# Amnésia

Caloni, 2019-02-02 cinema movies [up] [copy]

Você se lembra do último excelente filme que você viu? Leonard com certeza não. Ele não consegue nem lembrar de bons momentos de sua vida após a esposa ter sido assassinada e sua cabeça lesada. Bom, talvez se conseguisse lembrar ele não teria nenhuma boa lembrança. Exceto, talvez, o dia em que ele matou o assassino de sua esposa. Mas será que isso aconteceu realmente?

Memento, ou Amnésia, como é chamado no Brasil porque as distribuidoras daqui tem demência (e essa é a palavra certa), é um dos primeiros filmes do hoje aclamado diretor Christopher Nolan, e com certeza esse foi um dos filmes que ajudou-o a atingir a lista dos grandes de Hollywood até jovens espinhosos pós-11 de setembro começar a venerá-lo pela trilogia do Batman.

Sua maior virtude está em um roteiro que conta a história de trás pra frente. Explico: cronologicamente o filme começa alguns momentos antes de seu final, mas assim que termina passamos aos momentos anteriores, até que ele se junte com a cena anterior, indo depois para momentos antes desse, e assim por diante. Quando o filme termina estamos na cronologia normal no começo da história, e nossa mente está trabalhando muito semelhante ao do personaem principal, Leonard.

Leonard é uma pessoa com um problema de memória bem específico: ele não consegue mais reter memórias de longo prazo. Ele acorda, lava o rosto, escova seus dentes, veste sua roupa e... não consegue se lembrar se lavou o rosto, escovou seus dentes, etc. Uma pessoa dessas precisa de ajuda.

Mas o personagem interpretado de maneira ligeiramente atrapalhada por Guy Pearce -- usando roupas ligeiramente maiores que ele -- não está interessado em se internar. Ele precisa vingar sua mulher, que foi estuprada e assassinada no mesmo evento que o tornou um vegetal com lembranças de uma vida que perdeu. Sua última lembrança dessa vida é a mulher morrendo no banheiro, e a partir disso sua única motivação na vida se torna a vingança.

Christopher Nolan sabe que contar uma história dessa forma pode tornar as pessoas confusas e ser bem entediante. Por isso ele conta uma história bem simples, quase banal. No DVD do filme há um extra que te permite tocar o filme na ordem cronológica. Eu fiz isso uma vez. Se trata de algo chato, sem significado, sem tensão.

Mas invertendo a ordem o filme nos permite enxergar o mundo sob a ótica do perturbado Lenny e entender seu drama. Sem isso esse filme seria medíocre e sem qualquer motivo de existir.

Para nos relaxar, Nolan também insere uma sub-história ocorrendo na ordem certa que vai intercalando a ação principal. Ele o faz em preto e branco. Seu plot é sobre um caso que Leonard conheceu antes disso tudo acontecer e cujo homem sofria do mesmo mal. Lenny possui uma tatuagem em sua mão esquerda que diz "lembre-se de Sammy Jenkins" (esse é o nome do cara). E você pode acreditar que ele já contou essa história para mais de uma pessoa mais de uma vez. Às vezes para a mesma pessoa.

O uso de tatuagens e polaroides dá estilo ao personagem, que tenta de maneira quase que patética ordenar sua vida em torno de anotações que para ele faz sentido, mas que nem sempre é a verdade. Questionado sobre isso, ele afirma algo que queremos esquecer: a própria memória humana é suscetível a erros. Testemunhas oculares não possuem um peso muito bom no julgamento da polícia em casos de delitos. Nós reinterpretamos a realidade muitas vezes, relembrando de momentos onde a cor da parede está diferente, a música tocada era outra e as pessoas envolvidas talvez nem existam.

A triste realidade de que somos sacos de polaróides e tatuagens em nosso cérebro caminhando por esse mundo é contrabalanceado com seu objetivo de matar o criminoso responsável. Quando lhe perguntam se isso fará alguma diferença para ele, já que devido à sua condição não conseguirá se lembrar do que fez, Leonard responde: "o mundo não deixa de existir simplesmente porque você fecha os olhos".

Talvez não, Leonard. Talvez não. Mas você deixa. E sem você, qual o motivo de estar fazendo essas coisas?


# Jovens Infelizes Ou Um Homem Que Grita Não É Um Urso Que Dança

Caloni, 2019-02-02 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

"Um Homem Que Grita Não É Um Urso Que Dança" é um segundo-título bem longo. Ele precisava, na minha cabeça, fazer sentido. Então fui pesquisar e encontrei a citação de Aimé Césaire, estudólogo de negritudes francesas. Foi aí que consegui conectar com o primeiro-título: "Jovens Infelizes". O que Césaire está querendo dizer nessa sua frase é que o sofrimento humano não é um espetáculo, usando como exemplo para comparação um urso dançante, desses de circo. É claro que ele não usaria um macaco dançante, por exemplo, pois isso seria inconveniente. Afinal de contas, Aimé Césaire foi um racistólogo profissional.

Em primeiro momento, após assistir o filme do diretor e roteirista Thiago B. Mendonça, discordo do título jovens infelizes. Como podem ser infelizes jovens que não trabalham e só fazem sexo o tempo todo? Talvez seja esse um daqueles mistérios que no futuro explica ao adulto porque sua adolescência foi desperdiçada, quando ele "era feliz e não sabia".

Esses jovens do filme se dizem revolucionários. De esquerda, claro. Estão indignados com tudo o que está acontecendo na vida deles, que se resume em um bar (com o sugestivo nome de Cabaré Vermelho) que terá que ser fechado, assim como lutam para tentar pagar o aluguel do teatro onde mostram sua arte. A prefeitura e a especulação imobiliária estão acabando com os lucros, quer dizer, com a harmoniosa comunidade onde as pessoas se reúnem para se expressar e serem felizes.

Mendonça está situado na esfera política e social do seu tempo. Ele filma momentos dos protestos de 2013 e 2014 que ocorreram na cidade de São Paulo e outras, sobre o aumento da passagem de ônibus e sobre o superfaturamento das obras para a Copa do Mundo, respectivamente. Aqueles não foram bons anos para os governantes, pois estava começando a cair a máscara do governo bonzinho e no lugar começaram a voar bombas de efeito moral. Desde então só tem piorado.

Sob as lentes de Mendonça acompanhamos essa ficção sob as cores mais que realistas do preto e branco, evocando não apenas o golpe de 64 (jovens brasileiros em preto e branco) mas também aqueles momentos belíssimos em que as ruas estão um caos, há PMs batendo em manifestantes e vândalos botando fogo onde for conveniente para que um fotógrafo de algum jornal fique famoso pelo senso estético no campo de batalha. Tudo pelo enquadramento perfeito.

Ao mesmo tempo, como citei, esses jovens fazem sexo como forma de arte e escapismo. E não há melhor maneira de flagrar seus lindos corpos nus do que usando os tons de cinza que embelezam o muquifo mais embostelado. Unindo seus corpos em um monte uniforme de pele, pelo e carne, a revolução está garantida.

Para tentar "chocar" o espectador, ou melhor dizendo, para tirar sua sensação de escândalo, vários momentos do filme são crus. A história é introduzida por uma mulher sensual com os dois braços e pernas arrancados. Há um suicídio coletivo de jovens como ato político. Há uma orgia em uma igreja. Um negro é linchado simbolicamente em praça pública (um momento bem bonitinho na Avenida Paulista). Não há limites para nos fazer tirar da zona de conforto. E ainda assim eu fiquei abismado todo momento em como as jovens de esquerda revolucionária feministas poderiam ter os corpos tão esbeltos. Liberdade poética em meio a tanto realismo?

Mas nada mais choca as pessoas, como alguém comenta no filme. É verdade. Estamos anestesiados com tanta exposição gerada pelas mídias sociais. Não há mais limites e os que se dizem revolucionários soam como crianças mimadas. Colocar um pôster do Che Guevara na parede envolve um motivo. Sem ela se torna um clichê em forma de capitalismo. Nunca se vendeu tão bem a ideia de que jovens podem ser rebeldes sem causa e, pior, se sentir bem por isso.

Eu fico curioso em como pessoas de diferentes visões políticas irão encarar os Jovens Infelizes. Imagino que a direita brasileira deve achar tudo aquilo uma representação repulsiva da realidade, um exemplo de como essa geração está perdida. Já a esquerda senil que vive nos jardins (bairro nobre de São Paulo) irá finalmente largar seus livros de masturbação intelectoide e encontrar seu verdadeiro espírito revolucionário em algum cinema da Augusta (rua para filmes anternativos em São Paulo) e sentir que os heróis da causa estão escondidos em algum beco do centro renovado, talvez em alguma ocupação mais limpinha.

E esses heróis serão esbeltos, atraentes (ainda estou chocado). Irão transar coletivamente quando houver necessidade de uma arte revolucionária. Irão posar para as câmeras dos jornalistas quando as bombas de efeito moral fizerem a névoa que precisam para o apelo dramático.

Tudo isso cantando "Bella Ciao", o hino informal contra o fascismo no mundo todo. Você sabia que essa linda música folclórica era cantada pelos trabalhadores sazonais nos campos de arroz da Itália? Quem diria que alguém já trabalhou e cantou essa música ao mesmo tempo. Estou chocado de novo.


# Let Me Be Frank

Caloni, 2019-02-02 cinema movies [up] [copy]

Fato curioso: este curta produzido e protagonizado por Kevin Spacey soma três minutos de duração e mais frases brilhantes do que toda a última temporada de House of Cards, com duração aproximada de 400 minutos, protagonizada por Claire Underwood. Esta temporada da série foi a única em que a protagonista era uma mulher. Coincidência?

Se você se ofendeu com o parágrafo inicial deste texto, que destaca o gênero de uma personagem como algo determinante na qualidade de um roteiro, percebe como é fácil brincar com a realidade. Basta colocar em relevo qualquer dado irrelevante e torná-lo de repente o detalhe mais importante de toda uma trama. Foi o que aconteceu recentemente com Kevin Spacey, retirado da produção e elenco da série abruptamente após ser colocado sob os holofotes um escândalo de assédio do passado e aos poucos surgir críticas do próprio elenco de House of Cards e da equipe sobre a forma do ator de se relacionar durante a produção.

E de repente esse foi o único detalhe de toda a existência do produtor/ator/personagem que fez com que a Netflix, produtora e distribuidora da série, cancelasse seu contrato e retirasse qualquer menção ao ator no roteiro para a última temporada, que termina uma sequência de momentos inspiradíssimos sobre a política norte-americana e termina em uma história da carochinha sobre como seria se Hillary Clinton tivesse vencido as eleições contra Donald Trump.

O curioso é como a vida imita a arte, e no caso como o personagem de Spacey se esquivou tantas vezes na série de coisas que ele de fato fez, e agora luta na vida real para se esquivar de coisas que ou ele não fez ou não foi provado ainda. O resultado é um texto sucinto em que o ator brinca com referências entre a vida real e a ficção, deixando mais que claro que ele não parece se deixar abater nem em um, onde é processado por assédio, e nem em outro, onde ele está morto (ops, spoiler). Chegando ao ápice do brilhantismo, ele exclama: "apesar de tudo, apesar de minha própria morte... eu me sinto surpreendentemente bem".

Segue o roteiro completo com as instigantes frases. O vídeo você acha rapidamente na internet procurando pelo título.

I know what you want. Oh sure they may have tried to separate us but what we have is too strong -- is too powerful.
I mean after all we shared everything you and I.
I told you my deepest darkest secrets.
I showed you exactly what people are capable of.
I shocked you with my honesty, but mostly I challenged you and made you think. And you trusted me even though you knew you shouldn't.
So we're not done no matter what anyone says and besides I know what you want. You want me back.
Of course some believed everything and I've just been waiting with bated breath to hear me confess it all.
They're just dying to have me declare that everything said is true and that I got what I deserved.
Wouldn't it be easy if it was all so simple?
Only you and I both know it's never that simple not in politics and not in life.
But you wouldn't believe the worst without evidence would you?
You wouldn't rush to judgment without facts, would you?
Did you?
No, not you. You're smarter than that.
Anyway all this presumption made for such an unsatisfying ending and to think it could have been such a memorable send-off.
I mean if you and I've learned nothing else these past years it's that in life and art nothing should be off the table. We weren't afraid not of what we said, not of what we did, and we're still not afraid because I can promise you this.
If I didn't pay the price for the things we both know I did do. I'm certainly not gonna pay the price for the things I didn't do.
Oh well of course they're gonna say I'm being disrespectful not playing by the rules like I ever played by anyone's rules before. I never did and you loved it.
Anyhow despite all the poppycock, the animosity, the headlines, the impeachment without a trial -- despite everything -- despite even my own death.
I feel surprisingly good.
And my confidence grows each day that's soon enough you will know the full truth.
Wait a minute, now that I think of it, you never actually saw me die, did you?
Conclusions can be so deceiving. Miss me?

# Setembro

Caloni, 2019-02-02 cinema movies [up] [copy]

Eu me lembro de Setembro em minhas noites acordado (tentando dormir) no quarto dos meus pais. Era o meu pai que colocava em algum canal na TV que aparentemente comprou o pacote completo de filmes do Woody Allen, os já produzidos e os futuros. Para uma criança que não entende nada de dramas humanos deve ter sido muito chato. Mas Setembro tem um momento tão fugaz e tão vulnerável que parece que o universo inteiro vai colapsar, e quando isso acontece até uma criança sente. E retém a cena. Eu me lembro dela até hoje, quando a revi.

Para todos que já assistiram você deve se lembrar dessa cena. É quando uma porta se abre e o que estávamos todos esperando, ainda que soubéssemos que seria um desastre, acontece. Mas deveria acontecer. Por quê? Eu não sei. Só não acho certo que segredos existam entre pessoas que conviveram tão de perto por tantas semanas na mesma cara de veraneio. O quão cruel, ou o quão correto, é desejar que segredos sejam revelados, ainda que isso possa custar a vida de uma pessoa?

Woody Allen é conhecido por comédias, mas eventualmente ele arrisca um drama. E aqui o diretor e roteirista nos joga para dentro de uma casa, durante uma noite e o dia seguinte, que poderia ser um palco. Mas Allen não dirige peças. Ele escala atores e começa a filmar o roteiro que escreveu em sua máquina. E agradeço a ele por isso, pois se esta fosse uma peça eu nunca teria tido a experiência de assistir este filme quando criança e agora, adulto, mais ciente deste drama caótico do universo que Allen tanto nos alerta. A magia do Cinema e das atuações que ficam para sempre.

Não apenas as atuações. Allen pega algumas de suas frases mais profundas e joga ocasionalmente na boca de um ou outro ator. É de uma atriz coadjuvante essa, falada quase casualmente: "o tempo vai passando e um dia você percebe que algo está faltando; futuro, isso é o que falta". Para outro, um físico, quando questionado se trabalhou no projeto da bomba atômica, ele diz: "trabalhei em algo pior que a destruição do mundo; trabalhei para provar que este universo surgiu ao acaso e que nada tem algum sentido eterno". Ou algo assim. O detalhe é que quando esses momentos são falados é inesperado, mas profundo e lindo justamente por isso.

E mesmo que seja nos diálogos e atuações que tudo se concentre, o diretor passeia com sua câmera, realizando giros e closes, porque no final das contas a geografia dos recintos daquela casa nos foge. Depois de oitenta minutos dentro de lá ainda é impossível dizer onde ficam as portas e passagens, porque Allen esteve envolvido com as atuações e nos quer viver aquele momento focado nas pessoas e desfocado do universo (incluindo a casa).

E o mais fascinante de tudo isso é conseguir perceber todos esses detalhes desse filme hoje mas não saber quando criança. Mas adivinha só? Aquela cena da porta se abrindo ficou no inconsciente todo esse tempo, todas essas décadas, e ela ainda é potente. Mas agora além dela há todo o resto, que por mais caótico que seja ainda é o que temos para viver. É como a personagem de Mia Farrow diz quando questionada se queria morrer. "Não quero morrer, e é esse o problema: eu queria tanto viver."


# Um Pequeno Favor

Caloni, 2019-02-02 cinema movies [up] [copy]

Minha colega de profissão no CinemAqui, Mariana González, me recomendou Um Pequeno Favor o chamando de "quase uma versão comédia doida de Garota Exemplar". E agora me sumiram melhores palavras para definir esse filme de Paul Feig. Mas eu vou tentar.

Diretor do excepcional Missão Madrinha de Casamento, Feig é um diretor acostumado a colocar na frente de sua câmera o universo feminino nas melhores atuações das atrizes que escala. Foi assim com Kristen Wiig e agora a mágica se repetiu em Um Pequeno Favor com Anna Kendrick. Eu não costumo ver diretores se saindo tão bem em dirigir atrizes, mas Feig possui em sua lente o poder de elevar suas personagens na tela acima do convencional.

E você conhece Kendrick. Atriz e cantora, essa baixinha dublou a garota mais fofinha em Trolls, e mesmo em um filme sério como O Contador Kendrick purifica o ar tóxico deixado por assassinatos e perseguições desse filme com Ben Afleck (coincidentemente Afleck está em Garota Exemplar; mas divago). Aqui ela faz Stephanie, mãe de um garoto e dona de casa que tenta manter a casa com o dinheiro do seguro após seu marido morrer em um trágico acidente e que faz vídeos caseiros com receitas para o dia-a-dia de pessoas como ela. Stephanie é dessas jovens mães que usam vestidos coloridos que lembram princesas da Disney depois do "felizes para sempre".

Mas assim como o mundo torto de Um Pequeno Favor, Stephanie não é tão inocente assim. Depois que conhece a empoderada e problemática Emily (Blake Livery) e praticamente se adota como sua melhor amiga vamos aprendendo aos poucos que por trás de uma figura angelical pode-se esconder um ou dois pecados que sugerem uma versão alternativa onde tudo poderia ser diferente se visto sob outra ótica. Será isso porque a toxicidade de Emily foi aos poucos contaminando Stephanie ou ambas no fundo se merecem mais do que gostaríamos de assumir?

Esse é um mundo cínico onde maridos pressionados podem dormir com as melhores amigas de sua esposa. Tudo soa irreal em Um Pequeno Favor, mas se formos seguir as migalhas das pistas que a roteirista Jessica Sharzer usa para justificar para onde a história caminha testemunharemos, estupefatos, que tudo faz sentido, e o elemento destoante aí é Stephanie, que faz de tudo para provar, mais para si mesma do que para os outros, que pode ser uma verdadeira amiga até o fim. Ironicamente, é justamente essa boa intenção que desencadeia o desenrolar mais macabro da história.

Adaptado do romance de Darcey Bell, Um Pequeno Favor está sempre bebendo desses thrillers clichês em que há revelações que prefiro não falar aqui para não estragar a surpresa, mas que ao você descobrir ao mesmo tempo já percebe que já viu isso antes, mas em um formato mais sério. Aqui o espaço da comédia se coloca muito próximo do humor negro, e é justamente aí que Kendrick brilha. Habituada a fazer o tipo boazinha, é justamente essa virtude que torna todas as situações do filme hilárias, pois suas boas intenções batem de frente com um mundo que não está correspondendo ao brilho dos seus olhos, mas se olharmos de perto esse brilho não é apenas de bondade.

Ágil para não nos dar tempo para pensar demais nos detalhes, Um Pequeno Favor nos presta a cortesia de ser rápido e direto ao ponto, nos entregando uma sensação estranha e engraçada ao mesmo tempo, e no processo construindo personagens e situações marcantes pela forma com que deturpa nosso senso de moral.


# Diálogos Sobre o Vegetarianismo

Caloni, 2019-02-03 philosophy [up] [copy]

Conheci o filósofo Michael Huemer através de um amigo e por procurar há um tempo atrás refutações convincentes do objetivismo. Encontrei uma saída para vários dos problemas discutidos pela humanidade. Isso se chama intuitivismo.

Doutrina segundo a qual todos os conhecimentos existem por intuição.

Através desse modo de pensar é possível chegar a conclusões que fogem do padrão e tentam demonstrar que nossa postura a respeito do conhecimento que temos deve ser mais humilde e mais objetivo sem desconsiderar que vivemos, sim, de acordo com o viés de nosso tempo.

Um dos textos que me chamou a atenção foi um diálogo fictício entre duas pessoas -- uma vegana e outra onívora -- em que eles discutem por alguns dias a ética animal. Essa é uma tentativa de defesa de Huemer pelo não-consumo de carne e derivados animais (leite, ovos, etc) e usa uma conversa informal justamente para abordar esse tema de maneira mais leve e ponderada. Você nunca irá encontrar pessoas que conversem tão educadamente sobre esse tema na vida real, e é por isso que esse texto vale ouro:

Fonte: https://criticanarede.com/animais.html


# On Writing Well

Caloni, 2019-02-03 books self [up] [copy]

On Writing Well de William Zinsser é considerado por muitos do Hackers News como uma ótima referência para se escrever bem não-ficção. Tenho minhas dúvidas. Mas justiça seja feita, o livro parece um Syd Field (Screenplay) para não-ficção, cheio de guidelines que podem auxiliar o escritor ainda amador tentando se profissionalizar e impressionar alguns editores por aí.

A melhor parte em minha opinião é dos Princípios (Parte I), pois é ali que está o verdadeiro ouro do livro, onde ele ensina o bê-a-bá do que faz os textos hoje em dia serem tão ruins e como reverter essa situação lamentável. Ele até cita o artigo de George Owell, Politics and the English Language. Ainda assim, ele já dá sinais de SJW ao insistir na questão de como usar os gêneros para não ofender os sensíveis ouvidos da mulherada neurótica sobre como a gramática é patriarcal. Pelo jeito não aprendeu muito bem com Mr. Orwell.

Além disso, é nos princípios que está a verdadeira mágica para se escrever bem: pratique, trabalhe, comece a escrever. Só há uma maneira de melhorar, e é essa. Não há atalhos.

Clippings

Eles sentam para cometer um ato de literatura, e o eu que emerge no papel é mais rígido que a pessoa que sentou para escrever.
Pensamento claro se torna escrita clara; um não pode existir sem o outro.
Escritores devem se perguntar constantemente: o que eu estou tentando dizer? É surpreendente o quão frequente eles não sabem.
Bagunça é o pesado eufemismo que transforma uma favela em uma área socioeconômica depressiva.
Nunca diga qualquer coisa na escrita que você não diria confortavelmente em uma conversa.
You'll never make your mark as a writer unless you develop a respect for words and a curiosity about their shades of meaning that is almost obsessive.
All writing is ultimately a question of solving a problem. Whatever it is, it has to be confronted and solved.
As for what point you want to make, every successful piece of nonfiction should leave the reader with one provocative thought that he or she didn't have before.
One reason for citing this lead is to note that salvation often lies not in the writer's style but in some odd fact he or she was able to discover.
When you're ready to stop, stop. If you have presented all the facts and made the point you want to make, look for the nearest exit.
Don't say you were a bit confused and sort of tired and a little depressed and somewhat annoyed. Be confused. Be tired. Be depressed. Be annoyed.
The assumption is that fact and color are two separate ingredients. They're not; color is organic to the fact. Your job is to present the colorful fact.
Don't annoy your readers by over-explaining -- by telling them something they already know or can figure out.
Writing is not a special language owned by the English teacher. Writing is thinking on paper. Anyone who thinks clearly can write clearly, about anything at all.
Always start with too much material. Then give your reader just enough.
If you're smitten by the urge to try the breezy style, read what you've written aloud and see if you like the sound of your voice.
Never hesitate to imitate another writer. Imitation is part of the creative process for anyone learning an art or a craft.
With so much noise in the air, was any American child being trained to listen? Was anyone calling attention to the majesty of a well-constructed sentence?
After verbs, plain nouns are your strongest tools; they resonate with emotion.
"The reader has to feel that the writer is feeling good. Even if he isn't." - S. J. Perelman
You also have to turn on the switch. Nobody is going to do it for you.
Living is the trick. Writers who write interestingly tend to be men and women who keep themselves interested. That's almost the whole point of becoming a writer.
Every such reduction of the unfamiliar will reduce your fear.
Writing to destroy and to scandalize can be as destructive to the writer as it is to the subject.
The moral for nonfiction writers is: think broadly about your assignment.
Trust your curiosity to connect with the curiosity of your readers.
Writing is related to character. If your values are sound, your writing will be sound.
Used in moderation, making yourself gullible -- or downright stupid -- gives the reader the enormous pleasure of feeling superior.

# Why Facts Don't Change Our Minds

Caloni, 2019-02-03 philosophy blogging [up] [copy]

Você sabe como funciona um vaso sanitário? Tem certeza? Faça o experimento, então: descreva de maneira verbal todos os passos envolvidos no funcionamento de dar descarga em um vaso. Depois pesquise e verifique como ele realmente funciona. Compare a realidade com o seu achismo e exploda sua cabeça.

Mas não se preocupe, você não é o único. De acordo com inúmeras pesquisas desse artigo de Elizabeth Kolbert o ser humano dependeu dessa confiança cega no conhecimento do próximo para conseguir evoluir tão rapidamente desde a idade do bronze. Não era todo homo sapiens sapiens que precisava entender todo o mecanismo por trás da confecção de uma arma ou uma ferramenta rústica dos tempos primórdios. Muitos simplesmente confiavam no que lhe era dado pelo ambiente e sociedade onde vivia.

Até aí há uma grande coincidência em como a sociedade funciona hoje. Claro, se escalarmos nossa evolução ao infinito após a Revolução Industrial, já que praticamente o funcionamento de nada no mundo contemporâneo consegue ser explicado por apenas um ser humano. Pior ainda se ele tentar fazer ele mesmo. Veja a história do cara que tentou fazer seu próprio sanduíche. Ele deveria produzir todos os ingredientes envolvidos em sua produção. Ele demorou seis meses e gastou 1500 dólares no processo. Um mero sanduíche.

No entanto, o assunto do artigo não é esse. Ele parte disso para nos ensinar uma importante lição como lidamos com o conhecimento no mundo e a partir disso demonstra como nem em todas as áreas isso é algo benéfico. No quesito democracia, por exemplo, esse nosso viés é muito ruim, já que as decisões escolhidas por milhões de pessoas não impactam diretamente suas vidas, mas a decisão em si exige conhecimento de cada um. Isso quer dizer que todos os votantes ou apoiadores de qualquer ação de seus governos deveriam estar a par de todo o movimento geopolítico e econômico da atualidade.

Traduzindo isso na prática, uma intervenção americana na Ucrânia, por exemplo, para ter legitimidade de conhecimento da população, deve supor que todos ou a maioria dos habitantes está a par da situação política nesse país do Leste Europeu. Porém, quase ninguém sabe exatamente onde fica a Ucrânia. E pior: quando pedido aos entrevistados de uma pesquisa para apontar no mapa onde esse país fica, quanto mais distante dos EUA eles apontavam mais sua opinião era intervencionista. Coincidência?


# Alita: Anjo de Combate

Caloni, 2019-02-05 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

As cabines de imprensa de superproduções são lotadas de jovens, e "Alita: Anjo de Combate" é um desses filmes, apesar de sua cara de segundo escalão seu orçamento foi de cerca de duzentos milhões de dólares. Duzentos. Milhões. De. Dólares. E o dinheiro do roteirista?

O filme foi escrito por três pessoas: James Cameron (obcecado por Avatar há uma década), Laeta Kalogridis (da série Altered Carbon) e Robert Rodriguez (da série Pequenos Espiões). Eles se basearam no mangá de Yukito Kishiro dos anos 90 que já contava basicamente a mesma história. Não há muito o que inventar quando seu objetivo é fazer/copiar uma distopia genérica no futuro distante onde deve haver luta de robôs/andróides. A história é como já foi vista em um ou outro trabalho de referência, como o comércio de partes do corpo em Blade Runner, a questão da consciência/alma em Ghost in the Shell e a velha disputa sanguinária cujo vencedor ganha o direito de participar da elite que comanda essa sociedade.

Aliás, sobre essa sociedade do filme, me vem à mente uma frase de outro filme recente que assisti. Independente de qual ele seja, havia uma pergunta recorrente ao espectador: "qual é a sua utopia?". Essa pergunta implica que cada um tem sua visão de um futuro ideal, ou muito errado quando se torna uma distopia. Alita me fez lembrar disso porque a distopia do filme parece ser a única produzida em Hollywood há uma década e de forma cada vez menos sutil: a eterna luta de classes e os 1% ficando com tudo. Aqui os 1% vivem em uma cidade suspensa como os jardins de Babilônia, mas com tecnologia de 500 anos no futuro, enquanto a Cidade de Ferro é tudo que está estratificado no chão.

Essa distopia possui algumas ideias que poderiam se juntar organicamente à história, mas todos os anos desse projeto não foram capazes de maturar. Como por exemplo os próprios cidadãos se cadastrando como vigilantes que caçam criminosos procurados em busca da recompensa em dinheiro, em uma versão alternativa e popular de Dredd (também originalmente dos quadrinhos), o juiz que caçava, julgava e executava potenciais criminosos. O conceito-chave aqui é que o risco de impunidade é muito maior, que é o que já acontece no mundo real em governos autoritários.

Porém, nenhuma dessas ideias segura de fato o universo concebido pelo produtor James Cameron para a execução dessa obra inacabada e que portanto deseja se tornar uma franquia. Nem a heroína segura o filme, pois conforme a história de desenvolve ela vai se tornando menos interessante no ritmo em que seu destino vai se tornando mais previsível. Eventualmente a ideia se esgota, pois não é original.

Isso não acontecia em Avatar, por exemplo. A despeito de ser cópia descarada de Pocahontas ou Dança com Lobos, o objetivo no filme de Cameron era contar uma história simples para apenas introduzir o universo, que é rico em detalhes e que portanto se sustenta sozinho graças à revolução tecnológica. Em Alita isso não acontece, apesar desse mundo ser fascinante pelos elementos gráficos impossíveis, pelas expressões dos andróides com formas que lembram mais insetos ou guerreiros absurdamente gigantes e largos do que seres humanos normais, ou até mesmo pelos olhares, os sorrisos e as emoções encantadoras que saem do rosto da personagem-título. De alguma forma o encanto vai diminuindo conforme nos acostumamos com as cenas de ação e o horizonte exagerado de prédios se amontoando em uma favela gigantesca.

Tudo isso porque a história de origem se esquece de apertar mais forte o laço humano de Alita com seu pai adotivo, o Doutor Dyson Ido (Christoph Waltz), que enxerga na garota-andróide uma nova filha por quem fazer algo de bom, dando-lhe um novo corpo para viver. O Doutor Dyson dá o corpo criado com amor para a própria filha a Alita, mas por algum motivo o resultado não chega a ser emocionalmente forte para que entendamos essa relação por completo. Alita como filme é um projeto inchado de ideias que não dialogam bem entre si, pois envolve dois conceitos opostos: uma crise existencial com auto-descoberta e sequências de ação sem significado claro na história, ou seja, o filme tenta harmonizar o impossível: diversão descerebrada e um drama humano no corpo de uma androide.

O diretor Robert Rodriguez (Pequenos Espiões) nos garante diversão em várias sequências eletrizantes deste filme-origem que não possui final, como as lutas entre caçadores de recompensa e andróides em um esporte visceral da época. As sequências são rápidas mas conseguimos nos localizar e ainda apreciar vários momentos em que os efeitos visuais atingem seu ápice. Rodriguez nos permite também que nos encantemos em várias cenas dignas de um pôster. E isso de alguma forma me incomoda, pois se eu tivesse um desses pôsters não me lembraria por que essa cena é tão icônica. Talvez porque ela não é. Há cenas esteticamente impecáveis onde podemos ficar horas admirando, mas o motivo delas existirem é meramente publicitário. Alita experimenta seu novo corpo e a vemos em posições de combate que exaltam a beleza da tecnologia gráfica, mas você nunca verá no filme um momento além de lindo, memorável.

O que me faz lembrar de por que tantos jovens adoram ir a cabines com superproduções "baratas" como essa, representando, de certa forma, vários canais onde outros jovens esperam notícias sobre essas produções. O motivo é um só: emoções baratas. É a diversão de acompanhar a evolução tecnológica da arte e vibrar com aqueles momentos-pôster, seja lá por que eles foram criados no filme. E isso explica, então, porque dos duzentos milhões muito pouco deve ter sido destinado para o trabalho dos roteiristas.


# Boneca Russa

Caloni, 2019-02-06 cinema series [up] [copy]

Sempre que alguém vem com a ideia de refazer o princípio do icônico filme de Bill Murray, Feitiço do Tempo, já surge aquele sentimento de muleta narrativa para tornar uma história artificialmente interessante. E quando essa ideia vem da Netflix, então, é certeza que lá vem bomba.

Nesse caso uma das atrizes russas de Orange is the New Black, Natasha Lyonne, junto com Leslye Headland e a comediante Amy Poehler (da série Parks and Recreation) resolvem usar um princípio muito simples que vai se desenrolando em princípios menores e irrelevantes. O princípio maior é: morreu volta para um ponto no tempo. Os princípios menores são "qual a moral de tudo isso", "algumas coisas envelhecem ou somem", "espaço-tempo revisitado" e todas as baboseiras de quem não é muito fã de sci-fi, mas que precisa ser, costuma colocar nesse tipo de material.

O resultado: a muleta narrativa funciona. São episódios curtos que divertem moderadamente com piadas ruins ditas por Lyonne e que nos faz lembrar que esse não é o filme do Bill Murray. A melhor parte é a introdução de um segundo personagem com problemas de relacionamento, mas fica apenas na introdução e depois todos nós temos que aguentar novamente as piadinhas sem graça e os relacionamentos aleatórios e sem sentido da garota de cabelo ruivo.


# Clímax

Caloni, 2019-02-06 cinema movies [up] [copy]

Eu me mantenho em forma o suficiente para subir escadas sem cansar e não ser um total vexame na cama. E posso dizer para família e amigos que cuido de minha saúde, em corpo e espírito. Como costumam dizer, eu me preocupo com meu bem estar. Mas quem são esses jovens de corpos sarados, e por que há tanta mágoa em seus corações? A mente e o corpo são uma unidade. Um templo. Assim como a escola é um templo do conhecimento. E quando se profana esse templo tudo é permitido. Mas nada nos convém.

O diretor Gaspar Noé nos prepara um delírio em forma de filme. Ele usa alguns truques técnicos que sabe usar com maestria, como movimentos de câmera suaves que mudam o ângulo enquanto filmam, com pouquíssimos cortes para manter a tensão do realismo pulsando. Somos avisados no começo que o que veremos foi baseado em eventos reais, e isso ajuda a manter um equilíbrio doentio em muitos momentos entre prazer estético e mal estar.

A música psicodélica é um chamado desde o começo para uma viagem sensorial, que aos poucos vai se tornando extra-sensorial. Esses jovens se entregam à dança como o único refúgio que possuem de uma vida miserável. Ouvimos de seus próprios testemunhos que estão dispostos a tudo para vencer em um torneio de dança e que não houvesse ela em suas vidas o suicídio seria uma alternativa. Nós conhecemos rapidamente o histórico e a relação de alguns desses jovens e por intuição sabemos que a vida que eles levam não vale a pena viver. Ou são jovens franceses mimados que cresceram ouvindo que possuem direito à felicidade. Há uma tênue diferença entre ter direitos e conquistá-los.

Por que falo sobre isso? Há uma bandeira da França como palco onde ensaiam e Deus é citado no final. Algo me diz que a base onde eles foram criados não presta. Apenas intuição. Mas quando eles descobrem estar sob efeito de um alucinógeno, passa a ser certeza. O corpo é sarado e a mente é uma bomba relógio. Você pode dizer que estou sendo moralista, mas o reflexo do próprio filme e seus personagens me diz isso. Aborto, incesto, baixa estima, sexo de escape e rancores entre todos. Acompanhamos as desavenças entre eles através de diálogos. E apenas se passaram três dias de ensaio.

Há uma falha grave, contudo, em toda essa história de desastre. Essas pessoas são extremamente desagradáveis. Egocêntricas. Falsas. Isso explica por que os desentendimentos passam a ficar mais extremos, mas ao mesmo tempo essas pessoas não servem para o espectador depositar nelas sua empatia. Ele pensa no meio de tudo isso: que se matem.

O que resta de "Clímax", então, é seu efeito estético, a experimentação, a técnica. Essa é intensa, nos puxa para dentro do filme e não nos deixa mais sair. Andamos junto da câmera entre idas e vindas de corredores intermináveis e ficamos imaginando o que deve estar acontecendo onde não estamos olhando. Os gritos e gemidos de fora da cena serve para isso. Mas nunca é algo que estamos verdadeiramente interessados em saber. E por isso o filme precisa nos exibir dizeres sobre a vida e a morte para se tornar relevante.

E voltamos para a França, essa grande ficção, onde os cidadãos se ajudam, todos juntos, em uma grande comunidade diversa e tolerante. Essa imagem é o que vemos no palco. E a realidade é o que acontece quando colocam ácido de realidade na bebida. E nem isso é novidade, na arte e na vida. "In vino veritas". Saúde.


# Gunnm (aka Alita)

Caloni, 2019-02-06 cinema animes cinema series [up] [copy]

Curioso que sou, resolvi dar uma olhada no OVA dos anos 90 responsável por Alita: Anjo de Combate, blockbuster tecnológico com efeitos de captura de movimentos e expressão de fritar o cérebro humano. Com menos de uma hora, todos os momentos icônicos do longa metragem dirigido por Robert Rodriguez estão lá, jogados da mesma maneira, sem esperança de uma narrativa coesa que trame a favor de alguma conclusão. Se trata de um vislumbre rápido e aleatório de um futuro distante onde certas coisas existem, e que no fundo nunca mudaram: ricos contra pobres, enganação, ilusão e o medo de fracassar na vida.

Alita aqui é Gally, uma andróide encontrada no lixo e com o corpo restaurado pelo doutor cibernético Ido, o melhor de sua área. Ela faz amizade com Yugo, um rapaz pobre que assalta pessoas com partes sintéticas para vender no mercado negro. Ele faz isso pelo dinheiro que está juntando para comprar sua liberdade de uma cidade opressiva e onde não se respeita ninguém (vide ele próprio assaltando pessoas inocentes pelas ruas). O que ele não sabe é que está sendo enganado por Vector, um desses cínicos que viu que pode viver como um rei no ferro velho. Então para quê ser mais um servo no primeiro mundo?

Esse primeiro mundo é Zalem, uma cidade flutuante que é a versão voadora da elite que temos hoje no mundo real. Não há nada demais nessa alegoria. Mas James Cameron, produtor de Alita, viu que a heroína é mulher (ou pelo menos tem as feições de mulher) e que a história política se encaixa perfeitamente no ódio que ecoa desde 2008 do inimigo invisível representado por grandes corporações e seus arranha-céus opressivos.

Os gráficos em Gunnm são no máximo OK, nos lembrando que há um mangá em algum lugar onde toda essa história é menos barulhenta e com talvez mais sentido. Mas como dá preguiça de cavar mais fundo, ficamos por aqui em nossa mediocridade, comparando animes obscuros com produções megalomaníacas dos poderosos de hoje em dia. Talvez você repare na ironia. Talvez você já seja um ciborgue lutando por sua "liberdade".


# Dogman

Caloni, 2019-02-07 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Não me lembro de um filme que conte a história do cúmplice em vez do bandido. Fraco moralmente, agindo nas sombras dos poderosos, o cúmplice é visto como um sub-humano; a escória da sociedade. Mas em Dogman ele é o protagonista. O inesperado e tardio herói de uma comunidade à beira do nada. E é no nada que os bullies atacam. Munidos do excesso de músculos no braço e falta de massa cinzenta no cérebro, os mais fortes usam a lei da física a seu favor. Mas mais do que isso: usam a lei do medo.

Dirigido por Matteo Garrone e escrito por um batalhão de gente, Dogman é uma história simples que sobrevive nos detalhes. Assim como Marcello, o nosso intrépido e imoral herói. Ele tem um negócio onde cuida de cachorros. O filme começa exibindo a calma com que ele dá banho em um cão extremamente agressivo: dialogando com o bicho e quase que fazendo carinho, não fosse a certeza de que seu braço seria decepado se realmente tentasse, Marcello possui mais paciência do que auto-estima. E esse é resumo perfeito do nosso "herói".

Isso porque ele, logo veremos, não passa de chupim de Simone, o grandalhão do bairro que intimida a todos porque não se sabe até onde vai sua insanidade em usar a força bruta. Marcello vive praticamente como uma sombra (pequena) de Simone, pois é a menor e mais franzina pessoa por perto, se passando apenas como mais um coitado que não tem outra alternativa senão obedecer o grandalhão. Fornecedor pro bono de cocaína, Marcello vive diferentes níveis de abuso de Simone, quase sempre girando em torno da ameaça constante de que um soco lhe arranque a cabeça.

Ao mesmo tempo vamos acompanhando a rotina desse pequeno e pacato pedaço de vilarejo que apesar de beira-mar parece entregue ao pó e ao esquecimento. A lei chega tardia nesse lugar, e é por isso que todos institivamente tentam se unir contra qualquer ameaça mais grave de Simone. Porém, não é fácil peitar alguém quando todos têm algo a perder (Marcello tem sua filha) e fica ainda pior ao perceber que o descerebrado Simone não.

E é essa tensão inimente durante todo o longa que nos mantém atentos para o que pode acontecer. Tão atentos que é capaz que passe despercebido que Marcello, apesar do elo mais fraco, parece tentar domar essa fera, ainda que à distância e ainda que se submetendo. Como o cão feroz que dava banho no início da história. Marcello quer fazer parte das vantagens de ser grande e forte. Ele parece viver no limiar entre a vítima potencialmente heróica e o covarde aproveitador. É possível sentir empatia por Marcello por ele ser pequeno e parecer sempre fazer a coisa certa, mas é impossível tomar parte disso depois que aprendemos que ele vive (ou tenta viver) das migalhas dos pães arrancados à força por Simone de quem quer que esteja no seu caminho.

É esse dilema que torna a paleta de cores de Dogman tão cinzenta, seus letreiros tão empoeirados e as noites tão escuras e solitárias. Queríamos que essa fosse a história de redenção das novelas e filmes, mas é simplesmente a realidade das ruas com seus valentes de plantão e a ralé comendo pelas beiradas. E sentir pena do protagonista não torna suas ações mais louváveis antes de nosso coração ficar mais apertado.

Mas ainda assim, Dogman consegue nos manter por mais tempo que o esperado torcendo por uma mudança. A interpretação de Marcello Fonte ajuda; sua cabeça cabisbaixa, seu sorriso sem graça e seus movimentos nada ameaçadores tornam Marcello um simples ratinho amedrontado, embora ele talvez ainda tenha alguns valores que pretenda manter. Pelo bem de sua comunidade. Nesse sentido uma cena que envolve ele invadindo uma casa para salvar um cachorro colocado no freezer é vital para mantermos ou aumentarmos nossa fé em sua integridade.

O diretor Matteo Garrone sabe que precisa manter Marcello sob os holofotes, e para isso ele tira quase qualquer humanidade de seu contraponto: Simone. Um exemplo: ele tem uma mãe que apesar de ver o filho baleado o rejeita ao descobrir que ainda se droga. Vemos menos o rosto do grandalhão do que seus punhos em ação. Não há muitas maldades cometidas por Simone que não girem em torno de Marcello. O filme está martelando a todo momento que Marcello precisa se redimir e que é digno disso, o que torna doloroso concluir aos poucos que isso não é possível. E se não for aos poucos será em um momento-chave em que ele precisa assinar um papel para se livrar e livrar todos os outros dos seus problemas.

Dogman é um drama violento que se estabelece fácil como uma poesia realista das mazelas do mundo onde os fortes se aproveitam das barracas de frutas onde os cacetetes policiais não alcançam. Mas mais do que isso, e isso é importante: é um filme sobre um cúmplice. Não uma vítima. Não um pai de família. Não um ser humano digno de respeito. Um rato de esgoto. Que cuida de cachorros porque eles são os únicos seres vivos que poderiam lhe dar ainda algum tipo de respeito. E isso, talvez, porque estão engaiolados e acorrentados.


# Homem Livre

Caloni, 2019-02-08 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Durante praticamente toda a duração de Homem Livre um pensamento inquieto não deixava de passar pela minha cabeça: quem diabos respeita alguém chamado Hélio Lotte? Bom, Hélio foi um músico famoso com esse nome, o que já levanta suspeitas de que há algo errado nesse filme. Depois descobrimos que ele cometeu um assassino e saiu aparentemente intacto da prisão. Ou seja, sem traumas sexuais. Eu nunca esperaria tamanha dignidade de um Hélio Lotte.

Esse devaneio sobre nomes vem à cabeça durante a projeção porque ela é muito lenta. A desculpa é criar tensão, pois este é um thriller psicológico que tenta chegar perto de trabalhos como O Operário, mas por querer abraçar o mundo com sua narrativa sobre igreja, corrupção, sociedade e culpa se revela mais como esquizofrenia roteirística braba.

A história, porém, é básica: Hélio era um músico famoso que cometeu um assassinato e está saindo da prisão depois de 13 anos preso, acolhido por uma igreja evangélica de bairro indicada por seu irmão. E o medo se instaura na gente a partir do momento que ouvimos o Pastor Gileno (Flavio Bauraqui) falar mansamente com um sorriso obrigatório e um olhar que quer dizer algo mais que não sabemos. Não te dá medo pessoas de fala mansa dentro de igrejas? O mistério é alimentado mais ainda por um protagonista cuja única função na história (uma interpretação simples de Armando Babaioff) é ficar calado, cabisbaixo e olhar com desconfiança para todos, enquanto delira que pessoas estão tentando lhe fazer algum mal.

Toda a trama por trás do desafio de Hélio em voltar às ruas e recomeçar sua vida é o que torna Homem Livre minimamente interessante. No começo da história eu anseio entender qual é o problema desse rapaz que mudou de vida por alguma besteira que fez no passado e que agora tem medo do que as pessoas irão fazer se descobrir que um assassino está à solta. É uma premissa digna de thriller. Mas qual a origem verdadeira de suas paranóias alimentadas noite e dia?

Nunca saberemos. O filme está mais interessado em nos entregar inúmeros jogos de cena que nos fazem entrar em seu delírio sem nunca nos revelar o mecanismo por trás de sua dor. Há um ótimo momento onde Helio vê um vulto na cozinha de noite, mas quando acende a luz esse vulto desaparece. O que isso significa? Essa é a sua vítima? Mas por que ela está perseguindo seus sonhos? Quem é ela? Por que uma crente ninfeta de 18 anos está tão interessada em se entregar para nosso amigo Hélio Lotte? Sabemos que ela existe, o que estraga a reviravolta clichê dela ser um fantasma. Mas ela representa um fantasma do passado. E mais uma vez há o interesse do espectador em descobrir que fantasma é esse.

Mas o roteirista Pedro Perazzo não nos quer contar. Ele fica repetindo a mesma cena de Hélio em um carro prestes a atropelar sua vítima -- uma mulher -- mas nunca nos diz como ela se relaciona com a ninfeta. Conforme a história avança as perguntas se acumulam, e respostas não se materializam. E isso aos poucos cansa. Chega uma hora que eu desisto. Não quero mais saber quem foi e quem é Hélio Lotte. Nem sequer mais me interesse pelo mistério de por que as pessoas o respeitam com esse nome. A partir daí basta assistir um filme no automático para depois esquecer.


# Tomates Verdes Fritos

Caloni, 2019-02-10 cinema movies [up] [copy]

Eu me lembro de ter visto esse filme com minha mãe após ter alugado um DVD na locadora. O que ficou na minha mente por décadas foi a ternura com que a história se desenvolvida. Este é um drama no sentido clássico do gênero. Ele tenta fazer um apanhado histórico nos dando apenas a voz dos oprimidos e seus salvadores. Ou seja, ele é completamente manipulador. Mas é tão tentador acreditar em uma realidade em que só existem opressores e oprimidos. Até hoje em dia tem gente que defende isso.

Kathy Bates está absolutamente entregue ao papel de dona de casa que se revolta ao ouvir sobre a história de uma sufragista na década de 30 nos EUA, em pleno domínio do patriarcado e a pós-escravidão e os problemas raciais do sul americano. Bates é nossos olhos, ouvidos e corações, atentos ao que a personagem de Jessica Tandy irá transpor em palavras e nós veremos em um pequeno épico. Tandy já esteve do outro lado da moeda no pequeno clássico com Morgan Freeman, Conduzindo Miss Daisy, e está tão confortável no papel que é difícil saber que ela realmente está com 82 anos durante as filmagens.

Este é um filme para todas as donas de casa da época e que deve ser visto por todas as mulheres como lembrete do que significa a liberdade, vinda com a responsabilidade de deixar o corpo em forma (sorry, femistas do "gordo que é belo"). Há muitas formas de fazer feminismo, mas este é o correto. Ele humaniza seus personagens, e embora transforme todo o resto em vilões carrancudos e míopes, a mensagem de esperança sempre fica um pouco acima.

A trilha sonora do evocativo Thomas Newman (é dele também a vergonha alheia de Histórias Cruzadas) é daquelas que vai querer te forçar a se emocionar. Não faça isso. A mensagem visual de cada momento da história em que há uma pausa é mais poderosa. O diretor Jon Avnet, que começa estreando no cinema com esse filme, nos entrega diversos planos muito mais inspirados, que constrõem a história sem necessidade de pieguices como essa. Que vergonha, Newman. Tentar diminuir uma história tão intensa.

Ainda que em alguns momentos o ritmo fique extraordinariamente lento e a cadência das cenas não nos permita desfrutar por completo um filme que vai te puxando cena a cena, Tomates Verdes Fritos possui tantos bons momentos que fica difícil não defendê-lo como um exemplo de Cinema. É um romance transcrito para a telona sem vergonha de ser feliz. É piegas, é feminino, mas possui um coração ligeiramente acima de nós, reles mortais.


# Como a geração de Sai de Baixo se encontra com a geração Não me Toque

Caloni, 2019-02-13 cinemaqui cinema [up] [copy]

A coletiva de imprensa para "Sai de Baixo: O Filme" pode ser resumida da seguinte maneira: uma trupe de militantes mimimi fazendo perguntas sobre sentimentos e o elenco do filme respondendo à altura sem sair do salto; muito pelo contrário, com muita propriedade: "temos que dizer uma coisa que todo pobre concorda e se identifica: ser pobre é ruim!". Parecia um quadro de humor combinado. E que rendeu (a mim pelo menos) ótimas risadas.

Para quem chegou no planeta faz pouco tempo, Sai de Baixo foi uma série de sucesso nos anos 90 exibida pela Rede Globo de Televisão por cerca de quatro anos no horário nobre de domingo. A ideia idealizada por Luis Gustavo e Daniel Filho foi inspirada em outro programa, A Família Trapo, que estreou nos anos 60 o formato de teatro com plateia ao vivo, depois editado para a TV mas com direito a improvisos. Sucesso absoluto, não à toa a TV "se inspirou" pelo menos mais duas vezes, em A Grande Família e Toma Lá Dá Cá (onde Miguel Falabella e Marisa Orth também participam).

Para quem lembra da velha discussão sobre a mudança do humor por conta de outros tempos através de outro programa antigo e hoje polêmico, Os Trapalhões, com suas piadas envolvendo temas sensíveis como racismo e homossexualidade, Sai de Baixo poderia fazer parte hoje da mesma sabatina feito pelo pelotão do politicamente correto, já que o programa trabalha com caricaturas do imaginário popular envolvendo o que o pelotão chama de "pessoas em situação vulnerável", seja a faxineira pobre ou o resto dos personagens, formados por uma falida família de classe média fingindo nobreza em um apartamento decadente em bairro idem da cidade de São Paulo.

Mas tanto o roteirista Miguel Falabella quanto todo o elenco defenderam e ensinaram na entrevista como funciona o humor, pelo princípio de que o exagero dos personagens faz com que a plateia se identifique e se sinta mais à vontade exatamente por ser representada. Não se trata apenas de dar boas risadas, mas da identificação de nossas próprias caricaturas brazucas, esse personagem patético que comercializava pau-brasil e que desde o início sempre almejou ser o inalcançável e "perfeito" comprador europeu.

Ao mesmo tempo que essas questões do uso do humor surgiu um sentimento de prazer e saudosismo misturados ao perceber como apesar de ter se passado 17 anos desde o fim da série principal o elenco disse e transpareceu que durante as filmagens eles reencontraram seus personagens uns nos outros. Como Luis Gustavo muito bem colocou, Sai de Baixo é um conceito que deve continuar fazendo sucesso indefinidamente, e mesmo que todo o elenco original morra ou desista a ideia permanece. E a ideia é muito boa.

Ela é muito boa porque representa o humor brasileiro em seu ápice e sem copiar outras culturas. Um produto 100% nacional que deu certo e continua na ativa. Pequenos causos contados por Falabella ilustraram com perfeição o carinho e a receptividade do público desde o começo, quando os programas eram filmados em um teatro de São Paulo, até agora, quando boa parte do público sequer havia nascido ou criado dentes quando o programa estreou. Resta saber se apesar dos tempos terem mudado radicalmente a essência permanece.

Eles também falaram sobre a dificuldade de se produzir cinema no Brasil, o que explica porque não foi lançado o filme logo depois da série. "Não existia cinema no Brasil naquela época." De fato. Não nos lembramos mais que a volta do cinema nacional foi um processo lento e doloroso, e que mal acabamos essa transição, onde finalmente os gêneros começam a se diversificar e projetos mais experimentais começam a sair do papel. Um "Sai de Baixo: O Filme", então, é um mais que merecido "alô" de um passado não tão distante onde a TV era o principal veículo de conteúdo nacional.

Cercado de boas vibrações sobre a estreia, Sai de Baixo já chega aos cinemas com promessa de continuação, tamanho foi o otimismo da equipe a respeito do resultado, e contrariando o medo que existia que o projeto fosse uma pá jogando um último punhado de terra de um programa já enterrado há tempos. Isso deu origem a mais uma parte engraçada da entrevista: o medo de que as filmagens não dessem uma montagem decente a ponto de virar um filme. Todo o tempo o elenco assediava a diretora, Cris D'Amato, para ver se ela acelerava logo o processo de montar o filme para todos verem se isso que estavam fazendo era realmente um filme.

Esses detalhes não apenas tornam este um projeto especial, como nos faz lembrar que Sai de Baixo existe na arte e na vida real. Ainda que cinema seja algo glamuroso e cheio de holofotes, ainda não é fácil gastar alguns milhões na produção de um filme médio torcendo para que ele fique em cartaz tempo suficiente para se pagar. A vida imita a arte que imita a vida. Seja no Largo do Arouche ou nas telonas de todo país onde, torçamos, famílias brasileiras venham lotar salas e assistir e dar risada de si mesmas. Nem que seja contando moedinhas para o ingresso e sem dinheiro pra pipoca.


# Clube da Luta

Caloni, 2019-02-15 cinema movies [up] [copy]

Você já percebeu que em Clube da Luta o personagem de Edward Norton não tem nome? Nos créditos ele é conhecido como "O Narrador". Isso tem tanto a dizer sobre este pequeno clássico da contra-cultura mundial e americana que eu nem preciso me dar ao luxo de revelar qualquer spoiler sobre este filme. Apenas assista e entenda a mensagem que você quiser do velho blá-blá-blá sobre consumismo e dívidas. Ele é tão atual que há uma série inteira (Mr. Robot) sobre o plano do filme e foi filmado uma década antes da grande crise financeira mundial que vivemos. Ele é profético, auto-destrutivo e não há alguém que o assista sem se surpreender pelo menos em um ou dois momentos do filme. E cada um escolhe o seu primeiro e segundo momentos para explodir seu próprio cérebro.

Dirigido pelo metódico e quase perfeccionista David Fincher (Garota Exemplar), que veio do mundo do videoclipe, este filme é daqueles em que um detalhe vai puxando o outro e quando vemos já se passou duas horas de pura adrenalina. Isso se deve tanto à sua história enxuta que usa de detalhes para mover o espectador a entender o que está acontecendo como seu próprio formato dinâmico e plástico, onde cada cena se torna automaticamente icônica. Há uma excelente trilha sonora, mas atores melhores ainda.

Edward Norton possui o controle absoluto de sua própria insignificância. O compare com seu personagem em Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) e vai entender pelo contraste o que quero dizer. Ele é a insônia em pessoa, perambulando por esse mundo como um zumbi programado para ser sarcástico e descartável. Se o herói desse filme morresse nos primeiros quinze minutos ninguém daria por sua falta até chegar os créditos finais. Ei, é preciso um talento especial para se anular tanto mesmo sendo o centro das atenções.

Já Brad Pitt é o momento que estávamos todos esperando, logo após aqueles quinze minutos onde estamos tentando entender para onde vai todo aquele discurso derrotista e patético sobre ir em grupos de ajuda para se sentir bem pela desgraça dos outros. Ainda estamos tentando entender para onde vai caminhar esta história e o personagem de Pitt, o icônico Tyler Durden, parece já ter toda a resposta em seus atos. Ele não explica nada e realiza tudo. Ei, basta seguir esse cara que vou conseguir o que quero mesmo sem ter ideia do quê. Deve ser isso o que O Narrador pensou.

E em meio a uma crescente de loucura tomando forma de gangue do crime de dar inveja a filmes ridículos como Esquadrão Suicida, Clube da Luta ganha vida própria. Se trata de um trabalho que como Tropa de Elite possui seu próprio charme em suas frases icônicas ("É apenas depois de perder tudo que somos livres para fazer qualquer coisa.") que tentam nos fazer livrar desse consumismo irracional que nos torna escravos de nosso destino. Como um filme com ideologia tão clara assim consegue ser atraente como conteúdo para pessoas inertes como espectadores em uma sala de cinema? A balança entre o real e ilusório é algo que Fincher também brinca quando O Narrador quebra a quarta parede aqui e ali.

Com uma edição ágil e uma história que se conta sozinha, em que homens à margem da sociedade só conseguem se sentir vivos se estão em uma roda de luta, onde tudo aquilo de fato tem significado, Clube da Luta está além de sua mensagem. Este é Cinema trabalhando um conceito até o fim: a auto-destruição. É destruição porque nesse momento, nós nos tornamos as coisas que possuímos. Portanto acorde. Se for sua primeira noite nesse filme, você deve lutar. São as regras.


# Eu, Eu Mesmo e Irene

Caloni, 2019-02-15 cinema movies [up] [copy]

Não considero Eu, Eu Mesmo e Irene um bom filme. Não é um bom exemplo dos irmãos Farrelly (Débi & Lóide: Dois Idiotas em Apuros, Quem Vai Ficar com Mary, Passe Livre). Seu roteiro não foi bem trabalhado e depende de um narrador e situações inusitadas demais para juntar seus personagens. Mas algo que me incomoda: se ele nem é tão bom porque consigo me lembrar de praticamente todos seus momentos?

Isso se deve a uma sensibilidade ímpar do que faz uma comédia humana mesmo que caricata. Rimos menos da situação do personagem de Jim Carrey, uma pessoa traumatizada que acaba revelando um alter ego bad boy Hank. Ele e sua parceira amorosa eventual Irene (Renée Zellweger, de O Diário de Bridget Jones). Porém, antes disso o filme nos amarra em uma família que é puro amor e afeto apesar das diversidades. Essa família é formada pelo simpático policial rodoviário Charlie e os três filhos que adotou de sua ex-mulher e amante. É na capacidade dos irmão Farrelly de tornar essa família tão importante para o road movie que o transforma em algo mais do que um pastelão sem sentimentos.

E em cima disso há uma história pouco plausível envolvendo gângsters, uma polícia corrupta e um rapaz traumatizado por nunca mais tomar as rédeas de sua vida e que desenvolveu uma segunda personalidade que convenientemente aparece para nos fazer rir ou tirar das situações que ele próprio se colocou. É um filme com vários momentos inesperados porque ninguém espera que as duas personalidades do nosso herói sejam tão incompetentes. É um filme que não se preocupa em não soar politicamente incorreto ao brincar com um albino porque ele tem um coração maior que essas piadas pequenas.

E por tudo isso é possível assistir e reassitir a "Eu, Eu Mesmo e Irene" e ainda gostar, sem sair com gosto ruim da boca como tantas comédias sem pé nem cabeça. Para você ver o valor que há em um filme que mesmo sem cérebro é cheio de coração.


# Neblina e Sombras

Caloni, 2019-02-15 cinema movies [up] [copy]

A sombra e a neblina são os lugares perfeitos para Woody Allen perambular. É nessa incompreensão charmosa do caos que este filme vai se desenrolando quase que ao acaso. Não há culpados, apenas desavisados. Nós não sabemos do que o universo e um serial killer são capazes. Mas Allen está aqui para ajudar, dando um novo e merecido destino aos que não se importam em viver a vida, por mais nebulosa que ela seja.

O uso do preto e branco, da silhueta dos personagens e do giro da câmera de Allen nos entrega uma experiência que vai muito além dos cortes simples e cenários estáticos dos trabalhos mais teatrais do diretor. Isso nos dá a oportunidade de ouvir frases icônicas de um roteirista gênio dentro de uma textura mais cinematográfica.

Allen usa muitos atores e atrizes de primeiro escalão e não usa adequadamente todos eles, mas os personagens de Mia Farrow, John Malkovich e o próprio Woody Allen passeiam por participações especiais que dão uma aura mágica nesse universo onde Kathy Bates e Jodie Foster são prostitutas em um bordel, Madonna é uma mulher fácil do circo ou John Cusack é um estudante universitário disposto a dar tudo por um momento mágico em mais uma noite mundana e depressiva.

Apesar de ser quase um policial ou filme de mistério a trilha sonora animada denuncia mais do que um filme de gênero, além do personagem de Allen, acordado no meio da noite para ajudar em um plano dos vigilantes da vizinhança para capturar um assassino a sangue frio. Allen, um subalterno puxa-saco do seu chefe, é o único que não sabe os detalhes do plano, que se desenrola na comunidade como uma surpresa. Não é um filme crível, mas imaginativo, quase conceitual. E te captura a atenção em cada cena, desde o suspense do assassino até o fim dos personagens que decidem criar o próprio destino após uma noite única em suas vidas.

Para Woody Allen qualquer discussão trivial sobre a rotina e as vidinhas das pessoas de repente se transforma em uma crise existencial, onde átomos do universo interagem se maneira a obedecer à teoria do caos. Perguntas como por quanto você venderia seu corpo ou o que você faria se tivesse a chance de viver a vida dos seus sonhos emergem como num passe de mágica, e essa é sempre a aventura da vida que Allen está disposto a filmar.


# Primeiro Ano

Caloni, 2019-02-15 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Quero que imagine uma cena: há poucos minutos de começar um exame importantíssimo na vida deles, dois amigos massageiam a carótida um do outro, uma artéria que irriga o cérebro, para que seus batimentos cardíacos diminuam e assim possam realizar a prova com mais calma. Esse é o momento de Primeiro Ano onde nada mais importa. Não há diferenças, não há concorrência, não há individualismo. Duas almas em uníssono buscando o bem maior por si só.

Este é o terceiro trabalho do diretor Thomas Lilti sobre medicina (os outros foram Insubstituível e Hipócrates). Isso porque ele próprio, além de roteirista e diretor, é antes de tudo um doutor. Porém, aqui a história do filme é um pouco diferente: ela trata do processo seletivo dos estudantes. E, rapaz, é um negócio sério. Com pouquíssimas vagas para uma massa caótica de jovens, a luta anual entre cursinho e primeiro ano para a seleção de especialização pode ser uma prova muito maior de persistência que a própria eventual carreira após formados.

Acompanhamos nessa batalha intelectual o repetente Antoine (Vincent Lacoste) e o mais tranquilo, reptliano Benjamin (William Lebghil). Como aluno empenhado em passar nas provas, Antoine é pura emoção e amadorismo juvenil protegidos por uma quase timidez. Enquanto isso Benjamin come por três e analisa mais o sistema como um todo antes de se jogar aos livros. Ambos tiveram diferentes origens e situações, mas mais importante, personalidades díspares. Mas ambos se encontraram e viram em sua amizade uma possibilidade de sinergia que poderia beneficiar a ambos, embora fique claro no momento que tanto um quanto outro precisam de algum apoio além da família nesse momento tenso e solitário.

Filmado quase em tom documental, acompanhamos o sistema de aulas e seleção de uma universidade francesa e todas as reações e brincadeiras de jovens cheios de energia e motivação. O bater nas mesas, as palmas dessincronizadas, o grito de revolta e de curtição. Conseguimos sentir os hormônios à flor da pele e ao mesmo tempo o auto-controle para que esses candidatos a ser alguém na vida consigam seu objetivo tão almejado: uma vaga em um curso superior.

Todos esses jovens são o pano de fundo quando acompanhamos o amadurecimento da amizade dos dois, sempre em torno de livros e das expectativas do processo. Lilti está tão interessado nessa amizade quanto está em quase denunciar o sistema de seleção como algo cruel, muito embora o espectador acabe tendo a liberdade de selecionar o melhor valor para si. A seleção tanto pode ser cruel quanto justa, e tenho certeza que qualquer pessoa que já ralou na vida irá enxergar certa virtude na disciplina e no sacrifício desses jovens.

Os diálogos do filme quase sempre giram em torno das matérias dos alunos e dos conhecimentos. Palavras longas e complicadas são exibidas para entendermos a complexidade e a escala que o conhecimento humano chegou ao mesmo tempo que entendemos o porquê de tanto esforço. O diretor em sua entrevista nos traduz seus objetivos, que é de mostrar como o sistema acabou se tornando mais importante que a paixão de ser médico de alguns. Porém, esses objetivos estão alheios ao filme, pois são sutis o suficiente para que entendamos que a vida é assim e cada um reage de uma maneira.

Um filme sobre esse tema teria tudo para se tornar monótono, mas aqui não é o caso. Montado de maneira dinâmica e oscilando momentos viscerais, de lutas por espaço na biblioteca e nas carteiras das salas, com pausas necessárias, como a troca de comida entre Benjamin e sua vizinha estrangeira, Primeiro Ano consegue colocar o espectador no lugar daquelas pessoas e os fazer quase que relembrar os esforços passados para tentar passar no vestibular. Parte disso está em uma edição fuida, mas uma boa parcela de êxito se deve aos atores Vincent Lacoste e William Lebghil, que conseguem uma química invejável mesmo sem qualquer diálogo expositivo. Tudo acontece praticamente nos olhares e expressões.

E isso se revela como um filme contemplativo ao mesmo tempo que intenso. Ele fará o espectador se segurar na poltrona em alguns momentos, e em outros até torcer. E tudo isso com uma importante reflexão sobre o valor da amizade. Mais do que do sacrifício. É a amizade o pilar que segura esse filme sobre competitidade extrema, por mais paradoxal que seja. É quando um amigo massageia a carótida do outro, em uníssono, esperando por um dia melhor.


# Cinderela Pop

Caloni, 2019-02-18 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Engraçado a forma como o tempo passa no Brasil. De Cinderela Baiana, clássico da filmografia nacional, para Cinderela Pop. Muita coisa mudou durante esse tempo e entre essas duas versões brasileiras da história imortalizada pela Disney. Maisa, aquela menina irritante e esperta que interagia com o apresentador de TV Sílvio Santos nasceu, cresceu e se produziu, enquanto o próprio Sílvio sequer envelheceu. E não se houve falar de Carla Perez há um bom tempo.

E agora a menina Maisa "virou" atriz e protagoniza um filme inspirado em um livro de Paula Pimenta. Você conhece essa escritora? As garotas pelo menos conhecem. Não sei se é seu nome real, mas é uma boa escolha para a capa de livros adolescentes. Aqueles coloridos com fontes fofas ao lado dos livros de Minecraft. Minhas sobrinhas gostam de ambos os estilos. Ou gostavam. Agora estão mais interessadas em conteúdo mais dark e menos feminino. O tempo passa tão rápido, as mudanças vêm e é ótimo que garotas hoje possam escolher gostar do que quiserem.

Eu nunca entendi direito a história da moça que se descobre apaixonada por um príncipe desejado por todas por ser lindo (fora o bônus da fortuna de sua família). E isso na época em que os livros sobre a chamavam de Gata Borralheira. Havia maldade e pobreza na vida de Cinderela por conta de sua madastra e suas meia-irmãs, mas pelo menos havia algo de mágico na versão Disney: ratos que viram cocheiros de uma abóbora que vira uma carruagem. E tem o simbólico sapatinho de cristal, que também remete à magia. Porém, se olharmos mais de perto, ainda sobrou algo de cruel da história folclórica original documentada pelos Irmãos Grimm.

Já Cinderela Pop não sofre desse mal em conter algum tipo de sofrimento do mundo real. Ambientado em cenários que envolvem mansões e casas de show, a vida dessas pessoas está bem além da vidinha comum que a maioria de nós mortais costuma ter. A história trata de um drama juvenil que entretém como o episódio de uma novela, mas esta não é uma crítica, pois todos já sabem o final da história e sabiamente não cabe ao filme focar em reviravoltas que todos sabemos onde vai dar. Até porque o diretor Bruno Garotti e sua montadora Diana Vasconcellos já estão com vários problemas para tornar este filme assistível do começo ao fim sem nos fazer devanear, olhar para o lado e lembrar de passar no mercado na volta. Tudo bem, sou cara velho dando sua impressão aqui.

Uma das soluções criativas que o filme utiliza é tornar o áudio da voz dos personagens estupidamente altos. E isso é amplificado pela voz aguda das atrizes infanto-juvenis ou da madastra interpretada por Fernanda Paes Leme de uma maneira nada original, mas divertida. Além disso há muita música alta com luzes piscando, o que definitivamente para um filme sem muita história é um bônus, e mesmo que você não seja uma pessoa de balada não tem como não curtir.

Com poucos defeitos que se concentram no roteiro, onde de repente celular é proibido na escola e se esquecem de avisar a protagonista para só depois ela comentar que abriram uma exceção para ela, nada de fato me incomodou fortemente nesse filme, apesar dele ser esquecível. Ou talvez por causa disso. Não sou o público alvo, mas reconheço boas virtudes em suas ideias, por mais clichês que sejam. Ele faz um bom serviço com seu conteúdo, por apresentar diferentes dramas da mulher moderna (jovem ou adulta). Mas voltando para meu ponto de vista enviesado, acaba sendo interessante ficar pensando quais partes são engraçadas sem querer e quais são de propósito.

Note, por exemplo, o mocinho, Fred Prince, interpretado por Filipe Bragança de uma maneira ambígua que eu prefiro não comentar muito, mas basicamente você não sabe se ele está sendo canastrão fazendo cara de modelo ou é autêntio, mesmo. Ele começa tocando violino de tênis em uma festa de bacana pra arrumar um dinheiro, cinco minutos se passam no filme e ele já é famoso e desejado por todas as meninas (menos a Maisa, claro) porque subiu pra internet clipes caseiros dele cantando e tocando violão, filmados por sua melhor amiga e vlogger. Nunca foi tão fácil para as pessoas de talento terem seu lugar ao sol. Nunca foi tão fácil ter um topete charmoso. Nunca foi tão fácil conseguir a luz perfeita para a filmadora do iPhone.

Mas por falar em elenco, Maisa é ou já foi apresentadora, cantora, piadista e até atriz, de novela (Carrossel) e cinema (Tudo por um Pop Star). Apesar de não segurar a protagonice o filme dá seu jeito de torná-la a coadjuvante mais ativa das histórias paralelas. Logo depois do filme pude vê-la na coletiva de imprensa, e as expressões são as mesmas tanto no filme quanto na vida real. Porém, na vida real ela é mais simpática. Ela poderia interpretar Maisa no filme e ele se tornaria exatamente o que boa parte das pessoas que vão ao cinema querem ver.

O livro Cinderela Pop é o primeiro de uma saga de sete livros de Paula Pimenta que modernizam os contos de fadas. A produtora desse primeiro filme pretende produzir todos os outros, um por ano; pelo menos esse é o plano. Mas esse filme me fez pensar em outra coisa: sobre a febre de upgrades de contos de fadas. Cinderela Baiana, Encantada... são trabalhos recorrentes, que gostam de reimaginar contos clássicos para os tempos atuais. Eu tenho até uma amiga, Bonnie Hutterer, que lançou um livro com o mesmo intuito e sobre o mesmo conto (versão do século XXI). O que está havendo no mundo? Uma escassez de ideias novas para contos de fadas? As fadas já não estão mortas? Isso são questões que podem ser respondidas analisando o que cada versão tem a oferecer. Cinderela Pop, por exemplo, tem música divertida e uma fotografia bonita. Que venham os próximos filmes celebrando histórias velhas. Carla Perez, onde está você?


# Dogville Teatro

Caloni, 2019-02-18 cinema theater [up] [copy]

Eu não me lembro direito do filme de Lars von Trier, mas eu sei que ele foi impactante quando o vi, provavelmente em 2005. Estupro, escravidão, tiros. Quando você vai assistir a um filme do diretor dinamarquês é necessário que você esteja preparado para o pior. A peça dirigida por Zé Henrique de Paula talvez se prepare demais.

O minimalismo de Von Trier em seu filme, com casas pintadas representando a pequena cidade de Dogville onde se passa a hitória, na época se explicava por algumas das regras ainda seguidas pelo diretor do Manifesto Dogma 95. Esse manifesto criado por ele e Thomas Vinterberg visavam o foco na história, tema e atuações, excluindo usos elaborados de efeitos especiais e tecnologia. Como uma tentativa de retomar o poder para o criador do conteúdo em vez dos estúdios, o projeto foi aos poucos afrouxando no decorrer dos seus filmes até culminar em Dogville, que mantinha o foco nas atuações e direção, mas que já se dava ao luxo de projeções e efeitos de luz. Mas de qualquer forma a história toda se passava em um cenário que lembra um grande palco de teatro.

Dessa forma, Zé Henrique de Paula foi mais ousado em sua adaptação para um teatro de verdade ao utilizar elementos mais primitivos ainda: cadeiras. Cada habitante da cidadela dispunha de uma, e elas representavam em suas diferentes posições o que seus habitantes estavam fazendo. Cadeiras eram basicamente os únicos apetrechos à disposição dos atores para recriar a história.

Isso, duas cordas e uma roda.

Se por um lado Zé Henrique está charmosamente seguindo as premissas do filme original, e aos poucos nós, espectadores, entramos no jogo, o uso das atuais projeções quebra o encanto. Feitos em telas suspensas no meio do palco para realizar diferentes formas de montagem sem precisar inserir elementos reais em cena, essas projeções ajudam espectadores mais distantes dos atores e criam uma espécie de montagem de quadros bem rústica em comparação com Cinema. Aliás, o que mais há de rústico no teatro que o Cinema não seja o perfeito exemplo de um tempo que já se foi? Perdoem-me os fãs do vintage grego.

Além disso, o narrador da história nos conta os capítulos um a um; interpretado por Eric Lenate com uma dicção, vestimenta e postura que possibilitam que ele faça um outro personagem na peça, é a atuação mais forte em palco, pois nos mantém envolvidos mesmo que seu texto seja complicado e nos convide a ignorá-lo. Mas mesmo ignorando as elucubrações intelectualoides de uma aventura macabra envolendo uma jovem fugitiva que se esconde na cidade, não é possível ignorar a manipulação que o narrador vai criando a respeito dos habitantes da cidade, pois as informações mastigadas por ele são descritivas demais. Acabamos entendendo praticamente toda a história apenas ouvindo o narrador, o que acabaria sendo uma falha no cinema, mas que no teatro é o esperado para temas mais complexos. Quer dizer, não estou habituado ao teatro, mas imagino que seja comum, apesar de ter achado esse recurso bem preguiçoso.

De qualquer forma, a história de "Dogville: O Filme" está completa e possui um diálogo inestimável entre dois personagens no seu final. Um verdadeiro julgamento ao ar livre. Não apenas da cidade, mas de toda moral humana. Uma lição que irá ecoar pelas nossas cabeças vez ou outra quando pensarmos sobre a humanidade como uma espécie dotada de moral. Ou como coitados vivendo às sombras dos predadores. "Dogville: A Peça", não cometeu a insensatez de tentar responder essa questão.


# O Retorno de Sweetback

Caloni, 2019-02-18 cinema movies [up] [copy]

Um filme é produzido em 1971. Ele fala sobre um negro que mata policiais para sobreviver e se dá bem no final (foi isso que eu entendi). Ninguém branco produziria um filme desses nessa época. E hoje "O Retorno de Sweetback", em 2003, fala sobre a Odisseia que foi essa produção.

O diretor é Mario Van Peebles, filho de Melvin Van Peebles, o diretor do filme sobre o que estamos falando. Ele interpreta seu pai naquela época. A narrativa é de ficção documental, com pessoas falando sentadas, mas principalmente a história sendo contada com imagens. O formato do filme é independente, com direito a câmera na mão e iluminação amarelada dos anos 70 com estilo filme 8mm, mas obviamente com muito mais qualidade (e wide). A capa do DVD lembra os primeiros filmes do Roberto Rodriguez ou até mesmo aqueles trashs esquecidos na última fileira da última estante de uma locadora decadente.

Sweetback -- original e making of -- tem a pegada do movimento negro. Cansados de tanta violência, de serem rebaixados ao status de sub-raça e incapazes de se mover socialmente, o(s) filme(s) foi feito por negros (ou minorias) para negros. É possível respirar o ar black nessa produção moderna, já antecipando o resgate do movimento com Black Lives Matter. Está no ar, está na fala, está na música e no gingado.

Além disso, se trata de um filme de pura tensão. Acompanhamos a produção de um filme de baixo orçamento onde não há orçamento. E Van Peebles na época arriscou tudo, não apenas dinheiro. Já era um cineasta de relativo sucesso que trazia lucros para os donos brancos das produtoras onde trabalhava. E assim como quando todo negro resolve fazer um trabalho sério, uma crítica social, o mundo branco lhe dá as costas. Até aí nada de novidade.

Mas seu filho diretor, Mario, resgata o verdadeiro suor e loucura que era produzir um filme independente black nos anos 70. Salas escuras e esfumaçadas. Brigas entre a reduzida equipe. Há um elenco de primeira. Destaque para Terry Crews como Big T e Joy Bryant como Priscilla (além do próprio diretor/ator). Para o cinéfilo também é um filme instrutivo, pois é possível aprender os percalços do Cinema que ninguém lhe ensinará na faculdade.

Talvez isso sirva de lição para qualquer cineasta independente que queira filmar os seus valores. A trilha é comum a todos. Independente de sua cor, sinta-se negro em O Retorno de Sweetback.


# A Casa Caiu

Caloni, 2019-02-19 cinema movies [up] [copy]

A Casa Caiu é mais uma daquelas comédias em que um personagem fora do universo do protagonista chega e muda tudo, em versão black, mas além disso tem uma crítica social interessante. Além de ser black o suficiente para você sentir um pouco da ginga.

Também, Queen Latifah é a estrela do filme, e Steve Martin apenas a acompanha como o branco careta que aos poucos vai se libertando não dos seus preconceitos, mas os da sociedade em que vive. Sua reputação como advogado e como morador de um bairro branco de classe média alta pesa demais na hora em que ao se relacionar pela internet com uma suposta advogada ele descobre ser uma criminosa condenada saindo da prisão precisando que alguém reveja seu caso.

Este é um filme bem dirigido por Adam Shankman e bem escrito por Jason Filardi, que ainda estão com a cabeça dos anos 90 na entrada dos anos 2000. Bons tempos em que se criava uma história com começo, meio e fim por UM roteirista e era dirigido por UMA pessoa, você assistia e acabou. Ao notar que metade das salas de cinemas hoje em dia está lotada de seriados de super-heróis e franquias de livros adaptados assistir um filme desses é um alívio.

Mas, mesmo assim, A Casa Caiu abusa dos clichês e se torna morno do começo ao fim, só conseguindo se sobressair aqui e ali graças ao ótimo elenco, tanto pela cantora Latifah quanto pelo comediante Steve Martin, e uma participação mais que especial de Angus T. Jones, que logo seria parte integrante do trio da série Two and a Half Men (você vai perceber que desde aquela época ele já era a escolha ideal).


# A Senhora Da Van

Caloni, 2019-02-19 cinema movies [up] [copy]

Se um escritor com material tão vasto no cinema quanto Alan Bennett não conseguiu construir a partir de suas memórias de morar 15 anos ao lado de uma senhora sozinha e sua van uma história que possua camadas, quer dizer que este não é um filme que deveria existir. Mesmo se você tiver Maggie Smith (da série Harry Potter) no elenco.

O resultado acaba sendo um trabalho novelístico passageiro dirigido de maneira desinteressada por Nicholas Hytner e com Bennett sendo interpretado por Alex Jennings em uma versão dupla, onde sua persona pública e seu escritor, sentado à frente de sua máquina de escrever, são vistos como duas pessoas tendo um diálogo. Essa presunção de que apenas escritores agem assim me incomoda, apesar de ter entendido a metáfora (nós, escritores, sempre somos outra pessoa quando é hora de colocar os pensamentos no papel).

Esta é a história de uma velha maluca (Smith) atormentada por ter atropelado alguém e ter fugido, algo compreensível se entendermos que ela abriu mão de sua paixão na vida, o piano, para se tornar freira. Tudo isso podemos entender em duas ou três cenas, e o filme as repete de maneiras distintas para ajudar os espectadores mais lerdos. Porém, francamente, este não é um mistério digno de ser assistido em um filme. Sequer é um mistério se parar para pensar por 10 segundos.

O resto da narrativa aborda as reações dos vizinhos de Bennett com respeito à moradora de rua, que usa sua van como casa. Bennett é um escritor em cartaz e mora em um bairro pacato de Londres. Nada acontece com ele e ele não deixa que nada saia do controle de sua vida. Mal conhecemos sua vida. E nem ele dos seus vizinhos. Seu texto, pelo menos no filme, é insípido, sem qualquer momento que nos leve a alguma memória que realmente valha a pena. Quando o texto começa a ficar muito bom... ele nos lembra que não é dele.

Este é um filme sobre uma idosa e um escritor medíocres que poderiam ser alguma coisa na vida, mas não o são. Logo, o resultado é ter paciência e aguardar por uma próxima boa história vinda das memórias de um bom escritor. Ou nem precisa ser um escritor tão bom. Basta um que tenha vivido fora de sua casa.


# Lembro Mais Dos Corvos

Caloni, 2019-02-19 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Lembro Mais dos Corvos é aquele documentário minimalista ao máximo que lembra que Cinema pode ser apenas uma câmera filmando e uma pessoa falando, e se essa ideia não lhe apetece fique longe desse filme. Contudo, esteja avisado também disso: esse é provavelmente um dos filmes mais humanos que você irá ver esse ano. Talvez porque a vida não se controla. Apenas deixamos fluir, e quando menos se percebe, houve a conexão entre seres humanos. Esse filme tenta emular isso no cinema.

Isso porque o diretor Gustavo Vinagre resolve realizar este documentário sobre essa atriz que aparentemente também é sua amiga, e aparentemente sem um roteiro definido. E se digo que tudo é aparente é porque quando sentamos em uma poltrona no cinema nosso cérebro está programado para pensar em termos de ficção ou pelo menos, nos documentários, uma narrativa controlada e parcial. Não há um acordo prévio de estabelecer um contato tão próximo assim com um ser humano, como quando fazemos de chamar alguns amigos para beber um vinho em casa e conversar sobre a vida. E mesmo nesse encontro hipotético e casual, tomando quantas garrafas de vinho que for, é muito difícil que a conversa gire exclusivamente sobre a vida pessoal de um deles.

Mas é exatamente isso que Gustavo faz, o que deixa Julia apreensiva em alguns momentos, além de não saber muito qual rumo tomar ao tentar atender o desejo do diretor: que ela fale tudo sobre ela.

Porém, Julia parece uma mulher forte. Talvez não em um primeiro momento, no começo, mas certamente ao final do filme. Isso porque ouvimos sua história de vida. E não é bonita. Envolve abusos quando criança, tentativas de suicídio e a falta de apoio da família. Boa parte do material é barra pesada, e como espectador não estamos certos se tudo aquilo é necessário ser exposto. Como havia falado, não estava combinada essa intimidade do espectador com um ser humano. Não nesse nível. Ao sentir empatia por quem fala através da câmera, nos sentimos um pouco cúmplices do diretor por "deixá-lo" colocar Julia nessa situação. E um pouco culpados por isso.

Sentimentos e pensamentos fluem conforme a diretora, atriz e roteirista Julia Katharine recebe uma equipe de filmagem em sua casa, abre um vinho rosé e começa a falar de sua vida. O filme flui naturalmente, com exceção de um longo plano final sem razão aparente. Talvez o diretor queria que nós refletíssemos, mas essa parte ele não conseguiu controlar.

Nesse momento eu me lembro que deveria contar a vocês que Julia é uma transsexual, que nasceu homem e se tornou mulher. E nesse momento eu não me sinto à vontade para fazer isso. Talvez receoso ao saber do preconceito coletivo de que a própria Julia falou, em que as pessoas pensam que transsexuais pensam e falam 100% de sexo. Bom, pra ser sincero, ela fala uns 50% durante o filme. Mas não é isso que vem ao caso. O constrangimento surge para mim porque esse é um detalhe que talvez faça diferença para você, leitor, mas que não deveria.

"Este é um filme sobre um ser humano que foi machucado e que se machucou em boa parte de sua vida e que ressurgiu do outro lado mais fortalecido." Esse é o resumo que faria justiça ao filme. Ser transsexual é um detalhe da vida de Julia como viver um tempo no Japão, por exemplo. Mas tanto viver no Japão quanto ser trans são eventos e características que dizem respeito apenas a ela. Sua sexualidade não deveria ser uma bandeira política, como se costuma fazer nos dias de hoje, e a naturalidade com que ela aborda esses dois assuntos de sua vida, assim como muitos outros, é tocante, e isso é o que deveria importar mais.

A câmera de Gustavo intimida. Ela faz zoom, ela acompanha Julia se trocando, ela pausa por um bom tempo em seu rosto. Talvez ele esteja dizendo algo aqui. Algo sobre a insistência em tentarmos dissecar um ser humano mesmo sem a menor capacidade de entender a nós mesmos? Só um chute.

Uma madrugada em São Paulo e uma entrevista íntima e pessoal com Julia Katharine. Seguido de um curta de quase meia-hora de sua autoria (espero que quando estreie esteja junto também). A sensação é ter conversado a noite inteira com este ser humano talentoso em saber viver (apesar dos infortúnios) e em seguida observar uma de suas criações. É humanizar demais o Cinema. É arriscar demais se aproximar de um ser humano. Esteja avisado.


# Interstella 5555

Caloni, 2019-02-20 cinema movies [up] [copy]

Eis um Interestelar que presta do começo ao fim. 5555 é uma experiência no mundo dos vídeo-clipes. Ele contém uma história narrada visualmente e embalada por um álbum inteiro, batida a batida. Ele é um arco completo, talvez melhor que a maioria dos filmes, e ainda tem algumas coisas a dizer sobre nossa sociedade e seus troféus. Este filme é praticamente gêmeo de Pink Floyd The Wall, 20 anos depois.

Esta é uma parceria entre a banda de techno formada por dois androides Draft Punk e o mangaká tecnófilo Hiroshi Kato e seu design visual atemporal que reimagina o álbum Discovery como uma viagem ao âmago da humanidade e sua música. A história é simples: gerente musical do mal sequestra bandas de todas as partes do universo para se tornarem ídolos na Terra. Ele transforma o visual dos alienígenas em algo palatável para os humanos, o que nos diz muita coisa também sobre nossa sociedade da moda e das aparências.

Essa é uma crítica social que não precisa ser ácida nem sutil: é a pura realidade mostrada sob a lente de um álbum que pode ser ouvido às cegas ou, agora, com esse filme. Ele é bem dirigido, possui rimas visuais e mesmo com as poucas expressões dos animes cria arquétipos que não precisam nem de apresentações nem de diálogos, o que favorece a música tocando, que se mantém sempre em ritmo com o que vemos na tela.

Não há personagens neste filme, apenas conceitos. E os conceitos falam por si só. A batida é uma imersão a uma possibilidade de mundos interagindo através talvez da única coisa que nos torna seres universais: a música e sua indissociável capacidade de se comunicar sem precisar verbalizar.


# O Silêncio dos Outros

Caloni, 2019-02-22 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

O Silêncio dos Outros é um documentário necessário, mas com final amargo quando constatamos o quão dura e lenta é a luta por justiça.

A história é sobre o julgamento dos crimes contra a humanidade durante os quase quarenta anos da ditadura de Franco na Espanha. O problema é a Lei de Anistia, aprovada já na democracia e que ao mesmo tempo que liberta os presos políticos cria em contrapartida a chamada Lei do Esquecimento, onde os crimes de tortura e assassinato da época não podem ser investigados pelas autoridades locais. Então o jeito é apelar para a corte internacional.

A noção do passado do povo espanhol é pior do que parece: boa parte da sociedade ainda apoia a época da ditadura em vez de lamentar o ocorrido, pois o filme faz um recorte entre o aniversário de um ano da morte de Franco, em 1975, e décadas depois, em 2010, e pouca coisa muda. Em ambas as ocasiões há pessoas comemorando na praça central de Madri. Se pensarmos que os críticos de Franco continuam sendo vizinhos dessas pessoas, que moram em ruas cujos nomes são de "heróis" do regime (mas que sob um olhar neutro são apenas criminosos) a opressão ainda não terminou.

O filme então acompanha três movimentos sociais durante anos de luta: os familiares de milhares de desaparecidos em busca dos seus restos mortais enterrados em túmulos coletivos, os torturados da época em busca da punição dos responsáveis e um terceiro grupo formado por mães de bebês recém nascidos que eram roubados após o parto.

Esse último grupo aparece quase no meio do filme depois de uma descoberta iniciada pelo próprio processo de cavocar o passado. O mesmo médico que fez o parto de várias mães naquela época parece ter sido responsável pelo roubo de centenas de bebês. As justificativas da época beiram a loucura, com os estudos de eugenia dos "cientistas" da época que diziam haver um "gene vermelho" responsável pelo pensamento de esquerda da população. Este é um ótimo exemplo do nível de insanidade que o fanatismo carrega quando apoiado politicamente e como os ecos do passado continuam a repercutir no presente e futuro de muitas pessoas.

O filme carrega todas as questões pertinentes na busca por um julgamento dos culpados com muita propriedade, acompanhando indivíduos de cada grupo e os fatos que vão sendo encontrados no processo. Porém, o filme também contém sua parcela de emoção, e tem sua razão de ser, se formos pensar, mas não no filme, pois isso enfraquece o diálogo. Muitas pessoas acabam chorando nessa luta de ambos, e o diretor parece obstinado em capturar cada lágrima derramada em busca de humanizar sua história. Além disso, a direção dupla parece ter se perdido no controle de edição, onde os lugares onde a ação vai acontecendo nem sempre é mostrada. Apesar de ser um filme de cunho internacional, quando estamos em algum lugar da Espanha nada é falado, mas sempre que voltamos à capital argentina aparece o letreiro: Buenos Aires. Argentina.

Talvez a insistência em levar às lágrimas o espectador tenha ofuscado um pouco a objetividade do trabalho, mas que nem por isso perde em conteúdo. Agora, dentro da ótica mais objetiva, bastaria utilizar três momentos-chave do longa para conscientizar as pessoas da humanidade trazida pelo documentário: a colocação de flores de uma senhora do lado da rodovia onde foram enterradas milhares de assassinados (em que acompanhamos as flores murchando no decorrer da história, em uma ótima analogia do processo moroso que demora anos), a narrativa de uma mãe desperta que teve seu filho em parto normal para depois ser arrancado dos seus braços (poderoso) e o testemunho de uma das vítimas de tortura que é obrigado a morar a poucos metros de onde mora seu torturador. Nesse último exemplo suas palavras não são uma primazia de discurso, mas são de um ser humano ainda quebrado pelo sistema. É um discurso legítimo, nada inflamado. E isso vale muito mais em um documentário.

Há também uma certa obsessão no filme em voltar para uma das poucas obras que foram criadas para homenagear as vítimas de Franco: quatro estátuas belíssimas. Uma delas levou um tiro, uma resposta violenta muito comum de qualquer crítica ao regimento. O autor da obra a considerou concluída após esse tiro, que pegou nas costas de uma das estátuas. Mas o filme não. Ele insiste em voltar a elas, pela sua beleza, mas as enfraquece pela exposição demasiada.

Este poderia ser um filme sobre qualquer ditadura que tivesse terminado em qualquer país, e isso é estarrecedor. Se pensarmos a respeito da ignorância ou manipulação ideológica do povo a respeito do passado e até do presente político é algo que dá medo. Ficamos a imaginar que atrocidades semelhantes podem estar sendo cometidas hoje na Coréia do Norte ou Venezuela, que só serão descobertas após a queda desses regimes. Isto é, se forem descobertas, pois se há algo que Silêncio dos Outros nos ensina é que o passado pertence não ao seu povo, mas aos que continuam no poder. É como já dizia George Orwell em 1984, em uma lição que deveria ser passada a todo ser humano para desenvolver senso político: "Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado".


# O Terminal

Caloni, 2019-02-22 cinema movies [up] [copy]

Vou lhe dar algumas dicas do nível de manipulação que existe em O Terminal: Tom Hanks é um estrangeiro de um paisinho do Leste Europeu que além de saber falar e entender palavras em inglês apenas quando lhe convém em outros momentos se comporta como um autêntico habitante de uma ilha isolada da civilização, apelando portanto para o coração das pessoas; uma aeromoça coincidentemente está sempre se encontrando com ele no aeroporto internacional de Nova York, aquele com seis terminais de embarque diferentes e o mais movimentado da América, ela mantém um romance com um homem casado e termina seu arco da mesma forma porque não era para ser o interesse romântico de Hanks de qualquer forma, mas apenas um instrumento feminino para impulsionar bilheterias; por outro lado, um indiano passa o resto de sua vida anônimo limpando o chão do terminal foragido de seu país, mas graças à figura carismática de Tom H... Viktor Navorski, ele decide usar a cartada de ser extraviado, chamando assim a atenção dos policiais em um momento em que Viktor estava prestes a fazer algo indesejado, mas que no momento seguinte muda de ideia, tornando assim o sacrifício do indiano completamente inútil.

Tudo isso porque o diretor Steven Spielberg quer fazer você chorar ou pelo menos se sentir bem a qualquer custo. Ele não quer simplesmente pegar o roteiro incoerente de Sacha Gervasi e Jeff Nathanson e tornar esses momentos emocionantes por si só. Se fosse assim eles seriam momentos igualmente fracos, pois não são construídos através de personagens que lembram pessoas de carne e osso. Ao contrário, lembram momentos de um verdadeiro herói da resistência, que constrói monumentos nos cantos escuros do aeroporto durante a madrugada. Spielberg precisa que Viktor (com K, porque ele é estrangeiro) seja um forasteiro que faz de tudo de bom grado para permanecer correto e simplesmente cumprir uma promessa que fez ao pai. Aliás, cumprir promessas ao falecido pai é uma das cantadas mais originais que eu já vi em um filme. E funcionou.

Independente da história, que já é piegas, o diretor insiste na música emocionante, nos zooms lentos e enquadramentos singelos que demonstram a pureza do coração de Viktor, caso você ainda não tenha comprado a ideia simplesmente porque ele é interpretado pelo ator mais amado de sua geração. Spielberg precisa de mais. Talvez violinos.

O grande vilão da história, o diretor do aeroporto, interpretado por Stanley Tucci, é malvado apenas porque isso é o esperado de qualquer pessoa com manias esquisitas como colecionar peixes em sua parede, ajustar o óculos e ser careca e de mal humor. Tucci faz o possível, mas seu Frank Dixon é quase um Nixon na cabeça dos liberais americanos: malvado apenas pelo prazer de o ser. E ele vai o ser até o final, custe o que custar.

É impressionante como todos que devem se encantar com Viktor assim o fazem, enquanto os que no começo desconfiam desse senhor estranho para depois começar a gostar dele também o fazem. O próprio indiano que comentei pensava que ele era um espião. E de repente ele está contando a bonita história para todos os funcionários do aeroporto de como Viktor salvou um compatriota de ter os remédios do pai detidos. Mas Spielberg ainda não está contente. Viktor ainda não deixou sua marca. Bom, ele foi empurrado pelo diretor até a copiadora e deixou várias cópias de sua mão impressas no papel. Agora, sim. A canonização está completa.

Este é um filme bonitinho se você não se importar se a maioria dos eventos dentro do aeoporto não fizer muito sentido. Ele também cumpre o papel de inspirar empatia, pois se Tom Hanks é a figura que consegue transformar o semi-retardado Forrest Gump em um heroi americano, fazer Viktor é brincadeira de criança. Bom, eu não compro essa ideia. Não mais, na minha idade. Forrest Gump possui a ingenuidade ao mesmo tempo que a autenticidade no seu coração. É o ser humano que todos nós deveríamos nos inspirar. Viktor Navorski (com K, porque é estrangeiro) é apenas uma caricatura de um país que sequer existe para fazer americanos cansados de sua própria insignificância se sentir um pouco melhores por existirem seres humanos como ele. Desde que ele more bem longe de Nova York, é claro.


# Até que a Gente te Separe

Caloni, 2019-02-26 cinema movies [up] [copy]

The Breaker Upperers é uma comédia neo-zelandesa, o que significa britânica, o que quer dizer que é um humor difícil de falhar. Sim, humor britânico está sempre acima do americano.

Nesse caso a história começa com uma ideia interessante: duas rivais de um mesmo partido se tornam melhores amigas e juntas criam um negócio para terminar o relacionamento de pessoas insatisfeiras, mas covardes. Elas aceleram um processo inevitável. A primeira sequência do filme contém várias piadas, algumas rápidas demais para pegarmos, onde a vemos agindo. É uma dupla que funciona. Daquelas com química.

Madeleine Sami é a garota de Loucos por Nada, mais uma comédia neo-zelandesa indie de Taika Waititi (O Que Fazemos nas Sombras). Jackie van Beek também participou de ambos os filmes do diretor. Agora ambas dirigem e roteirizam essa história, que parece ter o mesmo clima independente de Loucos por Nada, e isso em uma época em que os indies já não são tão sexy porque foram assimilados pela indústria.

Mas aqui não. Aqui a história é simples e a produção é de baixo orçamento. Os atores coadjuvantes parecem pessoas da vizinhança. Afinal de contas, como é dito no filme, se você mora na Nova Zelândia acaba se encontrando com as mesmas pessoas. O humor aqui possui várias formas, desde algumas sacadas que funcionam (outras não) ou simplesmente o ritmo. Essas duas garotas possuem ritmo, e todas as cenas dançantes funcionam. Algumas mais, outras menos.


# Simplesmente Alice

Caloni, 2019-02-26 cinema movies [up] [copy]

A primeira impressão deste filme é que muitas donas de casa gostariam de ter um Doutor Yang para se consultar. Woody Allen, para variar, joga várias ideias criativas em um único filme, que vai de chás milagrosos que fazem ter o dom do conhecimento e honestidade ou ficar invisível até ex-namorados como fantasmas conselheiros. A irmã de Alice é Dorothy e ambas vivem em mundos distintos. Não tenho certeza se os nomes dos personagens são uma coincidência ou um jogo de metalinguagem deste brilhante roteirista.

"Simplesmente Alice" sabe que está dialogando com fantasia, mas se trata de um drama com um nível de amadurecimento em seu texto admirável. É sobre a redescoberta de uma mulher de que está viva, e de que pode mudar o rumo de seu destino. E a pergunta que o filme quer fazer é: e se ela pudesse?

Ao mesmo tempo Woody Allen demonstra uma sensibilidade admirável sobre a natureza humana, criando personagens que são não apenas críveis, mas como os que gostaríamos que existissem na vida real. Por exemplo: em um momento é oferecido a um homem um chá que o torna invisível. O primeiro pensamento que vem para ele é se há algum efeito colateral, pois ele é pai de uma criança. Quantos roteiristas se preocupam com esse grau de humanidade ao escrever seus filmes?

E unir fantasia com realismo não é o trabalho completo. Há diálogos maravilhosos que irão divertir o espectador mais atento ao contexto em que são ditos. O humor de Allen dialoga em vários níveis, indo do escracho completo (um casal invisível saindo de um carro: "caramba, nada mesmo surpreende esses motoristas de táxi em Nova York!") ao comentário social sagaz ("não há nada mais sexy que uma católica que já expirou").

A história é simples, mas caminha por detalhes sutis: madame de meia-idade mãe de filhos após 16 anos casada à deriva sonha com a possibilidade de se encontrar romanticamente com alguém que conheceu no colégio das crianças. Conheceu é muito: trocou duas frases de passagem com o comum mas artista Joe. O livro responsável pelo reencontro era sobre um romance, o que já diz sobre Alice, que é uma ex-religiosa, mas que ainda vive em um conto de fadas burguês, respirando mais do ar de Platão do que no planeta Terra.

Os chás de um curandeiro oriental, Doutor Yang, servem como escape e tratamento de uma pessoa orientada pela culpa e ressentimentos. Ela se arrepende de ter interrompido seu sonho de trabalhar com moda, mas agora começa a pensar em virar escritora ("eu escrevia quando era pequena"). Estamos falando de fato de uma madame mimada que passa o dia inteiro fazendo compras e é casada com um ricaço herdeiro que logicamente a trai com mulheres mais provocantes. Alice sempre usa o mesmo figurino, e seu chapéu com detalhe vermelho soa quase como uma gozação do seu puritanismo com um pequeno fio de malícia.

A naturalidade com que a história se desenrola faz surgir a suspeita que Allen está usando material da vida real, e só compete com os joguetes fantasiosos da história, que brinca com as possibilidades de ouvir o que os outros falam por nossas costas ou escolher quem queremos que nos ame para sempre. Este é um filme redondo do começo ao fim e muitas ideias que foram sendo recicladas pelo cinema e TV (a bebida do amor foi tema de um dos melhores episódios da série de animação A Filosofia de Rick And Morty: Primeira Temporada (anotações), por exemplo, mas cuja coincidência é apenas a ideia inicial).

Allen também nesse filme demonstra como vai ganhando mais e mais controle absoluto da câmera e dos seus enquadramentos. Aqui ele está fascinado pelo giro em torno do personagem, mas seus enquadramentos são tão elegantes que o truque sempre funciona. E estamos acompanhando a história sob o ponto de Alice, para quem o mundo começa a girar em torno, o que faz sentido até temático.

Simplesmente Alice é daqueles conjuntos de direção e roteiro que apenas um Allen trabalhado por alguns anos é capaz de proporcionar. Ele está bem acima da média dos filmes anuais que o diretor se propõs a entregar atualmente, e merece revisitas para vermos o quão bom ele era quando lhe era dado tempo para retrabalhar melhor seus textos.


# Vida em Movimento

Caloni, 2019-02-26 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Vida em Movimento, documentário que propõe mudanças em nossos hábitos para combater o sedentarismo sistêmico das grandes cidades, me fez lembrar de uma notícia bombástica mês passado sobre a Coca-Cola ter influenciado pesadamente as diretivas chinesas no combate à obesidade nos últimos trinta anos. Como um filme sobre sedentarismo me fez lembrar disso? Simples: a estratégia corporativa é basicamente a mesma.

A Coca-Cola, junto da Nestlé, McDonalds e Pepsi, criaram o Instituto Internacional de Ciências da Vida (International Life Sciences Institute, ILSI) como uma ponte entre governos, academia científica e indústria, fornecendo evidências para tomadas de decisões políticas sobre nutrição, segurança alimentar, além de controle e prevenção de doenças crônicas. Agora, você deveria estar se perguntando, por que corporações conhecidas por vender junk food estão tão preocupadas com a saúde de seus consumidores?

Na verdade não estão. O objetivo dessas empresas, de acordo com um extensivo estudo em Harvard publicado no British Medical Journal, é desviar o foco sobre alimentação saudável priorizando um estilo de vida baseado em atividades físicas. Ao chamar a atenção dos governos e populações para a necessidade de exercícios para uma vida saudável a indústria de alimentos ganha um respiro, e uma desculpa, para que pessoas continuem se alimentando mal através de bebidas açucaradas e alimentos pobres em nutrientes. O assunto é complexo demais para este texto, mas esses dados nos faz levantar o nível de ceticismo sobre exercícios sendo a solução para tudo, além do nosso senso crítico a respeito do que mega-corporações alimentícias andam fazendo com seu dinheiro a título de influência governamental.

Mas voltando ao texto, o que me fez relacionar o documentário de Eduardo Rajabally foi apenas um elemento em comum: de onde vem o dinheiro. Um dos maiores patrocinadores deste filme é a Ambev, a maior produtora de cervejas do mundo. Considere a introdução como um conselho para que mantenha um ceticismo saudável a respeito do que se vê em documentários. E não apenas desse filme, mas de todos os outros que se espalham facilmente pelos cinemas e, principalmente, os serviços de streaming, que através de centenas de documentários encomendados são os novos portadores de "notícias confiáveis". Documentários são como livros publicados por editoras que almejam o lucro: não há a necessidade de rigidez científica sobre as informações passadas ao público.

Mas sobre o filme: Vida em Movimento se trata de uma série de visitas feitas em países com alguma proposta para reverter o sedentarismo das grandes cidades. O filme não nos mostra por que o sedentarismo é ruim, preferindo se manter no senso comum e no velho "pesquisas indicam", "já é provado" e outras frases genéricas de telejornal, que evita se aprofundar no tema. Este se trata de um trabalho superficial, didático e burocrático. Ele confia na percepção do seu público sobre um conhecimento comum que hoje nos parece óbvio: uma vida com exercícios é uma vida mais saudável.

O filme é superficial porque ele nunca está verdadeiramente disposto a ir fundo nos motivos de doenças. Seu foco está mais nos planos de urbanização e vida moderna dos habitantes das cidades, mas mesmo nesse tema tudo é resumido. "Há apenas duas formas de urbanizar uma cidade", diz um entrevistado em algum momento. Ao mesmo tempo não notamos uma conexão entre as formas de se viver nos EUA, Copenhague, Coreia do Sul ou Brasil. As regiões populacionais mostradas parecem ter diferentes escalas e estilos de vida.

O filme é didático porque ele vai nos apresentando um a um dos exemplos que achou interessante citar, faz um breve resumo e nos mostra alguns casos de uso. É conhecimento, mas monótono, anedótico. Bom, pelo menos é didático, você deve pensar, mas contrariando o próprio filme, que mostra formas de fazer a educação nas escolas ser mais interessante, ele próprio não é um bom exemplo, pois inspira bocejos em espectadores adultos, o que dirá pessoas mais jovens.

O cerne do problema é burocrático. O formato do filme e a falta de paixão no seu texto, sempre soando neutro e distante, nunca nos faz ficarmos empolgado com o conteúdo. O que é um problema grave do formato, por mais que o conteúdo seja fascinante.

Porém, este também é um problema de conteúdo, pois nada do que vimos no filme é inédito. O uso indiscriminado da tecnologia dos celulares e tablets, uma das críticas do filme, conectados à internet nos daria essas informações, muitas vezes em formato mais interessante, e anos, décadas atrás. O exemplo de Copenhague e seus cidadãos andando de bicicleta por toda a cidade não apenas está datada, mas é praticamente conhecimento comum e usado em inúmeros trabalhos escolares.

Tentando fazer um apanhado contemporâneo sobre estilos de vida que tentam fugir do sedentarismo surge apenas o senso comum. Este não chega a ser um alerta sobre nossos hábitos, mas apenas uma constatação. E quando os índices de obesidade piorarem ainda mais, estaremos nos lembrando sobre o foco excessivo dado às atividades físicas. E continuaremos ingerindo fast food. Talvez essa seja a maior reflexão do nosso tempo.


# Powaqqatsi - A Vida em Transformação

Caloni, 2019-02-28 cinema movies [up] [copy]

Powaqqatsi é o filme do meio da trilogia Qatsi, uma série documental não-narrativa produzido e dirigido por Godfrey Reggio com a trilha sonora encantadoramente repetitiva de Philip Glass. O filme tem sido promovido pelos diretores Francis Ford Coppola e George Lucas, como sua capinha do DVD nos diz. O filme segue o estilo do documentário clássico Um Homem com uma Câmera, mas moderno, só que no bom sentido.

Digo no bom sentido porque a beleza das cenas aéreas e em câmera lenta realizam um balé sobre a humanidade e o fluxo de sua vida nos quatro cantos do mundo. Não chega a ser um filme experimental daqueles que não faz sentido, pois ele possui uma linha narrativa, embora não declarada. Começando com jovens subindo um morro cheios de argila para coletar minério, vamos passando por agricultura, as grandes cidades, religião, tecnologia, etc. Todos os grandes marcos de nossa espécie são aos poucos retratadas em um baile coreografado pela montagem e por técnicas de filmagem.

O que une tudo isso é a trilha sonora de Philip Glass, que vai se repetindo ao longo da trajetória de 100 minutos, mas nunca de maneira monótona. Há muito o que ser visto de diferentes culturas, idades, classes sociais. É claro que o cineasta Godfrey Reggio e sua equipe privilegiam a pobreza, essa admirável característica humana que nos acompanha por praticamente toda a história humana, deixando de ser uma realidade apenas no último século, mas que ainda gera na ficção e em casos anedóticos os melhores dramas e os melhores sorrisos. Pessoas que quase não têm nada não se preocupam em perder alguma coisa. Estão sempre curiosas, tranquilas, em sua rotina, seja ela qual for.

Os movimentos dos humanos individualmente ou em grupos coesos vai aos poucos sendo substituído pela massa dos grandes conglomerados no globo, como as grandes cidades do primeiro e terceiro mundos. E é curioso como o movimento das massas se confunde com a própria natureza, como o mar ou a grama sendo tocada pelo vento. Há uma transição belíssima entre grama, mar e multidão. Os pedintes nas ruas são homenageados com a figura dos transeuntes como fantasmas transparentes, passando rapidamente por eles.

Há beleza humana misturada com natureza, seja em suas construções, palácios, atividades ou simplesmente o sorriso das crianças curiosas. É um registro sem diálogos indispensável sobre nossa era, e deve ser guardado para as gerações futuras. Talvez estejamos no limiar dessas transformações, e sabe-se lá quanto tempo vai durar nossas diferenças étnicas e culturais. Mas enquanto durar, curtamos a magia da diversidade de nós, seres humanos, vivendo cada um à sua maneira, sob sua ótica de sua própria realidade, nesse planeta que compartilhamos.


# Raiva

Caloni, 2019-02-28 cinemaqui cinema movies [up] [copy]

Raiva é adaptação de Seara do Vento, um livro inteiro do escritor Manuel da Fonseca, mas que no filme mais parece um conto. Inspirado em uma ocorrência real (o livro), a história no filme começa com um homem que desistiu da vida que levava. Isso é óbvio quando o vemos carregar sua arma e pular a janela de sua casa. Ele vai fazer justiça? Não sabemos. A única coisa que fica clara é que ele tem um motivo. E naquele momento não importa qual. E como descobriremos mais tarde, quando a dignidade humana é perdida os motivos não importam.

Essa é a única inversão narrativa da história, pois o filme é sobre o motivo de tamanha fúria. Então voltamos ao passado para entender a dinâmica dessa família que mal tem para comer.

Estamos em Portugal, em 1950 e em preto e branco, pois este é o tom que esta história fica melhor, com as mantas pretas das mulheres e a paisagem desértica ao fundo. Em alguns momentos não se sabe se o horizonte é real ou pintado, pois ele é estilizado; lembra constantemente O Sétimo Selo, clássico do Bergman na época da Peste Negra, com a diferença que aqui a praga é substituída pelas mazelas e injustiças do mundo.

Outro traço do estilo de Raiva é seu comprometimento com o tema da pobreza. Isso se reflete nos cenários quase vazios ou inertes, na falta de diálogo quase digno de um Vidas Secas (Graciliano Ramos) e na falta de trilha sonora. Os únicos sons são os do ambiente e os hinos cantados pela igreja, no máximo dois, que ironicamente iniciam e encerram esta história. Este é também o mesmo estilo do livro em que se baseou. Exemplo de literatura neorealista portuguesa, "Seara" foi escrito por um comunista cujo principal motivo é ideológico, e não a história em si, que é apenas alegórica.

Se formos analisar o filme por sua história veremos que ela não importa, mesmo, pois é apenas um pedaço da vida privada que se repete aos quatro cantos da História: há os ricos que herdam a terra e há os pobres que ou obedecem ao seu dono ou perecem. A família do filme está na lista dos que perecem, pois seu pai de família cometeu o pecado de pedir aumento ao seu dono. Na história real é acusado de roubar sementes, mas os motivos realmente não importariam se nesse filme em específico estivesse em mente o uso do maniqueísmo narrativo, que apesar de subverter sua fonte de inspiração neorealista necessita endurecer a vida real a ponto dela se encaixar nos objetivos da trama.

O diretor e roteirista Sérgio Tréfaut transforma este romance de uma ficção para outra: a famigerada luta de classes do qual tanto se fala ultimamente. Tão fora de moda por muito tempo, mas de tão poderosa que é hoje está em voga de novo; e a pobreza sempre faz sucesso na telona.

No entanto, como quase não há personagens a impressão é que não há material suficiente para fazer um longa metragem. Há inúmeras e longas pausas onde vemos a família fazendo exatamente... nada. Esperando a boa sorte. Lamentando o destino fatal que os deixou à mercê do fim. Não é possível acessar sua mentes pela situação de vida, mas apenas intuir. Estão fracos de fome e longe do divino. A criança deficiente nos lembra do aspecto animalesco do homem quando se vive no limite entre a vida e a morte, ou como gosta de dizer a igreja, entre o céu e o inferno.

Há também sinais de mudança social na figura da filha que se mobiliza junto dos camponeses. O pai não a ouve; a clássica falta de comunicação entre as gerações. Ela tem a cara perfeita para uma revolucionária comunista, e o filme sabe disso, captando um momento que ela marcha na frente de uma multidão de humildes. Mas essa mudança social também está nos ricos, na figura do filho do dono das terras que produz o grão, e que realiza contrabando escondido do pai. O que o filme faz então é denunciar, bem sutilmente, a flexibilidade moral entre uma geração endurecida pela seca e uma outra, mimada demais.

Todos os elementos da história residem nos seus personagens, que não podem evitar serem arquétipos universais do sofrimento humano na sociedade contemporânea. Mas mesmo com esse controle narrativo absurdo que o Cinema proporciona, este filme não consegue prender a atenção de quem o assiste. Talvez falte a fagulha criativa do homem quando este morre de fome sem comida nem princípios. Mas estou especulando. A história é reta, mas sua interpretação inteiramente subjetiva. Faltou um pouco de inspiração de Eisenstein e outros teóricos russos sobre a manipulação na montagem do filme.

Raiva é um filme sobre a pobreza em vários sentidos, não apenas material. Seus personagens são desagradáveis, como devem ser. Este é um filme ironicamente anti-humanidade, pois defende que ao se retirar tudo de um homem só lhe resta a emoção crua. Como um animal. E animais se abatem para comer. Logo, não entendo todo esse alvoroço pelos pobres. Além de tudo é contraditório.


[2019-01] [2019-03]