# Kubo e as Cordas Mágicas

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Kubo é uma animação em stop motion que usa um monte de elementos computacionais para tornar tudo muito mais fluido, mágico e... não-stop motion. Porém, ao mesmo tempo, ele se aproveita da técnica para tornar tudo muito mais real. Ele conta uma história oriental com o herói sendo uma criança, mas não são exatamente coisas de criança que ocorrem com ele. A maior virtude do filme talvez seja sua não-infantilização de um filme que entende que crianças podem aguentar discussões que envolvam a morte, e não há nada de errado em um garoto não ter seu olho esquerdo.

Estreia do diretor Travis Knight, que já trabalhou como animador em Coraline, Paranormal e Boxtrolls, Kubo conta a triste história de uma mãe que foge de uma briga feia de família, onde uma de suas irmãs arranca os olhos de seu filho. Ambos vivem escondidos em uma caverna do lado de um vilarejo, onde Kubo todos os dias desce e conta uma história heroica sobre seu pai, através de seu shamisen, um instrumento de corda oriental clássico com três cordas, que faz com que suas folhas de papel saiam voando magicamente e criem as mais diferentes dobraduras de papel (origamis) que interagem entre si, para espanto e admiração das pessoas em volta.

As construções de cenário, como estátuas de budas gigantes cobertos pela areia, ou até o alto mar e suas ondas, são construídos por mecanismos reais. O resultado é como se as páginas de um livro infantil com textura se abrissem com uma riqueza de detalhes, além das luzes e cores diferentes a cada passagem da história. As próprias expressões dos personagens impressionam pelo realismo e pela humanidade.

A história é escrita por Marc Haimes, Shannon Tindle e Chris Butler, e é impressionante que eles não tenham se inspirado em nenhuma lenda oriental específica. Quer dizer, com certeza vários elementos da história possuem como fonte de inspiração o espírito oriental de outras lendas, mas esta é uma história original, que possui uma estrutura simples, mas eficiente para o que dispoe: usar a narrativa para uma viagem de aventura e descoberta.

E embora haja o pequeno problema de não haver muita tensão nas cenas mais movimentadas, mesmo que vejamos, por exemplo, batalhas na água (em um navio e no fundo do mar), esta não é necessariamente uma história focada em ação, mas muito mais reflexão. Uma reflexão sobre as perdas de entes queridos, acreditar em si mesmo, blá blá blá. E mesmo a moral da história não é tão completa assim.

Por fim, Kubo existe realmente para demonstrar como as técnicas de animação estão cada vez mais eficientes, sejam stop motion ou não. É um prazer saber que o estúdio responsável por Boxtrolls e Coraline permaneça com um de seus pés no stop motion. Ele é o equivalente aos live actions que preferem usar algo mais real para que o efeito não seja apenas um monte de pixels se cruzando.


# O Ídolo

Caloni, 2016-12-03 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

O Ídolo possui um começo dinâmico e tocante, mas não usa isso a seu favor no resto do filme. Ele aposta na catarse fácil que já vemos na televisão e em vídeos do YouTube. O que ele acaba fazendo, então, é apenas dar uma cara e uma atuação para mais um personagem da vida real.

Porém, pior que isso é usar esse personagem como herói. Por ter uma boa voz e uma boa vontade. A voz ele herda da genética (e um pouco do seu teimoso instrutor de canto), e a boa vontade herda da sua irmã, que possui uma energia admirável. Ela não é apenas uma otimista, mas um ser humano que possui uma visão clara do que é capaz se tentar muito, e tirar do seu caminho tudo que não a ajudar, como uma insuficiência renal e até um possível namoradinho. Diz ela: "eu não tenho tempo para isso". Ela tem 12 anos no máximo. E é interpretada por Hiba Attalah com uma intensidade admirável.

Essa intensidade com que Attalah personifica a imagem da irmã do talentoso Assaf, a urgência daquelas crianças em tentar sair de Gaza a todo custo e o dinamismo do diretor Hany Abu-Assad (Paradise Now) confirmam a importância dessa parte tocante e trágica do filme em todo seu resto, quando, em um piscar de olhos, o jovem Assaf (Kais Attalah) dá lugar a um adulto Assaf (Tawfeek Barhom) e o remorso de ter tido cortado o seu sonho o faz reavaliar sua infância com a irmã e seus amigos e tentar seguir em frente, como se estivesse dormindo durante todo esse tempo. A montagem é uma poderosa arma de O Ídolo.

O que não quer dizer que seu roteiro seja. Escrito pelo próprio Hany Abu-Assad e Sameh Zoabi, a história gira em torno daqueles casos do programa televisivo de talentos. O cantor (que você já imagina quem é, e até qual programa de TV estamos falando, graças ao título do filme), além de ter uma voz impressionantemente linda (e ela é usada pelo menos uma vez como arma de manipulação, algo lindo de se ver), ele possui um passado marcante. E, como se isso não bastasse, ele mora em Gaza, o que o coloca na lista de heróis sobreviventes, muito embora não vejamos muito da violência ou do terror ou do risco de se morar na fronteira fortemente murada (e fuzilada) entre Israel e Palestina.

O interessante é que a premissa é poderosa o suficiente para concluir em um filme impactante. Porém, nada funciona no agitado terceiro ato. O Assaf adulto carrega uma visão um pouco amarga do mundo, e não é por acaso. Um acontecimento traumático em seu passado faz com que ele suspenda seu sonho, talvez para sempre, e todos nós entendemos esse trauma em sua vida, tanto que torcemos pelo personagem.

Mas não é o suficiente. A história de O Ídolo caminha por caminhos corretos e mantém uma tensão graças às ótimas direção, edição e trilha sonora. Porém, o suspense é perdido logo no começo. Quando é feita uma transição no final entre ficção e vida real (talvez uma tendência nos filmes biográficos de hoje em dia, vide Snowden), essa transição quase não funciona, ou demora para funcionar. O personagem do presente não é tão rico (em facetas) como o filme imagina; apenas seu passado e sua história.


# THX 1138

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Um dos primeiros curtas de um jovem George Lucas foi sobre um futuro distópico onde as pessoas possuem sua mente controlada e seus nomes são um conjunto de letras seguidas de números. Utilizando uma estética semelhante a La jetée, curta clássico do Cinema que deu origem a Os Doze Macacos, Lucas transforma seu próprio curta em seu primeiro longa-metragem de ficção. E eis que surge THX 1138, um trabalho de 1971 que hoje é um filme de vanguarda sobre futuros distópicos, ou melhor dizendo, um filme sobre filmes sobre futuros distópicos. As brincadeiras não podem ser levadas a sério, mas é justamente esse tom meio paródia e meio fantasia que torna THX um produto sólido dessa geração de cineastas que recriaram o Cinema americano nas décadas de 70 e 80.

THX 1138 não se preocupa em explicar muita coisa. Através da observação do funcionamento daquela espécie de cidade onde as pessoas vivem em função de controlar umas as outras pelo bem da "massa", do "Estado" ou do "Partido", o status quo já chegou ao nível religioso da coisa, onde o rosto de um homem e respostas automáticas é usada como confessionário pelos que não se sentem bem, mesmo após ter ingerido as drogas obrigatórias para todos.

Existem receitas para todos os habitantes. Alguns -- como os nascidos naturalmente -- possuem doses diferentes dos produzidos pela massa. Um dos trabalhadores centrais desse sistema, o THX 1138 do título, tem por função manipular peças radioativas que são usadas para construir robôs que irão vigiar os cidadãos e manter a ordem estipulada, onde demonstrações de afeto para com seu parceiro de quarto ou qualquer demonstração de sentimento é vedada.

O uso de construções simples, de estética brutalista, e cores básicas como branco e cinza, eliminam qualquer traço de estilo da realidade em volta. Os próprios habitantes possuem seus cabelos cortados por completo, e suas roupas são igualmente brancas, diferenciando apenas no crachá que são obrigados a carregar. Até a prisão desse tipo de lugar é de um branco inebriante.

Além do filme não explicar muito bem o destino de alguns personagens nem a escolha de cada um deles, é simples entender que a dinâmica de um mundo que não nos pertence possui suas próprias regras, e as pessoas enxergarão a realidade a partir dessas regras. Isso explica o terceiro ato e a necessidade de THX de fazer o que ele precisa fazer, em uma sequência de perseguição esteticamente linda, e com uma edição do próprio George Lucas que é apertada junto de uma trilha sonora particularmente inspirada de Lalo Schifrin, que usa tons desarmoniosos para compor temas sombrios e ao mesmo tempo lúdicos, lembrando que, apesar de um drama sci-fi feito em um futuro distópico e opressor, tudo aquilo não passa de uma simples brincadeiras de conceitos.

Mas brincadeira por brincadeira, o resultado é estrondoso. E não importa muito qual tipo de futuro distópico estamos tratando, quais as regras, etc. É mais um 1984 no sentido genérico da coisa (lembrando que até o Terry Gillian, de Os Doze Macacos, fez seu 1984, chamado Brazil). O importante aqui é entender como nos sentimos em adentrar em um mundo completamente diferente, que limita a ação humana, mas que ao mesmo tempo possui suas "falhas": indivíduos que sempre tentam buscar algo de dentro de si.

Uma pena que Lucas tenha depois deste filme e de American Graffiti se entregado à produção e gerenciamento da fortuna que foi (e continua sendo) a saga Star Wars. Parece haver muito mais sombras do que luz em sua visão de mundo, e é triste que os próprios filmes de Guerra nas Estrelas sejam ofuscados pelo fofinho e pela fantasia fácil. Ainda mais se lembrarmos que os robôs de THX lembram muito C3PO. Há uma história não-contada no universo de Star Wars que mereceria Lucas de volta à ativa.


# 3%

Caloni, 2016-12-04 cinema series [up] [copy]

Mais uma série Netflix advinda de um experimento de produtores brasileiros. Cheguei a ver o piloto experimental no YouTube. Parecia promissor, ainda que precisasse de polimento no formato novelístico e superficial. Hoje, com a primeira temporada já produzida em nível Netflix, é possível afirmar que ele ainda precisa de polimento, pois possui os mesmos defeitos ignorados pela gangue de roteiristas.

Há uma boa história em 3%, no entanto. Futuro distópico, humanidade (ou aquela parte da humanidade) é dividida em duas castas. Uma, por um motivo qualquer, é de pessoas com riqueza de recursos. A outra é a ralé, que vive em casebres que lembram as gigantescas favelas brasileiras. Os moradores da parte menos nobre possuem uma chance na vida de migrarem para a parte rica, desde que passem por um conjunto de testes idealizado pela... adivinha? parte rica. Alguns não estão satisfeitos com isso e montaram uma milícia revolucionária. Outros possuem uma história emocionante que você irá acompanhar em flashbacks em cada novo episódio.

Sim, estou sugerindo que tudo isso é muito clichê. Além disso, esse futuro distópico, apesar de possuir partes rica e pobre, é pobremente idealizado. A direção de arte e os efeitos visuais são pedestres. E parte dessa visão que nos é oferecida é culpa da direção, que insiste em tratar um "Ensaio sobre a Cegueira" como se fosse "Jogos Mortais".

Aparentemente, não só eles. A gangue de roteiristas parece se dividir entre os que conseguem arrancar ótimos momentos onde as equipes dos competidores interagem, construindo alianças e rixas temporárias e convenientes, além de atuações particularmente curiosas de acompanhar -- como um cadeirante traindo seu orgulho, se vitimizando, para conseguir passar de fase. No entanto, esses ótimos momentos estão embalados em um verdadeiro show de horrores de personagens da parte rica, que são paradoxalmente pobremente desenvolvidos, além de possuírem os diálogos mais cafonas (apesar disso, os participantes do campeonato possuem uma grande dose de diálogos pavorosos e reveladores demais do que estão sentido ou o que está acontecendo).

Além disso, o elenco está atipicamente irregular. Mesmo com alguns atores famosos e um elenco jovem que parece ter potencial, a série subutiliza, oferecendo comportamentos e atuações pedestres, mecânicas, que repetem diálogos novelísticos quando poderiam improvisar um conteúdo muito mais interessante.

No entanto, esta parece ser uma série didática que busca entregar tudo mastigado para seu espectador. E o motivo, eu posso estar sendo preconceituoso, mas tudo indica que é mais uma vez uma cartilha de esquerda, que mais uma vez quer subverter bons temas em prol de uma ideologia falida, e que em 2016 encontra símbolos grandiosos de seu retumbante fracasso. Isso explicaria, por exemplo, porque o mundo mostrado na série é tão simplório, que ignora fundamentos econômicas dos mais básicos para entregar a velha luta de classes embalada em um velho formato enlatado de série B.

Se há uma esperança na série é apenas se ela começar a ficar mais complexa. Se permanecer seu formato episódico, com o título determinando qual o próximo desafio, e mais um flashback de mais um personagem, ela irá virar o que desde o começo parece ter anunciado: uma novela com um estilo mais artístico. E com um orçamento limitado. Ou isso, ou seus idealizadores realmente não conseguem sair da caixinha vermelha nem se bem pagos.

Uma série para bandidos (com spoilers)

Caloni, 2017-01-01.

Michele e Rafael são idiotas úteis movidos por vingança -- e que poderia muito bem ser outro sentimento negativo, como inveja -- e instrumentados por um movimento semelhante ao PCC de São Paulo, Brasil. Seu objetivo como grupo é claro: roubar a riqueza dos que prosperam do "lado de lá", uma sociedade formada inteiramente através de um processo meritocrático, e que não precisou de nem um centavo dos milhares de miseráveis que sobrevivem como selvagens em uma grande favela sem leis chamada de "lado de cá".

Os fundadores do lado de lá foi um casal, que não obrigou ninguém a segui-los nem forçou ninguém a ajudá-los. Agora, mais de cem anos depois, vemos dezenas de jovens se digladiando em um processo que irá lhes dar o privilégio de sair da selvageria da lei do mais forte. No meio deles, Michele e Rafael "lutam" como piratas sem honra, como o escárnio da sociedade de miseráveis. Além de não conseguirem produzir nada que preste exceto pobreza e violência, os moradores do lado de cá aos poucos se organizaram em uma facção criminosa movida pela inveja, declarando politicamente que todos teriam direito aos recursos produzidos pelo lado de lá.

O lado de lá parece atingir com sua filosofia podre de lei do mais forte e apelo à emoção com tanta força seus descendentes do lado bom, que o processo parece ter escalado apenas as pessoas mais alheias à selvageria humana para conduzir o sistema meritocrático, encabeçado pelo frio e calculista Ezequiel. Ele já teve que ver sua mulher se suicidar porque não podia quebrar as regras do lado de lá, e mesmo assim manteve sua convicção no processo. Ele tem que lidar todos os dias com jovens de 20 anos de todos os tipos: de otimistas ingênuos que acham que irão ter tudo fácil no lado de lá até pseudo-revolucionários de merda que acreditam que sabem mais que todo mundo mesmo tendo acabado de sair das fraldas. Aliás, se considerarmos a grande massa juvenil, parece até descabido existir tão poucos com um pensamento mais comunitário e até comunista, já que está cientificamente provado que os que não possuem argumentos lógicos no início de sua vida adulta sentem-se apaixonados naturalmente por uma causa irracional. E qual é a causa irracional mais atraente senão aquela que lhe promete dar tudo mesmo sem você precisar produzir nada?

A verdade é que no meio de tanta estupidez nos crentes do processo, desde o começo da fundação do ingênuo casal corporativista (ou platônico?) que acreditava em uma utópica meritocracia ainda na vida adulta, nenhum dos dois lados parece ter um pingo de razão. Entendendo como o processo funciona, a porta de entrada para este mundo paradisíaco, fica difícil acreditar que de fato existe uma sociedade do lado de lá que seja mais esperta que o bando de jovens que lutam por um lugar ao sol. Se analisarmos o bê-a-bá econômico, já não faria sentido, mas filosoficamente falando, uma sociedade dessas só poderia ser formada por robôs, e não por ex-cidadãos favelados filhos de bandidos sanguinários.

As obras do destino no meio do processo parecem até terem sido escritas por um desses moleques descerebrados vestindo a camiseta do Che Guevara, o assassino cubano homofóbico declarado. No ápice do seu ódio desproporcional e sem explicação da classe média (senão a pura inveja), o processo acaba literalmente cortando ao meio um dos filhos do lado de lá (nascido no lado de cá, claro), com direito a todos os requintes de crueldade. E isso sem ninguém perceber que aquela prisão entre contêineres é justamente uma mini-sociedade lado de cá, onde não existe lei (ou, outra forma de dizer, é a lei do mais forte que impera).

Talvez o que torne o processo tão enigmático é que tanto os que selecionam quanto os selecionados ignoram que vivem em uma utopia. Nada, desde o processo até o lado de lá, faz sentido algum. A única coisa que faz sentido é o lado de cá, com sua miséria gerada por uma sociedade de pessoas limitadas, preguiçosas, ignorantes e selvagens. É isso o que gera a pobreza, e não um casal que decidiu há cem anos sair dessa barbárie para construir uma sociedade melhor. Acreditar que esse bando de animais merece alguma coisa de dois seres humanos apenas por existirem só pode ser fruto de uma mente doentia. E essa mente nunca passaria em seu próprio processo.


# Chef's Table

Caloni, 2016-12-04 cinema series [up] [copy]

As séries que costumo testar/acompanhar da Netflix me fazem às vezes questionar a capacidade da distribuidora de conteúdo de se manter na média das outras produtoras. Às vezes eles parecem ligeiramente superiores. E é o caso de Chef's Table, que se veste de uma série documental com cada episódio abordando um chefe de cozinha e o que ele tem a oferecer à alta gastronomia. Porém, no fundo, os idealizadores da série vão além, e embora sigam constantemente uma cartilha estática no roteiro (e na direção), os resultados podem surpreender.

É o caso, por exemplo, na primeira temporada, o primeiro episódio (Massimo Bottura), que trata de um chef italiano que subverteu a ordem em uma das cozinhas mais tradicionais do mundo. Sua história o favorece, mas também há uma certa virtude da direção e roteiro de aproveitarem essa história ao máximo. E é o que fazem, em um dos melhores episódios da temporada.

Isso, claro, se você não for muito fã da cozinha argentina. Não só dela, mas de um estilo de vida mais livre. Se este for o caso, irá se apaixonar pelo episódio do chef Francis Mallmann e sua vida voltada às coisas simples e que lhe dão mais prazer. O depoimento de Mallmann é poderoso justamente porque foge do convencional.

Porém, o resto dos episódios sempre tem um causo ou outro que irá dar uma nova visão do que é alta gastronomia, e sempre será filmado com uma qualidade impecável. É dessas séries que felizmente resolvem mostrar a coisa em vez de colocar pessoas simplesmente falando. Possui uma edição e montagem dinâmicas o suficiente para tornar tudo muito emocionante, além de despertar em nós o desejo de ver coisas sendo bem feitas. E que melhor coisa para ser bem feita do que uma comida que inspire o aprendizado por tentativa e erro?

E se formos parar para analisar todos os episódios, muito da história dos grandes chefs possui em seu núcleo erros grotescos, que foram assimilados simplesmente porque essas pessoas se recusaram a parar de tentar coisas novas. Além de gastronomicamente ousados, essas pessoas são seres humanos ousados.

Um alerta, entretanto. Esta série está claramente sendo patrocinada ou empossada pelo sistema de estrelas do centenário Guia Michelin. Se não for isso, não conheço o suficiente para entender se Michelin hoje em dia é algo como Coca-cola: podemos falar e defender mesmo que ninguém pague por isso.

Chef's Table no momento possui duas temporadas e todos os episódios podem ser assistidos em qualquer ordem. Vários podem ser pulados, e alguns (como os que eu citei) reprisados.


# Haters Back Off!

Caloni, 2016-12-04 cinema series [up] [copy]

É difícil saber o que esperar dessa série de humor da Netflix. Ela oferece personagens que são sobrenaturalmente estúpidos. Mas, ao mesmo tempo, é tentador entender a mente de pessoas tão estúpidas interagindo, especialmente se essas pessoas possuem uma visão tão fechada sobre o mundo e pretendem ganhá-lo, elevando à fama a garota mais mimada da casa: Miranda Sings (o nome veios antes da fama, para saberem que o que ela faz no YouTube é cantar). Se os personagens são estúpidos, e alguns deles possuem atuações dignas de nota, eu arrisco dizer que nada disso é relevante se você não olhar para o desempenho de Colleen Ballinger e constatar: esse projeto nasceu nessa performance. Quer dizer... o que é isso?

Ballinger consegue entonar seu nariz ao nível do ridículo sem soar exagerada além do que seu personagem propõe. Isso porque Miranda Sings é realmente idiota, não possui talento nem carisma. Mas possui algo que dizem que leva qualquer pessoa ao sucesso: força de vontade. Ela, assim como seu estúpido tio, acreditam em uma série de passos que irá levar Miranda aos holofotes mais potentes. E o primeiro passo, naturalmente, é gravar um vídeo e publicá-lo no YouTube.

A direção mista de Andrew Gaynord e Todd Rohal criam um ambiente igualmente surreal, onde a cidadezinha lembra lugares de outros filmes, como Edward Mãos de Tesoura, Mulheres Perfeitas, O Show de Truman, e ao mesmo tempo possui seu charme particular: as pessoas não percebem quando outras são perigosamente estúpidas. Ou não ligam. Quer dizer, até o funcionário de uma loja de peixes fritar todos eles com luz artificial.

O nível de gags da gangue de roteiristas oscila entre o simples idiota de um episódio de Chaves até o ligeiramente brilhante. É difícil saber o que virá em seguida. E parece que ambos os extremos costumam funcionar. Os que não funcionam não chegam a representar um perigo para a série, já que ela é composta -- já comentei isso? -- por personagens realmente estúpidos.

A única coisa que costuma incomodar am Haters Back Off! -- quem diria -- é quando seu roteiro é inteligente o suficiente para gerar a dúvida se aquelas pessoas são verdadeiramente idiotas ou estão apenas fingindo. E isso você verá muito pouco. Portanto, se assistiu um episódio ou dois, fica minha sugestão: dê mais uns 50% de chance para Miranda Sings. Ela pode tocar seu coração ou até outro órgão. E, com certeza, nunca seu cérebro.


# Killa

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Killa é um drama indiano de uma criança e se passa em uma cidadezinha, girando em torno das amizades do garoto na escola. É pesadamente regional, necessário ter um pouco de conhecimento dos costumes de lá, e o próprio drama é desenvolvido pelo diretor Avinash Arun de uma maneira hermética, quase impossível de tirar alguma moral, parecendo aqueles filmes que são sobre uma experiência sem maiores consequências. Felizmente, em seu terceiro ato, lá no finalzinho, ganhamos algo. O arco está cumprido.

A interpretação do pequeno Archit Deodhar, aliás, cabe perfeitamente aqui. Ele é um garoto introvertido, que consegue ser capaz de atos generosos -- como salvar um cãozinho atormentado pelos meninos da vila -- ou ao menos seus atos podem soar generosos vistos por alguém de fora (nós, espectadores). Quando um ato é o oposto disso, como dizer que a comida dos anfitriões cheira mal, todos estão presentes. Da mesma forma, seu personagem, Chinmay, é mimado e trata sua mãe como criada. Ela sequer tem um nome no filme, e é personificada pela atriz Amruta Subhash como uma sombra apagada.

O diretor Avinash Arun não tem muita pressa em estabelecer sobre o que a história se trata. O roteiro escrito a quatro mãos tampouco se decide muito por um caminho simples. É possível entender o formato geral, de criança que perdeu o pai cedo e que muda de escola constantemente, de que não se esforça por fazer amizades, mas sabe construir uma linha de influências para que ele próprio fique em evidência (o que, para alguém vindo de uma cidade maior, não é algo difícil de fazer, nem lá na Índia, nem aqui no Brasil).

Mimado, manhoso, introvertido, autoritário e com nada em seu currículo que agrade ninguém, é um mistério por que seus amigos continuam sendo seus amigos. Quando um acontecimento deixa o garoto perturbado, é compreensível vindo de alguém tão egocêntrico, e é fácil entender por que finalmente seus amigos se distanciam (o que não explica o que acontece depois, exceto que crianças não ligam para essas bobagens).

Construído como um filme de experiências no estilo Conta Comigo, "Killa" é muito hermético para passar alguma experiência maior do que eventos que ocorrem com essa família que está temporariamente em um vilarejo. Não nos acostumamos com o garoto -- que nunca entendemos -- mas por algum motivo inexplicável -- empatia? -- entendemos quando um pequeno arco foi fechado logo no final do filme. Fica a sensação de um filme que acabou de começar... e terminou.


# Somm

Caloni, 2016-12-04 cinema movies [up] [copy]

Somm é um documentário no sentido mais didático da palavra, mas que consegue através de sua narrativa quase sempre fluida entregar um pouco de tensão nos preparativos de um trio de degustadores de vinhos que se preparam há anos para tirar o certificado mais cobiçado e exclusivo do planeta. E, de quebra, você irá aprender uma coisa ou outra interessante sobre o mundo do vinho.

É necessário tomar cuidado com documentários que mexem com commodities assim como documentários que falam de ecologia e mundo sustentável. Ambos podem estar infectados com ideologias ou marketing puro. Felizmente, no caso de Somm o formato é mais biográfico, e acompanhamos a rotina exaustiva de três rapazes que ambicionam o título máximo entre os sommeliers, as pessoas que conhecem muito sobre vinhos e costumam trabalhar como especialistas em restaurantes chiques para auxiliar seus clientes.

O diretor e roteirista Jason Wise (trocadilhos com seu próprio nome e "wine"? (vinho)) entrega um filme que une depoimentos com o que eles representam visualmente, o que por si só já consegue ser melhor que a maioria dos documentários. Quando alguém comenta sobre determinado aspecto do vinho, somos logo levados a um lugar distante, em uma viníciola, ou adega ou restaurante, onde vemos de fato o que está sendo falado. Até o momento do teste em que eles precisam passar, embora não possa ser filmado, é narrado e pós-apresentado com uma tensão agradável de acompanhar.

Somm é um filme fácil de assistir, com diversas informações do mundo do vinho, e que potencialmente não tem muito de marketing escondido. Parece um caminho seguro para aprender mais sobre a bebida dos deuses.


# SOMM: Into the Bottle

Caloni, 2016-12-04 cinema movies [up] [copy]

Para os que assistiram ao documentário "Somm", este será uma continuação natural. Para os que não o viram, não irão perder nada, pois ele não é necessário para acompanharmos mais uma viagem didática e comportada -- como deve ser -- ao mundo do vinho, desde as besteiras de pontuação, até rixas de família pela mudança da tradição, até a abertura emocionante (pelo menos para os aficionados) de garrafas enclausuradas por décadas, para constatarmos, com alegria nos olhos e nas papilas gusta/olfativas, que para alguns vinhos, envelhecer pode ser uma ótima ideia.

E por falar em ideia, o objetivo mais uma vez do diretor Jason Wise é construir uma narrativa instrutiva e visual a respeito da história e dos detalhes sobre essa bebida tão "glamurizada" quanto amada. Muitas opiniões são ouvidas, desde o cultivo das uvas, as safras memoráveis, até o sistema de pontuação moderno de vinhos e a história de visionários, que transformaram determinadas regiões do planeta em novos pop stars do vinho.

Para quem assistiu ao documentário anterior, irá constatar que Wise pretende aqui abordar o que ele não conseguiu no primeiro filme ou, o mais provável, continuar uma possivel paixão desenvolvida na produção anterior (ou, uma terceira opção, puro marketing). Seja como for, para os amantes do vinho, este consegue ser um trabalho ainda mais agradável de se assistir. Em alguns momentos, quase emocionante.

Porém, a dinâmica do filme não permite, diferente do vinho, parar para respirarmos. Wise está disposto a dar um panorama geral do mundo do vinho em dez episódios que se abrem como uma carta de vinhos do restaurante. Muitos dos episódios se cruzam, e dão a ideia errada de seu título. Isso é uma falha mais dos entrevistados -- ou dos roteiristas -- do que a própria maneira de Wise de mostrar cada faceta do mundo do vinho. De qualquer forma, é interessante voltar a um tema já abordado para vê-lo com outros olhos, e se tratando de um filme curto e dinâmico como esse, curiosamente se aproveita mais indo e voltando a pequenos detalhes, como as notas de degustação, cujos sabores são vistos conforme os sommeliers os descrevem.

"SOMM: Into the Bottle" quer iniciar uma franquia, reutilizando personagens do filme original e dando espaço para futuros trabalhos que adentrem em um aspecto mais técnico do mundo dos vinhos. Acredito que dificilmente atingirá esse objetivo se focar no espectador médio. Terá que ser mais um vídeo informativo para aficionados pelo tema, ou os roteiros terão que ser cada vez mais inspiradores para chamar a atenção. Seja como for, você na verdade nunca sabe o que esperar da próxima garrafa até abri-la.


# A Qualquer Custo

Caloni, 2016-12-08 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

A Qualquer Custo, a despeito de ser dirigido por um inglês, é um filme o mais texano possível, no mau e no bom sentido, o que acaba se tornando aos poucos algo fenomenal, já que o estilo de vida do texano acaba meio que virando um personagem a mais, ainda que não exatamente personificado em ninguém em particular. Apesar disso, eu usaria como representante da hospitalidade texana uma garçonete de uma cidadezinha que atende dois "Texas Rangers" com um mau humor (ou a falta de) peculiar, avisando que todos os que vão em seu restaurante pedem T-Steaks com batata. A única liberdade de seus clientes é tirar do prato ou o milho ou a vagem do prato. Ah, e todos devem tomar chá.

E talvez o filme só exista justamente porque a história se passa no Texas. Pelo menos é o único lugar do mundo onde elementos essenciais em sua cultura como armas, liberdade individual e "poder falar o que quiser" convivem mais ou menos juntos com sua paisagem desértica, planícies sem fim e os comentários racistas dos mais velhos. Sim, eles falam o que quiser, muitas vezes na frente dos próprios ofendidos. E muitas vezes eles são o seu parceiro policial, o que deveria te proteger com a vida. Bom, pelo menos os mais velhos já são vistos com desconfiança e cautela. Quando o personagem de Jeff Bridges faz um desses comentários sobre o colega na frente do gerente do banco, o gerente conclui que Texas Rangers são pessoas estranhas, no que o colega retruca, corrigindo impaciente: não todos os Texas Rangers são estranhos: apenas ele (subtendido: esse velho).

E no meio de um tiroteio de palavras e ações ríspidas que este filme fornece, a crise hipotecária americana não chega a ser exatamente um alvo, mas colabora imensamente para a narrativa. Os assaltantes procuram pequenos bancos em cidades praticamente mortas por causa da crise. Isso inclusive lembra um pouco de velho oeste, que é incitado logo no final (graças à direção inspirada de David Mackenzie e a edição precisa de Jake Roberts). O roteiro ainda faz um gancho utilizando o passado indígena do Texas, contando a história da invasão americana em suas terras há 150 anos, em uma conversa pra lá de inspirada em um dos momentos altos do longa, que termina fazendo uma rima temática que flerta sem sutileza com toda a potencialidade dramática do último filme do Tarantino (Os Oito Odiados, que contém um subtexto da violenta história americana).

Tudo isso é apaixonante em A Qualquer Custo, em um filme que vai cativando o espectador aos poucos, sem muita pressa de tomar as rédeas de sua fabulosa e intrincada história, que embora pareça apenas mais um policial, é dos grandes desse ano. Mal vemos e ele vai se tornando mais intenso na ação, embora sempre se lembra que é o drama que o pavimenta; e se ação sem drama não vale a pena assistir, um drama seguido de ação é dez vezes mais eficiente. Principalmente se entendemos as motivações dos personagens, por mais insensatos que sejam.

Pois veja bem: os irmãos Tanner (Ben Foster) e Tobby (Chris Pine) resolvem assaltar bancos em uma região onde, todos sabem, é comum as pessoas andarem armadas (e saberem atirar). Isso, claro, não se torna um problema de imediato, porque o plano deles é sempre serem os primeiros a chegar ("quem cedo madruga...", já dizia o mais velho, Tanner). Esse parece ser um bom plano, mas o próprio filme já anuncia a tragédia logo no começo, quando em um dos bancos eles encontram um velhinho armado que já lhes causa alguns problemas. E é curioso como o nível de "coragem" (ou estupidez) da dupla vai aumentando, principalmente a do personagem de Ben Foster, gradativamente, embora de maneira tempestuosa e cada vez mais imprevisível. É difícil acreditar que ele está no controle dos seus atos, ou que alguns atos descontrolados do sujeito acabam descanbando no que vemos no filme. Só o amor ao irmão explicaria... mas este não é um filme sobre amor, mas sobre ódio.

Ódio do passado, da exploração do sistema financeiro que tanto acusam de roubar-lhes, tendo os bancos como seus assistentes desalmados, nessa atmosfera em que as pessoas, perdendo suas casas e lutando pra sobreviver, não estão apenas infelizes, mas rancorosas. E no meio desse ódio surge o personagem de Jeff Bridges, o "ranger" Marcus Hamilton, um policial quase se aposentando, durão e sem meias palavras, que aparece ao espectador como uma figura repulsiva onde temos todos os motivos para odiar, mas que só a persona de Bridges consegue usar isso ao seu favor e construir um personagem que de certa forma é vulnerável, mas se esconde em seu jeito durão e ríspido com as pessoas.

Já o personagem de Chris Pine, o irmão caçula Toby, pouco tem a dizer, mas quando diz também possui seu momento mágico ao lado do filho. Ele sabe que nunca foi bom exemplo para o menino, e faz questão de dizer isso para ele, como um conselho, talvez o único conselho de que é capaz. Sua atuação é mais expressiva através de seu olhar obstinado e sua forma quieta e pensativa de apoiar o irmão durante a execução do seu plano, como vemos em uma parada em um posto em que nenhuma comunicação entre eles é necessária para o desfecho que vemos. Pine, apesar de sentir perder o controle a cada novo assalto tenta se manter são a todo momento, praticamente sumindo de sua persona nas comédias, e até mesmo da figura bonachona de seu primeiro Star Trek.

E Ben Foster, o homem da ação, consegue no meio dos dois criar um contrapeso necessário, um modo explosivo e tempestivo de fazer as coisas. São as cenas estáticas onde vemos os irmãos que sugerem toda uma dinâmica particular entre eles. Não são necessários diálogos expositivos para descobrirmos que um é viciado em adrenalina, enquanto outro se utiliza dessa energia para por em prática um plano meticuloso, que o roteiro tem o bom senso de não explicar de uma vez ao espectador, que vai aos poucos entendendo todo o esquema que fará com que eles (teoricamente) saiam dessa.

Esse trio cria personagens que gostaria de ver em outras histórias, juntos ou separados. O filme pega um momento intenso na vida de todos, ou a síntese de cada uma de suas vidas. Quando isso acontece, brinca-se um pouco de metalinguagem, ao usar mais uma aposentadoria de um policial com o último caso em mãos -- um clichê automático -- e um parceiro mestiço que será alvo de piadas. A aposentadoria de Jeff e seus comentários racistas lembram uma metalinguagem interessante, já que seu parceiro-índio é coadjuvante, e embora deva morrer primeiro, Bridges sugere que ele será o herói, sendo seu parceiro o vingador de sua morte.

Preenchendo com uma trilha sonora texana divertida com seus momentos dramáticos -- e até um tema surpreendentemente eficiente -- o filme possui uma direção naturalista, que começa movimentando a câmera em um plano-sequência, mas que também interfere no que olhamos (como a grama no final, ou o uso elegante de girar do lado de fora da cena para em seguida adentrar em um veículo). O diretor David Mackenzie consegue manter o controle a todo momento, mostra a que veio, mas sem querer exagerar em qualquer ato. O resultado é um filme sóbrio, e por isso mesmo mais poderoso ainda.

Mas a estrela do filme é mesmo o roteiro. Escrito pelo ator Taylor Sheridan (que faz uma ponta), que já havia escrito "Sicario: Terra de Ninguém", o filme de Denis Villeneuve, ele é a prova viva de que roteiros originais podem não ser o mainstream em Hollywood, mas com certeza é de onde vem as melhores surpresas. Minucioso nos detalhes e mantendo o espectador sempre com uma pontinha de querer saber mais, Sheridan consegue caminhar passo-a-passo com ambos os lados da perseguição à distância, e mesmo que nada esteja ocorrendo é na mente dos perseguidores e perseguidos que a ação se desenrola.


# Estados Unidos Pelo Amor

Caloni, 2016-12-09 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

É curioso como em "Estados Unidos Pelo Amor" -- novo trabalho do diretor (e roteirista) Tomasz Wasilewski -- o destino de cada personagem termina necessariamente em um drama, mas que nunca é suficientemente trágico. Pelo menos não para as mulheres envolvidas em quatro histórias que se cruzam em um vilarejo na Polônia na época comunista. Este é acima de tudo um filme sobre um grito silencioso na imensidão do horizonte.

Uma garota cai no lago congelado; uma mulher fuma no banheiro para abafar seu desespero; uma jovem vomita no mesmo recipiente usado para limpá-la. As radicais decisões dessas mulheres são proporcionais ao seu nível de dor e carência. Elas sofrem internamente, e a forma com que cada uma delas desenvolve essa relação com a dor é o tema que as une. A palavra amor é usada muitas vezes no filme. Alguns tentam defini-la em uma escola, sugerindo ludicamente que esta não é uma palavra que é definida em uma sala de aula, quando um aluno pergunta ao professor se ele já fez sexo.

É esse sentimento vago de incapacidade de amar a não ser na forma parasitária, isto é, dependendo de outros para sentir algo, que norteia toda a história de Tomasz Wasilewski. Sem trilha sonora alguma para distrair, nem mesmo nos créditos finais (exceto as músicas diegéticas, ou seja, que ocorrem no próprio universo do filme), e uma fotografia fria, que abusa do azul celeste e da neve, sugerindo isolamento emocional -- além de estarmos na Polônia soviética e em plena Guerra Fria -- não há distrações para o espectador; os "enfeites" estilísticos são retirados em prol da visualização intensa da pobreza e miséria, não apenas material, mas principalmente, espiritual.

Na primeira história, um casal se distancia na comunicação, onde até o sexo vira algo acessório alimentado pelas fantasias da esposa com respeito ao padre do vilarejo. Já na segunda história, uma amante abandonada por conta da culpa assimilada pelo seu amante que acaba de perder a esposa. A terceira história, uma paixão proibida de uma professora recém-aposentada. E, por fim, a quarta, a solidão niilista de uma jovem que almeja a fama para suportar sua vida normal.

Todos esses panoramas se unem em torno de um universo frio e onde o sexo, visto e assistido naturalmente, não é algo sedutor, mas mecânico e desesperado, como a procurar um significado que não existe no próprio ato. Essas pessoas não estão apenas carentes de recursos, citado pontualmente com filas e racionamento, mas carentes sobretudo de uma auto-estima essencial para que o verdadeiro amor surja. A direção estática de Wasilewski, com quadros quase sempre parados, denota o marasmo e a mesmice, e exceto em alguns poucos momentos, como uma valsa dançada ao som de Danúbio Azul, visualiza a depressão de um povo com um olhar não apenas curioso, mas fascinado. Tentando olhar por dentro das pessoas exibindo sua nudez e sua intimidade entre quatro paredes, além dos joguinhos de sedução, como fingir que tropeçou na escada, o filme tenta desesperadamente achar um significado para tudo isso, o que torna o conjunto da obra de uma poesia vazia, frustrante, mas ao mesmo tempo poderosa e densa, por eliminar todo o resto que faz um filme palatável.

Um filme como esse depende muito das atuações, e há algumas pequenas descobertas aqui. Como Julia Kijowska, uma dona de casa que perde seu suporte espiritual ao se apaixonar por um padre e não conseguir entender seu próprio ser. O elenco fica à mercê do controle obsessivo da direção, mas se entrega na medida em que o filme consegue capturar essa fuga de suas próprias personas e máscaras usadas no dia-a-dia. Isso não as tornam hipócritas, mas autênticas, embora invisíveis aos outros ao redor.

E, diga-se de passagem, os homens ficam de fora de toda essa equação. Eles são às vezes o alvo do desejo, mas só isso. Este é um filme que foca basicamente no drama feminino, na busca amargurada das mulheres por compreensão, carinho, saciação da vontade do próprio ser, algo que aquele mundo é incapaz de lhes entregar. E elas quase não são vistas como indivíduos, mas como mulheres parecidas, presas à situação política, econômica e afetiva do mundo que as acolheu como estereótipos de alguma função social qualquer.

O curioso em "Estados Unidos Pelo Amor" é que seu título sugere alguma crítica política ou algo do gênero, mas a atmosfera do filme está muito mais voltada aos seus personagens, de forma muito semelhante ao ótimo Ida. É um filme difícil, submerso em indizíveis, mas visualmente arrebatador, hipnotizante, que não entregará respostas fáceis aos conflitos existenciais e amorosos em sua história, mas pelo menos tenta de todas as maneiras, já se saindo muito melhor que a imensa média de acomodados.


# O Aluno

Caloni, 2016-12-09 cinema movies [up] [copy]

Este é daqueles filmes bonitinhos, com lição de moral, ou lição de vida, que tenta aumentar a trilha sonora solene e emocionante sempre que pode, além de colocar lágrimas nos rostos dos personagens para induzir o espectador ao choro fácil. Choro fácil este que não vem, já que seus personagens não são assim tão carismáticos, e o protagonista, apesar da história de vida sofrida, não possui condições de exprimi-la de uma maneira civilizada.

Mas o que pode ser um problema para um filme do gênero poderia muito bem ser uma defesa mais que inspirada no aspecto tribal da cultura africana. O filme trata disso, de como as tribos, apesar de rivais, viviam com uma certa harmonia -- ainda que separados e com rivalidade -- antes do homem branco chegar, representado pela Rainha da Inglaterra, e tocar o terror para conquistar e unificar. Fica a dúvida se essa desunião dos povos já existia ou foi mera estratégia do Império Britânico de conseguir aliados locais e chegar rapidamente à vitória.

Começando como uma fábula lúdica, onde um velho tenta entrar em uma escola aberta para educação primária, o filme já começa demonstrando a estupidez dos governantes, que anunciaram orgulhosos "educação para todos" na mídia -- representada aqui por um locutor de rádio alterado e bem-humorado -- ignorando que não cabem 200 crianças em 50 cadeira em uma sala de aula, e que "todos" inclui... bem, todo mundo disposto a aprender.

Então o roteiro simplista de Ann Peacock demonstra como é desproporcionalmente violenta e sem sentido a revolta geral, não só da população, pais das crianças matriculadas, como do alto escalão responsável por coordenar o investimento em marketing... quer dizer, em educação, repetindo sempre a mesma lengalenga de qualquer governo populista: as crianças são o futuro da nação.

De fato são. Mas qual futuro esperar de crianças que sequer conhecem o seu passado, de seus descendentes? Sem saber de onde veio o sangue que pavimentou as ruas da nova nação fundada à força, vemos como o populismo já alcança níveis absurdos em meio a tanta desigualdade.

E é aí que entra o velho: Maruge.

Interpretado de uma maneira vazia pelo simpático Liver Litondo, Maruge não consegue despertar simpatia por si só, mas apenas através de sua história. O que se torna um paradoxo, já que é a mesma pessoa que viveu os flashbacks que acompanhamos durante o filme, inclusive um trauma fortíssimo que fez com que ele não apenas ficasse com medo de apontadores de lápis, mas sem ouvir direito. Porém, Maruge não é alguém de espírito livre que decidiu aprender coisas novas no fim da vida. É um velho teimoso que quer provar um ponto.

Ponto esse desperdiçado pelo longa ao relativizar os esforços do velho para aprender a ler no último minuto, e banalizado novamente pelo roteiro de Peacock, que enxerga um drama para família com estrutura básica onde reside algo muito mais violento, profundo e politizado.

Este não é um filme para família, apesar de escrito e dirigido para tal. Mas não se pode ensinar as pessoas dessa forma, e nem entrentê-las. Se elas ficam revoltadas pela presença de um velhinho na sala de aula, quanto mais estupidez você acha que encontra nas massas?

Claramente com ideais pseudo-liberais, O Aluno se sabota ao tentar simplificar um tema, e embora tenha um estilo competente, traz uma história fraca como pano de fundo. Fica a sensação de que poderia ser melhor... mas na verdade acho que não.


# The Pleasure Garden

Caloni, 2016-12-09 cinema movies [up] [copy]

Alfred Hitchcock começou sua carreira no cinema como desenhista de intertítulos, os letreiros de falas que aparecem quando um personagem diz algo importante nos filmes mudos. Este é seu primeiro filme longo na direção depois que as pessoas o notaram em seu curta-metragem Always Tell Your Wife. E para surpresa dos que dizem que este é o século das adaptações, a história do filme foi baseado em um romance.

Se trata, aliás, de uma história típica de novela ou romances esparsos. Duas amigas e dois amigos formam dois casais. Dois não prestam e dois são bonzinhos. A história gira em torno da troca de casais, que vai ocorrendo naturalmente conforme os eventos vão levando os personagens para este caminho. Hoje é um clichê, na época talvez uma diversão. Além de emocionante.

Não há muito o que dizer de Hitchcock em si. É seu primeiro trabalho, e é muito mais trabalho do que qualquer coisa. Há algumas transições interessantes, como o adeus da noiva para a saudação da amante. Além, é claro, do charme do p&b e das luzes para indicar ao espectador o que ele tem que olhar na cena.

As atuações convencem, assim como a trilha sonora. O figurino das mulheres é outro charme à parte. Elas trabalham em um teatro de dança, mas pouco é visto. Hitchcock apenas faz uma introdução, correndo a câmera pela plateia masculina, sentada na primeira fileira e observando as pernas das garotas como lobos.

Mesmo uns 90 anos depois, ainda garante tensão. Não é perfeito, tem falta de sincronia aqui e ali, mas a história é boa, além das personagens. A melhor é a atuação de Virginia Valli como a bondosa Patsy. Ela deixa um traço de personalidade em uma época onde haviam personagens mecânicos.


# Blue Jay

Caloni, 2016-12-10 cinema movies [up] [copy]

Antes eles imitavam o futuro. Hoje eles se reencontram e retornam ao passado. Um filme inteiro em preto e branco porque é sobre memórias. A beleza dos tons de cinza de um filme invocam a poesia da realidade. Porém, no paradoxo mais charmoso do Cinema, o p&b também torna a vida mais real.

E para garantir isso o diretor e fotógrafo Alexandre Lehmann escolhe a natureza morta de uma cidadezinha decadente, apresentando o retorno de uma ex-moradora com toda a imersão saudosista que ela ardentemente precisa. Ela encontra o ex-namorado da adolescência no mercado local, e a partir daí uma série de eventos vai fazer com que os dois relembrem seu passado e se envolvam em diálogos não tão inspirados quanto a Trilogia do Amanhecer, mas muito mais simbólicos.

Sarah Paulson a princípio não soa como uma boa atriz para o papel. Muito inerte em seus trejeitos melodramáticos, ela tira isso da frente em algum momento da história e acaba pertencendo mais ao mundo que o filme representa.

Esse mundo de contar histórias. De nós, espectadores da vida real, contarmos histórias para nós mesmos, de como seria, de como vai ser, de como era. Uma realidade alternativa apaixonante, que encontra reflexo na própria nostalgia de quem assiste e sabe como é pensar nos contornos que a vida dá.

O roteiro de Mark Duplass, que faz o personagem Jim, é sutil demais, natural demais. Ele tropeça no naturalismo, usando falas tão realistas que soam amadoras. Ele pergunta se está tudo bem duas vezes seguida. Sua atuação não está à altura do seu próprio roteiro, mas com certeza está a caracterização de alguém que está passando por maus bocados. Ele é autêntico, e assim como Paulson retira a persona teatral que poderia surgir em um filme sobre duas pessoas dialogando, e tenta dialogar como a própria personagem desta história, Duplass acerta ao retratar seu Jim como intimista, melancólico e, lá no fundo, esperançoso.

Este é um filme para quem tem paciência para o Cinema. Encontramos pouco movimento na ação em si. O suficiente para que essas duas pessoas revivam o que antes era a realidade de um futuro juntos, e hoje se torna um sonho que nunca foi concretizado.

E quantos de nós tem algum desses guardado em nossas gavetas? É depressivo quem vive para o passado, mas gastar uma hora e meia em uma ficção que aborda o tema é fascinante.


# Neruda

Caloni, 2016-12-12 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

"Neruda" é um drama poético com tons de comédia. Pois só a comédia para explicar uma história de perseguição onde nada acontece e onde seu protagonista vive para narrar o que não está acontecendo. Isso seria por si só uma péssima ideia para roteiro, um filme onde não acontece nada. Mas, estamos falando da vida de um poeta, que se define recusando qualquer definição minimamente coerente e que, por ser poeta, diz muitas coisas sobre coisa nenhuma.

O poeta Pablo Neruda é uma figura que fez parte do imaginário intelectual chileno e ganhou voz mundial conforme a esquerda foi tomando conta do discurso e, naturalmente, ganhou o prêmio Nobel de literatura. Inserindo-nos na vida política do escritor como senador pelo Partido Comunista Chileno, o filme já nos coloca como "o comunista mais importante do mundo". Essa sua defesa apaixonada por sua causa o acaba colocando em maus lençois quando o presidente do Chile passa a ser influenciado fortemente pela direita conservadora americana e sua política de caça aos comunistas feito no mundo todo, mas em especial na América Latina.

O mais curioso nessa história é que a perseguição de Neruda coloca em ênfase não exatamente a figura do escritor, mas do seu perseguidor: o diretor geral da Polícia de Investigações do Chile, Óscar Peluchonneau, interpretado pelo camaleão Gael García Bernal, que ultrapassa a sua quarta parede de maneira mais intensa. Sua existência (inclusive na vida real) se torna uma brincadeira tão eficaz quanto o livro O Mundo de Sofia, o que não poderia deixar de fazer parte do emaranhado caótico que o roteirista Guillermo Calderón apresenta desta perseguição para torná-la o mais nonsense e surreal possível.

O roteiro de Calderón, aliás, tece uma narrativa principalmente dentro dos seus personagens. Há acontecimentos a todo momento, mas estes são vagos e servem como desculpa para mover a psique daquelas pessoas, que se sentem dentro de um livro de ficção policial narrado por um poeta fugitivo. A burrice aparente do diretor, aliás, é o que torna a perseguição mais cômica e cartunesca. Seu alvo, o poeta do povo, se diverte enquanto não é pego, entregando romances policiais a cada lugar que esteve, mobilizando todos seus camaradas para tentar mantê-lo livre e escrevendo (algo que Neruda faz com uma naturalidade tal qual respirar).

A direção de Pedro Larraín ("No") usa artifícios inteligentes para manter o orçamento no controle e ao mesmo tempo dar o ar fictício à trama. Dessa forma, as tomadas externas quase sempre se concentram em seus personagens, e quando estão dentro de um veículo, usando o artifício antigo de usar projeções ao fundo fingindo a paisagem em movimento, no melhor estilo Hitchcockiano. Isso não quer dizer que se trata de uma produção barata, mas sim uma produção que sabe muito bem onde gastar. Com uma fotografia saudosista, filmam a antiga casa de Neruda em Santiago (hoje um museu) como um labirinto artístico, de onde surgem seus amigos como num passe de mágica. E toda a sequência na neve, o ponto alto da trama, é particularmente irretocável, tanto pela sua beleza estética quanto pelo seu significado metalinguístico, pois é como se a neve resgatasse o branco das páginas de um livro que vai se compondo conforme os eventos se sucedem. A questão mais fascinante do longa é: quem é o protagonista dessa história?

Curiosamente, "Neruda" evita usar o saudosismo barato e aplica técnicas de narrativa literária em uma produção cinematográfica, tornando o conjunto da obra quase que uma homenagem a um poeta que não tinha muito o que dizer senão repetir suas homenagens ao homem comum, a elevação da paixão e do amor como necessidades biológicas mais fortes que a respiração e, claro, sua ode ao comunismo. Seja lá o que ele verdadeiramente quis dizer com isso. Muito provavelmente nem ele sabia.


# Eu Fico Loko

Caloni, 2016-12-13 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Quando uma produção comercial (no sentido mais pleno da palavra) se torna um bom filme não pelo seu roteiro redondo ou arco dramático eficaz, mas pelo seu mensageiro de novidades surreais no mundo da internet, que cai na telona do Cinema tanto de para-quedas quanto em queda livre, é porque está acontecendo algo de muito estranho, mas ao mesmo tempo interessante, no Cinema/TV/YouTube. E no caso de Eu Fico Loko, o fato dos eventos terem sido parcialmente reais torna pelo menos a história viva, fugindo do lugar-comum dos filmes nacionais do gênero. Claro que a produção conspira contra isso, tentando trazer o filme para o clichê a todo momento. Mas, felizmente, a internet e a vida real estão cada vez mais distantes dos terríveis enlatados da TV e das globochanchadas.

Começamos o filme entrando na biografia reversa de alguém que se tornou estupidamente famoso, e que anda em câmera lenta do lado de outras "lendas" (como Galinha Pintadinha). Ao criar o velho esquema de flashback com narração para acompanharmos a história da vida de Christian, representado no filme por ele mesmo, o fato dele ter apenas 22 anos faz com que ele próprio se considere meio um Justin Bieber, já que sua história se passa nos "longínguos" anos 2010, quando Orkut ainda existia, mas pelo fato das famílias começarem a acessar as contas dos filhos/sobrinhos/netos, estes começam a migrar em massa para o Facebook. Um momento épico da internet brasileira.

Sim, este é um filme que fala um pouco sobre a internet. Em específico a brasileira. Afinal de contas, o Orkut virou patrimônio nacional, a ponto da Google traduzir a interface para português (do Brasil). No entanto, as referências são tantas, e tão vagas, que fica difícil entender se essa cronologia está correta (já existia YouTube em 2010? resposta: já; mas tudo é tão recente que se mistura com o presente). De qualquer forma, "falar de internet" é diminuir demais o escopo do projeto. Estamos presenciando uma mistura sadia e potencialmente reveladora entre os clichês televisivos e a mudança de milhões de jovens impopulares, quando estes começaram a "se esconder" em canais de vídeo online.

Uma das coisas que foge do clichê e que se sai razoavelmente bem é a mistura do ator e personagem da vida real, representado facilmente por Christian Figueiredo, que já possui quase 600 vídeos no YouTube e a maioria deles com milhões de visualizações. Ainda assim, a interpretação independente de Filipe Bragança como seu alter-ego de 15 anos é o que faz a magia funcionar melhor. Filipe cria uma estranheza absurdamente atual, já que é impossível usar um ator que represente o protagonista apenas 7 anos mais novo e não sabermos que se trata de outra pessoa. O fato disso não interessar muito, já que a "mídia" que está em uso se mistura com vídeos de internet é sinal de algo novo, mas que parece precursor de algumas ideias interessantes para o futuro.

Quer algo mais relevante ainda como sinal de mudança dos tempos? Este filme é visto em massa na cabine de imprensa, geralmente às moscas quando passam filmes "de arte". O motivo da lotação é porque em seguida à projeção haveria uma entrevista com os astros da produção. E isso não significa que estão todos lá para fazer perguntas à desperdiçada Alessandra Negrini, que faz a mãe do garoto no filme, mas sim ao próprio Christian Figueiredo, que hoje é a definição exata da expressão "celebridade da internet".

Mais curioso ainda é perceber que o roteiro, assinado, além do Christian e do diretor estreante (no cinema) Bruno Garotti, também o é por Sylvio Gonçalves, que além de ter colaborado com o terrível S.O.S.: Mulheres ao Mar, também co-roteiriza "É Fada!", um filme protagonizado pela vlogger Kéfera Buchmann. Além do mais, Garotti abraça a história sem perceber -- ou sem percebermos a pressão dos produtores -- que está dirigindo uma biografia de um garoto de 22 anos. Claro que não há muito drama nessa história, mas apenas eventos espalhados pela vida conturbada de um garoto tímido e impopular na escola.

E este não é um vídeo caseiro. Muito pelo contrário. Usando locações caras, com figurino rebuscado (mais do que novela) e atores famosos, "Eu Fico Loko" pavimenta sua estrutura como uma comédia de situações fictícia que se aproveita do fato de que a vida real é muito mais divertida, o que torna o conteúdo narrativo dos três roteiristas imensamente acima da média. O filme se torna uma bizarrice sem tamanho onde realidade e ficção se juntam para mostrar antes de tudo essa metamorfose de formatos de mídia.

Utilizando uma edição vídeo-clipe, recorrendo frequentemente a câmeras lentas e colagens que eliminam o embaraço da vida real, como o som da música da banda nerd, além de utilizar uma trilha sonora empolgada e mais que apropriada com o tema jovem, "Eu Fico Loko" consegue se tornar longo em 90 minutos de duração, mas acaba acertando, já que ser um adolescente problemático é comprovar que o tempo, no universo, às vezes congela. E não temos na hora a ferramenta de edição para ficar bonito o upload.


# A Última Lição

Caloni, 2016-12-15 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

A Última Lição é um filme importante para o tema "liberdade sobre o próprio corpo" levado para o aconchego do sub-gênero "filme para a família", o que é uma coisa natural para a família francesa, mas anormal em boa parte do mundo. De qualquer forma, este é um filme que tenta se livrar dos preconceitos e analisar uma situação delicada com a sensibilidade que ela merece.

Tudo começa no aniversário de 92 anos de Madeleine. Cansada e já tendo preenchido sua lista de últimas coisas a fazer na vida (como dirigir), ela decide anunciar em sua festa, com toda a família presente, que irá desistir da vida. E com data marcada. Isso gera o silêncio e um distúrbio completo em todos que estão presentes, que até então pareciam estar completamente alheios à existência da velha senhora.

O que acontece em seguida é curiosíssimo. Parece que o luto de cada um dos familiares, filha, filho e neto, está exposto para todos verem. Acompanhamos o envolvimento de cada um com a amada vovó, enquanto também presenciamos que ela, de fato, está fraca demais, e que logo não poderá tomar conta de sua própria vida.

Ativista a vida toda pelos direitos da mulher, Madeleine naturalmente se sente deslocada quando seu próprio corpo para de responder ao seu ímpeto de viver em plena liberdade. A atuação de Marthe Villalonga, então, consegue conferir a doçura da terceira idade aliada a uma determinação lúcida, de quem entende o que está propondo, mas não finge que é uma decisão fácil, sabendo de antemão que ela própria sofreria ao ver a reação dos filhos, e até do neto mais velho, com quem em particular possui uma relação de cumplicidade.

E da mesma forma com que em um luto muitas pessoas não aceitem nunca a perda, ou aceitem só depois de muitos anos de sofrimento, a revolta dos que ficam nunca é vista pelos que já foram, mas nesse caso sim. E é doloroso, visceral, como o ser humano carrega tanto ódio e ressentimento por alguém que paradoxalmente tanto ama.

Porém, ninguém se aproximou mais de sua vida do que a filha, Diane. Interpretada com facilidade por Sandrine Bonnaire um papel não muito simples, Diane não parte rapidamente da tristeza e revolta para a resignação, passando por vários níveis de aceitação com sua mãe, no processo mais tocante de todo o drama. Acompanhamos aos poucos alguns flashbacks e vídeos da família no seu começo, quando Diane era apenas uma garota de tranças carregada nas costas da mãe. É inevitável que o filme queria sugerir a inevitável inversão de papéis, mas ao mesmo tempo que entende que cuidar dos pais quando velhos é um ato generoso, ele também entende que pior do que não respeitá-los é abandoná-los convenientemente em um asilo, para definharem longe dos olhos dos entes queridos. Quase como um móvel que alguém não usa mais, mas por algum valor afetivo não conseguiu se desfazer, deixa em um canto de um quartinho apenas para saber que está lá.

Nesse sentido, A Última Lição é um ótimo filme para pensarmos a respeito de quais os limites da nossa liberdade, e porque hoje é errado fazermos o que quiser com nosso próprio corpo, mesmo que isto magoe os que mais amamos, sendo que no fundo, ao não fazermos, magoamos a pessoa mais importante dessa vida: nós mesmos.


# Animais Fantásticos e Onde Habitam

Caloni, 2016-12-15 cinema movies [up] [copy]

Quando a série Harry Potter terminou nos cinemas veio a sensação de saudade com um misto de "saga intocável", no sentido de qualquer tentativa de "George Lucarizar" a franquia estaria fadada ao fracasso. A não ser que fosse apenas utilizado o universo onde se passam os filmes, mas não os mesmos personagens, ou as mesmas situações (mago do mal, cada filme um ano na escola). Pois bem. A partir de Animais Fantásticos, a escritora J. K. Rowling pode ganhar o título de "escritora fodona" de verdade. Ela não recicla ideias que a tornaram um sucesso (e milionária). Ela não usa personagens que os fãs abraçaram como muletas afetivas. Ela cria uma história do zero, fugindo completamente do mundo HP e apresentando novas criaturas e novos conceitos, enriquecendo e expandindo o universo em vez de sugando-o. Aprendeu como se faz, George Lucas/J.J. Abrams?

Apresentando Newt, um garoto curioso que é aficionado pelos animais exóticos que cria, e que chega em uma Nova York sitiada pelo medo e insegurança, além de um crescente sentimento de ódio aos bruxos entre os mais radicais. No entanto, como não é só de radicalismo que vive o mundo, um grande editor da imprensa se aproveita desse clima de extremos para eleger seu filho, em uma perfeita alegoria da situação política do mundo atual.

Porém, esse panorama nunca conhecemos através de descrições chatas e expositivas, algo comum para cineastas preguiçosos. Os detalhes vão sendo montados um a um conforme Newt conhece o nova-iorquino Kowalski durante uma confusão, e na tentativa de resolver o problema de ter animais mágicos espalhados pela cidade vamos aos poucos aprendendo como as coisas funcionam, ou melhor dizendo, como elas estão nesse momento, uma Nova York dos anos 20 particularmente romantizada.

No decorrer dessa pequena aventura vamos também acompanhando a amizade que se constrói entre Newt, Kowalski, e Tina e Mary Lou, ambas irmãs, mas completamente diferentes. Tina era fiscal da magia até ser destituída do cargo por mexer com a pessoa errada (quando descobrimos isso vemos como tudo está interligado; um prazer podre que só a política faz por você). Mary Lou é a mais caseira e mais mulher no sentido tradicional da palavra. Ela até lê mentes, e cozinha deliciosamente, algo que até Kowalski, alguém que tenta abrir uma padaria baseado nas excelentes receitas de sua vovó (que historinha bonitinha) é obrigado a reconhecer.

O filme trabalha muito bem também alternando entre as diferentes histórias, nos mesmos moldes com que os filmes de Harry Potter faziam, deixando parte do mistério ir sendo revelado aos poucos. No entanto, a impressão geral é de que, apesar de estarmos no mesmo universo, ele está sendo a todo momento redescoberto. Seja uma criatura mágica nova (com efeitos visuais muito mais impressionantes que dos filmes anteriores), ou detalhes de como a magia é empregada (e é curioso como seu uso na América se torna muito mais funcional do que na escola de Hogwarts). A música da série é reciclada em cima de uma trilha cômica e de aventura que James Newton Howard habilmente desenvolve em torno da música-tema, mas a habituando em um nível mais lúdico.

Afinal de contas, embora brinque com coisa séria, esta é fundamentalmente uma comédia, pautada em bichinhos fofinhos, personagens fofinhos e a criatividade sem limites de Rowling, que depois de sete livros ainda está a todo vapor, estendendo seu universo literário e agora cinematográfico (Rowling também assina o roteiro, sozinha).

E como é bom ver de volta o diretor David Yates, o responsável por todos os filmes adultos de Harry Potter. Yates possui uma forma extremamente eficaz de usar a tela, acumulando personagens e elementos em cena de maneira que não precise fazer mudanças muito rápidas de plano, e até o 3D ele utiliza pontualmente, quando por exemplo várias paredes são furadas e vemos a profundidade de tela atravessando-as, além, é claro, da absurdamente linda sequência em que vemos o jovem Newt mostrando a Howard todos os ambientes onde seus bichinhos estão sendo cuidados.

A interpretação de Eddie Redmayne como Newt, aliás, é menos do que a ótima escolha de elenco. Redmayne já é uma carinha bonita e fofa antes mesmo de entrar em seu personagem. Já vimos isso em A Teoria de Tudo. Porém, a grande revelação é mesmo Dan Fogler como o simpático e bonachão Howard, um sonhador que, alívio cômico, quase não tem falas, mas quase rouba todas as cenas com suas expressões e sua risada. Ele seria o equivalente à tresloucada Kate McKinnon no último Caça-Fantasmas: sob o efeito de drogas e curtindo muito tudo isso.

E do lado negro da força, ainda temos Colin Farrell que, habituado a filmes de ação e comédias com humor negro, aqui consegue usar sua expressão afetada de maneira impetuosa, construindo um vilão que apenas empalidece na caricatura quando o vemos junto de Ezra Miller como o problemático Credence, muito provavelmente a criação mais inspirada de Miller.

A coisa mais surpreendente em "Animais Fantásticos", no entanto, é constatar que é um filme que foge de todas as fórmulas (ou deveria dizer "a fórmula"?) de Hollywood no momento, que basicamente se resume em reciclar ideias e personagens em remakes e continuações cada vez mais automáticas (Marvel) e não finalizar uma história de maneira satisfatória, sempre enganchando para a "próxima aventura" (Marvel). Por outro lado, não é um filme que arrisca muito com personagens já amados pelos fãs. Mas quando vemos como estamos sufocados de mesmice para todos os lados do cinema comercial, toda essa ode à liberdade, mesmo que às custas de uma franquia, só merece elogios.


# Downhill

Caloni, 2016-12-15 cinema movies [up] [copy]

Este é o quinto filme dirigido por Alfred Hitchcock, um dos três filmes que ele dirigiu apenas em 1927. Após The Pleasure Garden, seu primeiro, teríamos The Mountain Eagle, um filme perdido há mais de 50 anos. Já este quinto oferece algumas belas surpresas na direção, como uma câmera subjetiva alternada, além de algumas ótimas piadas ocasionais em um drama no melhor estilo "retorno do filho pródigo".

A história é simples, mas de época. Dois amigos estão prestes a entrar em Oxford, mas ambos são seduzidos por uma garçonete, que os leva para a loja de doces onde trabalha e dança com eles. Um dos garotos a beija, mas o outro a evita. No dia seguinte o garoto que se manteve firme é acusado de assédio, e acaba sendo expulso do colégio. Desacreditado pelo pai, ele abandona sua vida e sai perambulando pela vida. O filme é sobre a sua queda gradativa, indo de um mundo de faz de contas ao palácio das ilusões perdidas. Cada período fora de casa é visto como um episódio à parte, até o verdadeiro fundo do poço.

O roteiro, escrito por três pessoas (contrariando os que dizem que essa é uma mania nova no Cinema), possui algumas tiradas interessantes quando discute as diferenças de classe, entre patrões e empregados, além de uma visão um pouco romântica da vida. O garoto, interpretado por Ivor Novello, usa a escola da época, mas possui uma expressão forte, que não necessita de muitos trejeitos.

A trilha sonora é um entretenimento à parte. Não sei se é a partitura oficial, mas ela é densa, correta, e pontua os momentos mais dramáticos empregando um ritmo às cenas. Note como o momento mais doloroso da história, o fundo do poço, é seguido por uma música com duas notas que vão e vem, como se não houvesse mais saída para a vida do garoto.

Hitchcock toma algumas decisões já inventivas para a época. Quando a garçonete se aproxima dos dois garotos para acusar um deles, vemos uma sequência da câmera subjetiva e a moça se aproximando. Quando o garoto começa a contar sua história para uma de suas clientes (em outro momento da história), é feita uma mescla entre os acontecimento e ele falando. Não são necessários muito entretítulos, e tenho a impressão de que houve muito menos do que comédias de Charles Chaplin, por exemplo. A ação é dinâmica, e não importa muito na maioria das vezes o que os personagens estão dizendo. Claro que isso depende do filme, mas a direção já ajuda a acertar o tom de cada conversa.

Note, por exemplo, como Hitchcock tenta inserir no mesmo quadro mais de um elemento. No camarim da jovem dançarina, por exemplo, há duas profundidades de campo. Vários momentos assim não necessitam de corte e podem ser acompanhados sem maiores problemas.

Downhill é mais uma história padrão daquela época que poderia ter sido contada em um teatro. O Cinema, no entanto, aos poucos vai elevando sua arte ao conduzir o espectador aos detalhes de cada cena, além de levá-lo para cenários realmente diferentes, muitas vezes com cenas externas. Olhe o garoto caminhando, perdido, de volta à sua cidade. Além do verdadeiro documentário que é observar as ruas de Londres, mais uma vez a mescla, aliada a uma câmera cambaleante, dá a sensação de perdido, mas não de bêbado. É nesses pequenos passos, muitos deles dados por Hitchcock, que o Cinema se aprofunda.


# O Lamento

Caloni, 2016-12-15 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

O Lamento é um terror coreano, e só essa descrição seria o suficiente para chamar a atenção de qualquer fã de terror que se preze. Afinal de contas, terrores asiáticos já são de praxe as melhores fontes de medo humano, e geralmente vem acompanhados de lendas sempre um pouco pesadas demais, como se pode comprovar através de "O Chamado", "Espíritos - A Morte Está ao Seu Lado", "Medo", e "O Hospedeiro" (que é muito mais um drama).

Em "O Lamento", como qualquer filme bom do gênero, acompanhamos um pouco da vida de Jong-Goo (Do Won Kwak) e sua família durante a resolução de dois assassinatos tenebrosos que acontecem na cidadezinha onde moram. As mortes, ocorridas em família, são inexplicáveis e revoltantes, em uma prova inicial de que o filme consegue tanto impressionar quanto estender um pequeno drama cotidiano, típico de jornais sensacionalistas, até o ponto que estranhamos as circustâncias sobrenaturais que cercam os supostos assassinatos.

Brincando de certa forma com a cultura atual da zumbificação de nossos medos -- em uma sequência na floresta que impressiona o suficiente para se manter na memória o resto da história -- o filme inicialmente flerta até com os clichês mais básicos, usando a parada clássica do trovão para pontuar um diálogo cômico entre dois policiais, para no momento final se utililizar de um susto tão banal quanto eficiente. Porém, quanto mais avançamos na história, mais percebemos que as habilidades em nos mostrar uma cena tensa, assustadora e impactante não estão à altura de um roteiro confuso, excessivo e pesado além do ponto. Hermético , o filme junta lendas e crendices demais para conseguir se manter coeso.

Sem contar que, se no início a rotina familiar de Jong-Goo e o tom mais ou menos caricato de sua inexperiência para investigar um caso desses tornam o filme mais leve, o resto será um espetáculo idealizado pela mente doentia e sanguinária do diretor e roteirista Hong-jin Na, que usa e abusa do terror gore e litros de sangue e feridas na pele para nos impressionar pela brutalidade da sua história. Logo o objetivo real se torna mais claro: esta não é uma história centrada em um drama (como "O Hospedeiro"), mas centrada em fazer terror, pura e simplesmente. E de todas as maneiras possíveis, talvez com o intuito de atingir o espectador em algum momento particular, já que cada um terá medo de algum aspecto ou personagem.

Isso explica porque conforme a história vai se tornando cada vez mais complexa, novos personagens e elementos vão aparecendo e apenas depois da metade do filme chega um xamã que irá tentar resolver as maldições que assombram o vilarejo. Logo vamos percebendo que dificilmente essa história irá fechar suas pontas sem soar necessariamente forçado e ao mesmo tempo banal, já que as próprias mortes se tornam cada vez mais banais.

A sensação é que há pelo menos três filmes aí. Hong-jin Na não sabe cortar, nem no roteiro nem no próprio filme. Mas não me leve a mal: todas as sequências são ótimas. O que não evita que elas aos poucos percam a força, justamente por irem empalidecendo o significado na história. A fotografia é ótima, bucólica, rupestre, com cores simples que se misturam com as sombras, seja da floresta ou das construções destruídas. A edição é dinâmica, interessante de seguir, pois está sempre investindo na subversão do ritmo para gerar susto, algo muito mais eficaz que o som que aumenta de repente. Aliás, até a edição de som e os efeitos sonoros são de primeira qualidade. São os sons que intensificam cada cena sem forçá-la, muitas vezes usando os personagens se assustando.

Porém, nada disso adianta se a história que acompanhamos vai fazendo cada vez menos sentido, e no final a única coisa que temos é o horror bem feito esteticamente, com diferentes formas de representá-lo -- incluindo um demônio impecável -- e sem aquilo que mais um terror necessita para que ele consiga ainda ser relevante: significado. Às vezes não saber a hora de cortar pode ser a maior maldição de um filme.


# Belos Sonhos

Caloni, 2016-12-19 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Belos Sonhos é uma verdadeira homenagem e uma investigação sobre essa relação tão íntima, possessiva e determinadora de caráter entre uma criança e sua mãe italiana, a figura eterna da mama. Sutil e visual, se transforma em um trabalho equilibrado, embora intenso, como todo bom filme italiano deve ser.

Aplicando elementos universais da relação entre mãe e filho, o filme começa com uma fotografia belíssima, um jogo de luzes que eterniza a relação entre o pequeno Massimo (Nicolò Cabras) e sua bela e jovem mãe (Barbara Ronchi). Os elementos são universais porque conhecemos apenas o nome do garoto, o mesmo do livro de onde foi baseado o filme (e cujo autor é Massimo Gramellini). Portanto, Massimo é o núcleo absoluto da história, por onde orbitam seu pai (Guido Caprino), mãe, e lá na frente, seu grande amor, Elisa (Bérénice Bejo).

O roteiro adaptado por três pessoas caminha por diferentes momentos na vida de Massimo, seja garoto, adolescente ou adulto (Valerio Mastandrea). Cada momento revela ou expande uma nova faceta do garoto que cresceu com o trauma da morte súbita de sua mãe, cuja despedida ele nunca se lembrou. A desconfiança que Massimo vai desenvolvendo sobre o que realmente aconteceu com sua mãe percorre seu subconsciente, assistindo a saltos ornamentais, ou até o seu próprio consciente, quando, já trabalhando como repórter, tem o furo jornalístico de sua vida quando está na casa de um figurão que se suicida. A elegância do roteiro consiste em observar as reações de Massimo quando, por exemplo, várias décadas à frente, ele reflete com outros olhos sua própria amada dando um salto ornamental em uma piscina à noite.

Além disso, a história caminha principalmente nas dicas visuais do que nos diálogos, onde até a metalinguagem se esconde por trás de um jornal guardado em um livro por toda uma vida. Por exemplo, a proximidade com a mãe é uma constante nas primeiras cenas, enquanto o distanciamento do pai é latente quando o vemos apenas sob a sombra no fim do dia. Além disso, Massimo observa da janela do ônibus as estátuas imponentes de Turim como um reflexo da formalidade com que seu pai o trata; logo depois vemos as miniaturas das mesmas estátuas no escritório em sua casa. E note a aspiração do garoto sendo sugerida quando, fazendo lição de casa no mesmo escritório, brinca inocentemente com a máquina de escrever do pai.

Com tantas dicas que podem ser vistas pelo espectador, praticamente não precisamos acompanhar nenhuma narrativa explícita; os próprios anos são facilmente identificáveis, com um trabalho de maquiagem de precisão. E como até os conflitos mais existencialistas de Massimo são tratados com uma grandeza visual -- como a aula de física/astronomia dada por um padre -- não fica difícil entender que quando Elisa surge em sua vida, seu ataque de pânico iminente recebe a ajuda de quem mais era necessária: uma segunda mãe.

A atuação de Valerio Mastandrea (A Primeira Coisa Bela) surge como um misto de inanição e passividade, em um papel tão introspectivo que se torna difícil de ser notado. As nuances do ator, sua cara cabisbaixa, envergonhado, traduzem bem essa busca interna de que trata o filme. Muito mais confortável está Bérénice Bejo, cujo papel é relativamente simples frente ao seu papel principal mais intimista em A Economia do Amor. Surpreendente mesmo é a interpretação icônica do jovem (e estreante) Nicolò Cabras, que realiza a persona do garoto italiano com uma perfeição suficiente para congelarmos vários quadros entre mãe e filho.

Como é prometido pela trilha sonora romantizada, muitas vezes grandiosa, e a direção inflada de Marco Bellocchio, o filme vai muito além do drama pessoal. Ele levanta questões existenciais muito profundas, e apesar de flertar com uma petulância e um pedantismo preocupante em alguns momentos (a sequência do suicídio do presidente é quase totalmente descartável), creio este ser uma declaração sincera e apaixonada por essa busca que todos nós possuímos por conexão e identificação com outros seres humanos.


# Eu, Daniel Blake

Caloni, 2016-12-20 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

"Se não fosse o governo, os pobres morreriam de fome." Quantas vezes já não se ouviu essa argumentação em acaloradas discussões políticas, geralmente no conforto do lar? No entanto, ninguém morre de fome nesse filme, assim como dificilmente alguém hoje em dia morre de fome no mundo civilizado. Se há algo que morre (e esta é uma morte lenta e dolorosa) é a dignidade das pessoas honestas e trabalhadoras. E isso, podemos dizer com um certo grau de certeza, milhões de pessoas vivendo sob o regime de bem-estar social morrem, pelo menos um pouco, todos os dias. E a grande virtude de "Eu, Daniel Blake", novo filme de Ken Loach, é desvendar esse processo com o mínimo de dramatização possível.

Seu herói é o Daniel Blake do título, vivido como um verdadeiro mártir por Dave Johns. Ator e comediante stand-up, ele protagoniza logo no início o diálogo que irá criar seu conflito, ainda às escuras, nos créditos iniciais. Enquanto não o vemos, um pouco de humor pode ser extraído do tom sarcástico e impaciente de Johns, que luta internamente para conseguir responder às ridículas perguntas de sua avaliadora de saúde. No entanto, assim que as cortinas se abrem e vemos o olhar indignado de Johns, não é possível mais dar risada de um homem que está à beira de deixar de ser um homem para virar apenas um número no intrincado, burocrático, ineficiente e fúnebre sistema trabalhista do Reino Unido.

Este é um filme fácil de acompanhar. Ele não possui nuances em narrativa. Ele é a coisa verdadeira. Daniel vive em sua casa sozinho, viúvo de sua esposa que cuidou enquanto doente, por tanto tempo que agora sente a necessidade de ajudar outras pessoas. Quando ele conhece a jovem mãe solteira de dois filhos Katie (Hayley Squires) na fila para ser atendida pelo sistema público (ou melhor dizendo, não ser atendida por chegar atrasada alguns minutos), para ele soa natural ajudá-la a se estabelecer em sua nova casa e mantê-la por perto de um pouco de humanidade. Aos poucos ele vai ganhando a confiança de seus filhos, e sem que sequer notemos ele vira um complemento à família.

Enquanto isso, ele vai criando relações com seu vizinho, apelidado de China por importar coisas de lá pelo correio. China tem um plano para sair da corrida dos ratos: contrabandear tênis de marca. A hora de trabalho de um jovem como ele não vale nada. A crise europeia varre todos os empregos, e o que restou foi um sistema de vagas que funciona apesar de não haver vagas, só com trabalhadores desempregados.

Apesar deste não ser um filme extremamente dramatizado, as situações que seus personagens vivem acabam o sendo, já que a realidade dos pobres é muito mais cruel do que aparece na TV. Daniel recebeu o diagnóstico de que não deve trabalhar por causa do estado do seu coração, mas sua pontuação está abaixo do que o governo acha necessário para que ele receba ajuda financeira. Dessa forma, ele fica sem poder trabalhar e sem poder receber por não poder trabalhar. Já Katie entrou com um processo contra o dono do lugar onde morava pelas péssimas condições e acaba sendo despejada com seus dois filhos, e enxotada de Londres, novamente pelo sistema estatal. Ambos levaram um tropeço em suas vidas, e ambos não possuem onde se segurar para levantar.

O céu cinzento da Inglaterra cai como uma luva nas mãos do diretor Ken Loach, que utiliza o roteiro simples e direto de Paul Laverty em construções que vão terminando em fades cada vez mais obscuros. A pobreza representada por sombras nas casas dos personagens (ou até sua exclusão da sociedade) e um azulejo que se quebra quando uma mãe tenta tornar o banheiro mais confortável para seu filho enquanto passa fome é o tipo de detalhe que empodera o discurso do filme, que encontra na desesperança dessas pessoas o combustível de sua revolta.

Por fim, a questão que fica é a que reside na carta de Daniel Blake, que afirma ele não ser um cachorro, mas um cidadão, o que mereceria no mínimo o respeito à sua dignidade. Depois de termos assistido "Eu, Daniel Blake" uma outra questão, mais poderosa, é que permanece: um cidadão nos dias de hoje seria um tipo especial de cachorro, onde são dados alguns direitos, mas onde dignidade é algo opcional?


# Sinais do Fim

Caloni, 2016-12-20 books [up] [copy]

O poder da internet é a real democracia. É ela que permite que autores como Dario Bertulucci sejam conhecidos por leitores cansados da mesmice e da massificação das grandes editoras. E é ela que permite que o autor receba o que tem direito pelo seu livro e pelos trabalhos de distribuição: 100%. Conversei rapidamente com o autor, que estava vendendo alguns exemplares de seus livros na frente do Masp, na Avenida Paulista. Com dificuldades para conseguir uma editora, ele mesmo aprendeu a publicar seus livros e foi à luta, algo que eu admiro e que foi o motivo final que me fez levar essa cópia comigo. Agora que li, preciso concluir: não me admira que as editoras não estivessem interessadas em um autor ainda em desenvolvimento. Mas continue firme. Com o tempo, talvez suas ideias encontrem uma coerência e uma estrutura que irão te fazer repensar seus primeiros trabalhos.

Vamos à crítica.

Este é um livro que viaja da normalidade em São Paulo para o resultado em um mundo pós-apocalíptico, no sentido bíblico da palavra. Usa o conceito dos sete selos do último livro da Bíblia, mas também busca colocar no caldo essa leva de neo-ateus e outros movimentos anti-religião, ao ponto de se tornarem intolerantes ao extremo para com os cristãos.

Tudo começa quando Alexandre, recém-separado de sua namorada, é seduzido por uma prostituta, que rouba seus órgãos. Não sabemos muito sobre ele, exceto que perambula pelas ruas do centro de São Paulo, tem vários amigos, e como quase todo brasileiro médio, gosta de tomar uma cervejinha vendo o noticiário na TV, e diferente de todo brasileiro médio, curte sexo, cerveja e rock and roll. Alexandre, além de narrador desta história, joga nela suas opiniões a respeito da vida, do mundo, das pessoas e do que está errado em tudo isso, além de arranhar um pouco de sua distorcida moral, que flerta com um hedonismo pacifista.

Porém, no fundo nunca sabemos quem realmente é Alexandre. Não há dados o suficiente para entendermos o que se encontra em sua mente, nem através de seus amigos, de quem conhecemos apenas seus nomes e algumas descrições físicas, ou nem isso. Munidos de tão pouca informação, interna e externa, é difícil de gostar de um sujeito tão comum e com ideias tão padrões a respeito do mundo. No fundo, esta parece uma crônica da vida real na cidade, com seu cidadão mediano, que acredita que enxerga além dos outros, que é diferente e, do seu jeito nada especial de pensar, que é o escolhido para salvar a humanidade, mas que na realidade é apenas mais um de nós.

Sem jeito com a pontuação e utilizando expressões clichês a todo momento (falta de um editor?), Dario Bertulucci faz fluir seus pensamentos mais superficiais quase como que ensaiando o que irá falar em seguida, mas sempre nos logrando de algo mais profundo do que uma vaga sensação de inquietude. Ele vomita obviedades em um formato cru que procura atingir o cidadão médio. Mas para isso usa obviedades que só artistas ripongas hoje em dia conseguem dizer sem ficar envergonhados.

O livro foi concebido aos poucos, de acordo com o próprio Dario. Ele fazia parte de um fanzine, em que alguns capítulos eram lançados, nos mesmos moldes dos escritores literários Machado de Assis e Carlos Drummond, mas com um formato mais independente. O fanzine tinha o mesmo nome do selo/editora do que agora é um livro. Sinais do Fim é o primeiro de outros trabalhos de fantasia de Dario, lançados pela mesma editora.

O resultado talvez seja a consequência de um trabalho sem revisão de terceiros, algo que autores que iniciam na arte de escrever ficção raramente podem prescindir. Utilizando personagens que sequer foram construídos, os diálogos não são particularmente inspirados, nem as situações. Pode ser uma série de argumentos para um livro, mas a criação para por aí. E o esboço parece por sua vez conter influências óbvias. O sucesso de autores teólogos como Eduardo Spohr (A Batalha do Apocalipse) e teoristas da conspiração como Dan Brown (O Código Da Vinci) faz nascer uma leva de escritores que usam a fantasia religiosa como pano de fundo para liberar seus medos e angústias, mas sem com isso apresentar um enredo maior, que dê um formato menos basal ao que o autor se propõe a falar.

Voltamos ao início.

Não há nada de errado em autores independentes quererem se expressar. É assim que todos começam. Esta não é uma crítica negativa, apenas a constatação de que Sinais do Fim não é um trabalho que possua substância o suficiente para ser criticado. Ele pode ser uma versão alfa de um projeto melhor construído. E o dia em que (se) houver algo melhor construído, é bem capaz que vejamos em uma vitrine de uma livraria, virtual ou não. Nesse caso, ninguém acreditaria que o autor estava há algum tempo atrás sentado na frente do Masp, procurando por futuros leitores. Este sim é um futuro muito menos apocalíptico que eu gostaria de ver.


# Margin Call - O Dia Antes do Fim

Caloni, 2016-12-21 cinema movies [up] [copy]

Hoje Margin Call já tem mais de quatro anos de quando foi lançado. É uma conversa pra lá de realista sobre qualquer empresa de investimentos em 2008 que teve a sacada final de que tudo o que haviam feito nos últimos anos não valia praticamente nada. O filme não dá a menor dica para o espectador sobre o que está acontecendo exatamente, o que é ótimo, pois isso comprova hoje que ele envelheceu tão bem que nem é necessário que ele fale sobre a crise recente. Pode ser um outro momento mais à frente, ou no passado. Que diferença faz? No final das contas, as manipulações estatais na economia sempre irão gerar, inevitavelmente, mais crises.

Esta é uma reunião que vai escalando rápido. Após um downsizing inicial, onde o maior analista de riscos da empresa é mandado embora, um de seus colegas analisa os dados que ele estava prestes a revelar, e descobre que o fim está mais próximo do que ele imagina. Isso vai disparando um efeito de escritório conhecido como "quem come quem". Todos aos poucos vão sendo envolvidos: estagiário, supervisor, gerentes, diretores. Até a chegada do capitalista malvadão, o dono da empresa. De helicóptero (é claro!). E é aí que começa a festa.

Escrito e dirigido por J. C. Chandor, não estou certo se esse era o objetivo de Chandor, mas este filme é um estudo independente de personalidades em escritórios. Temos o cara que sempre quer saber quanto cada um "está tirando" de salário e bônus. Temos os técnicos que realmente fazem o trabalho, mas cuja discrição logo os tornam vulneráveis a processos de downsizing. Temos os gerentes gerais promovidos muito cedo que se comportam como garotos mimados de quinze anos. E temos, aos montes, aquelas pessoas que ficam na defensiva, esperando o momento certo de pegar a peteca e jogar pro coleguinha.

Dessa forma, Margin Call não é exatamente um filme só sobre a crise de 2008. Não obstante, a história monta uma alegoria simples e eficaz que pinta os donos de bancos de investimentos como os arquitetos do capitalismo. Vemos todos os personagens, em sua maioria, do topo de um prédio onde se vê toda a cidade. A forma com que o dono da empres em questão fala dá a entender que ele faz parte de um grupo muito seleto de senhores que dá todas as cartas no mundo inteiro de como os mercados devem funcionar (o nome do grupo é Iluminati, google for it), sempre (é claro!) às custas dos mais humildes, pessoas simples que não tem nada a ver com isso (exceto apoiar um modelo corporativista e de alta regulação financeira que torna qualquer estado um manipulador de bombas-relógios para o mercado, como foi o caso da última crise, a penúltima, todas as passadas e futuras).

Há um momento em que o chefão até começa a contar os anos de crashs casualmente. 2007, 1932, 1984... ele já está acostumado a esse jogo. Como não estaria? Desde que foram criados os bancos centrais, há quase 100 anos, tudo que o mundo vê são mais e mais crises financeiras. Curiosamente, quando o capitalismo começou de fato, há 300 anos atrás, não se ouvia muita coisa sobre bolhas. Exceto quando muitos holandeses tentavam vender tulipas ao mesmo tempo... mas aí nem havia surgido a Revolução Industrial.

Todo o elenco está afiado, mas é o roteiro que delineia cada participação como um maestro regendo uma orquestra. De maneira surpreendente, Margin Call se passa em sua maioria em um escritório, no meio da noite, as pessoas só falam, algumas olham algum das centenas de monitores espalhados, e mesmo assim todo o filme é fascinante, passando muito rápido.


# Dez melhores filmes de 2016

Caloni, 2016-12-27 lists cinema movies [up] [copy]
  • Trolls. Como pegar um fiapo de argumento, mais uma vez baseado em brinquedos dos anos 80, e transformá-lo em uma história previsível, mas que convence por sua mensagem de ode à felicidade de uma era. Trolls nos convida a rir dos clichês e a dançar ao som de outros tempos. Remixados, claro, mas que mantém a pureza no olhar de uma criança, crescida ou não.
  • Demônio de Neon. Apesar de abordar o mundo das modelos femininas, e de discutir a objetivização da mulher com maestria estética, o trabalho de Nicolas Winding Refn universaliza o sofrimento dessas garotas, transformando o horror em uma espécie de beleza do sacrifício. Dessa forma, evita falar apenas sobre a mulher para trazer à tona a discussão de por que achamos o sacrifício por uma causa, qualquer que seja, algo bonito?
  • Conexão Escobar. Entre os filmes de ação este é o que merece uma menção entre os melhores do ano, seja pela sua história bem conectada ou pela sua edição perfeccionista. Lembrando que a ação neste filme é muito mais ameaçadora quando não-vista, mas graças à performance intensa de Bryan Cranston, ganha contornos dramáticos em uma única cena em um restaurante que vale por todo o filme.
  • É Apenas o Fim do Mundo. Xavier Dolan expõe novamente seu lado pessoal, e mais uma vez o universaliza, em um trabalho aparentemente simples, mas que exige mais empenho do que aparenta, ao manter a câmera em um ultrazoom perigoso, que beneficia interpretações ao mesmo tempo que nos distancia das pessoas através de palavras rancorosas que escancaram o quanto de ódio existe contra aqueles bem-sucedidos, principalmente se fazem parte da família.
  • Snowden. A versão ficcional necessária de Oliver Stone do vazamento de dados do governo norte-americano prenuncia a inevitável queda dos estados modernos. Através de um retrato grandioso e ao mesmo tempo intimista, Stone nos leva a questionar crenças inabaláveis no espírito americano, baseadas em um ufanismo que hoje é insustentável. A despeito de ser um ótimo drama/thriller, a grande questão que ele coloca é maior que ele mesmo: quanto tempo mais de internet o patriotismo se aguenta de pé?
  • Animais Fantásticos e Onde Habitam. Um filme que tinha tudo para ser "Marvelizado" possui um plot original, não usa seus predecessores como muleta afetiva, é original e ainda por cima tem um final satisfatório (e não um gancho para a próxima história). Uma lição a ser aprendida por todas as franquias atuais no cinema.
  • Deadpool. É necessário um pouco de boa vontade para inserir um filme da Marvel entre os melhores do ano, mas cá entre nós, a primeira metade do filme do super-herói irreverente e politicamente incorreto atinge alguns feitos históricos para a produtora: uma sequência de ação verdadeiramente ágil e divertida, brincadeiras metalinguísticas realmente bem boladas, e ensinar a todo fã da Marvel o nome da técnica cinematográfica de quebrar a quarta parede.
  • O Silêncio do Céu. O último trabalho de Marco Dutra consegue extrair o drama com requintes de terror. Ele consegue isso através de um dos sentimentos mais universais entre nós, seres humanos: o medo psicológico. E é através do psicológico que ele aborda uma história de trauma e redenção, muitas vezes sem as palavras necessárias para concluir o raciocínio. Isso porque o medo é algo de fato universal. E nesse filme ele pode ser sentido da maneira mais visceral possível desde a primeira cena.
  • A Economia do Amor. O desmanche sistemático da união de duas pessoas em uma visão cínica, mas tristemente realista, dos efeitos da crise na Europa e as consequências da falta de dinheiro na mesa de uma família. Um trabalho de direção econômico e minimalista, que praticamente garante o convite ao espectador para a intimidade trágica dentro de uma casa prestes a desabar.
  • Sieranevada. Um filme com narrativa ousada, que torna o espectador responsável por detectar a história, inserindo-o em uma reunião de família que não precisa de narradores oniscientes explicando, nem diálogos expositivos. Só precisa de duas coisas: a curiosidade humana como combustível e a câmera como os nossos olhos.
  • Sour Grapes. Um documentário que estreou direto em streaming, mas que contém uma história fascinante, que consegue juntar uma crise econômica, a alta sociedade mundial e o sistema jurídico injusto norte-americano em um pequeno conto de pequenos causos que se unem em uma investigação que busca descobrir quem é uma pessoa, tão interessante por si só que o espectador nem precisa gostar tanto assim de vinho.
  • Como Ser Solteira. Há criatividade demais neste ComRom para ser deixado de lado. Ele é feminino sem as amarras sexistas, uma liberação sexual e afetiva da mulher em todas as suas fases e carreiras e que exibe a maldade humana como regras de aceitação em sociedade ou pensamentos retrógrados que tentam mandar nas vidas das pessoas. Ativo até o fim, defende a quebra dessas regras da maneira mais bem-humorada possível.
  • Loucas de Alegria. Um filme italiano que consegue misturar trabalhos tão diferentes quanto O Beijo da Borboleta, O Lado Bom da Vida e Thelma & Louise, e ainda assim soar original, divertido, fascinante e emocionante.

# Vídeo: Usando clang no Visual Studio

Caloni, 2016-12-27 computer videos [up] [copy]

Com o surgimento da infraestrutura LLVM, que possibilita a união entre diferentes ferramentas que suportam diferentes plataformas para o desenvolvimento de software, e o clang, um font-end para C/C++ que roda não só em UNIXes da vida, como também no Windows, como também no Visual Studio, tem sido uma vantagem para projetos que usam as novas features do C++ moderno, muitas ainda não implementadas no compilador da Microsoft, unir o útil (Visual Studio) ao agradável (C++ modernos via clang). Este vídeo tem como objetivo demonstrar como essa união é simples e fácil de ser realizada dentro do próprio Visual Studio. De quebra, vamos descobrir alguns problemas que podem ocorrer nessa união de toolsets e como corrigir.

Este é um guia bem básico, mas atende os requisitos de quem quer começar a mexer com essas duas tecnologias (além de aficionados pelo novo C++ que está em desenvolvimento, mas não abre mão de uma IDE tão poderosa quanto o Visual Studio):

1. Criar um novo projeto clang no Visual Studio.

2. Utilizar o projeto com um Console Win32 padrão e toolset Visual Studio.

3. Implementar uma feature ainda não suportada pelo Visual Studio.

4. Utilizar essa feature no Console Win32.

5. Corrigir e entender problemas no meio do caminho.

  • CLang
  • LLVM
  • C++ compiler support
  • Fold expression

# Rogue One: Uma História Star Wars

Caloni, 2016-12-28 cinema movies [up] [copy]

É um prazer poder experimentar um pouco do universo dos filmes de Star Wars sem se preocupar (muito) com personagens centrais, tramas que mudarão a galáxia e, principalmente, histórias que nunca terminam. E apesar disso, aí está você de novo, estrelinha da morte. A fixação da alegoria com morte e destruição nunca termina. Ela se mantém quase como um fetiche escondido e refletido nos "inimigos", braço esquerdo da mesma Força. O lado negro sempre é a visão mais clara do que acontece quando o poder está nas mãos de poucos, sejam eles tiranos malignos ou pseudo-representantes do "povo".

Porém, dessa vez é possível contemplar um arco completo de um personagem em um único filme, o que o torna único em todos os filmes, que são meros pedaços de uma história maior. Graças a essa concisão narrativa, o pequeno conto expandido do universo conta a história inteira de Jyn Erso (Felicity Jones), a filha do engenheiro responsável pela construção da Estrela da Morte (Mads Mikkelsen), um aparato equivalente ao que seria a bomba atômica para os nazistas. Erso é abandonada depois que seu pai é sequestrado e sua mãe morta, mas logo é resgatada pelo terrorista Saw Gerrera (Forest Whitaker). O tempo passa e vemos que o Império está agora enfrentando uma resistência em sua hegemonia galáctica através de um grupo de rebeldes. Com o uso do frio Cassian Andor (Diego Luna) eles vão em busca de Jyn, pretendem obter acesso ao seu pai e mais informações sobre os planos do Império, para assim frustá-los antes que seja tarde.

Um adendo curioso (principalmente para os fãs) é que os "nazis" deste filme dessa vez são comandados por um Imperador que nunca aparece e pelo comandante Orson Krennic (Ben Mendelsohn), assediado de perto pelo seu subordinado Governador Tarkin (Guy Henry perfazendo o original Peter Cushing), e acompanhado visualmente de longe, mas misticamente de perto por Lorde Vader, um humano muito debilitado que usa um equipamento semelhante ao que Saw Guerrera, igualmente debilitado (e velho), precisa usar para respirar em alguns momentos.

Apenas descrevendo o casting de Rogue One e sua história é possível entender que este não é um mero "filler" de trabalhos maiores, mas uma composição com atores com potencial dramático (e o utilizam com bastante empenho), além de soltar suas amarras explicativas de todos os Star Wars, passados e futuros. Até a explicação do sistema respiratório de Lorde Vader, deixado à imaginação dos espectadores no original de 77, encontra uma pista na figura de Forest Whitaker e seu aparato mais tímido. E se este filme fosse o primeiro a estrear entre todos os outros, ele alavancaria em níveis extremos Uma Nova Esperança, já que seu clima é justamente de desesperança, ou um fiapo de esperança, representando o "lado bom" da Força através de um crente cego, devoto fervoroso, e simbolizado por uma estátua tombada de Obi-Wan Kenobi, o último dos Jedis a ser visto (uma referência sutil e nostalgicamente eficiente).

Aliás, esse enriquecimento do universo, que utiliza novas criaturas de maneira orgânica (e com uma paleta menos lúdica -- leia colorida -- como os episódios I ao III) e joga poeira na aeronáutica rebelde, conseguindo unir o digital de hoje em dia com os arranhões das miniaturas de 40 anos atrás, além das divertidas e dinâmicas tomadas de ação empregadas pelo diretor Gareth Edwards (onde muitas vezes acompanhamos as naves através de uma câmera subjetiva, e entendemos as manobras mais arriscadas) conseguem nos fazer voltar à época do original de uma forma mais do que renovada: imortalizada. Edwards, já tendo feito um trabalho realista no improvável Godzilla (2014), aqui usa toda sua imaginação visual para exaltar o universo nas cenas paradas e movimentá-lo em um nível frenético nas cenas mais tensas.

Parece que tudo orbita em torno desse mesmo tom. Até a música-tema e a introdução, batidíssimas já no Episódio VII, dessa vez surgem subvertidas dentro de uma trilha sonora solene e que arrisca a todo momento se tornar a versão pobre dos temas clássicos, em uma participação surpreendentemente contida de Michael Giacchino. O músico consegue adiar a fatal aparição até o último momento, e em cima de nossas expectativas recria uma versão alternativa, e muito mais eficiente justamente porque renova o universo panfletário, justificando o título de uma história Star Wars (mas não "A" história).

Mas apenas a história se torna acessória em Rogue One, e isso se compararmos à história central do universo, já que ela por si só se sustenta perfeitamente. Tem começo, meio e fim. Apresenta novos personagens e homenageia/referencia/recria alguns antigos. Mas não os mantêm como muletas. É uma criação única, a realização de um desejo antigo, secular, dos fãs do universo que aspiravam por novos horizontes. Além do mais, utiliza temas filosóficos ("o que torna um droide único") através do humor ("você sabia que não era eu, certo?"), e temas políticos (quando a democracia falha pelos mesmos motivos apontados por Anakin em Episódio II) através da ação.

Enquanto o Episódio VII não consegue se desvencilhar das homenagens, e repete mecanicamente elementos dos episódios IV e V, além de falhar nos detalhes originais, aqui até o uso diferente da Estrela da Morte é aplicado de maneira eficiente, entregando não o absurdo puro e simples, mas uma concatenação de eventos em torno de um cataclisma de horror. É nesse momento que o roteiro de Chris Weitz e Tony Gilroy mais brilha, pois consegue conciliar o dramático com o escape cômico ("algo novo no horizonte... não há horizonte"), apresentando um novo droide que, contrariando mais uma vez o efeito Jar Jar Binks, consegue ser até mais eficiente que o verborrágico C3PO, pois além de seu uso pontual consegue trazer uma espécie de rascunho de personalidade.

Pecando apenas ao estender excessivamente o segundo ato, além de não apresentar um desenrolar muito surpreendente para esta parte do filme, Rogue One é tudo o que se esperava de um spin-off de Star Wars na pós-era digital, quando os efeitos começam a ficar cada vez mais realistas, a ponto até de algumas caras desconhecidas virem à tona. E mesmo que a perda recente de Carrie Fisher não tenha fornecido o timing perfeito para os devidos agradecimentos deste trabalho ao seu legado, tenho certeza que muitos fãs irão enxergar a homenagem contida na última cena. Algo que só a mágica do cinema consegue fornecer. Ou seria a Força?


# Sing: Quem Canta Seus Males Espanta

Caloni, 2016-12-29 cinema movies [up] [copy]

Este é o ano em que temos musicais animados que abraçam sua cafonice da maneira mais fofa possível ("Trolls") e filmes como "Sing", que entrega bichinhos fofinhos cantando como pop stars em uma pequena fábula sobre um produtor musical com um sonho que... bem, isso não importa. O que importa neste filme são apenas os números musicais. A história que os cerca serve única e simplesmente para conseguir colocar os bichinhos fofinhos cantando mais uma vez. E mais uma. E mais uma. Até você cansar.

Produzido pelos mesmos de Meu Malvado Favorito, Minions e etc, "Sing" segue o mesmo conceito de apresentar personagens com potencial de atrair a simpatia do seus espectadores sem a necessidade de qualquer lógica em sua história. Sua câmera se movimenta rapidamente para ir de casa em casa, de beco em beco, apresentando cada um deles cantando. É um ratinho encrenqueiro com seu saxofone, o gorila que não se encaixa na gangue do pai, a dona de casa com 25 filhos e um marido ingrato. E quando a dona de casa resolve o seu problema de conseguir tempo para ir aos ensaios, fica claro que as saídas fáceis para qualquer problema do filme será a regra, e o único empecilho que existe para o sucesso é a própria pessoa (soa como uma lição de moral, não?).

A animação, a despeito de ser bem feita em seus detalhes, soa antiga e com falta de imaginação. Afinal de contas, todos nós já vimos coalas, girafas, gorilas, porcos e porcos-espinhos em animações anteriores, além de piadas sobre porcos-espinhos. E tirando detalhes como a forma peculiar dos coalas de lavar carros, o fato de todos serem animais diferentes não faz a mínima diferença para a história. O conceito de zoológico já estava montado antes mesmo dos seus personagens.

O filme se beneficia de grandes hits de cerca de 10 anos atrás, o que para a música pop é outro século. O mais curioso é que nem precisava ser assim, já que as letras em si geralmente não significam grande coisa (como em qualquer música pop genérica) para a história. Pelo menos a decisão da produção nacional em não traduzir a letra dos originais e usar cantores profissionais pop para a dublagem -- como Sandy, Wanessa Camargo e Fiuk -- acerta muito mais do que em Trolls, onde as produções locais brasileira e uruguaia fizeram a tradução (com resultados mistos).

De qualquer forma, nem a música nem as letras nem os animais nem as boas vozes estão aí em prol da narrativa, mas como elementos fofinhos e emocionantes em um show disfarçado de filme. Os personagens cantam porque é isso que se espera deles no filme. Todos (mesmo os eliminados em um show de talentos) possuem ótimos números, e ninguém desafina, provando que enquanto até a Disney possui vozes dissonantes a respeito da praga do politicamente correto (Zootopia), os estúdios Malvado Favorito foram totalmente impregnados pela peste, se recusando a criar qualquer nível de comparação entre o que é bom e mau. Praticamente não existem vilões ou antagonistas que se prezem, e mesmo que existissem eles não são punidos, já que ninguém, no final das contas, se machucou.

Sing é um filme para quem acredita que todas as pessoas conseguem cantar maravilhosamente bem simplesmente porque gostam do que fazem, e que é possível comprar um teatro luxuoso lavando carros a vida toda. Se você é desses sonhadores utópicos, esta pode ser uma experiência nem boa nem ruim, já que estes conceitos não existem aqui. É apenas mais do mesmo para comer pipoca e não pensar muito sobre isso.


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