunca se colocaria.
Lost Holiday não é nada do que parece à primeira vista, e termina de um jeito que não é possível antever antes dos últimos minutos. Farejamos a novidade conforme ela vai acontecendo, e a trama se desdobra de maneira complexa demais para dar tempo de bolarmos a nossa própria teoria a respeito de um caso policial. Tudo isso acrescenta uma névoa muito bem-vinda em filmes que geralmente já têm tudo sob controle. O Lost do título (perdido) está aí realmente querendo dizer algo.
Do mesmo diretor e roteirista de A Bruxa surge O Farol, o segundo longa metragem de Robert Eggers e que zera o universo do terror, quebrando a própria quebra de expectativa do gênero e descrevendo sensações à prova de lógica. Analisar este filme usando teorias da linguagem cinematográfica tende ao fracasso. Porém, há um caminho para a compreensão, e talvez seja até uma blasfêmia dizê-lo hoje em dia: entender sobre masculinidade.
Temos dois personagens que são construídos com todas as forças por Willem Dafoe e Robert Pattinson e o conflito entre eles, que nos permite em um primeiro momento entender a camada convencional da história. Dafoe faz o velho lobo-do-mar fora do mar. Ele faz do farol que cuida seu navio, dá ordens ao seu subordinado como se fosse um pai severo, e está apaixonado pela luz que ele emite. Pattinson é o novato com um passado misterioso, cujo silêncio vale tanto quanto o falatório de Dafoe em sua interpretação, pois é assim que eles oferecem o contraste de personagens. Ambos são obviamente clichês e o filme não os esconde, mas os escancara, os explora, de todas as formas possíveis.
O que torna esse filme revolucionário é que todas as fórmulas fáceis de construir expectativa e quebrá-las usadas no gênero não servem para a compreensão do universo fantástico concebido por Eggers, onde os instintos mais primais do homem, seus desejos e medos, estão além de sua máscara social. E em uma longa escadaria que vai sendo escalada em direção à insanidade, quando descobrimos que essa máscara é impossível de ser retirada já estamos no último degrau para a loucura completa.
A cortina do teatro se abre duas vezes em O Farol. Na primeira vez temos os estereótipos já conhecidos e citados, usados para a história convencional, mas quando a cortina se abre pela segunda vez nossos esforços de decifrar os símbolos são completamente inúteis. Este não é um filme de símbolos decifráveis, mas apenas o puro terror psicológico de não saber mais onde pisar. O gênero terror foi sendo resgatado durante essa admirável década e agora está na hora de avançarmos nas fórmulas.
O resultado é esta experiência angustiante e enlouquecedora, cuja loucura está representada em seu próprio universo claustrofóbico e incerto. A tela quadrada e o preto e branco não afastaram espectadores para a cabine de imprensa, que atingiu o limite da sala, batendo filmes de super-heróis, mas apesar de Reggers ser um diretor que une arte e indústria com elegância não sejamos ingênuos. O chamariz principal é Robert Pattinson, próximo ator escolhido para o papel de Batman. O Farol, mesmo, é um filme que exige paciência, imersão e abertura para conclusões abertas, principalmente em seu terceiro ato.
Ainda assim, convido todo fã de terror psicológico e estético, movido pelo repúdio à realidade que se vive, por nojo até de si mesmo, que se abra para a experiência auto-contida em O Farol. Não é um filme fácil, mas nenhum que se propõe algo novo jamais foi.
Esta é uma história real que envolve política e a Guerra do Iraque deste século, mas está fora do timing; é um filme britânico deslocado dos assuntos do momento, como o #brexit. Além disso, seu assunto jurídico é chato, cheio de detalhes legais que precisamos aprender para entender a trama. Sua heroína é uma subalterna de um órgão terceirizado do governo, sem qualquer appealing. Seu desfecho é totalmente anticlimático, sabotando nosso envolvimento pelas últimas duas horas. E apesar de tudo isso, Segredos Oficiais é absurdo de tão bom. Tenso, comovente, claro e empolgante. Como tudo isso funciona apesar de?
Em primeiro lugar, o roteiro de Sara e Gregory Bernstein, adaptado do livro The Spy Who Tried to Stop a War, de Marcia e Thomas Mitchell, coloca uma moça chamada Katharine Gun (Keira Knightley) na frente de uma corte de alta instância, fazem uma acusação de traição do seu país, e pergunta para ela se ela se declara culpada ou inocente. Não ouvimos sua resposta, porque o filme retorna dois anos no passado, mas acostumados que estamos com esse artifício, mal nos importamos com o que ela dirá. E não nos importar com sua resposta, o filme irá nos mostrar, é um ledo engano.
Gun é funcionária de uma instituição que realiza transcrições de áudios em vários idiomas, áudios resultantes de escutas realizadas por órgãos do governo, ou na velha e precisa palavra usada antigamente, espionagem, mas institucionalizada, o que soa melhor e tem ar condicionado. Competente em seu ofício de traduzir mandarim, ela é toda politizada e chega a gritar com a TV quando vê políticos mentindo descaradamente, mesmo que esse político seja o primeiro-ministro de seu país, o que nos demonstra que seus princípios estão acima do seu governo. Por isso quando sua equipe recebe um email encaminhado por um agente da CIA montando um esquema ilegal para conseguir votos na ONU que valide o início da guerra, nós já sabemos qual vai ser sua reação: vazar este memorando para que seja publicado o quanto antes.
O filme faz de tudo para que a retidão moral de Katharine Gun fique intacta durante a chuva de acontecimentos desencadeadas por esse vazamento. Enquanto isso nós aprendemos a dinâmica entre grupos pacifistas militantes e os grandes jornais britânicos como The Observer. O roteiro dos Bernstein tem até tempo de nos informar que, além do editor do jornal já ter sua posição pró-guerra definida, possui comunicação privilegiada com o primeiro-ministro e evita publicar artigos com mais de 400 palavras. Apenas esta rápida cena é suficiente para entendermos que a opinião pública está completamente nas mãos estatais e a população sequer tem acesso ao que jornalistas investigativos mais críticos pensam sobre isso.
É nessa atmosfera em que os poderes parecem todos cooptados e o Reino Unido está prestes a se unir aos americanos em uma coalizão autoritária e sem qualquer justificativa racional na invasão ao Oriente Médio que Katharine Gun se meteu, e a personagem criada por Keira Knightley é a cidadã comum se cidadões comuns do século 21 fossem politizados e com voz ativa. E mais uma vez o roteiro dos Bernstein, com a ajuda da direção de Gavin Hood, nos manipula de forma a imaginar Katharine com essa voz ativa a todo momento. Quando a ouvimos falar, é como se estivesse discursando, pois uma música solene surge lá do fundo. A trilha sonora de Paul Hepker e Mark Kilian soa clichê pela impulsividade, mas é mais eficiente do que gostaríamos que o clichê fosse, e torna cada pequena reviravolta dos acontecimentos em um grande momento para refletir.
Todo esse esforço em soar relevante é tão intenso que mal importa que o vazamento iniciado por Katharine no fundo não altere o destino da História (o que não é nenhum spoiler, desde que você tenha acompanhado as notícias de guerra da década passada), pois é justamente pela impotência de seu ato que conseguimos enxergar o perigo que ela corre ao desafiar seu próprio governo. Mas, só para ter certeza, há uma cena em que um detetive da Scotland Yard a leva para uma salinha junto com uma advogada de defesa improvisada. Essa advogada, que cuida de casos de pequenos delitos, assessorou Katharine por esses tensos minutos para que nós espectadores tenhamos a exata noção de Davi versus Golias que se configurou.
Como que para coroar esse tenso roteiro conduzido com precisão por Gavin Hood, surge o personagem do advogado ultrarracional interpretado por Ralph Fiennes, um sujeito que se senta na outra ponta de uma longa mesa para conversar com sua cliente, depois de ter sido apresentado a ela com uns 4 metros de distância entre eles. Fiennes vive o advogado introvertido Ben Emmerson como alguém que possuía amigos dentro do governo pelo seu passado, mas que, assim como Katharine, não vendeu sua alma e manteve seus princípios intactos. O filme não precisa ter uma cena que explique a conexão entre Ben e Katharine, pois ela é mais intelectual que afetiva, tem a ver quando dois seres humanos corretos observam um ao outro, se entendem e se respeitam. E Fiennes consegue nos convencer a todo momento que apesar de possuir habilidades na arte da advocacia sua causa não está ganha, e pode muito bem não estar, e assim garante tensão por muito tempo depois que mais nenhuma novidade surge na história.
Segredos Oficiais é um filme que envolve espionagem e política em um drama moral e consegue extrair humanidade de tudo isso. Seu trunfo é uma adaptação sólida conduzida sem firulas por Gavin Hood, que se beneficia de um elenco acima da média para filmes chatos como esse. O resultado, que não é nada chato, acaba sendo uma experiência tensa, envolvente, que mastiga os detalhes para espectadores menos atentos, mas que continua mantendo um tom inteligente ao evitar perder algumas sutilezas de sua história.