Antônio Fagundes está em todas as pornochanchadas. Está nessa daqui também, que peca por pouca sacanagem e muitas divagações sociais. Antes mesmo da Ancine já tínhamos que aguentar lenga-lenga pseudo-revolucionário no meio do tchaca-tchaca. Isso, sim, é uma sacanagem sem vergonha. Pior que isso só uma aula de história.
Para produzir este filme só precisaram alugar uma casa abandonada classe-média nível ninguém-aguenta (tem uma cena com alguns deles, a dondoca fica presa em um banheiro aterrorizante). Fica do lado do Estádio do Pacaembu, zona nobre. O que quer dizer que é uma rua tranquila pra fazer filmagens.
A moça do filme não fala nada. Só faz cara de brava. Pelo menos tem uma hora que se despe todinha. Alguma coisa tem que valer nesse cachê (mais tarde esta dona faria novelas globais).
A história gira em torno da casa que está para alugar desde nunca e o caseiro (Paulo Betti), que encontra essa senhora boazuda e sua filha morando escondidas por conta do segurança da rua. Um triângulo amoroso se forma e muitas piadas espirituosas do jeito brasileiro de ser.
Se não fosse a mensagem comunista até daria para recomendar este filme para crianças. Ele é engraçado em alguns momentos, mas inofensivo em todos os outros.
Este é um filme atordoante. Ele começa como um drama, vai tomando aspectos de thriller e nunca perde seu primeiro tom. Esquizofrênico, nos apresenta um personagem carismático, mas olhe de novo e verá outra coisa. Porém, o carisma continua lá em alguma lugar. E isso bate no espectador como um jogo moral difícil de se desvencilhar.
A atuação de Bob Hoskins é a peça fundamental dessa engrenagem distorcida da realidade, em que o que poderia ser uma simples história de desilusão amorosa na juventude e as lembranças de infância de um inspetor de alimentos se torna uma tensão difícil de se ver, tanto nos dramas quanto nos thrillers. Ao acompanhar os dois o clima fica muito pesado e irresistível.
A trilha sonora é uma pequena obra de arte à parte. Dissonante e nunca nos entregando um ritmo fixo, a obra de Mychael Danna comenta nosso estado de espírito com perfeição conforme caminhamos pela mente de um psicopata no mesmo momento que testunhamos em desgraça e incompreensão que ele não pensa como nós. Em nenhum momento, nem na hora de ser potencialmente pego.
A direção de Atom Egoyan, ao contrário do pretensioso O Doce Amanhã, conversa conosco com os flashbacks, ou os vídeos do programa de TV em que a mãe do inspetor brilhava ao lado do menino gordinho que ele era, na solidão e uma pedra no sapato da mãe, ainda que não parecesse. No entanto, assim que descobrimos os objetivos dele com uma criança que vai nascer possivelmente sem pai, entendemos ele agora adulto sem nenhuma palavra precisando ser dita.
Visual e visceral, este filme poderia cair facilmente no ridículo nas mãos erradas, mas acaba se tornando um trabalho inestimável de criação de atmosfera e de estudo de personagens. Mais ele do que ela, pois nada nos tem a acrescentar uma garota que engravida do namoradinho e corre em busca dele. Esse é o lugar-comum. Hoskins eleva o jogo ao nível de Hannibal, mas sem precisar de uma Starling, pois ele seria incapaz. É a conjunção entre a inocência dupla e uma certa maldade egoísta a fórmula perfeita de um filme difícil de esquecer.
# O Homem Que Amava as Mulheres
Caloni, 2020-05-04 cinema movies [up] [copy]Truffault, cineasta francês, começa bem essa comédia/drama sobre um homem apaixonado por pernas femininas e que não consegue resistir a tentar ser um Don Juan de Paris. As mulheres simplesmente se apaixonam pelo seu lindo e grande nariz, e vamos acompanhando sua história póstuma ao mesmo tempo que descobrimos ele ser o autor de um livro cujo nome é o mesmo do filme.
Uma análise até que interessante da psiquê dos relacionamentos, sobretudo os abertos, Truffault torna tudo muito simples, mas não tão simples quanto Éric Rohmer, seu conterrâneo, que coloca em relevo a natureza humana, acima das tecnicidades de um roteiro.
A segunda metade dessa história acaba virando mais do mesmo, quase cai no previsível burguês de que nosso herói precisava achar "a mulher certa" para se aquietar. Nesse momento você já se divertiu em boa parte do filme, então passa fácil, quase dormindo, esse final.
Difícil um japonês cantar "Country Roads", mas o resultado vale todo o esforço. E a dedicação que essa menina tem para escrever ficção eu não tenho para não-ficção. Mas ela está aprendendo, e na cultura japonesa você deve dominar o que pretende fazer em sua vida.
Assim como faz a equipe dos estúdios Ghibli de animação nessa história que se passa no Japão com uma música-tema americana, mas narra um romance universal. Não é um filme apenas de romance, mas de valores. Ele ensina que o caminho a ser percorrido para voltarmos para a nossa Terra Natal é árduo, mas vale cada milha. Essa é uma metáfora da auto-descoberta.
A necessidade de auto-referenciar outras obras é por causa da internacionalização dos estúdios. Esse é o filme mais ocidental até agora dos estúdios. Há momentos que a estrada muda de lado e o livro se vira pra direita. Os japoneses se vendendo lá fora, mas ainda de uma maneira artisticamente ambiciosa (não ao modo Shinkai, comercial e efêmero demais).
Os detalhes de caracterização dos personagens lembram a dedicação nos detalhes do imperdível Memórias de Ontem, mas com roteiro mais formulaico. É sempre um prazer ver paisagens e ambientes recriados pela equipe. Eles são perfeccionistas técnicos, mas o mais importante, o coração, não fica de fora.
Este é o primeiro filme mudo p&b brasileiro que vejo. E é no mínimo uma confusão sofrível. Seu idealizador, Humberto Mauro, um self-made man, estudou engenharia elétrica e gostava dos mecanismos por trás da fotografia. Daí para o cinema foi um pulo. Ele consegue uma parceria e filma já em sua própria Terra Natal, lá em Minas. Um pioneiro do cinema nacional. Este é seu segundo longa, que conta uma história confusa sobre a herança de antepassados que esconderam dos brasileiros um tesouro da época da independência (eles tomaram partido dos portugueses), e agora que o pai do protagonista morre deixa um "roteiro" (assim era escrito) para o tal tesouro. Bandidos se interessam e começa o que seria uma aventura, com cavalo a galope, mortes e muita emoção com uma moral no final de que o verdadeiro tesouro é o amor.
Mas de amor a época não tinha nada. As mulheres do filme parece que não podiam falar. Quer dizer, não podiam mexer os lábios e ter sua fala traduzida em letreiros. Podiam exibir sua formosura com muita discrição. Os homens de Minas é que decidiam tudo, a base de lutas, armas e maquinação. É o cinema do engenheiro, do técnico, mas sem qualquer especialização ou excelência, revelando um pouco de nossa cultura, inadvertidamente.
O filme está disponível em DVD em péssimo estado. Os negativos se perderam e fizeram uma conversão menor para ajustar o tamanho do gosto da época, bem ao estilo brasileiro. O próprio Humberto Mauro sentenciou o resultado como imprestável. E eu concordo. Mas talvez ele já fosse imprestável desde a época em que foi lançado, no original. Nunca saberemos.
Duas características marcantes (e entediantes) deste longa mudo é ele não possuir música de fundo e conter muitas falas. A ausência de música é até didática, pois ensina ao espectador a falta que faz, sobretudo para impor ritmo e tema às cenas. Já as falas são um embaraço. Nenhuma delas, apesar de cheia de palavras, diz muita coisa. Só faz o espectador ler e ler. E nessa versão do DVD tem que tentar ler uns borrões mal iluminados, estourando no contraste. Em algum momento você desiste e apenas continua vendo as imagens borradas, tentando discernir uma vaca de um cachorro. O cachorro é preto neste filme e parece uma falha no negativo.
Este é um filme quase documental. Um making off do estado lamentável do cinema brasileiro. Mais tarde o diretor começaria outra parceria em que produziria minidocumentários da vida brasileira. Foi aí que ficou conhecido como alguém de valor.
# Bug no Calonibot Rodando Como Serviço
Caloni, 2020-05-10 computer [up] [copy]Esse não é o primeiro bug, nem será o último, mas serve de lição. Se quiser rodar um daemon no seu raspberrypi que atualize seu repo git de tempos em tempos ele poderá falhar, já que que roda em conta de root e essa conta não possui suas credenciais. Nem deveria, para ser sincero...
Uma maneira de tornar a leitura de seu repo relativamente segura é entregar credenciais de somente leitura para seu serviço. Foi o que eu fiz no caso do calonibot, que atualiza seu próprio repositório de tempos em tempos porque nele está contido o index.xml principal do site para ele realizar uma busca mais completa quando você pedir a ele (que é atualizado sempre que publico um novo artigo).
Para que isso funcione para repositórios configurados com chave ssh você terá que copiar essa chave para o diretório /root/.ssh, como se fosse a home do seu usuário. Depois de feito isso reinicie o serviço e ele deverá funcionar como novo.
Este era meu filme favorito absoluto na época do video-cassete. Já o assisti no cinema e em casa. Devo ter visto umas sete vezes, e duas a versão estendida, que não recomendo. Ela foi a versão exibida inicialmente nos cinemas, mas depois de fracassar com o público, prestes a ser levado a Cannes, os produtores decidiram fatiar meia-hora de projeção e entregar um resultado mais ambíguo, mais parecido com a vida real, onde os amores da juventude se vão e nunca mais voltam. O resultado é conciso e coerente com um arco dramático que presta uma homenagem ao Cinema Italiano, e de certa forma ao cinema como um todo, como nenhum outro filme jamais arriscou. Porém, seu terceiro ato é melancólico e pode ferir as almas mais doces. É um filme que apela para a emoção mais primitiva, mas com um pé no chão fica mais difícil de voar.
Este é o segundo longa do cineasta siciliano Giuseppe Tornatore e já vemos tudo o que precisamos ver em seu estilo neste filme. Bruto, mas apaixonado, Tornatore não ignora suas raízes, mas as exalta, e se trabalhos mais "recentes" como Baarìa - A Porta do Vento demonstram com exatidão seu sentimento megalomaníaco por trás da produção e direção, sempre disposto a elevar seus trabalhos ao nível de épico, não importando quanto dinheiro estiver à disposição, em Paradiso o dinheiro e o produtor Franco Cristaldi o mantém sob controle, e com isso lhe entrega prêmios por todo o mundo, incluindo Cannes e Oscar, unindo tanto o lado crítico quanto comercial de um projeto que parece encantador à primeira vista, mas em revisitas percebemos que ele também é muito difícil de ser degustado seriamente, pelos seus contornos complexos que a vida pode ser interpretada à luz do cinema.
Esse é daqueles trabalhos que por comparação é o Cidade de Deus do Meirelles, um filme que depois de terminado sua equipe evita a todo custo olhar para trás, assistir à película. É desgastante ao mesmo tempo que recompensador. As lentes do filme apontam para este momento de nostalgia e declínio do cinema italiano pós-segunda guerra em uma mistura entre lúdico e cômico. É arrebatador. Não há cineasta que mantém um coração batendo dentro de si que assista a esse filme e não se emocione, nem que seja na cena final. Ou na dedicação onisciente de uma mãe siciliana que mesmo à distância sabe como está o filho, e sabe que ele se lembrará quando tenta avisar o dia inteiro da morte de seu melhor e eterno amigo Alfredo.
Alfredo é interpretado pelo ator francês Philippe Noiret como o urso bondoso e sábio que dá conselhos sobre a vida desde seu início a Totó, o garoto que mais lembra um ratinho de tão pequeno e sagaz. Totó é interpretado por um ator cujo apelido na vida real é Totó, e seu nome é o mesmo do protagonista, Salvatore. Isso foi visto como o sinal definitivo para que o diretor o escalasse entre uma dezena de garotos. E ele é perfeito para o papel. Suas expressões, sua dinâmica com Alfredo e seu jeito um tanto fantasioso de enxergar a vida cabe perfeitamente como representante de todos os amantes do cinema.
É impossível falar de Paradiso sem citar a trilha sonora icônica e inesquecível de um dos maiores gênios musicais cinematográficos. Ennio Morricone costuma ser sutil quando precisa, mas este filme exige ser ouvido durante todo o tempo. Então ele cria um tema musical que pode ser tocado todo o tempo sem enjoar. Dias depois de assistir ao filme, meses, talvez anos, a música não será apenas inesquecível: ela se torna a trilha sonora de nossas próprias vidas como cinéfilos. Ela é empolgante, melancólica, alegre, emocionante. É uma música que sofre metamorfose pelas décadas da história do filme, e em nós mesmos sofrerá essa mesma mudança conforme a ouvirmos em épocas diferentes de nossa vida. O mesmo efeito percebemos no filme que a música embala.
# O Bug Mais Bizarro que já Resolvi
Caloni, 2020-05-10 computer [up] [copy]Máquina IBM velha e empoeirada. Criptografia blowfish. Assembly 16 bits. Programa residente. E nenhum depurador funcionando. Tudo o que eu tinha se resumia em dois itens de inventário: o conhecimento, adquirido aos poucos do sistema, e minha imaginação. Era uma amena semana de abril em 2008 isolado em uma sala. Tudo que havia em volta eram papéis com anotações feitas. Observava uma nova pista todo dia, embora sem ter muita certeza. Àquela altura qualquer coisa serviria.
Do outro lado da sala, uma estagiária recém-chegada na empresa observava de longe, talvez com uma certa curiosidade, ou medo, daquele rapaz ligar e desligar um desktop empoeirado enquanto a cada aperto do botão de ligar ele olhava fixamente para a tela por uma ou às vezes duas horas seguidas. Ficava a manhã inteira observando um único boot em câmera lenta. A câmera mais lenta possível, dessas que capturam o bater de asas de um beija-flor. Cada movimentação de um registrador demorava vários minutos de reflexão.
Toda essa odisseia começou com o cara do suporte, um sujeito bonachão que atraía os bugs mais bizarros para nossos sistemas só de olhar para eles. Não eram os piores bugs, mas com certeza os mais bizarros. E quando digo bizarro estou falando de bugs que não dá para imaginar acontecendo na vida real. Quando esse sujeito aparecia junto surgiam bugs na própria Matrix; um gato preto passa duas vezes seguidas pela porta, mas não caminhando: flutuando próximo do teto.
O sujeito chegou na sala de desenvolvimento falando dessa máquina que tinha acabado de chegar do cliente. Haviam instalado a criptografia de disco. Os dados não estavam perdidos, pois o Windows ainda mostrava o seu logo esvoaçante segundos depois de ligarmos o velho desktop de guerra, que já havia vivido pelo menos duas décadas a vida de escritório e não seria agora que deixaria seus dados sumirem sem mais nem menos. Nada disso. O problema era que se você desligasse e ligasse de novo, nada mais aparecia. Tela preta. Sem logo esvoaçante ou cursor piscando. O disco rígido não se mexia. Era um mistério completo.
Mas o bizarro mesmo não era isso, mas o que vinha depois. Você desligava a pobre máquina, novamente. Apertava o botão de ligar. E como uma mulher nos seus trinta ainda não vividos, ela subia com tudo no lugar: logo do Windows, barulhinho irritante da sua tela de boas vindas e as agulhas do disco magnético piscando freneticamente. Tudo certo mais uma vez na terra do Tio Bill. Era possível logar na máquina e usá-la o resto do dia com todos os dados criptografados íntegros.
Agora, sim, o bug está completamente descrito: nos boots ímpares a máquina não bootava. Nos boots pares não havia nada de errado (ou vice-versa). Antes que você comece a confabular o que poderia ser, um cacoete que todos nós, programadores, costumamos ter, já aviso que nesse bug não há relação com energia ou memória RAM. Você podia desligar a máquina e tirar da tomada. Ir tomar um café. Uma hora depois coloca a tomada de novo e a liga. A bendita não funciona. Tire a tomada novamente. Mais um café. Desenergizada novamente, botão de ligar. E tudo estava certinho.
A criptografia desse sistema operava em dois níveis, necessários naquela época. O PC é uma monstruosidade construída em camadas legadas, uma em cima da outra. Abaixo de tudo existe a BIOS que controla todo mundo. Até um certo ponto, pelo menos. O que importa é que nesse primeiro momento do boot não existe sistema operacional. Não existe a querida proteção de memória que os SOs implementam (com a ajuda da arquitetura) para isolar os programas, onde qualquer violação de memória é tratada graciosamente com uma mensagem de erro. Não, mano. Aqui é o modo real. Fica esperto, que se um ponteiro ficar doido você vai levar tiro pra tudo quanto é lado. Ou como diria Morpheus: "Welcome... to the desert... of the real."
Nesse ambiente pesadão e promíscuo, onde as memórias se encostam e trocam de valores sem qualquer pudor, programas residentes se mantém em memória através do famigerado hook de interrupções. Interrupções é como chamamos as funções originais escritas e armazenadas na BIOS. Ponteiros de funções com código carregado da sua memória. Fazer um hook de uma interrupção é se colocar na frente de uma função dessas, trocando o ponteiro de função pelo endereço de sua função na memória. Então, por exemplo, se um programa roda e consegue sobrescrever o endereço da interrupção responsável por escrever na tela, esse programa pode ligar e desligar pixels que o programa original nem imagina. E em vez do logo esvoaçante e inofensivo do Windows, você poderia escrever o que seria o antepassado do gemidão do zap, versão ASCII Art.
No caso de um programa de criptografia de disco a interrupção mais importantes é... acertou: a de disco. Uma interrupção de disco é responsável por ler e escrever dados de e para o disco. No primeiro momento do boot é vital para o sistema operacional que ele consiga ler setores do disco onde ele próprio está armazenado. Ele deve conseguir ler seus dados do disco, mesmo criptografados, e esses dados precisam ser descriptografados antes que exista um driver de criptografia instalado no Sistema Operacional no ar. É o dilema do ovo e da galinha. É aí que entra o que chamamos de programa residente, o que contém a função de criptografia e cujo endereço é colocado no lugar da interrupção da BIOS para comandos de disco.
É claro que contando isso para vocês a posteriori parece mais fácil, mas meu primeiro instinto foi espetar o WinDbg, o depurador de sistema do Windows, nessa máquina. Porém, rapidamente descobri que não existia sistema operacional para ser depurado. O Windows nem conseguiu subir ainda, quanto mais deixar as pessoas depurarem ele. Então a solução foi apelar para o SoftIce 16 bits, um depurador em modo real, que funciona até que bem sozinho. Porém, o próprio depurador já é um programa residente, e não funciona tão bem quando existem outros programas residentes querendo espaço no disco. Como o programa de criptografia instalava um hook na int13 (essa é a interrupção de disco), as sessões de depuração nessa fase ficavam estranhas rapidamente. O depurador de modo real travava nas primeiras passadas de código. Não havia memória o suficiente ou as chamadas das ints entravam em conflito. De qualquer forma, quando memória entra em conflito no modo real, o barato fica loko, e o jeito é começar tudo de novo em um novo boot (par ou ímpar, mas sempre o segundo).
Então o jeito foi usar o debug.com. Este era um programa que vinha no pacote MS-DOS e em alguns Windows mais velhos que consistia em um depurador de modo real. Era possível carregar um segmento de um arquivo ou da memória real para este depurador e ele seguia passo a passo para você a execução do programa. Em assembly de modo real, claro. Esse foi o jeito que eu consegui ir entendendo o fluxo de execução, pois eram muitos valores e variáveis. Eventualmente até o debug.com também travava, mas isso não importava tanto, pois era possível ir mapeando seu funcionamento aos poucos, anotando as descobertas uma a uma em um pedaço de papel. Uma técnica que pode ser interessante se você se encontrar em tal situação é escrever as ints 3 (interrupção de breakpoint) diretamente na memória do programa e deixar ela ser ativada para depois que capotar sobrescrever com o código antigo. Eventualmente isso também travava. Daí nesse momento o jeito era fingir que estava tudo bem e continuar a execução de um outro ponto, anotando em um pedaço de papel o estado dos registradores e da memória até o momento, para depois ir ligando os pontos.
Depois de alguns dias nesse modus operandi o mundo externo importava cada vez menos. Eu só enxergava registradores sendo movidos, valores sendo empilhados e desempilhados. Na hora do café, esse era o meu tema favorito, para desespero dos meus colegas. Comecei a vislumbrar a possibilidade de existir um bug no código do algoritmo de criptografia. O algoritmo usado se chama Blowfish, um cifrador simétrico em bloco. Seu funcionamento é basicamente pegar um bloco de dados a serem criptografados, aplicar uma chave, e cuspir o mesmo tamanho do bloco de volta. Ele se chama simétrico porque aplicando a mesma chave a um bloco criptografado obtém-se o bloco original.
Não lembro como tive esse insight, mas essa alternância típica dos algoritmos simétricos fazia tocar alguns sinos na minha cabeça de que o bug bizarro dos boots ímpares e pares poderia estar relacionado de alguma forma. Só não sabia ainda como.
Pois bem: bora aprender como funciona esse algoritmo, passo a passo, pois o código usado no sistema estava obviamente escrito em assembly. Não é um código difícil em C, mas um tanto extenso em Assembly. De qualquer forma, tudo é possível se você está trancado em uma sala sem ninguém para importunar. Tudo que você precisa é de tempo e paciência. E café. Não se esqueça do café.
A semana passou rápido. Tudo que me lembro é que de fato foi uma semana de 40 ou mais horas, embora para mim o tempo tivesse parado. A mágica de estar compenetrado em um problema e fazer parte do problema, e eventualmente da solução, me fez descobrir a origem do bug. E a semana inteira se condensou em alguns poucos momentos de prazer em ter capturado esse desgraçado. Irei descrevê-lo agora.
Tudo começa com o IV: o Initialization Vector. Ele é um array de bytes usado em algoritmos criptográficos para diminuir a previsibilidade da série de bytes resultantes do algoritmo. Sem o IV pode-se usar força bruta com várias chaves até encontrar a certa. Com o IV, que é alterado de maneira previsível, mas difícil de rastrear, a mesma chave gera séries de bytes completamente diferentes, impedindo esse tipo de ataque.
O que estava acontecendo nesse caso para o boot estar intermitente era que, como comentado no commit que gloriosamente assinei, as escritas em disco durante o boot gravavam a série de bytes com um IV invertido. Portanto, na hora de ler bytes do disco ele entregaria os dados errados, obviamente, e a máquina não bootaria. Porém, como o algoritmo blowfish é simétrico, e pelo boot conter sempre os mesmos dados no disco, uma segunda escrita feita em um segundo boot inverteria o IV já invertido, gravando os dados originalmente invertidos da maneira correta, e a vida nessa versão de boot seguia feliz e contente, com logo esvoaçante até a música de boas vindas do Windows. Bootando pela terceira vez era repetido o problema do boot pela primeira vez, e assim por diante. Essa era a mágica do boot bizarro desta máquina, a única máquina que descobrimos que escrevia nos setores do disco durante o boot. A maioria apenas lia setores onde estava o sistema operacional para carregá-lo.
Descrevendo a descoberta desse bug hoje, doze anos após o ocorrido, ainda não entendo como consegui descobri-lo. Porém, ele exigiu tanta concentração que me lembro com um prazer indescritível de ter sido capaz de fazê-lo. Todo o tempo despendido se tornou uma marca de felicidade em minha memória, gravada em meu HD temporário desta vida. Lembrarei desses momentos com carinho, e como ela está criptografada também, entenderei que em alguns momentos ela irá soar amarga, mas em vários outros irei ter certeza de ter sido um feito e tanto para um ser humano entender uma máquina em seus detalhes mais obscuros. Esta é a verdadeira felicidade da profissão.
Drama infantil italiano que você percebe que será biográfico durante a história. É um garoto que perde a visão perfeita, passa a enxergar apenas sombras, e vai parar em um internato para cegos por causa de uma lei que o obriga. Em plena década de 70 estamos em um colégio para meninos da igreja católica comandada por um diretor igualmente cego e inflexível às regras que regem a escola há mais de um século. Garoto encontra garota, que enxerga, e é a filha de uma das empregadas da escola, e ela o conduz para uma aventura em formato de efeitos sonoros adaptados que transformam todos em volta. O apelo cinematográfico é óbvio e a moral batida. É bonitinho sem soar piegas, mas não nos diz nada de novo. Um filme sobre juventude como qualquer outro, com a diferença que a maioria dessas crianças nunca viu a luz na vida. Porém, chega um momento que nem disso nos lembramos, tão genérica é sua melodia infanto-dramática.
Filme de diretor millennial sobre puteiro carioca icônico, visto por ele como peça de museu. Um local "cultural". Gustavo Pizzi não sabe de nada da vida e não consegue sequer boas tomadas, boa edição e muito menos uma história. Ele consegue alguns frequentadores antigos para dar seu depoimento, mas não aproveita o tempo deles para contar algo que preste. É um documentário feito para TV, ou seja, para ninguém que esteja prestando atenção.
Desses projetos encomendados para desviar verba pública em prol de estudantes de artes que usam a câmera como vídeo-clipe caseiro, a edição, também de Pizzi, é cheia de efeitos de distorção, que combinam com uma trilha incidental apagada, desprovida de qualquer personalidade, para disfarçar a péssima qualidade da captação de luz noturna. O filme em si, a "película", ficou horrível. Sem história nem técnica muito menos estilo, é surpreendente que tenham levado adiante na pós-produção e lançado como um DVD. Até o título do filme é pretensioso e vago ao mesmo tempo. Um exemplo de tudo que pode dar errado no cinema quando o dinheiro vem fácil. Nesse caso pelo menos deve ter saído barato.
Os entrevistados, muito mais velhos e experientes que o cineasta, dominam a situação o tempo todo. É vergonha alheia assistir um documentarista sem a mínima ideia do trabalho que ele conduz. Qual o objetivo do filme? Até onde pode-se tentar deduzir, bosta nenhuma. É isso o que acontece quando a mesma ideia sem reflexão é martelada na cabeça dos jovens: cultura é importante. Mas o que é cultura? Isso ninguém sabe responder, ou a resposta é: dar dinheiro de todos para reformar e manter um prédio que foi um histórico puteiro de políticos e marinheiros do Rio de Janeiro nas décadas de 30 a 90.
Alguns caras em uma noite de quinta-feira falando sobre aleatoriedades que giram em torno de cinema, social justice (justiça social), anime e o ~~melhor~~ filme de todos: The Room. O primeiro bodecast live do grupo C/C++ Brasil foi sucesso de participantes e fracasso de público (só veio o Matheus e o Elias). Descobrimos que o Gianni, fundador do grupo do Telegram, tem o péssimo costume de largar os filmes pela metade. Também descobrimos que Cosmos é o projeto secreto de @drmadera para criar vida no fundo de seu home-office. E de quebra houve uma invasão de neo-São-Joseenses, um povo muito simpático que citou alguns filmes malucos para comentarmos.
Infelizmente a live terminou mais cedo porque ~~o Gianni não pagou a conta de internet~~ o sinal caiu e nos derrubou a todos ao mesmo tempo. Se quiser que façamos mais como esse dê um curtir no vídeo e comente com sugestões, críticas, etc. Comente por lá. Aqui só eu tenho voz.
Éric Rohmer é o diretor dessa quadrilogia sobre relacionamentos, onde cada título se passa em uma estação do ano. O forte dos filmes desta coleção de contos é o quão realista é a abordagem. Rohmer nos coloca direto em cena, em um lugar movimentado e com pessoas reais. Os cenários possuem vida própria porque não devem nada ao que acontece lá fora. Seus personagens somos nós, ou alguém que conhecemos. É menos um roteiro e mais uma percepção sensível de relacionamentos humanos.
Mas ao mesmo tempo que imaginamos estar vendo um documentário seu lado fantasioso começa a se desenrolar. O filme nos permite imaginar situações improváveis que nossa cabeça vez ou outra ponderou. Que jovem nunca pensou em si mesmo como capaz de atrair a atenção de mulheres em sua volta pelo simples fato de existir e estar passando pela rua? É na dinâmica entre o ambiente real e uma situação criativa que repousa a diversão desses filmes. Não conseguimos desgrudar os olhos porque é tão fascinante observar seres humanos sozinhos com seus problemas e situações que parecem bobas, mas que justamente por isso se torna leve, divertido e inconsequente.
Os diálogos criam tensão porque apresentam personagens mais interessantes do que na vida real. Essas garotas estão obviamente interessadas nesse rapaz, mas nunca entendemos por quê. Tudo não passa uma fantasia. Um Swimming Pool de comédia romântica. Uma brisa jovem que vem do mar apagar os corações mais atentos aos problemas de relacionamentos de quem começou a explorar o amor.
Assisti a esta série a temporada inteira e me esforcei para não debochar da fórmula e em troca ganhei algumas piadinhas. Algumas até engraçadas, mesmo que previsíveis. Quem não liga para isso é mais feliz assistindo animes.
É até possível sair da fórmula imposta pelos gêneros de animes, como este "mangá para garotas", mas esta é uma série que não o faz. A ideia é uma história onde a menina se apaixona por um desenhista de... acertou: mangá para garotas. Quase como um Madoka Mágica Shojo, se este anime usasse sua ideia diferente não apenas como porta de entrada, mas também no desenvolvimento da história.
Para os que não conhecem, Madoka Mágica é um mangá/anime do estilo "garotas mágicas", mas ele subverte o gênero descrevendo uma ficção científica dark e pesada que caminha por devaneios filosóficos envolvendo moral, destino e sentimentos humanos. Apenas como chamariz, Madoka cita a obra máxima de Goethe, Fausto, e com propriedade, já que lida com pactos cujas consequências estão fora da compreensão do seu protagonista, seja Fausto ou Madoka. Porém, minhas desculpas a Goethe, mas Madoka acaba sofrendo mais.
Quando uma obra dessas surge ela impulsiona ou revela um desejo latente na geração em explorar metalinguagem. Cansados das velhas fórmulas, as obras se voltam para si mesmas como uma maneira de se analisarem e com isso tentam criar algo novo, o que quase nunca funciona. Como se diz lá na Marvel: fazer um reboot.
Esta série entra nesse esquema de maneira preguiçosa, quase como um deboche ao gênero que representa. Com isso adota o caminho inverso do nobre drama sobre a existência de garotas mágicas em um universo fadado à entropia para mais um anime que usa os mesmos artifícios de história de menininha. O fato dela estar inserida na própria obra que analisa é mero capricho mercadológico.
Um filme de estilo mais antigo por Éric Rohmer, e muito mais curto que os convencionais, com menos de uma hora de duração. Nem por isso ele é simplista. Sua função é nos apresentar os devaneios e julgamentos de um bonito e apagado rapaz, que vive à sombra de seu amigo de família mais abastada, a respeito das intenções para com os dois de uma garota que não é feia, mas que não possui a beleza clássica. Ela vive andando com eles, se tornando dependente de seu estilo de vida mesmo já pertencente à classe trabalhadora. Os três formam um triângulo amoroso dos sentimentos humanos menos nobres.
Este é um filme de um cineasta francês que tem o charme de tornar suas histórias mais próximas de nós, mais reais, e com isso mais profundas. Faz pensar em nossas próprias vidas, os próprios amigos e os próprios erros, principalmente os erros daquela juventude que insistimos em querer esquecer e amar ao mesmo tempo.
Este é um filme que envelheceu engraçado, apresentando atores não em sua melhor forma, em atuações que hoje soam mais equivocadas do que espontâneas. Há momentos que beiram o ridículo, e a dublagem mal sincronizada faz o filme soar amador. Por causa disso é uma história que, apesar de cruel, se torna gentil, pueril, com seu modo singelo e ingênuo de conduzir uma história, seus personagens se tornam simpáticos às câmeras e ao espectador, ou no mínimo criaturas curiosas de observar, ao ponto de continuarmos acompanhando suas curtas aventuras de estudantes sem dinheiro abusando de uma jovem que trabalha para se sustentar e não tem o luxo de receber mesada dos pais.
Nós acompanharíamos esta história nem que fosse pela curiosidade de uma época onde jovens dançavam ao som do pré-rock. É a época que exala uma atmosfera pura, um hiato entre as crueldades da guerra e a fartura que priva a vida de significado. Em preto e branco com uma Paris charmosa não por ser turística, mas por ser pé no chão, é um filme de Rohmer difícil de desgostar.
A Carreira de Suzane consegue ser também uma análise da maldade humana muito sincera. Sobre como nos aproveitamos ao nos vermos com vantagem. O narrador do filme existe pelo mesmo motivo pelo qual Capitão Nascimento é o narrador onisciente em Trope de Elite: ele nos aproxima de quem é condenável aos nossos olhos. Esses jovens são mimados e presunçosos, e sem ouvirmos os pensamentos do narrador eles nos causariam apenas repulsa.
Este curta de Éric Rohmer veio de brinde no DVD de A Carreira de Suzane, mas é até bem longo, com 20 minutos de duração. É uma sessão dupla, praticamente, pois com a atração principal tendo menos de uma hora é natural assistir esse em seguida. E ele trata também da análise de mulheres a partir do pensamento de um homem obcecado por uma dama alta e que se veste bem que sempre encontra pelos seus caminhos no bairro. Após o primeiro contato ela some por três semanas, o que faz com que ele desenvolva o péssimo hábito de comer todo dia um doce da padaria da esquina. Se a moça demorasse mais ele muito provavelmente teria engordado muito e ela nem o reconheceria.
Este é um filme que se constrói na tensão da espera. Possui assim como a atração principal um narrador protagonista. E há algumas brincadeiras cinematográficas de Rohmer o suficiente para nos entreter. Como o corte abrupto para acelerar os passos de um homem na rua. Um curta sobre relacionamentos nunca pode ser ruim. Esse tem o jeito de um causo contado por um amigo. Ou seja, delicioso de acompanhar. Como um doce da padaria do bairro quando não temos nada mais o que fazer.
É época da colheita de uvas para fazer vinho e este filme de Éric Rohmer fala sobre personagens mais maduros, que já envelheceram o suficiente para saberem exatamente o que querem e terem um gosto mais complexo na boca.
Com os filhos já criados e casando, para muitos que já perderam o parceiro pode ser uma boa ter uma nova companhia que traga significado à vida, e não apenas prazeres frívolos. Há um professor de filosofia que só está interessado em ex-alunas jovens, e o filme nos mostra o quanto essa atitude é ao mesmo tempo coerente e patética. Também nos mostra como as mais jovens têm certeza que foram elas que iniciaram o flerte com os mais velhos, nessas peças que a vida prega aos mais jovens, que só porque se sentem no controle assumem que o que a vida lhe trouxe é exatamente o que queriam.
Esta comédia brinca com diferentes cenários de relacionamento, e consegue nos entreter em todos eles. Sua protagonista merece ser feliz, pois ela é tão humana e sincera. Diferente dessas heroínas fantasiosas de Hollywood ela não está com pressa e não irá cair nos braços de um possível amor "custe o que custar". Antes disso sua amizade com a melhor amiga é mais importante. A sutileza com que percebemos isso é o charme dessa rede de tensões.
Em uma época pré-Tinder, antes das facilidades das relações líquidas profetizadas por Zygmunt Bauman, onde o que é minimamente desagradável é descartado, seja uma pessoa ou um objeto, esse filme explora com muito charme a busca do amor pelos mais maduros, e os revela como garrafas de vinho que se tornaram melhor com o tempo. Os mais jovens possuem a energia, a beleza e as ideias loucas que passam por uma mente aberta, mas os mais velhos compensam isso tudo com a voz da experiência de quem não está em busca de aventuras, pois já as viveu o suficiente.
Mais uma vez o diretor da quadrilogia dos contos das estações do ano, além de outras interessantíssimas coleções, nos coloca tão à vontade que é natural que queiramos passar alguns dias deliciosos de férias no campo na companhia dessas pessoas. A história é o que menos importa, mas mesmo ela garante uma certa inteligência emocional que nos cativa. Sobretudo os mais velhos como eu.
# Fechado Para Reformas
Caloni, 2020-05-19 [up] [copy]Quase três mil posts durante quinze anos nessa vida de blogue e percebo que chegou a hora de atingir a maioridade. Escrever um rascunho e publicá-lo na internet não me torna melhor escritor que qualquer YouTuber de primeira viagem que não edita seu conteúdo ou tuítes que simplificam o pensamento humano de tal forma que ele parece totalmente válido ou inválido. Perde-se as nuances. A voz do autor fica solta demais para ser relevante nesse mar de informação que nos afogamos todos os dias (e noites).
Para me tornar um escritor profissional eu devo revisar. Revisar é o que irá extrair valor dos meus textos. Brutos como estão nem eu consigo mais enxergar a virtude de escrever. O conteúdo não é nada se não for seguido pela arte da composição. E essa arte só se conquista compondo, lapidando, com o esforço de conseguir acabar uma obra com esmero e excelência, e ainda que não se consiga por completo esse é o caminho a ser seguido.
Portanto, coloquei todos meus textos antigos para revisão, e os novos nascem no repositório como rascunhos, o que quer dizer que o texto não aparecerá em sua primeira versão no blog. O bebê não está pronto ainda. É durante a gestação que ele irá ganhar corpo e desenvolver sua mente. A edição, além de correções gramaticais, reorganiza o pensamento contido já no rascunho, mas não totalmente consolidado para ser consumido por outro ser humano que não seja o autor.
Escrever é coisa séria. Depois de tanto praticar, acredito que seja a hora de constatar este fato, tirar a poeira das milhares de páginas que já compus e tentar arrumar tempo para me atualizar na arte de criar telepatia para leitores do futuro.
Woody Allen em francês e sem restrição de idade. Pauline é uma ninfeta com seus catorze, dezesseis anos no máximo, mas carece de curvas que a apresente aos homens do filme, mais velhos. Três faixas de idade criam tensão em um filme onde a ninfeta irá aprender as mazelas do amor, e como as emoções humanas simplesmente mascaram nossas contradições internas, movidas por desejos mais intrínsecos de nossa própria formação como indivíduos.
Sua prima mais velha a leva para a praia. Com uma lascívia apenas encontrada em mulheres que acabaram de se divorciar de um peso morto, ela encontra seu antigo amigo de antes do casamento e os dois estão bem, psicologicamente e fisicamente. Mas entra na jogada um tiozão mais boa pinta, que conquista pela postura, e mais uma vez o amigo se vê obrigado a se manter na famigerada e temida Friendzone. Contra a vontade, é claro, pois ele já se declarou inúmeras vezes.
Há muitos desentendimentos e relações assimétricas em Pauline na Praia, e tudo é delicioso de acompanhar. São situações dinâmicas, que parecem possuir mais diálogo do que o necessário quando na verdade é exatamente o que precisamos para extrair o máximo de cada personalidade. Rohmer faz aqui um dos seus melhores trabalhos como diretor e roteirista, pois o resultado é incompleto, ambíguo, trágico, cômico e irônico. Tal como a vida humana. É um filme difícil de desvendar como obra cinematográfica porque não é assim que deve ser feita sua leitura. Apesar do intricado jogo do roteiro as emoções humanas no filme estão mais para poesia incompleta. E por ser incompleta, mais humana, mais profunda.
Esta é uma produção da época dos grandes produtores e diretores de fantoche, que seguiam as fórmulas para grandes produções. As atrizes eram suas mulheres e os atores e atrizes moviam a indústria. Esta deveria ser a história de Howard Hughes, cuja biografia autorizada foi dirigida por Martin Scorsese em O Aviador, com Leonardo DiCaprio no papel, mas devido à indiscrição e à paródia desta versão ela usa nomes falsos para contar a fictícia história deste outro herdeiro milionário que virou produtor de filmes e aviador. Qualquer semelhança é mera coincidência.
Jonas era uma pessoa perturbada, mas o vemos como um gênio dos negócios todo o tempo enquanto não consegue se tornar um homem decente. É um filme engraçado sem querer ou uma paródia de época que envelheceu mal, onde muitas cenas se tornam uma paródia da própria época e do próprio estilo de fazer paródias. Se passa em mansões, em carros, em aviões, em estúdios, em exageradas lutas, e em pessoas voando e em mulheres que se entregam a este homem porque ele é O Cara.
Com tons de Cidadão Kane sem o mistério nem os enquadramentos ou a fotografia, Os Insaciáveis é uma mensagem ao mundo de decadência do cinema americano em grande estilo. Isso se tornou o símbolo de como é o cinema por lá. Era uma Vez em Hollywood relembra essa derrocada com tristeza em nossa época.
Há muitas cores como novidade. E uma tela widescreen. Os trailers do DVD são da mesma época e mostram a importância para a época de uma tela grande e larga, cheia de cores, ação, aventura e romance, ou seja, as sensações baratas que hoje fica por conta dos filmes da Marvel.
Com ótimas falas e um pouco de estranheza que preenchem a bizarrice de uma época e seus sinais de não conseguir se olhar no espelho diante do ridículo, Os Insaciáveis é cinema de observação de uma época que não volta nunca mais. Ou volta, só que em outra roupagem.
De Éric Rohmer, este filme reúne boa parte do elenco de seus outros filmes e nos apresenta a louca do casamento como a atração principal. Ela decide que irá se casar, escolhe um ocupado advogado que falou por cinco minutos em uma festa, e somos levados por essa divertida insanidade em um filme tenso em que vários sentimentos de vergonha alheia afloram. Diferente dos outros filmes desse diretor francês, esse possui um subtexto oculto. É sobre emancipação, financeira e afetiva, mas ao mesmo tempo sobre a liberdade da mulher de ser a ajudante da casa, se ela quiser, enquanto o marido trabalha. Uma diversão de uma nota só: a melancolia de não conseguimos nos livrar de nosso destino e nossos papéis na sociedade. Quase chega a ser melancólico, mas acaba sendo apenas divertido.
Orson Welles tentando salvar o casamento com Rita Hayworth (spoiler: não deu certo e se divorciaram antes da estreia). Este é um filme noir fora de controle temático e infestado pela visão peculiar de seu cineasta, notório por seu estilo antiautoridade, que transforma um julgamento de homicídio em uma comédia de erros. Que empresta dezenas de espelhos do surrealismo alemão.
Um plot tão bizarro que próximo do final fica difícil entender o que ele quis dizer com tudo isso, exceto a crítica ao modo de vida dos cheios da grana. O personagem de Wells observa de longe o piquenique regado a álcool e ofensas pessoais e questiona: essa é a forma que vocês se divertem? É para isso que preciso de dinheiro para "ser feliz"? Ele diz isso com um sotaque irlandês que não poderia ser mais forçado. É ridículo toda vez que ele narra sua história, mas se torna quase risível quando ele fala em alguma cena.
Os truques de produção, já manjados para quem viu Cidadão Kane, giram em torno de cenários pintados ao fundo com a personalidade e visão deturpada de Welles: sombras que crescem ou diminuem, uso de tetos e paredes altas, demonstrando a pequenez daqueles seres humanos, peças de um jogo de xadrez fazendo rima com a sala do tribunal, ou colocando os personagens bizarros e ricos ocupando todo o quadro, rindo como lunáticos, transformando a vida em um jogo de pôquer.
É sobre os jogos insanos da humanidade este filme, e não sobre o romance supostamente contido na capa. A liberdade artística de Welles ainda estava presente depois de algum sucesso comercial do cineasta na RKO (que abraçou seu debut com Citizen Kane), mas não sua ambição artística. Todos buscavam ver um próximo clássico, e recebiam um ótimo entretenimento pensante. Mas não era suficiente para seus fãs da época, nem para arrecadar bilheteria.
O riso doentio e amoral do personagem que pede para ele se matar revela a visão do filme sobre essas pessoas, visão essa que estava velada em "Kane" e o que tornou o ápice da ambiguidade do ser humano. Um advogado aleijado que livra homicidas é o mais próximo que podemos chegar de um vilão para o filme, mas este é um noir, então os vilões não aparecem com papéis grudados em suas testas. É preciso sentir a moral pelo cheiro de cigarro, e inalar os tons monocromáticos de mais uma obra que faz valer a escolha do preto e branco.
Este é o filme original sueco sobre a garota vampira, sensação nos festivais. O remake americano também é muito bom, mas este tem o charme do baixo orçamento bem feito. A liberdade criativa permite insinuar com mais detalhes sobre o assunto: o ritual de passagem. E há vários rituais de passagem no mesmo filme. A cena da piscina se tornou a mais icônica, e com razão. Ela sintetiza o gore e trash com o romance e o drama de um filme sobre os desajustados da sociedade. Os que sofrem bullying. Os que revidam. E os que precisam revidar para viver. Para completar, esta garota é o achado mais bizarro. Ela coberta de sangue é uma visão saída de um jovem clássico que em breve será esquecido. Mas esta imagem fica em nossas mentes e corações. Não é fácil comprar sua personagem quando percebemos o quão real é seu drama, mas após a transição do fantástico para o real algo muda em nossa percepção sobre o que é está... garota? Mulher? Conceito.