# Meu Amigo Enzo [link]

2019-08-01 tag_cinemaqui tag_movies ^

Meu Amigo Enzo segue a tradição Disney de pequenas histórias de Sessão da Tarde que encantam pela leveza, simplicidade e conveniência. Tudo funciona na aventura da vida deste cachorro. Ele é o narrador de uma vida humana em que tudo no final deve dar certo e os percalços são necessidades para que seja feito um filme a respeito.

O motivo de nunca temermos pelo pior é porque este é um filme fofinho, que arranja novas maneiras de contar a velha história da família que passa por alguns problemas insolúveis (quem nunca) e por um piloto que evoca o espírito de Ayrton Senna, que encontra várias barreiras no seu caminho profissional, mas que sua habilidade de correr na chuva demonstra sua confiança no imprevisível. Nós também temos essa confiança, pois já sabemos como funciona um filme como esse: tudo vai dar certo.

Bom, como o final já está garantido, vamos dar uma olhada no processo. A história começa com um cachorro moribundo, morrendo no capacho da casa do seu dono. O cachorro é dotado de pensamentos filosóficos a respeito de sua vida e a do seu dono com uma sagacidade empolgante, uma sabedoria adorável e a voz de Kevin Costner. Ninguém pensaria duas vezes em poder ter um cachorro desses ao seu lado pelo resto da vida.

Ou pelo menos pelo resto da vida do cachorro, pois, como sabemos, eles vivem muito menos que humanos. E por isso o filme já nos apresenta seu inevitável fim e nos coloca no começo, quando ele é comprado (certeza que isso vai gerar alguns chororôs dos militantes do "adote um animal"). Enzo, como é batizado pelo dono, é ainda filhote e entre em um momento-chave na vida de seu humano, Denny (Milo Ventimiglia), quando somos apresentados à sua vida de piloto, ainda solteiro, para em seguida, já em formato adulto, ele acompanhar a chegada de sua companheira, Eve (Amanda Seyfried), com toda sua simbologia da primeira mulher.

A história segue sem maiores percalços, quando chega a filha dos dois e os dramas específicos dessa família perfeita que precisa que tragédias e conflitos sejam colocados pelo roteirista Mark Bomback, que adapta o livro de Garth Stein, que aparentemente tem em A Arte de Correr na Chuva seu único grande sucesso, e Bomback é um adaptador nato, tendo (re)feito trabalhos como O Vingador do Futuro e a nova série de filmes Planeta dos Macacos.

Este se torna um filme tocante e em alguns momentos tenso porque é isso o que esperamos de um filme que tem um cachorro narrador. Então acompanhamos alguns acontecimentos tocantes, outros tensos, mas nada disso se compara a esse cachorro analisando nossa realidade sob o prisma dos olhos de um canino, que dizem mais do que se ele pudesse falar, mas que pensa de uma forma apaixonante. Ele chama o sogro e a sogra do seu dono de gêmeos por aturarem em uníssono, em uma das muitas piadas espirituosas que saem da boca... ops, do pensamento de Enzo. Poeta por vocação, o cão faz analogias sobre os medos da vida usando a chuva na pista de corrida. Meu deus, onde encontro um animal desses para mim?

Para quem possui animais, e eu digo de fato para suas vidas, e não como muletas de carência como têm sido usados cada vez mais, a resposta para "onde encontro esse animal" deve parecer boba, pois uma vez que você estabelece um laço com uma criatura dessas é como se você tivesse de fato um amigo, e ainda que não da mesma espécie, próximo o suficiente para termos empatia e conexão. E como Marley e Eu e Meu Amigo Enzo tentam demonstrar, uma amizade entre um homem e seu cão pode adquirir significado com o tempo sem necessariamente nenhum truque além do convívio dia após dia. Afinal, somos animais sociais e os lobos desde os tempos mais primórdios são nossa versão menos consciente e mais confiável para a vida selvagem.

O motivo dos dramas e conflitos no filme serem tão artificiais possui um significado, também, pois o mundo onde a história se passa possui um viés ligeiramente religioso, ou pelo menos espiritual, com o objetivo de nos fazer sentir bem apesar das mortes que acompanharemos. Ele usa reencarnação como paz para o espírito, mas de uma forma muito sutil ele ultrapassa interpretações fechadas e adquire um ar mais metafísico. O dono de Enzo é um piloto tão bom porque ele não vive no passado ou futuro, mas no presente. Cachorros são companhias eternas porque, não dotados da voz interior que ajuda e atrapalha, eles sempre vivem no presente, também.

Porém, apesar deste fato, para maior participação de Enzo suas falas refletem momentos que não testemunhamos, quando seu dono fala sobre o que é ser um piloto e coisas da vida. Seria estranho testemunhamos ambos, porque apesar do título brasileiro Enzo é o protagonista dessa história, e apesar de nenhum ser humano ter sido ferido durante as filmagens eles foram cobaias neste experimento de troca de protagonismo.

Essa versão narrada por um cão fiel e reflexivo é uma maneira eficaz de renovar filmes com o mesmo propósito da tradição Disney de histórias doces, sobre família e religiosidade, em que tudo vai ficar bem. E como não ficaria? Se pensarmos como vive um cachorro doméstico, há poucas coisas que reclamar. Talvez aquele momento da vida em que o dono se esqueceu de alimentá-lo por 48 horas seguidas. Momento esse que, como cachorro, ele nem deve se lembrar. Viver no presente é uma ótima mensagem que deveríamos aprender dos nossos companheiros caninos.


# My Hero Academia: 2 Heróis - O Filme [link]

2019-08-01 tag_cinemaqui tag_movies ^

Acho engraçado esses animes que viram filme e querem apresentar todo o contexto já no título. Esse é o caso de My Hero Academia: 2 Heróis - O Filme, que depois do mangá virar anime e agora virar filme tem dois subtítulos. Imagino o título do futuro live action que será lançado: My Hero Academia: 2 Heróis - O Filme - Live Action - Dublagem Especial Contratada Pela Sato Company: A Revanche.

A Sato, através do seu representante, fez questão de ressaltar o trabalho especial na dublagem desta versão cinematográfica do anime de sucesso, neste que é um dos exemplos de filme com potencial para ser exibido nas telonas além dos festivais. Segundo maior sucesso de bilheteria no cinema no Japão na categoria anime, desbancando Your Name, maior sucesso do diretor pop Makoto Shinkai, esta é uma história convencional de uma academia de jovens que pretendem se tornar heróis profissionais.

Existir muitos heróis é uma necessidade nesse mundo onde 80% das pessoas possuem algum tipo de poder, chamado de individualidade ou peculiaridade, e aparentemente heróis só podem atuar se devidamente registrados, o que me lembra a ótima paródia desse sub-gênero, One Punch Man, onde há um sindicato de heróis e uma hierarquia que se torna uma sensação maior que salvar o mundo dos terríveis vilões que surgem dizimando cidades.

Para os que não possuem individualidade resta ajudar os heróis como puderem, e nessa categoria se encaixam os cientistas do mundo, que realizam pesquisa e experimentos para tentar aprimorar os poderes dos especiais. Nesse grupo está o premiado cientista Dr. David Shield e a aspirante a cientista, sua filha Melissa, que também não possui um poder exceto seu carisma e vitalidade que a destaca do grupo sem precisar ser espalhafatosa.

Quando falo grupo digo muitos personagens, mais de dez. Um possui o poder do fogo, outro do gelo, outra de levitar pessoas, etc. Todos fazem parte da academia e todos conseguiram de uma forma ou de outra participar de um evento na I-Island, uma ilha flutuante que abriga essas pessoas que querem tornar o mundo melhor (heróis, cientistas, etc). Sendo flutuante ela pode estar em qualquer lugar do globo, evitando assim ser alvo de ataques. E é claro que é para lá que irão os vilões.

Sem muita empolgação em sua história batida, resta observar a arte deste anime, e ele é algo a se notar. Lembrando um pouco Dragon Ball com detalhes faciais despojados, este é um desenho extremamente bem feito, seja em movimento ou parado. Não é nada original, mas é bom o suficiente para entreter, seja nas proporções agradáveis de Melissa Shield e sua textura de adolescente ou o divertido aspecto cartunesco de Minoru Mineta, um baixinho cujo poder é seu cabelo que se desfaz em bolotas e é usado como arma.

A respeito da dublagem em português, a distribuidora brasileira Sato não estava brincando sobre a qualidade, que convence e muito, restando a você decidir se prefere a versão original japonesa ou a brazuca, que tende a mudar radicamente a dinâmica dos desenhos. Com uma equipe encabeçada por Guilherme Briggs, que faz o herói símbolo da paz All Might, temos nomes já conhecidíssimos da blogosfera nacional ou dos tradicionais e competentes dubladores tupiniquins, estando no primeiro grupo celebridades como Flora Paulita (Kyoka Jiro) e Gabi Xavier (Amplifier).

A lista é extensa, mas no time dos profissionais você poderá conferir Fabio Lucindo (Pokémon, Dragon Ball, Hunter x Hunter) fazendo muito bem o explosivo Katsuki Bakugo, além de Lipe Volpato (Bungo Stray Dogs, One Punch Man) como o protagonista Izuku Midoriya, Yuri Chessman como o divertidíssimo Minoru Mineta, Glauco Marques como o vilão, Fernanda Bullara como Momo, entre outros.

Não cabe a mim julgar muito a respeito do resultado do filme como um todo. No mundo dos otakus, nasci sem nenhuma peculiaridade. Resta a mim, portanto, dar suporte teórico a tantos trabalhos talentosos que freneticamente saem do Japão. My Hero Academia, como desenho, com certeza está entre eles. Mal espero por My Hero Academia: 15 Heróis - A Saga E A Revanche Juntos: O Ultimato.


# Os Dois Filhos de Joseph [link]

2019-08-01 tag_cinemaqui tag_movies ^

É complicado fazer um filme sobre personagens que não despertam simpatia ou possuem qualquer virtude digna de ser observada. Nesse sentido, Os Dois Filhos de Joseph é uma produção que está todo o tempo à beira do esquecimento. Em alguns momentos nos preocupamos tão pouco com o destino dessa família que quase nos esquecemos que eles são o assunto do longa. Em outros, a eterna espera por algo que mude o destino estampado em seus genes gera a suspeita cada vez mais certeira de que este é um filme sobre o ciclo inescapável da natureza das pessoas.

Estamos acompanhando a aventura de dois filhos, Joachim (Vincent Lacoste) e o caçula Ivan (Mathieu Capella), além de seu pai, Joseph Zuccarelli (Benoît Poelvoorde). Joseph lutou junto de seu irmão com câncer por dois anos até seu falecimento. Durante esse tempo ele fechou seu consultório médico e se dedicou a escrever; nesse mesmo tempo seu filho Joachim ficou patinando sem conseguir entregar sua tese final da faculdade de psiquiatria, e o jovem Ivan, perdidamente apaixonado por uma garota da escola.

Crises de família podem ser observada de várias maneiras no cinema. Esse trabalho de estreia na direção do ator Félix Moati não é fácil para a maioria dos espectadores, pois carece de ação e sobra introspecção. Abordando o tema dos três homens solteiros que deslizam em torno de seus objetivos sem nunca conseguir agarrá-los, a câmera de Moati está sempre pedindo perdão por filmar seus personagens de relance, mas com isso os aborda de uma maneira intimista ao mesmo tempo que obscura, muitas vezes obscura literalmente, por conta da fotografia cinzenta e cheia de sombras; a trilha sonora instrumental ajusta o estado de espírito desconcertante dos três, e as mulheres de suas vidas são meros reflexos de suas incapacidades afetivas.

Apesar de dividirem a tela por tempos equivalentes, Joachim é o protagonista. É dele o destino cruel de enxergar em seu pai o seu futuro como incapaz de lidar com os problemas da vida real ao mesmo tempo que observa em seu irmão os reflexos do passado quando passou por uma paixão avassaladora que o tornou um rapaz tímido sem energia para continuar sua vida amorosa, embora continue com sua mania de flertar com qualquer garota que encontre pelo caminho (incluindo sua própria prima).

Esta é uma comédia sobre uma família disfuncional que pode ser comparada a uma versão minimalista (e francesa) do espalhafatoso (e hollywoodiano) Os Meyerowitz (Noah Baumbach, 2017). O núcleo de humor de ambos os filmes gira em torno da inadequação dos seus membros nos mais diversos níveis, profissional e afetivo.

Ainda assim, é possível sentir aqui e ali um humor mais leve, como quando acompanhamos o jovem Ivan e sua paixonite por uma garota improvável (e a observação do seu irmão por ela ser a filha do zelador coloca o filme mais próximo da influência de Godard e sua burguesia ridicularizada). Podemos até achar engraçado a compulsão de Ivan em ingerir álcool em plenos treze anos, mas no final das cenas, que envolve quase sempre os três personagens, o que resta ao espectador é um forte sentimento de impotência, dinâmica essa que lá pelo meio da projeção começa a soar repetitivo e formulaico.

O roteiro, também de Moati, cria algumas rimas que parecem elegantes, como o momento em que os três, na mesma casa, os dois mais velhos acompanhados, se sentem vazios e sozinhos. Porém, esses momentos soam artificiais, porque a narrativa, apesar de coesa, não liga seus elementos a ponto de entendermos o fluxo como coincidências conversando. Se trata apenas da boa e velha manipulação cinematográfica. Charmosa, competente e com um fundinho de jazz; mas manipulação.

Porém, como havia dito, é complicado fazer um filme em que seus heróis não possuem nada de bom ou de simpático exceto fazer-nos rir pela sua inadequação hereditária. A família Zuccarelli, assim como os Meyerowitz, possui essa maldição (pelo menos do lado dos homens), mas no caso dos Zuccarelli temo ser algo congênito, de difícil resolução. Sim, eu sei, seu desfecho é libertador, ou pelo menos deveria ser entendido dessa forma, pois é difícil acreditar em liberdade após uma hora e meia de uma melancolia inebriante.


# The Battle Over Citizen Kane [link]

2019-08-01 tag_movies ^

Se Cidadão Kane, de 1941, caiu no esquecimento do grande público por tanto tempo, The Battle Over Citizen Kane, de 1996, veio reavivar a fogueira das vaidades de dois gigantescos egos lutando por seu lugar ao sol em uma poderosa Hollywood, palco de contradições desde seu nascimento.

De um lado temos o clássico Tycon do século 19, o herdeiro William Randolph Hearst, figura emblemática que usou sua vida para construir influência, transformando a fortuna de minas de seu pai em um complexo de jornais a nível nacional, lutando à sua própria e controversa maneira para dar voz ao pobre, ao trabalhador, ao imigrante. Derrotado no jogo político, no final vira uma figura excêntrica constituindo um castelo e indo morar isolado com uma dançarina caça-fortunas 30 anos mais jovem, sua segunda esposa.

De outro lado temos a jovem revelação do mundo da arte Orson Welles, com seu poder de persuasão e/ou obstinação intrínsecos à sua socialmente conturbada persona. Welles mal havia completado 20 anos quando dirigiu uma adaptação de Macbeth em Harlem com atores negros improvisado. Estava em seus 23 quando causou um alvoroço no rádio ao transmitir a invasão marciana de A Guerra dos Mundos como se fosse notícia.

Quando Wells pousa em Los Angeles já estamos na metade deste documentário para TV, que é o episódio 7 da temporada 8 da série American Experience, o que não o privou de uma indicação ao Oscar. Assistimo-lo focando em quantas informações vitais para compreendermos talvez o melhor e mais importante filme já produzido em solo americano. O fato dessas informações terem sido obtidas em entrevistas de funcionários dos dois lados da discussão é a chave para compreendermos sua importância nos dias de hoje.

Fica extremamente óbvio que o encontro desses dois gigantes da mídia, cada um à sua maneira, mas com várias similaridade em seu modus operandi, seria um evento marcante, ainda que a ordem dos eventos sugira um charmoso elemento imprevisível. Porém, é na análise de suas personalidades que entendemos o encontro dessas vidas como inevitável e até desejável, já que ninguém menos que Wells conseguia ter acesso aos recursos com a liberdade que ele teve. Esta é a primeira e talvez uma das únicas vezes que a um cineasta estreante é entregue carta branca por uma grande produtora.

Sem mais detalhes. Eles estão todos neste documentário vital para qualquer um que queira entender hoje em dia porque Cidadão Kane ainda é tão celebrado por críticos de todo lugar do mundo em vários momentos da História. Também é sua salvaguarda contra a possibilidade de você um dia comentar em uma rosinha de cinéfilos em como este filme preto e branco é chato.


# Queimando ao Vento [link]

2019-08-02 tag_movies ^

Há algo de literário em trabalhos de adaptação de livros, como este, dirigido por Silvio Soldini e escrito com Doriana Leondeff, que se baseia no romance de Agota Kristof. É essa mania do protagonista ser o narrador e estar escrevendo um livro, mesmo que ele seja um maníaco desde criança e viva recluso fugido de seu país de origem.

Esse país é a Tchecoslováquia, e o país para onde ele vai tem uma fábrica que atrai mais conterrâneos de sua terra, incluindo seu amor de infância, a razão de sua existência em todos esses anos. Há algo de intensamente poético na construção de Tobias, que o ator Ivan Franek e seus olhos esbugalhados conseguem demonstrar de maneira penetrante e um tanto relapso.

Antigos possíveis amantes que se reencontram em um país estrangeiro é tema de tantos filmes, e Queimando ao Vento é um deles com algumas peculiaridades que o tornam minimamente interessante. Temos a questão do incesto, do assassinato quando criança, da compulsão de Tobias em transar com todas as mulheres com quem encontra, se relacionando assim com o passado de sua mãe prostituta.

Soldini entrega neste filme um trabalho sólido, onde pela repetição da rotina é onde acompanhamos as mudanças da vida do herói, além de ouvirmos seus pensamentos em formato de uma narração que sabemos no fundo ser o autor do livro original. A produção também é ótima, com fotografia, figurinos e música dramática em compasso com uma tragédia anunciada.

Infelizmente toda a tensão construída em dois terços do filme não contém uma contraparte à altura, e a história acaba soando excessivamente dramática. Mas é um excepcional trabalho de atuações e direção, o que meio que compensa entendermos que todo nosso investimento nessas pessoas não precisa se pagar com mortes ou escândalos. Afinal, já era uma história triste quando começou.


# Privacidade Hackeada [link]

2019-08-03 tag_cinemaqui tag_movies ^

"Se você manter sua mente suficientemente aberta, as pessoas irão jogar um monte de lixo dentro dela." - William A. Orton, empresário do século 19

Privacidade Hackeada é o título brasileiro desse documentário americano lançado pela Netflix, mas ele não tem nada a ver com privacidade e tudo a ver com inception, aquele conceito do filme A Origem onde uma ideia era implantada na cabeça de uma pessoa para que ela achasse que era sua desde o começo.

E a pergunta que eu faço hoje em dia, em uma época onde as informações acumuladas da humanidade estão literalmente nas pontas dos dedos de bilhões de pessoas, é se ainda existe esse conceito de ideia original, assim como alguns defendem que exista ainda essa coisa de privacidade, já que informação inclui conhecimento sobre os outros e sobre você mesmo trafegando pela rede.

Focado na votação americana de 2016 que elegeu Donald Trump e no plebiscito inglês que retirou o país da União Europeia, o Brexit, o filme tem desde o princípio o objetivo de alertar seu espectador para que fique atento para onde seus dados podem ir. A introdução de David Carroll, nosso host, fala sobre como a geração de suas filhas poderá manter o sistema democrático de pé depois de tudo o que foi visto sobre manipulação de notícias nos últimos anos.

Mas deixemos de lado por enquanto os fake news e vamos aos fatos: dados de milhões de americanos foram parar nos servidores europeus da Cambridge Analytica, uma empresa que não apenas processa dados de redes sociais como os utiliza para direcionar o uso da propaganda nessas mesmas redes. Interessante, não? Na Era da Informação, nada mais natural que gigantes como Facebook e Google sejam gigantes justamente pelo poder dos dados da sua massa de usuários.

As redes sociais foram úteis em eleições passadas, como a de Obama em 2008, quando Brittany Kayser trabalhou como voluntária para alavancar uma das primeiras campanhas a usar o poder da internet para eleger o candidato democrata. A campanha termina, o partido se recusa a pagar pelo apoio de Brittany, e o dinheiro para ela passa a ter importância em sua vida pessoal. Então ela recebe uma proposta de emprego onde poderia, de acordo com ela, realmente mudar o mundo (e receber por isso). A proposta, que ela aceitou, foi para trabalhar na Cambridge Analytica.

O documentário gira em torno do seu remorso pelo que ela ajudou a construir, pelo pedido legal do professor David Carroll à empresa que devolvam os dados que pegaram de seu perfil e da investigação minuciosa de uma jornalista do The Guardian, Carole Cadwalladr, um jornal britânico de esquerda.

O que mais me incomodou neste filme foi o tom absolutamente irreal com que ele realiza suas manobras, como se essas pessoas fossem seres iluminados sem posição política alguma, enxergando a realidade fora da Matrix e prontos para mudar o mundo para melhor. Porém, até o espectador mais ingênuo deveria se questionar se haveria essa luta pela verdade e a questão de como seus dados são usados se, por exemplo, o resultado dessas duas votações fosse diferente.

A figura mais emblemática, e é virtude do longa não esconder, é de Brittany, que não se sentiu arrependida por ajudar na campanha de Obama, mas estar vivendo agora seu inferno astral por conta de todos os seus amigos estarem furiosos por ela ajudar "o outro lado". Note como ela entende o problema da polarização cada vez mais crescente na opinião política das pessoas, mas por algum motivo que talvez nem ela saiba é incapaz de acusar o lado teoricamente mais empático de ser violento.

Ou isso ou os diretores do filme, Karim Amer e Jehane Noujaim, trabalham no caso específico e que deixou o mundo inteiro atordoado: a eleição de Donald Trump. Toda sua campanha é utilizada como o bode expiatório para dar suporte à teoria de que os eleitores americanos foram enganados, utilizando para isso a análise do perfil dos indivíduos antes do dia da votação e o envio massivo de propaganda negativa contra sua adversária, Hillary Clinton.

No entanto, por nunca conseguir de fato acesso ao modus operandi da famigerada Cambridge Analytica, o filme é incapaz de trazer respostas satisfatórias às questões que levanta, e acaba se limitando no velho jogo de propaganda que já conhecemos desde a Rússia soviética. Logo, fica difícil reconhecer o trabalho deste filme como inovadora quando o que ele no final das contas denuncia é: a propaganda faz as pessoas mudarem de idéia. Não me parece um material muito revolucionário para mim. O que você acha?


# Mulheres Armadas, Homens na Lata [link]

2019-08-05 tag_cinemaqui tag_movies ^

Um espectro sonda a Europa -- o espectro do feminismo. Todas as nações europeias já o estão conjurando, sobretudo a França. Mulheres Armadas, Homens na Lata é o resultado. Um filme leve, dinâmico, divertido e que se tem uma preocupação que seja, é fazer essas garotas saírem por cima a qualquer custo.

Sua história e sua direção querem evocar os westerns pausterizados de nível B, como a música "Bang Bang (You Shot Me Down)" que nos faz lembrar, ainda que em sua versão de Parabellum, de Kill Bill, outro que bebe dos westerns, além do filmes de samurai. Porém, tanto em Kill Bill quanto Mulheres Armadas sua produção é rica demais para conseguir "disfarçar". O diretor Allan Mauduit eleva um roteiro nada original que escreveu com Jérémie Guez além do que poderíamos imaginar lendo-o quando ele consegue inverter os papéis de gênero sem soar deslocado da realidade, e entrega comédia, ação e até um pouco de drama na medida certa.

Isso porque as premissas estão corretas, ainda que estejam cheias de coincidências pelo caminho. A heroína, Sandra Dréant (Cécile de France), chega na casa da mãe com um olho roxo: seu rolo com o último brutamontes não deu muito certo. Do "ápice" como modelo ela recomeça a vida em uma fábrica de peixes enlatados de sua terra natal que emprega mulheres por ser mão-de-obra barata e as mantém sob a gerência dos escrotos locais, como Jean-Mi (Patrick Ridremont), cuja "cantada" para a novata se resume a "sabia que você é gostosa?". Esse começo que não termina nada bem dá origem a um assassinato não-premeditado em que sobra uma mala cheia de dinheiro que obviamente não é limpo para que Sandra e suas duas amigas, Nadine (Yolande Moreau) e Marilyn (Audrey Lamy) decidam se mudam de vida ou se mantêm quebradas.

Agora, antes de falar da ação em si, é importante destacar a importância que a estética sonora tem para Mauduit, logo na introdução já utilizando a trilha sonora de Ludovic Bourne, premiado por O Artista, em um ritmo compassado com o movimento das latas de sardinha caminhando em harmonia através das infinitas esteiras da fábrica. Repare também como, por este ser um tipo western pastelão, os sons no filme são ligeiramente exagerados. Basta alguém mexer em sua pistola que o barulho nada sutil de sua arma sendo destravada é ouvida. Mas voltando ao feijão-com-arroz, o forte aqui é mesmo a seleção de músicas, e não elas por si só, mas a maneira com que elas são aproveitadas em cada momento, dramático e intenso, como Once Upon a Time in the North e suas variações demonstram, ou algo mais leve que mantém a tensão, como Dance of Death.

A música é tão importante neste filme porque ela consegue nos fazer relevar os acontecimentos bizarros e as coincidências improváveis. Além disso, no elenco está a séria-mas-lúdica Yolande Moreau, que com trabalhos em O Fabuloso Destino de Amelie Poulain, "Paris, Te Amo", entre tantos outros, mantém nossa memória influenciada por aqueles filmes em que a fantasia te ajuda a carregar a história e a torná-la mais leve. E é por isso que é ela que carrega a espingarda e não tem medo de usá-la.

Mas apesar das armas muitas bofetadas na cara existem nesse filme (inclusive em uma criança), mas quando elas chegam vêm como uma versão leve de um soco ou uma pá na cabeça, então não chega a ser perturbador ver mulheres sendo alvo de violência; pelo contrário, é isso o que as tornam dignas de fazer parte dessa aventura, pois elas não são umas donas de casa submissas. Seria muito estranho que em uma história de traficantes e com tantas armas tudo não passasse de uma historinha de perseguição inconsequente e não houvesse riscos. Nada disso, ninguém gosta de filmes onde tudo dá certo (como o de super-heróis). Aqui há um certo grau de insegurança que se mantém por toda a história e que por consequência nos mantém grudados na tela. Será que as meninas vão conseguir se safar dessa enrascada?

Este é um filme de ação, comédia e drama bem dosados. No final, Sandra, a protagonista, aprende uma profunda lição sobre a ausência do pai em sua vida, que consegue empacotar todos aqueles estereótipos masculinos da história em poucos adjetivos, entre os quais talvez o mais importante seja inútil. Não esperava menos, afinal de contas, como havia comentado, a preocupação-mor deste filme é que as garotas saiam por cima a qualquer custo. Ele é bem sucedido porque no final nós, espectadores, desejamos muito que isso seja verdade.


# Retrato do Amor [link]

2019-08-06 tag_cinemaqui tag_movies ^

Sabe aquelas sensações perdidas em um mundo onde as pessoas vivem correndo de um canto para o outro e não têm tempo para apreciar uma tarde quente, ensolarada e movimentada no Portão de Mumbai? Retrato do Amor é um trabalho sensível do diretor indiano Ritesh Batra porque resgata isso para nossos olhos, mentes e corações.

É simbólico que a história comece justo no Portão de Mumbai. Conhecido como a porta de entrada do Ocidente para um mundo exótico, ainda é o centro das idas e vindas de um povo organizado em infinitas vilas que se espalham por centenas de quilômetros continente adentro. Se um taxista encontra um passageiro que veio de uma vila a 40 kms de distância da sua, ele é considerado vizinho. "Eu poderia ir tomar chá em sua casa e voltar no mesmo dia."

Estratificada e dividida em castas, mas compartilhando dignidade entre todos os envolvidos, a cultura indiana mantém uma aura de hospitalidade que esmaece na cidade grande, onde ninguém conhece mais ninguém e os laços tradicionais (e por que não dizer fraternais) dá lugar ao caos urbano, à divisão de classes e sua inevitável hierarquização financeira. Em um mundo focado apenas nos resultados fica difícil enxergar o valor humano.

É nessa atmosfera melancólica que surge uma garota que é bonita do seu jeito e que esconde o sorriso como uma espécie de auto-preservação. Ela é Miloni, filha de uma família com status financeiro (e, portanto, social) e que segue sua carreira de contabilidade com uma dedicação tão disciplinada quanto mecânica. Miloni lembra uma pessoa que tem a vida perfeita mas que não a reconhece. Ela é bidimensional como personagem, mas conquista nosso carisma graças à atuação contida de Sanya Malhotra, que a transforma em um ser humano contemporâneo a nós, sobreviventes das megalópoles.

Compartilhando o mesmo espaço urbano enquanto passa pelo Portão, Miloni é abordada por Rafi, que cobra por fotografias digitais que ele tira dos turistas e as "revela" na hora com sua impressora portátil. Ele seria apenas mais um "profissional liberal" que barganha oportunidades usando a tecnologia do século 21, mas ao abordar a moça ele usa um discurso encantador: "ao tirar essa foto poderá, anos mais tarde, olhar para ela e sentir o calor dessa tarde e ouvir as pessoas em volta; sem uma foto, tudo isso desaparecerá".

Rafi é um homem preso pelo passado de seu pai, que contraiu dívidas que fez com que sua avó perdesse a casa onde morava, e por isso ele se penaliza, se mantendo solteiro em uma vida modesta e busca economizar para pagar as dívidas e resgatar o status uma vez perdido da família. Porém, o que Rafi não entende é que para sua avó a definição de família está em apenas uma palavra: netos.

Já tendo trabalhado com o diretor em The Lunchbox, o ator Nawazuddin Siddiqui se encaixa perfeitamente nesse papel que mistura contemplação com possibilidades. Sua interpretação, assim como de Sanya, também é minimalista, porque ambos precisam trabalhar nossas percepções do que ocorre internamente com essas duas pessoas quando Rafi pede para ela que finja ser sua namorada para a visita da avó.

Cansado da mesmice da velha história do casal que não deve ficar junto pelas barreiras sociais, o diretor/roteirista Ritesh Batra entende isso como ninguém. Ele sequer cita Bollywood para evitar algo como uma contaminação do estereótipo de "tudo termina em dança", e na única cena onde há uma sala de cinema envolvida um rato aparece entre as pernas de Miloni. (E isso serve de alerta também a respeito do final do filme, que pode te surpreender, para o bem ou para o mal.)

Não, o Sr. Batra não está afim de filmar mais uma amor impossível. Ele mira mais longe, no espaço e no tempo. Ele quer que nos lembremos de sonhos que provavelmente muitos poucos de nós viveram, seja dentro do microcosmos indiano ou em outras regiões do planeta, depois que todos os seres humanos migraram do campo para as cidades. Esse sonho tem a ver com a vida simples, onde a rotina se dividia em acordar cedo para cuidar da terra e dormir cedo para ter forças para o dia seguinte. "Mas não é uma vida tão fácil quanto a poesia quer que seja", você já deve estar pensando, na defensiva. Se estiver, eu concordo. Mas não é isso que está em jogo. É algo mais profundo.

Para conseguir isso o filme nos traz a avó de Rafi, que é dura, de duas gerações anteriores e mais auto-centrada que esses jovens perdidos nos becos escuros de uma cidade sem coração. Sua participação é minimalista, mas expande os horizontes a ponto da cidade grande ficar pequena. Isso porque ela resgata aquelas sensações perdidas de uma época mais simples. E ela é imperfeita, como todo ser humano É dentro de sua limitada percepção da vida que expandimos nossos horizontes a respeito da Índia, e por que não, do mundo contemporâneo como um todo, com suas (nossas) tradições em colapso. Sem sabermos onde nos agarrar nessa vida agitada, as rugas da avó de Rafi parecem uma fortaleza a nos ensinar o valor do esmero; esculpidas uma a uma, a cada nova preocupação que a criação dos três filhos sozinha a trouxe.

Por tudo isso, Retrato do Amor é mais um título mal traduzido no Brasil (ou pelo menos mal intencionado). Ele quer fugir dos estereótipos que fazem sucesso hoje na Índia e para isso reconstrói uma conexão com o passado. É contemplativo, leve e sensível. Muitos poderão achar lento, mas se divertirão com algumas piadas. Se você entendeu a essência do filme, não os culpe. Você sabe como é difícil se reconectar com os sonhos de uma vida nunca antes vivida.


# Pássaros de Verão [link]

2019-08-07 tag_cinemaqui tag_movies ^

Pássaros de Verão em nenhum momento convence como Cinema. Sua narrativa é dividida em capítulos, os cantos, que não possuem a independência para serem chamados assim. Sua passagem do tempo não é mais do que o descer e subir das cortinas de um teatro. O que resta é sua historinha e uma certa "consciência histórica" que pode ter dado origem a este projeto.

O que veremos, somos avisados, é inspirado em acontecimentos reais na Colômbia entre as décadas de 70 e 80. É a primeira geração de tráfico ilegal de drogas no país: a maconha. Uma família de nativos começa a prosperar ao exportar a erva e nessa mudança os valores de toda uma sociedade se altera radicalmente. É a voz do dinheiro falando mais alto.

Os diretores Cristina Gallego e Ciro Guerra estão filmando um épico, mas a pobreza de espírito de seus personagens acaba sabotando a aventura. No começo temos cenas magnetizantes do ritual de uma menina se tornando mulher depois de um período de reclusão. Há uma dança em que ela se veste com um manto vermelho e ao elevar suas mãos emula um pássaro grandioso e assustador. Esta é a última cena marcante do longa, e estamos apenas no começo. E mesmo essa cena, que se trata de um momento mágico, ritualístico, é captado pelos olhares dos cineastas de maneira mecânica.

Seus personagens são meras sombras do passado. Não há nenhuma atuação marcante, mas o problema não é o elenco, e sim o roteiro, que limita seus personagens a versões "canônicas" de um passado imaculado. A posição da matriarca, interpretada por Carmiña Martínez com uma dignidade que falta ao seu personagem, é controversa, pois seu status não parece fugir muito da "mãe da noiva" ocidental. Os valores da sociedade Wayuu são tão vulneráveis que a única possibilidade deles terem existido por tanto tempo foi seu isolamento geográfico de outros povos.

Pássaros de Verão bebe de várias fontes que vão desde o contemporâneo Cidade de Deus em uma inevitável comparação de uma amizade que se fragiliza no mundo do crime até a reverência de um Dez Mandamentos (Cecil B. DeMille) pessimista e trágico e uma transformação no estilo de vida deste povo. É sobre choque de culturas, corrompimento pelo poder, honra e dinheiro duelando em um palco rachado pelo calor. E poderia ir muito além do que uma descrição burocrática de eventos históricos.


# 20:30:40 [link]

2019-08-08 tag_movies ^

20:30:40 é uma divertida imersão no mundo feminino em três gerações e com uma edição maravilhosa. Sylvia Chang, a diretora e a atriz que faz o segmento "40", é habilidosa em unir todas as pessoas da história como se todas se conhecessem, direta ou indiretamente. Essa obsessão em juntar os personagens é a característica mais fascinante do filme e sem atrapalhar seu desenvolvimento, pois não ficamos esperando a próxima conexão, que é aleatória e circunstancial.

Porém, este também é um roteiro inteligente, pois coloca mulheres independentes em conflito interno com todas as opções que o mundo contemporâneo fornece. Relacionamentos abertos para uma comissária de bordo que nunca fica em um só lugar? Virar amante de alguém de sua idade depois de descobrir que seu próprio marido tem uma amante? Se abrir para sua amiga sobre a atração que genuinamente nutriu enquanto morava com ela? São problemas de relacionamento, uma mina de ouro para aumentar complexidade.


# Some things I learned in a Hacker Rank exercise [link]

2019-08-08 tag_coding tag_ccpp tag_english ^

A couple of days ago I subscribed to Hacker Hank, a website specialized in provide interview exercises. The site is as a better version of Code Jam, with the possibility to Compile & Run the code, as well as running several test cases.

Talking with friends about one of them proposed a interesting puzzle called Find the Running Median. This is a good problem because it is easy to understand and tricky to implement.

My first attempt was naive, but worked for test cases where there were no duplicated numbers, a detail I overlooked in the description and happenned the very first test (lucky me it is possible to download the test cases, input and output, giving in return some of the points accumulated solving other problems).

   /*
    * Complete the runningMedian function below.
    */
   vector runningMedian(ofstream& fout, vector a) {
       vector ret;
       set oa;
   
       for( int n: a ) {
           oa.insert(n);
           auto oaMidIt = oa.size() == 1 ? oa.begin()
               : next(oa.begin(), oa.size() / 2 - (oa.size() % 2 == 0 ? 1 : 0) );
           auto oaMidIt2 = next(oaMidIt);
           double median;
           if( oa.size() % 2 == 1 ) {
               median = *oaMidIt;
           }
           else {
               median = ( *oaMidIt + *oaMidIt2 ) / 2.0;
           }
           fout << median << " " << n << "\n";
           ret.push_back(median);
       }
   
       return ret;
   }

So I started to draw in my window a new solution, based on inplace sort algorithm, using the same vector proposed skeleton by the site. The idea was to just move elements inside the vector, ordering them as calculating the median to evey new number.

   BEGIN --> 12,   4,   5,   3,   8,   7 <-- END
             ^     ^
             |     |-- SORTED_END
           MEDIAN          ^
                           |-- NEW
   
   BOOL ODD = TRUE;
   
   {
       DOUBLE MEDIAN = ODD ? MEDIAN : (MEDIAN + MEDIAN+1) / 2
       NEW = SORTED_END
       RECURSIVE/ITERATIVE_INSERT(BEGIN, SORTED_END, MEDIAN, NEW)
       ODD = ! ODD
       SORTED_END++
   } WHILE(  SORTED_END != END )
   INSERT(BEG, END, NEW, MED, ODD) {
       MED = SZ/2 - (SZ_ODD ? 0 : 1)
   
       1, 2, 3, 5, 6     (4)
             < ?
       RIGHT OR LEFT
   /*my playground
   vector test = { 12, 4, 5, 3, 8, 7, 5, 5 };
   for (size_t new_element = 1; new_element < test.size(); ++new_element)
   	insert_new_element(test, new_element);
   return 0;*/

I still wasn't thinking about the sort algorithm until I began to try and fail several times, but this try/error bitch always taught me how to make things faster then embryological bullshit to born from scribbed windows. It only requested a debugger to make the edit, compile, debug triple step.

I was still trying in the window, thought, until in one of these iteractions with the compiler/debugger I achieved a simples, clearer solution, using only offsets from the vector instead of iterators.

   void insert_new_element(vector& a, size_t new_element)
   {
   	size_t begin = 0;
   	size_t end = new_element;
   	size_t sz = end - begin;
       size_t median= begin + sz / 2 - (sz % 2 ? 0 : 1);
   
       while( sz > 1 ) 
       {
           if( a[new_element] < a[median] ) 
   			end = median;
           else
   			begin = median + 1;
   		sz = end - begin;
   		median = median == begin? begin : begin + sz / 2 - (sz % 2 ? 0 : 1);
       }
   
   	size_t insert_offset = a[new_element] < a[median] ? median : median + 1;
   	int element = a[new_element];
   	a.erase(a.begin() + new_element);
   	a.insert(a.begin() + insert_offset, element);
   }

This version almost done it, except for timeout error. Hacker Hank has a timeout of 2 seconds to C++ solutions and I was exceding it. After some thought (more try/error) I thought about change the container, but before I made a simples test: instead of using erase/insert methods make the things manually as in good old C.

   void insert_new_element(vector& a, size_t new_element)
   {
       //...
   
   	size_t insert_offset = a[new_element] < a[median] ? median : median + 1;
   	int element = a[new_element];
       //a.erase(a.begin() + new_element);
       //a.insert(a.begin() + insert_offset, element);
   	memmove(&a[insert_offset + 1], &a[insert_offset], (new_element - insert_offset) * sizeof(int));
   	a[insert_offset] = element;
   }

And it worked. Now what I learned looking the other solutions.

There are incredible tools in C++, even since 98 or 11, that are frequently overlooked, but it is important to notice that the language has a framework for processing: containers, algorithms and so on. By example, looking for other solutions I learned about the characteristics of multiset and priorityqueue (spoiler: both have a ordering predicate and are logarithmic). There are smart functions in algorithm, too, as lowerbound.

A lot of solutions simply ignored the skeleton provided by the site and began its own code from scratch, eliminating the "request" that the numbers must be stored first in a vector. Sometimes, when there as skeleton in our life, we use them as guidelines, forgetting that "there is no spoon".

I hope you learned something, too. You can see my Hacker Rank attempts in the site (nickname caloni) or my GitHub repository.


# Brinquedo Assassino [link]

2019-08-10 tag_cinemaqui tag_movies ^

Brinquedo Assassino é, acredito, o que os fãs no fundo sempre desejaram: serem surpreendidos por quão ruim este filme pode continuar sendo. Até porque o original nunca foi considerado exatamente um clássico. Usando um boneco medonho e sustos infantis para mostrar sangue sendo jorrado, "Chucky" e suas continuações sempre foram uma brincadeira de mal gosto que referencia outros trabalhos de terror (estes, sim, clássicos). Seu novo filme homenageia este legado que fritou o cérebro de muitos jovens grudados na TV de tubo da sala, o único recurso de entretenimento solitário e sedentário da época. Bons tempos.

Embora hoje o entretenimento da garotada seja o celular isto logo vai mudar com o surgimento de Buddi, o boneco mais medonho que um designer de brinquedos já sonhou em criar. Buddi tem sua cara toda... como vou dizer isso sem ser censurado? Melecada. Seus olhos são duas enormes câmeras brilhantes que só passam despercebidas se você olhar apenas para sua cara de derrame. Os seus cabelos ruivos são tão medonhos que você até se esquece de notar o macacão ridículo. Que criança gostaria dessa assombração como seu amigo?

Aparentemente crianças muito carentes. Como Andy, que vive com sua mãe, que vive trazendo os caras errados para sua casa. Ela trabalha em uma loja de departamentos que vende o tal boneco e consegue descolar um deles como presente de aniversário para seu filho, em mais uma demonstração de como ela é uma péssima mãe. Aubrey Plaza está no papel, acredito eu, por Vida Após Beth, onde ele faz um zumbi, e por ela estar na mesma categoria da nova Tia May do Homem-Aranha: a mãe/tia com quem seus amigos gostariam de ficar.

Buddi é um boneco high-tech com inteligência artificial, capaz de se conectar com todos os dispositivos feitos pela mesma grande e maligna corporação Kaslam, que explora trabalhadores do Vietnã para fazer seus produtos (exploraria da China, mas agora os trabalhadores de lá ganham muito mais). Entre seus funcionários um deles é demitido e se vinga no boneco que estava consertando, retirando todas as travas: agora ele pode falar palavrão, esfaquear pessoas. Provavelmente até dançar lambada.

Agora é esta versão dos infernos de Buddi que está na casa de Andy. Ele se autodenomina Chucky e está pronto para tocar o terror, certo? Na verdade, não. Uma das duas grandes sacadas deste filme, sendo a primeira escalar Mark Hamill para a voz de Chucky, é fazer o boneco primeiro se tornar uma criatura do mal conforme ele aprende através do comportamento humano. Ele quer que Andy sempre se divirta, o que quer dizer estar sempre sorrindo e rindo. Ele vê seus amigos se divertindo ao assistir O Massacre da Serra Elétrica e conclui muito sabiamente que se ele sair por aí retalhando as pessoas Andy vai cair na gargalhada.

Nós sabemos por experiências passadas que a IA, quando exposta a humanos, principalmente na internet, ela se torna um "ser" altamente preconceituoso. O exemplo mais icônico é o de Tay, uma IA desenvolvida pela Microsoft para interagir com adolescentes nas redes sociais e que em menos de um dia começa a reproduzir pensamentos nazistas. Portanto, o roteiro de Tyler Burton acerta em seu início ao tentar escalar esse aprendizado quando a IA que aprende possui capacidades físicas que a permite se tornar agressiva, também.

No entanto, o show de horrores precisa continuar, e Brinquedo Assassino descarta todas suas ideias minimamente interessantes (exceto a voz de Mark Hamill) e parte para a carnificina que todos esperavam ver. E há muito sangue, gore e violência sem propósito. Não há discriminação: personagens bons e maus, não importa. Todos vão morrer da maneira mais calamitosa possível.

Este não é daqueles filmes que já começa "errado" e apenas desenvolve sua ideia, como, por exemplo, Matadores de Vampiras Lésbicas. Se fosse o caso ele seria ruim e divertido. Este é um filme reconstruído para os novos tempos, que começa interessante, coeso, e parte para o gênero slasher de onde veio apenas porque isso é o esperado por sua legião de fãs. Isso torna ele um filme apenas ruim. OK, se você for fã e não estiver pensando muito, pode se divertir, também.

Por outro lado, é possível captar uma fina ironia em seu terceiro ato. Olhe a alegoria: é lançamento de um novo boneco Buddi. Pessoas se aglomeram na entrada da loja para a inauguração, e quando a loja abre elas se atropelam no meio do caminho. São pessoas ensandecidas, adultos e crianças, agitadas porque há um novo brinquedo em que elas podem depositar todas suas carências afetivas, não importando se ele é medonho pra cacete. Isso no fundo diz um pouquinho sobre nossa sociedade adoecida pelo consumismo (troque Chucky por um novo iPhone) e pelo hype da mesmice (os próprios fãs do Chucky dos anos 80). Eu não vejo diferença. E nem Chucky: ele mata todos sem distinção alguma. Meu herói.


# Exterminadores do Além Contra a Loira Do Banheiro [link]

2019-08-10 tag_movies ^

Nós saímos dos anos 80, mas os anos 80 não saíram de nós. Esta é uma comédia onde crianças levam tabefes e palavrões de baixo calão. Onde uma professora caminha com uma camisinha presa em sua testa. Onde cocôs e fetos tomam vida. E onde Danilo Gentili quase não atrapalha o andamento do filme.

Este não é um filme com atores de verdade, mas com comediantes. Nota-se o amadorismo completo do começo ao fim, com falas ridículas e nenhum senso de ritmo. Porém, eles estão se divertindo. O que é bom. Se eles se divertem, eu me divirto, certo?

Nesse caso, sim. Escrito e dirigido sem o menor pudor (e não sei como isso foi aprovado pelos nossos mecanismos de censura), Exterminadores do Além Contra a Loira do Banheiro já nos ganha em seu título, que de tão ruim não pode piorar. E é verdade. Ele mantém sua ruindade intacta do começo ao fim, para alegria dos espectadores de trash.

Seu único defeito é tentar ser um filme de verdade, com alguma estrutura, quando o que eles querem, e nós sabemos, é usar e abusar dessas trucagens de filmes gore da atualidade dentro do palco perfeito: uma escola tradicional de Santo André (cidade-natal do comediante Danilo Gentili).


# Loucademia de Polícia [link]

2019-08-10 tag_movies ^

Quem não se lembra dessa série de filmes que passava na Sessão da Tarde ad infinitum? Mahoney, Tackleberry, e tantos outros. As piadas certeiras. O Blue Oyster. E o melhor momento do original, quando o Comandante Lassard acredita que Carey Mahoney lhe pagou sexo oral. Ele vai furioso procurá-lo e diz ao Tenente Harris que ele fez algo muito ruim, no que o tenente pergunta a quem ele fez algo ruim e a cara do Comandante Lassard dizendo "eu não sei" é a melhor declaração pró-amor livre que você vai ver em um filme nos anos 80.

Hoje este é um filme quase datado, mas que pode ser assistido com um pouco de nostalgia e pipoca sem problemas. É um filme leve, nível do programa Os Trapalhões, e não tem muitas ambições narrativas exceto repetir os mesmos estereótipos da décadas: o safo que irá se dar bem e aprender uma importante lição (Mahoney), a linda garota com quem ele vai ficar (Thompson), seus amigos esquisitos de bom coração (Jamanta, Barbara, George Martin) e os que querem estragar tudo e sempre se dão mal (Tenente Harris e patota).


# From Beijing with Love [link]

2019-08-12 tag_movies ^

Stephen Chow é o ator e diretor de trabalhos como Kung-Fu Futebol Clube e Kung Fusão. Nesta paródia de James Bond, em que ele faz um trocadilho do título original de Moscou Contra 007 (From Russia with Love), é possível identificar vários elementos trazidos dessa união do país do kung-fu com brincadeiras estilo Austin Powers (Mike Myers, 1997). Porém, mais do que isso, o grande legado deste filme é um gif animado em que uma mulher tenta usar uma arma e atira em si mesma duas vezes. Está pronto o meme de como é usar o código-fonte do colega.

Fora isso, o filme é um trabalho inacabado. Há a busca por alguém que roubou o crânio de um dinossauro descoberto na China, mas nunca fica claro quais os motivos desse roubo nem porque Ling Ling Chai (Chow), um ex-agente que se aposentou e agora é cortador de carne de porco, é contratado para resolver o caso. Há alguns double crossing na personagem de Anita Yuen, filha de uma cantora e espiã, e o único traço de humanidade na história é sua dúvida se deveria acabar com a vida do único homem que aparentemente lhe deu atenção nesta vida.

Se não ficou claro até agora, From Beijing with Love é um filme muito ruim. Ele tenta se aproveitar do mundo de invenções esquisitas dos agentes secretos e da reviravolta de que no final das contas Ling Ling Chai é um agente gabaritado, mesmo que use uma machadinha de cortar carne de porco como arma. Porém, se olharmos além de tudo isso, não resta nada. São cenas jogadas uma a uma para atingir a sensação de estar em um filme de espiões sem a necessidade de existir uma trama.


# Filhas do Sol [link]

2019-08-13 tag_cinemaqui tag_movies ^

O objetivo de Filhas do Sol é ser algo grandioso e poético como os filmes do Terrence Malick (Árvore da Vida, você conhece o sujeito), ou a adaptação de um romance épico, que exalte as verdadeiras heroínas que essas mulheres são, arriscando suas próprias vidas em uma guerra. Que mártires.

O primeiro grande problema para nós comprarmos essa ideia é que homens, mulheres e crianças morrem em uma guerra contra civis, mas é impossível comparar a quantidade de cada um dos grupos. Isso porque homens morrem absurdamente mais, por motivos óbvios, pois são obrigados moralmente e legalmente a se alistarem e lutarem na frente armada. Isso já é um fato documentado depois de muitas e muitas guerras travadas pela humanidade. O Oriente Médio não é exceção.

O segundo grande problema é que temas grandiosos pedem histórias grandiosas, e uma história chega nesse patamar graças ao seu protagonista, o que ele viveu, o que ele fez e o que precisa fazer. As mulheres da pequena guerrilha deste filme são vítimas das circunstâncias. A líder é uma mulher ex-classe média que teve os homens de sua família executados no muro da frente de sua casa, só que eles aparecem por tão pouco tempo que você nem ligaria se no lugar de levar bala eles fossem queimados, por exemplo.

A líder é a nossa protagonista. Seu nome é Bahar, interpretada por Golshifteh Farahani com um eterno olhar de dor. Já disse que ela perdeu seu marido, mas também perdeu contato com seu filho, que ficou em uma escola de uma cidade controlada pelo Isis. Ela sabe que seu filho está sendo treinado para ser uma máquina de guerra, e por isso planeja resgatá-lo custe o que custar. Nem que tenha que sacrificar todo seu pelotão.

Teoricamente e ironicamente nossos olhos nessa história é uma fotógrafa da imprensa, Mathilde, uma mulher que teve o namorado "explodido" e seu olho esquerdo perfurado por uma granada, situação que ela contorna com um tapa-olho, que acrescenta à poesia do momento. Ela tem uma filha, mas ela está em segurança, e o que a move é mostrar a verdade através de suas fotos. É mais uma vez pouco para nos envolvermos, e ela sabe disso. "As pessoas fazem de tudo para ignorar a verdade.", diz ela. Mathilde não poderia estar mais próxima da verdade.

A história de fundo dessas mulheres começa a cair em um padrão que as generaliza, e portanto as desvaloriza como seres humanos. Seria importantíssimo que nos primeiros quinze minutos estivéssemos prontos para invadir o front inimigo junto com elas, mas isso não acontece em nenhum momento do longa. Esperamos, sim, que tudo dê certo. Mas não conte conosco, pois essa missão é suicida.

Nenhuma dessas histórias é grandiosa como o filme é ou pretende ser, com tomadas cinematográficas belíssimas, fotografadas com o melhor filtro, o filtro triste, com tons frios em uma terra quente, e uma música que evoca através de seus acordes tortos a eterna dissonância e insanidade dos tempos de guerra. A fotografia nos mostra um horizonte apocalíptico, e no momento da ação nuvens de fumaça negra e cinza não se misturam: se colaboram. Para a foto ficar bonita.

Há "ótimas" sequências em Filhas do Sol, como a passagem pelos túneis que podem estar infestados de minas enterradas, ou uma sequência de fuga de um cativeiro de mulheres que poderia render muita tensão, mas este nunca vira um filme tenso porque não há preocupação com as pessoas que vemos, e nunca um filme de guerra porque já conhecemos essas cenas de outros filmes melhores. O conflito armado é cru, sem motivo, sem paixão. O resultado são cenas corretas em meio a uma narrativa que nunca nos empolga ou nos conquista.

Este é um filme que procura por uma mártir e que fará de tudo para que ela permaneça assim, mas até heróis (ou principalmente heróis) precisam passar por alguma provação para entendermos seu valor. Aqui não há testes de coragem, pois estas mulheres já estão mortas. Morreriam em paz em combate se assim fosse necessário. Então o que vale seguir em frente?

É comum quem vê muito filmes encontrar algumas atuações ruins por causa da afetação que os atores empregam. As atuações desse filme não conseguem se afetar com nada. Quero dizer verdadeiramente se afetar. Vemos rostos de susto, de tristeza, de solidão e desesperança, mas todas essas expressões nos lembram ser de um filme, pois é isso o que se espera nos filmes. Mas com isso esquecemos dos personagens como pessoas de carne e osso, que se assustam de verdade, entristecem de verdade. Perdem as esperanças de verdade.

Muito se tem falado ultimamente sobre o abuso de alguns cineastas que torturam o psicológico dos seus atores para que tenham um resultado em frente às câmeras mais realista. Este é um assunto polêmico porque o problema é que realmente alguns resultados são notáveis, embora o elenco saia do projeto traumatizado. Me pergunto se o cinema não voltará mais a ter esses momentos, agora que está crescendo uma consciência contra esses abusos. Este filme parece ser um exemplo de ambiente salutar para se fazer filmes. Pena que quando vemos filmes de guerra pedimos pela insanidade temporária de seus astros.

Torço para que a diretora Eva Husson não esteja se fazendo de desentendida e aplicada a direção a la Tom Hooper (O Discurso do Rei), com cortes bruscos, movimentos de câmera involuntários e um imenso vazio temático no ar. Pior do que fazer isso com filmes engraçadinhos como sobre um rei gago é aplicar a mesma fórmula em filmes que retratam a crueldade humana em lentes de alta definição. Existe um pacto não-dito entre cineastas e espectadores, ou pelo menos eu gostaria que houvesse, de que na guerra vista pelo cinema a beleza só deve existir para exaltar a dor de seus participantes ou a esperança de que um dia isso acabe. E eu não vejo nenhum dos dois em Filhas do Sol.


# Hannah e Suas Irmãs [link]

2019-08-14 tag_movies ^

Terminar um filme do Woody Allen como Hannah e Suas Irmãs é voltar a ter esperança na humanidade. Não que o filme tenha essa mensagem, mas é que seu diretor e roteirista demonstra um conhecimento tão absurdo da alma humana que é como se você não estivesse mais sozinho no mundo. Como se alguém finalmente desse o sinal de vida: "Eu existo. E eu sei como tudo isso é tão sem sentido."

A história é mais uma de traição em família, mas dessa vez com mais personagens e uma complexidade que sempre nos mantém entretidos em observar como essas bolas conseguem ficar no ar por tanto tempo e pousarem nas mãos do roteirista de maneira tão graciosa no momento certo.

Como o título já sugere, esta é a história que fala sobre Hannah e suas três irmãs, todas bem diferentes entre si e ainda assim com uma espécie de conexão de quem sabe que são irmãs. Seus pais eram lindos, do show business e hoje se limitam a gritar um com o outro e realizarem um show privado com toda família no dia de Ação de Graças em frente ao piano. Você de imediato acredita que esta é uma família upper side de Nova York e eu acredito que eles moram lá mesmo.

O marido de Hannah tem uma queda pela cunhada, Lee, que vive com seu ex-professor da faculdade, que quando começa a falar sobre o declínio da sociedade contemporânea fica claro como ambos estão dessincronizados da vida. Já Elliot, marido de Hannah, é um mero estopim de um acontecimento que você percebe as consequências conforme o estado de humor de Elliot se altera, mas é mais marcante observar se Hannah irá descobrir o acontecido, ou se isso importa em primeiro lugar.

Ouvimos os pensamentos de alguns personagens desta história por algum tempo no início dos curtos capítulos que demarcam a passagem do tempo com um título que está contido em uma fala e com acontecimentos que justificam esta pausa na passagem do tempo. Esse traço charmoso do filme faz com que entendamos como cada ser humano é egoísta à sua própria maneira, internamente, como lamentando por um arquiteto bonitão ter escolhido sua irmã em vez de você, e ao mesmo tempo delineia com perspicácia essa fina divisão entre o público e o privado de nossos egos (afinal, são irmãs, e uma deveria querer o bem da outra).

Allen também participa como o ex de Hannah, que tem uma crise existencial porque possui uma deficiência no ouvido que vai pesquisar com os médicos e começa a ficar paranóico conforme os testes começam a sugerir que algo pior pode estar acontecendo com ele. É um episódio à parte do resto da história, mas, acredite, ele não atrapalha, tem ótimos momentos, corta bem a tensão do filme e ainda se encaixa na história, pois há um momento que ele e outra irmã de Hannah, Holly, saem no pior encontro de todos (uma noite que você vai querer acompanhar).

Este roteiro é da época áurea de Allen e ele dá o devido respeito ao seu material nos brindando com uma direção coesa, que não tem medo de filmar da maneira que melhor enfoque os dramas privados dessa família: caminhando com eles pelas paredes de casa, como se estivesse testemunhando um momento muito íntimo da vida deles, o que torna o momento mais importante ainda. É mais drama e menos comédia, então a câmera está mais próxima de seus personagens, quer entendê-los, mas percebe que essa tarefa pode ser a mais impossível de todas.

A trilha sonora, como sempre, mas aqui mais do que nunca, talvez, é inspiradora, nos faz sentir bem onde estamos sentados, relaxados, prontos para acompanhar cada uma das questões que se abrem conforme a traição dá sequência, ou o conflito eterno entre uma irmã que não sabe o que quer da vida e Hannah que sempre a suporta. O que quero dizer é que a música faz o papel dessa imersão na história do universo do cineasta tão bem que é como se ele próprio estivesse nos convidando para adentrarmos em seu palácio mental, e pra isso coloca uma música de sua autoria (não é, claro).

Mas voltando a ter esperança na humanidade. Hoje em dia existem milhares de séries dramáticas em que pessoas assistem dezenas de horas em frente à TV ou seus celulares para acompanhar as migalhas que os roteiristas entregam de cada unidimensional personagem criado como uma muleta afetiva que todos precisamos. Que miséria frente a um roteirista como Allen, que planeja e executa um drama existencial multifacetado com diferentes personagens e ambições e entrega com uma trilha sonora charmosa em menos de duas horas. E você está livre para fazer o que quiser de sua vida depois disso. Praticar o budismo, ou trair sua esposa, por exemplo.


# On Writing, por Stephen King

2019-08-16 tag_books tag_self ^

Eu lembro que em algum momento entre ler On Writing Well, um livro de William Zinsser sobre melhorar a escrita, e estar escrevendo meus reviews diários sobre filmes comecei a ficar bem insatisfeito com a qualidade dos meus trabalhos. Isso não é novidade para mim, o eterno insatisfeito, e não me surpreendi quando me vi novamente buscando literatura para me aprimorar. Afinal de contas, quando não se está praticando é a hora de afiar seus instrumentos, e esse momento para um escritor não é quando se está escrevendo, mas lendo.

Com isso me deparei com o que acreditava ser inevitável cedo ou tarde: "On Writing", de Stephen King. Ele já era um livro bem citado nas rodinhas do Hacker News para ser ignorado, mesmo que por um autor de não-ficção como eu. Como a insatisfação com a qualidade dos meus textos aumentou e eu estava sem nada mais importante para ler, este foi o primeiro livro que leio na vida desse autor, uma declaração provavelmente condenável se lida por algum fã.

> And when I lay in bed at night under my eave, listening to the wind in the trees or the rats in the attic, it was not Debbie Reynolds as Tammy or Sandra Dee as Gidget that I dreamed of, but Yvette Vickers from Attack of the Giant Leeches or Luana Anders from Dementia 13. Never mind sweet; never mind uplifting; never mind Snow White and the Seven Goddam Dwarfs. At thirteen I wanted monsters that ate whole cities, radioactive corpses that came out of the ocean and ate surfers, and girls in black bras who looked like trailer trash.

Eu entendo meus receios em ler dicas de um autor de ficção, mas entendo também porque este livro é tão citado, e darei um exemplo de por que ele acaba sendo valioso mesmo para autores de não-ficção. No seu início Stephen começa a contar a história de sua vida como escritor. Ou seja, ele começa escrevendo ficção. É broxante e ao mesmo tempo extasiante, pois no começo ser imerso na vida de uma pessoa que não tinha certeza se viveria de palavras para alguns capítulos depois estar torcendo pelo sucesso de Carrie, A Estranha, não tem preço. No final das contas, mesmo que eu quisesse dedicar meu tempo com mais dicas de escrita, não sinto ter perdido tempo por torcer por Carrie: foi uma passagem de experiência de vida valiosíssima de um ex-membro da classe média baixa norte-americana e a busca do seus sonhos para um aspirante a escritor, tentando ser melhor a cada dia com o que tem.

> I have spent a good many years since—too many, I think—being ashamed about what I write. I think I was forty before I realized that almost every writer of fiction and poetry who has ever published a line has been accused by someone of wasting his or her God-given talent. If you write (or paint or dance or sculpt or sing, I suppose), someone will try to make you feel lousy about it, that's all.

Mas, experiências à parte, o que eu queria mesmo eram dicas. E elas começam no núcleo do livro, entitulado "On Writing", que é onde a coisa começa de verdade. Antes disso, na parte biográfica, o único destaque não-ficcional foi do seu primeiro editor, da época que ele escrevia artigos para um jornal esportivo. Ele disse ao então garoto Stephen King: escreve com a porta fechada; reescreva com a porta aberta. E essa dica é de ouro. Vamos colocar em destaque para pensar a respeito:

> "When you write a story, you're telling yourself the story," he said. "When you rewrite, your main job is taking out all the things that are not the story."

Em "On Writing" há bons momentos que não deixam de ser a experiência de um escritor que lê muito. Suas dicas saíram de outras fontes sobre como escrever, como George Orwell e aquele livro sobre estilo escrito no começo do século passado (The Elements of Style, de William Strunk Jr.). Por exemplo, o famigerado e sempre dito não use advérbios, ou o já batido use sempre a voz ativa ou evite voz passiva como o diabo.

Mas, além disso, ainda há a experiência do próprio autor, escrevendo em seu escritório, dia após dia, várias horas ao dia. E suas leituras. E seus hábitos. E sua vida em família. Stephen King pode ser um ótimo autor de ficção, mas quando se trata de não-ficção, ele simplesmente não consegue se esquecer do hábito de transformar sua escrita em uma história.

> I'm going to tell you as much as I can about the job. As promised, it won't take long. It starts with this: put your desk in the corner, and every time you sit down there to write, remind yourself why it isn't in the middle of the room. Life isn't a support-system for art. It's the other way around.

>

> Remember that the basic rule of vocabulary is use the first word that comes to your mind, if it is appropriate and colorful.

>

> But you need the room, you need the door, and you need the determination to shut the door.

>

> Now comes the big question: What are you going to write about? And the equally big answer: Anything you damn well want. Anything at all... as long as you tell the truth.

>

> What you need to remember is that there's a difference between lecturing about what you know and using it to enrich the story. The latter is good. The former is not.

Do que eu me lembrarei por mais tempo do livro serão as dicas já repassadas várias vezes por vários autores -- não usar advérbios, não usar voz passiva, nutrir amor pelas palavras como quem cuida de um jardim -- e também a questão da postura diante das reescritas. Escritas são valiosas, mas a reescrita, começo a perceber cada vez mais, é mais valiosa ainda. Ninguém deveria ler uma escrita de um escritor. Não vale nada. Mas a reescrita é o trabalho duro que recompensa tirar essas palavrinhas mágicas de nossa cabeça.

> Honesty in storytelling makes up for a great many stylistic faults, as the work of wooden-prose writers like Theodore Dreiser and Ayn Rand shows, but lying is the great unrepairable fault. Liars prosper, no question about it, but only in the grand sweep of things, never down in the jungles of actual composition, where you must take your objective one bloody word at a time. If you begin to lie about what you know and feel while you're down there, everything falls down.

Além das dicas, é curioso notar a postura de Stephen King diante da verdade. A honestidade tem sido alvo de ataques mais ou menos constantes ao longo da história, e ironicamente vivemos mais um período de politicamente correto que visa higienizar novamente o dom da palavra. Tanto George Orwell em seu texto sobre política e King sobre os palavrões possuem a mesma forte opinião: se prepare para defender seu direito de dizer que deve ser dito, custe o que custar.

> If you substitute "Oh sugar!" for "Oh shit!" because you're thinking about the Legion of Decency, you are breaking the unspoken contract that exists between writer and reader -- your promise to express the truth of how people act and talk through the medium of a made-up story.

>

> The point is to let each character speak freely, without regard to what the Legion of Decency or the Christian Ladies' Reading Circle may approve of. To do otherwise would be cowardly as well as dishonest, and believe me, writing fiction in America as we enter the twenty-first century is no job for intellectual cowards. There are lots of would-be censors out there, and although they may have different agendas, they all want basically the same thing: for you to see the world they see... or to at least shut up about what you do see that's different. They are agents of the status quo. Not necessarily bad guys, but dangerous guys if you happen to believe in intellectual freedom.

A parte mais difícil de On Writing é unir começo e fim, os dois extremos de uma viagem não-ficcional através do poder da magia da escrita. No começo, somos apresentados a um conceito fascinante que reverbera por todo o livro porque percebemos que é isso realmente que King acredita, do fundo do seu coração, e logo antes do final entendemos que esse conceito se une a outro mais prático e muito mais falado na rodinha de escritores, tornando-se, então, um mecanismo pragmático, e uma história circular.

A telepatia sobre a qual Stephen discorre se refere ao poder de nossos textos, que quando lidos pelo eventual leitor, separado no tempo e espaço, décadas depois de termos escrito, talvez, mas que graças ao poder de um livro/texto impresso/digital consegue ser tocado por essa ideia, essa impressão, esse pensamento, raciocínio, visão e várias sensações transmitidas unicamente pelo dom da palavra. O leitor traduz dentro de seu próprio campo de visão, experiência de vida, jardim das palavras, o que seja, o que está lendo de um escritor que possuiu um outro campo, outra experiência e outro jardim em um outro momento no espaço-tempo. E, contrariando todas as expectativas de quem viveu antes de Gutenberg, ambos dialogam.

Já na outra ponta desse extremo, no finalzinho do livro, essa viagem poética, vem o outro conceito; o conceito pragmático: simbolismo. O por trás do que é dito. Em outras palavras: todo texto precisa ser sobre alguma coisa (mais um trecho para destacar e lembrar). E, tendo algo a dizer, a viagem da leitura telepática não terá sido uma mera viagem inconsequente. Pode ser "uma jornada mágica pela Terra Média", mas no final das contas é sobre lealdade, sobre coragem, sobre amizade. Sobre fazer o certo não porque é o esperado, mas porque é o certo. De certa forma, escrever segue o mesmo princípio. Escrevemos a verdade, seja ela qual for, para que o leitor a decodifique em seu próprio sistema de valores, através dessa "telepatia", a mágica por trás das palavras, que permite que ele possa contrair os símbolos que injetamos em nossas palavras; os nossos valores. Que conceito.

Deixarei a última palavra com meu, agora estimado, Stephen King.

> Not every book has to be loaded with symbolism, irony, or musical language (they call it prose for a reason, y'know), but it seems to me that every book—at least every one worth reading—is about something. Your job during or just after the first draft is to decide what something or somethings yours is about. Your job in the second draft— one of them, anyway—is to make that something even more clear.

>

> But once your basic story is on paper, you need to think about what it means and enrich your following drafts with your conclusions. To do less is to rob your work (and eventually your readers) of the vision that makes each tale you write uniquely your own.


# Restaurante Jojo Ramen

2019-08-17 tag_food ^

Localizado fora do circuito dos lámens, o Jojo tem tudo o que um millenial precisa para ser feliz: lámen (que tá na moda), fila (que nunca sai de moda) e pessoas comentando o tempo todo, no melhor/pior estilo de paulista, em como é bom esse lugar.

Só não tem comida boa, mas quem é que está interessado nesse detalhe?

Já havia ido alguma vez em um passado distante no Jojo, onde notei que o miojo que eles vendem tem gosto de miojo com sal que você compra no Carrefour Express por 2,99 taoqueis, e por isso havia decidido que já era hora de parar de fazer papel de trouxa. Mas os amigos chamaram, e havia na conversa o miojo de porco, o tonkotsu, que eu tanto gosto do Ikkousha Rámen (esse, sim, na Liberdade, com preço justo e com caldo de porco de verdade; o verdadeiro caldo de mocotó japonês). Com esse diferencial em mãos, pensei: por que não tentar uma segunda vez? Meu papel de trouxa está novinho, e é só cinquenta taoqueis por um miojo e boa companhia.

Indo lá, reserva de mesa para sete, chegamos os seis, faltando apenas um, mas eles não deixam entrar. É um lugar relativamente pequeno para tanto hipster, e eles precisam garantir a qualidade de seus pontos de humilhação nas redes sociais para que ele continue sendo bem falado (esses paulistas...). Enfim, esperamos meia-hora em uma noite de quinta-feira (cerca de 19 horas) até chegar o sétimo membro do grupo, e eles reservam para nós duas mesas: uma com cinco lugares (um senta na ponta) e a segunda para duas pessoas, "logo do ladinho", atravessando o corredor cheio de atendentes correndo de um lado para outro. Porém, devido à fome geral e o horário tarde para uma quinta-feira, lá fomos nós.

Em nenhum lugar se diz, mas espera-se que você peça logo, coma logo, pague logo. Eles querem faturar, não apenas lotar as redes sociais com likes e reviews com fotos porque este lugar tem uma privada no banheiro super-descolada. Já sabíamos o que seria pedido: o tal tonkotsu. De entrada uns frango karaague.

O karaguê chegou primeiro naquele estilo de frangos alienígenas bombadões levantadores de barra e frequentadores assíduos de crossfit: super gordões. Fizeram o treinamento do KFC, certeza. Já o tempero, vem parecendo jogado em cima, uma química que lembra aquelas comidas do Mc Donald's. Se vendessem no restaurante com o M na frente, aliás, já teriam um nome mais chamativo: Mc Karaguê. Seco e temperado na medida para quem não presta atenção no sabor autêntico de maturação em gengibre e shoyo que um verdadeiro karaguê deveria ter.

Próximo prato: tonkotsu, ou miojo de massa feita na hora com caldo de porco, em qualquer variação possível disso. Ele chegou rápido, sendo servido às pressas (como tudo que é feito lá). Em um prato um macarrão frio com um pedaço de limão, em uma cumbuca um monte de bacon flutuando em um molho que parecia um vinagrete bem salgado com cebolinha flutuando (sempre a cebolinha), muita gordura e eu comentei já com muito sal? A pegada do lugar é o seguinte: molha o macarrão na cumbuca e coloque na boca, se preferir colocando um pouco de limão para soltar a massa antes de assim proceder. É um prato de verão, mas estávamos no friozinho do inverno.

Eu comi das diferentes formas que se pode comer este prato: joguei o caldo por cima do macarrão do prato, joguei o macarrão dentro da cumbuca de mar salgado, agarrei um pedaço super-salgado de bacon com um monte de macarrão. Nenhum deles funcionou muito bem, pois o sal usado nessa mistura me lembrará para sempre de quão desagradável é comprar bacon mal curado em mercadinho, daqueles que tem um pouco de gordura além do aceitável e com tantos condimentos usados no maldito porco que a quantidade de sal é explosiva. Eu poderia jurar que o glutamato monossódico estava comendo solto no meu estômago.

Eu posso dizer agora que já tenho mais experiência em Jojo Rámen. Posso dizer que é muito interessante o conceito de Mc Donald's que cobra o olho da cara para que se forme a fila de hipsters na frente e que se trate com pressa seu cliente. Mas, tirando as pequenas reclamações que fiz neste post, acho importante frisar que a comida não precisa ser boa para refeições com bons amigos. Isso é detalhe, mesmo, se for pensar no que ganha pelo social. Mas se gosta de um bom prato, essa é a única diversão que não terá no Jojo Rámen. Se preferir, na volta para casa passe no Express e pega aquele miojo de frango "caipira". Pelo menos é barato.


# Pingue-Pongue da Mongólia [link]

2019-08-17 tag_movies ^

Não me lembro se já havia assistido a esse filme. São tantos trabalhos semelhantes que se passam em regiões distantes do planeta e que costumam passar na Rua Augusta, em São Paulo, e eu assistia tantos com minha esposa naquela região que, sinceramente, se eu já passei por esse filme, tive as mesmas sensações que tive hoje: um frescor de vida.

Esse frescor vem daquela sensação de jovem de estar ainda descobrindo o mundo, de quando qualquer coisa que surge fora da nossa pequena e limitada zona de conforto se torna algo grandioso e mágico.

Grandioso e mágico no filme se torna uma bola de pingue-pongue, trazida pelo rio até do lado da casa de uma família de nômades mongóis, uma criança a guarda como um amuleto, como uma "pérola dourada" que só brilha "de verdade" quando iluminada por uma lanterna, um dos vários apetrechos ocidentais obtidos pela família na base de troca com os comerciantes de passagem, como um conjunto completo de um "chá americano chamado de café".

O filme de Hao Ning navega por essas percepções de encontro entre dois mundos. O comerciante traz uma revista americana e é chamada de "livro estranho". Nele está a foto de uma planície muito semelhante onde moram escrito "a vida perfeita". O chefe de família quer construir o moinho redondo que também está na foto, pois se trata de uma planície de algum país nórdico. A dificuldade em transpor um estilo de vida de outra parte do planeta para as tradições mongóis é o que torna esta história uma comédia.

Mas Hao Ning se perde facilmente em sua fascinação pelo mundo infantil de descobertas, perdendo muito tempo em mostrar a briga de diferentes "gangues" de crianças, que se dividem por idade, além das brincadeiras sem brinquedo, mas com binóculos e motocicleta, que elas inventam no seu dia-a-dia.

O resultado acaba se tornando um misto entre lúdico e quase uma análise humana das diferenças culturais. É engraçado acompanhar as percepções das crianças e de sua busca por compreender o que de fato aquela bola de pingue-pongue é. A membra mais antiga da família, a avó, diz ser um tesouro deixado pelos espíritos no rio, mas isso não convence mais essa geração, que recebe conhecimento novo de outras partes do mundo.

Este é um filme da diferença entre um mundo isolado no antigo império de Genghis Khan, que proliferou seus genes por aquelas bandas, e a comunicação com o mundo contemporâneo de hoje. Diz-se que o guerreiro possui até 16 milhões de descendentes homens hoje. Isso não adiantou hoje, pois a Mongólia é no máximo uma colônia da China, que é a nação para qual os filhos de Khan se viram no nascer do sol. Sobre o que é, então, esta história?

Há momentos belíssimos do horizonte daquela região do globo e um quase-documentário com aquelas crianças, que muito provavelmente não são atores de verdade. Entre comédia e documentário, eu diria que este é um filme misto, que nos apresenta uma das mais belas canções que você irá ouvir em um filme do gênero, no começo e no final. No meio, o silêncio das pradarias do entre Rússia e China.

Não me lembro se já vi esse filme, mas me lembro de muitos momentos dele, especialmente a última cena. Isso seria porque essas memórias vivem em nosso inconsciente coletivo ou porque esses filmes da Augusta, assim como os filmes de Hollywood, todos se parecem? Não me arrisco a dizer aqui. Apenas digo que este é um trabalho simpático, que entretém, e que facilmente se esquece.

Menos aquela música. Se você ouvi-la de novo com certeza se lembrará.


# A Cor do Paraíso [link]

2019-08-18 tag_movies ^

Mohammad é um menino cego que precisa frequentar uma escola para deficiente que fica no fim do mundo, na cidade de Teerã. Ou seria o fim do mundo onde ele mora? Contextualizado no Irã, esta fábula escrita e dirigida por Majid Majidi, assim como ele fez em Filhos do Paraíso aborda personagens limitados, pobres de espírito, mas não tendo escolha exceto tendo que viver como cada um de nós.

A direção de Majid Majidi me incomoda muito. Ele recorta suas cenas em quadros que querem dizer o óbvio muito cedo. Ele é exagerado por não ter confiança em seu elenco, e quando o pai de família escuta algo surpreendente de sua mãe a sua cara de espanto faz o filme virar comédia. E Majid está por trás de todo esse maniqueísmo.

Ainda assim, não há como não apreciar a poesia por trás de um garoto cego que aguarda por um pai que o rejeita, e que durante esse tempo salva um filhote de passarinho de um gato e o coloca em seu ninho, subindo em uma árvore mesmo sem enxergar. A alegoria é óbvia, mas aquece o coração mesmo assim.

As cores de A Cor do Paraíso são também alegóricas. Quando pai e filho chegam na aldeia onde moram, o verde do pasto e as diferentes cores das flores que dão origem à tintura das peças que manufaturam na vila dá todo o tom onírico que o filme quer passar. O pequeno Mohammad é puro, bondoso e doce. Ele quer ser justo em um mundo injusto, cercado de cores que ele não consegue ver.

A figura paterna é muito maltratada em A Cor do Paraíso. O pai de Mohammad é egoísta e covarde. Viúvo, se sente uma vítima das circunstâncias enquanto todos em volta tentam viver da melhor forma possível. Ele gostaria muito que Mohammad um dia desaparecesse ou sofresse um acidente e morresse. Vemos isso em seus olhos, mas o filme não nos faz pensar muito sobre essa simbologia. O espectador comum ficará apenas com raiva deste homem.

Mas por mais maniqueísta e óbvio que este filme seja, ele possui uma ponta de ingenuidade ou de abertura em seu núcleo que nos faz lembrar das histórias bíblicas, estas pequenas relíquias em formato de história, frutos de uma humanidade ainda muito simples, quase uma não-civilização, dividida em tribos e arquétipos bem conhecidos. Por se passar no Oriente Médio, você pode relacionar com o Alcorão ou algo do tipo. Tanto faz. No fundo é uma história atemporal acontecendo sem moral e sem mensagem, mas muito profunda.

Por falar em mensagem, Mohammad procura por um código divino o tempo todo. Pode estar escondido nas folhas que ele tateia, ou no barulho dos pica-paus. Pode estar simplesmente no vento. Ele está sempre prestando atenção. Ele também não entende por que é uma "vítima das circunstâncias". Tal pai, tal filho.

Quando começamos a entender um pouco mais da fábula ela termina. Eis a vida resumida em poucos minutos: bruta, violenta e sem sentido. Aproveite os raios de sol enquanto pode.


# Cria Corvos [link]

2019-08-19 tag_movies ^

Engraçado como a memória funciona. Organizada de maneira não-linear em nosso cérebro, perdendo algumas ligações aqui e ali, ganhando outras sem querer... no final das contas esse conjunto de quase-conhecimento sobre nós mesmos, sobre quem amamos ou a sociedade onde vivemos é tudo o que podemos chamar de "eu". A nossa identidade inteira, baseada em frágeis conexões elétricas bem atrás de nossos olhos.

Cria Corvos é um filme que brinca o tempo todo com a memória, com a vida e com a morte, como deveria ser todo filme que se passa durante um regime militar (no caso o espanhol). Acompanhamos Ana em suas incursões pela casa burguesa, de militar, onde mora. Conforme Ana anda pela casa surgem suas memórias de sua falecida mãe, misturadas com o presente acontecendo aqui e agora, com sua repugnante tia, que acabou cuidando de suas sobrinhas neste breve período.

Seguindo a tradição de Goddard, logo enxergamos a crítica à vida burguesa e todos seus elementos risíveis: a empregada e as regras de etiqueta, o não-fazer nada do resto da casa e os eventuais casos extra-conjugais para quebrar o tédio. Seria esse marasmo que faz a pequena Ana se lembrar de sua mãe? Tenho dúvidas se a vida com ela era minimamente diferente ou se ela apenas está idealizando algo que nunca teve. Essa memória e seus truques...

Esta também é uma história que mexe com a morte, e um possível assassinato, mas isso não importa muito. A primeira coisa que vemos é Ana testemunhar a amante do seu pai saindo do quarto onde ele agora repousa morto, sufocado. Ana adentra o quarto para fazer carinho no corpo do pai. O único momento que ela faz carinho no seu hamster de estimação é também quando ele repousa morto. Carinho é recurso escasso naquela família, deve ser usado com moderação.

Há outras irmãs, uma grande e uma pequena. Mas isso também pouco importa, são coadjuvantes de luxo que não podem sequer tocar e dançar uma música quando sua tia está por perto. A diversão é proibida ou mantida sob um controle tão mesquinho que perde a graça. A mesma coisa observamos durante as refeições e os momentos dos passeio no jardim, que mais se assemelha a um presídio.

Seguido da morte, segue-se também o luto. Mas até o luto não tem graça nesta vidinha. Lamentar pela morte de um pai ausente e mulherengo, que apenas alimentou a dor da vida de sua mãe ao "não permitir" que ela seguisse sua carreira de pianista não é exatamente um luto. A própria Ana, que vemos adulta, analisando sua infância como um testemunho, não parece ter certeza de suas memórias.

O diretor Carlos Saura (do excelente Argentina) está bem à vontade em filmar presente e flashback, tudo junto. Ele sequer divide os momentos que Ana vê sua mãe e logo depois encontra sua tia. Isso porque essa memórias, presente e passado, estão no mesmo lugar, nesta casa. O espectador entende de imediato. Não precisamos de mais explicações sobre espíritos e fantasmas, pois o tom da narrativa, sóbria, descarta possibilidades fantásticas.

Já a direção de arte, em plenos anos setenta, é ironicamente um frescor visual para os tempos atuais. Praticamente todos os cômodos da casa por onde Ana passa possuem traços riquíssimos de design. A geladeira velha, a mobília com madeira de lei, os brinquedos e quadros de personagens infantis. Tudo soa como um verdadeiro documentário explorado como uma viagem sensorial por esta fraca linha que une os momentos de nossa vida. São apenas férias escolares seguido de um luto, mas o filme transforma esse hiato em verdadeira poesia de uma vida e de uma sociedade.

Sobre o que se trata Cria Corvos, afinal? Esta é uma pergunta fácil e difícil. É fácil dizer que é um filme de momentos na vida de uma criança que revelam a síntese dessa vida de rico onde falta vida (pois "vida é sofrimento", como já diria Jordan Peterson), ao mesmo tempo analisando de maneira depressiva o papel da mulher, vista em três gerações e diferentes papéis. Já mais difícil é dizer que é um filme sobre as lembranças da morte. O cineasta deseja morrer, ele vive em uma ditadura, e por isso se torna uma constante para essas pessoas, assim como é o tema principal nas memórias de Ana. Mas sabemos como a memória pode ser um ambiente aberto a interpretações. Exatamente como acontece após uma ditadura. Enfim, só um pensamento que veio à memória.


# Restaurante Tenda Do Nilo

2019-08-19 tag_food ^

Um almoço com um amigo no meio de um bairro entre a estação Brigadeiro e Paraíso da Paulista. Um daqueles inúmeros restaurantes árabes da região com cara de boteco. Sentei para esperar meu amigo e já fui recebido com simpatia pelo dono do local. Me apresentou o cardápio e nele estava escrito bem na frente: "não servimos esfiha". De cara já gostei do lugar.

Eles também não aceitam bandeiras de crédito, e de débito apenas Visa. Portanto, vá preparado. Este é um lugar honesto, pequeno e agradável. Não é daquelas padocas que parecem sujas, é realmente agradável. Bem frequentado com lugares dentro e fora. Na hora do almoço pareceu relativamente fácil conseguir lugar.

O prato típico deles, sugestão do senhor que nos atendeu, é o Fatte (ou Fatteh), uma mistura de carne, pão sírio, grão de bico (haviam poucos, contudo) e coalhada (deliciosa, fresca). As comidas de lá são feitas para dividir. "Essa é a ideia", o senhor confirmou. Há molhos, falafel (que disseram que é muito bom também) e kibe frito, que experimentamos também com muita surpresa. Não é daqueles kibes pesados, é equilibrado com cebola e um sabor diferente.

Eis uma surpresa agradável de bairro sem referência alguma. Talvez eu volte um dia para provar o falafel...


# O Dorminhoco [link]

2019-08-20 tag_movies ^

Essa é uma das comédias pastelão dirigida por Woody Allen, como Tudo o Que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo e Tinha Medo de Perguntar e Um Assaltante Bem Trapalhão. Particularmente não sou muito fã dessa fase inicial do diretor, e nesse caso não é diferente. É uma comédia escrachada com ideias soltas e um roteiro que apenas nos leva em direção às piadas. Mas como isso é Woody Allen ainda resta uma certa textura no final das contas.

A história foi escrita junto com Marshall Brickman, que foi co-roteirista de Allen neste filme e, acreditem se quiser, em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa e Manhattan. Uma curiosidade inútil: Marshall, apesar de ser americano e com pais americanos, nasceu no Rio de Janeiro. Curioso porque as pessoas geralmente vêm para o Brazil fazer os filhos, não dar à luz a eles.

Esta é uma ficção de futuro distópico que mistura um pouco elementos de Admirável Mundo Novo com 1984, mas que está afim mesmo de brincar com esse futuro alternativo onde há uma máquina de orgasmo e uma pessoa (Allen) foi congelada por 200 anos depois de um problema de úlcera que foi longe demais.

Ele apresenta a estonteante Diane Keaton como Luna, seu par romântico. Juntos, assim como em Um Assaltante Bem Trapalhão, eles tentam sobreviver às loucuras desse tempo, onde o personagem de Allen é procurado por ser um ilegal em um governo ditatorial em que o ditador existe como uma figura estilo Grande Irmão, mas que próximo do final temos uma revelação que é típica do humor do cineasta.

Como filme a narrativa é muito pedestre, com efeitos sofríveis, mas há algumas boas tiradas mesmo assim, como uma espécie de bazuca dos militares que nunca funciona e uma mochila propulsora feita com uma hélice risível por cima. Allen aqui demonstra seu timing para comédia física, que não é exatamente incrível, mas ele demonstra tê-la, o que torna o diretor de Manhattan alguém bem mais versátil que poderíamos imaginar.

Feito para dar risada e fazer pensar muito pouco, O Dorminhoco não é o tipo de filme que eu gosto do diretor, e está longe de ser uma comédia à altura dos clássicos Top Secret ou Apertem os Cintos. É no máximo simpática. Esquecível, divertidinha e simpática. Se você já viu "Tudo Que Você Queria Saber Sobre Sexo...", já viu um Allen bem melhor.


# Restaurante Nara Lámen

2019-08-21 tag_food ^

Quando for pela primeira vez no Nara Lámen, peça apenas o Shyo Lámen Nara. Apenas isso. E aprecie sem pressa.

O caldo não é insosso: é com sutilezas. Beringela não é frescura: é toque autêntico ao prato. O ovo, pelas leis do governo, vem cozido: não culpe o estabelecimento por governantes retardados. O macarrão tem gosto fresco, com textura irregular caseira.

Seu preço é justo, seus atendentes são eficientes e simpáticos. Sempre é bom passar por lá de vez em quando. Nunca é viagem perdida.


# Era Uma Vez em... Hollywood [link]

2019-08-23 tag_movies ^

Os últimos filmes de Quentin Tarantino são ótimos, mas me incomodam por terem que ser filmes do Tarantino. Explico. Ele é um ótimo diretor e já trabalhou com roteiros muito mais coesos, como Kill Bill, ou transcendentais, como Pulp Fiction: Tempo de Violência. A vantagem desses dois filmes é que eles pedem sangue e momentos violentos, o que se encaixa certinho no esquema do diretor. Porém, "Era Uma Vez em... Hollywood" não precisa, e é aí que seu último trabalho, como filme, começa a colapsar.

Sou desde o começo alucinado com os trabalhos do diretor e sua história de vida, mas descobri ao longo dos filmes que não sou um fã de Tarantino como roteirista. Exceto, é claro, aquele grande trabalho para o Cinema que se chama Pulp Fiction. Fora isso, no resto do tempo Tarantino está se divertindo e nos divertindo com a sua mente cinematográfica, construída ao longo dos anos por milhares de filmes, e uma inquietude em comentar o Cinema que, como espectadores e cinéfilos, nos incomoda, nos absorve e nos encanta.

A mente de Tarantino não pára e vemos isso em seus filmes. Eles são frenéticos. Podem explorar diálogos cotidianos com a maior calma do mundo, mas são frenéticos mesmo assim. Sua montadora, Sally Menke, falecida em 2010, conseguia colocar algum freio em suas loucuras, mantendo na maioria das vezes um ritmo que conseguia fazer seus filmes respirar. Menke foi substituída pelo segundo editor, Fred Raskin, que não parece estar dando conta de manter o material filmado dentro do compasso de valsa que ele merece. Porém, continua tecnicamente impecável.

Mas impecável por impecável, ao assistir ao filme você irá obviamente notar que há uma sequência belíssima envolvendo uns hippies e um lugar que eles tomaram para morar. É uma cena que constrói tensão a partir do nada. Apenas de nossas próprias referências do que é Cinema. Ela funciona, mas qual o objetivo dessa cena, exceto demonstrar como Tarantino é um ótimo diretor?

Por outro lado, não tem preço acompanhar uma atriz assistindo a um filme que ela participa em uma sessão matinê junto de espectadores rindo de seus momentos cômicos e aplaudindo o momento de triunfo. Este momento, que também não possui nenhum motivo de existir na história, pode figurar sem esforço como um dos mais belos momentos no cinema esse ano. E o fato dessa mesma atriz ter também participado da indústria pornô revela o caráter amplo do filme, que quer englobar por completo seus personagens, já que não consegue atingir a psique deles.

Mas, voltando a Tarantino, você conseguirá observar que essas duas impecáveis cenas são inúteis para a história, apesar de contribuir para a atmosfera do filme como um todo. Justamente o contrário do último trabalho de Tarantino e Sally Menke, Bastardos Inglórios, onde a primeira cena contribui para criar toda a atmosfera do que veremos a seguir: o interrogatório de um nazista na casa de camponeses franceses em plena Segunda Guerra. Um primor de roteiro, direção e, principalmente, edição, e que dá ritmo para todo o resto do filme.

Como qualquer tiozinho que bebe demais no bar da esquina, Tarantino sente necessidade de contar o que sabe para o mundo. O que é ótimo, pois ele possui um conhecimento enciclopédico sobre Cinema que encanta qualquer cinéfilo que não se fecha para gêneros como western ou de artes marciais dos anos 70. E por reter muito conhecimento sobre a área ele deixa vários assuntos de seus filmes em aberto, o que eu acho ótimo também.

No fundo os filmes dele acabam se revelando uma grande e aberta discussão sobre o que é Cinema, e em "Era Uma Vez em... Hollywood" essa discussão está em torno das pessoas que fazem e amam cinema. Não importa de onde você venha, seu status social ou financeiro. Neste filme a tentativa clara é de imersão no mundo glamuroso tirando toda a paparicagem de seus astros. Assim como os gângsters Jules e Vincent em Pulp Fiction, aqui o objetivo é vermos as pessoas que fazem a mágica acontecer como meros mortais tendo que sobreviver em uma insensível indústria.

A história gira em torno do núcleo desses dois amigos, ou chame-os como quiser. Rick Dalton é o astro de uma série icônica de TV de faroeste dos anos 60, e Cliff Booth é seu dublê. Um vive em uma casa chique de Hollywood, bem no topo, o outro tem um carro velho e surrado que faz a comparação entre os dois sem nenhuma palavra ser dita. Suas histórias estão em decadência de maneiras distintas. Rick é um ator de um papel só, e Cliff vive como pode com as migalhas que recebe do amigo em declínio. Independente de como você interprete essa relação, nunca entenderemos de fato quem são essas pessoas, pois são recortes de algo maior.

"Era Uma Vez" junta a esse núcleo eventos violentos que ocorreram com pessoas reais no final da década de 60 envolvendo famosos e hippies porque você precisa dos ingredientes tarantinescos. Dessa junção surgem as obrigatoriedades de sua marca, como títulos, referências, narrações em off com detalhes de horário de algo importante que irá acontecer, flashbacks e memórias, diálogos não-vitais, sequências "cinematográficas" e, claro, violência desmedida. Sem esse check-list o filme não estaria completo para os fãs.

Ao mesmo tempo este é um trabalho que pode ser comparado com A Noite Americana (François Truffaut, 1973) e "Ave, César!" (Irmãos Coen, 2016) no que se diz sobre analisar a indústria do cinema, e é adorável acompanhar como o filme escolhe falar sobre o tema. Os cortes secos no meio de um diálogo que se estendeu mais do que devemos acompanhar mostram estar aí para o espectador perceber a linguagem; a trilha sonora vinda do carro que de repente é "desligada", pois era só o rádio, demonstram o poder diegético do som; os erros de fala de Rick nos faz finalmente perceber que estão filmando uma cena. Tudo isso é não apenas falar sobre cinema, mas nos fazer pensar em estrutura e linguagem. Não é uma aula profunda nem rasa, mas uma análise que fica no meio, entre a arte e a técnica.

Portanto, se torna irônico que Tarantino precisa se estender além do necessário para ser Tarantino, e com isso acaba sabotando seus trabalhos passados em um exercício que parece perigosamente proposital. Há uma cena envolvendo um lança-chamas que, assim como em Bastardos Inglórios, brinca com reescrever História. Há outra cena que refaz o final de uma luta de Kill Bill com uma garota com a cara deformada e se agitando loucamente. Ao final, Tarantino junta ambos os elementos e realiza um momento que pode-se chamar de comportamento auto-destrutivo do cineasta. Ao chamar seu oitavo filme de Os Oito Odiados ele fez um trocadilho bem humorado. Aqui ele parece estar disposto, ainda que de maneira inconsciente, a destruir seu próprio legado.

Veneramos um cineasta por se desdobrar para nos mostrar que ele não é tão importante assim? Começo a desejar profundamente ver um filme dirigido por Tarantino e escrito por Charlie Kaufman.


# Indústria Americana [link]

2019-08-23 tag_cinemaqui tag_movies ^

Os bons momentos em "Indústria Americana", novo documentário da Netflix, são quando os diretores Steven Bognar e Julia Reichert se aprofundam em demonstrar as diferenças brutais entre as culturas chinesa e americana, momento em que finalmente começamos a entender (ou pensamos estar entendendo) o que está acontecendo com o mundo atual e de como ele veio a se tornar como está. E os maus momentos do filme, pra variar, provém da ignorância quase completa da complexa economia contemporânea que rege o mundo, um erro fatal quando se tenta analisar o modus operandi do capitalismo.

Este é um filme que possui a imensa vantagem de ter acesso a momentos importantes de uma história interessantíssima envolvendo a abertura de uma fábrica de vidros para automóveis em Dayton, Ohio. Sim, esta é a mesma Dayton, Ohio, que figurou nas manchetes de todo o mundo este mês por conta de um tiroteio em massa, além de ser uma das cidades-líderes em criminalidade nos EUA. Qualquer coincidência é mera coincidência.

Mas a história deste filme começa em 2008, logo após o início da crise econômica que gerou a falência de várias empresas americanas, entre elas, mais uma vez (é a terceira vez na história? quarta?) da General Motors, uma fábrica de automóveis subsidiada pelo governo americano e que teve o fim merecido, gerando como consequência a demissão de milhares de habitantes locais. Os documentaristas favorecem nossa conexão com esse mundo trazendo um pouco da história de vida de alguns deles, desde a falência da GM até o que acontecerá depois, depois de serem reempregados pela empresa chinesa, e no decorrer dos dez anos seguintes.

Foi uma surpresa para mim, e acredito que será para muita gente, descobrir que uma corporação chinesa decide abrir uma filial no pátio onde estava instalada a GM em pleno pós-crise de 2008, contratando muitas das pessoas que se tornaram desempregadas. De acordo com o documentário, esta é uma das inúmeras tentativas da China em adquirir e abrir empresas em solo americano nessa época, e nós veremos em primeira mão porque esta foi uma péssima ideia do ponto de vista humano.

Os chineses (e asiáticos de modo geral) são um povo que precisa ser estudado pela nossa mente ocidental. Tendo o coletivismo incorporado em suas mentes por gerações, uma série de cinco líderes populistas, a cultura chinesa entende que a jornada diária de um funcionário por doze horas em uma fábrica seja um dever e uma honra, e o filme mostra isso quando alguns americanos visitam a matriz na China e veem abismados a reunião matinal de uma equipe da fábrica que se assemelha a de um pelotão do exército: eles se alinham em filas, respondem a palavras de ordem em um discurso preparado como injeção de otimismo e incentivo para o início do dia. Voltando à América, um dos gerentes tenta imitar o processo, e o resultado vai de risível a patético.

Já o individualismo ocidental é conhecido por todos daqui. Foi o que construiu a América e é o que a tem destruído, em um longo e tortuoso processo de aplicar o socialismo nessa sociedade, visto por muitos como uma vitória, sem perceberem o tiro na culatra que é o protecionismo trabalhista. A história desta luta entre empresas e empregados é descrita em um inflamado e valioso discurso de um dos representantes de um sindicato americano, que está disposto a ser eleito como representante dos funcionários da filial da Fuyao, a empresa chinesa do filme, pois as condições de segurança por lá são insalubres demais. Para os padrões americanos, é claro.

Para os padrões chineses, mais uma vez, os funcionários americanos testemunham em incredulidade pessoas recolhendo vidros quebrados e os separando por cores sem usar óculos protetores e luvas anti-rasgo, uma calamidade pública que fere gravemente os direitos humanos mais básicos.

O filme vai tratando de várias diferenças entre os dois povos de uma maneira fluida, com um ritmo de tempo que captura anos de história sem nos cansar. A Fuyao se tornou um laboratório de observação de como é impossível a adequação do modo de vida do chinês pelos lentos e improdutivos americanos. Eles trabalham apenas 8 horas por dia e folgam dois dias por semana, e sequer podem ser obrigados a fazer horas extras (em uma clara afronta à nação, claro).

Steven Bognar e Julia Reichert filmam tudo isso como ocidentais: mostrando a ação acontecendo. Este não é daqueles documentários chatos que as pessoas se sentam e ficam falando. Nós vemos as pessoas no local de trabalho trabalhando, e ouvimos o que elas têm a falar como uma narração em off, o que funciona para nos inserir na rotina dessas pessoas. Quando a Fuyao faz alguma declaração, não são papéis que nos são apresentados, mas o próprio presidente da companhia, que viaja para os EUA e faz uma apresentação para os gerentes. Este é um documentário vibrante que não usa qualquer gráfico ou entrevista formal, preferindo essa abordagem mais natural e orgânica. O próprio tempo, de uma década, vai passando e aos poucos vamos inferindo o ritmo com que os eventos acontecem.

Ao mesmo tempo que esta é uma história um tanto depressiva da economia americana e do estado lamentável que o ocidental vive, com suas contradições e pseudo-direitos que o tornam bebês chorões, o filme quer usar seu material mais como um alerta e uma pequena propaganda política para as próximas eleições. Tanto que o filme foi apresentado por um pequeno vídeo, não presente no filme, mas na Netflix, da família Obama. Barack é o Peter Russo (House of Cards) dessa história, defensor dos fracos e oprimidos, e nada mais justo ele demonstrar seu descontentamento com a situação que ironicamente ele próprio fez parte, almejando certamente alguma chance nas próximas disputas presidenciais.

Porém, demagogias à parte, "Indústria Americana" é acima de tudo uma ótima oportunidade para entendermos melhor como a China está se transformando em uma usina de produtividade, ameaçando claramente a hegemonia americana. Poucas informações da intimidade das empresas ou das pessoas envolvidas chegam a nós, e essa é uma oportunidade de ouro. E, eu prometo, não é um documentário chato, por mais que o assunto possa ser para alguns.


# Amor à Flor da Pele [link]

2019-08-24 tag_movies ^

Wong Kar-Wai é um cineasta que não gosta de roteirizar seus filmes. Ele prefere ir apalpando e sentindo até onde pode ir a exploração de um tema. Por isso mesmo ele é exímio diretor de curtas, principalmente de TV. Curtas expressam bem sua opinião sobre Cinema: momentos que serão eternizados pelo audiovisual.

Por isso que Amor à Flor da Pele é um filme tão repetitivo. Ele mantém uma história acontecendo, mas prefere ficar apaixonado pelos momentos em câmera lenta, pela mesma música-tema tocando um milhão de vezes. A passagem de tempo é marcada através de infinitos vídeo-clipes de duas pessoas conectadas por uma traição que elas não participam e suas solitárias rotinas. Uma delas vai ao cinema sozinha. "Como foi o filme?". "Mais ou menos.". É assim que me sinto a respeito desse.

Eu poderia falar sobre a fotografia maltratada que retrata uma época pobre e poética de Hong Kong e outros cenários onde a história se passa, ou sobre a chuva, inerentemente cinematográfica, caindo bem na cabeça do protagonista quando ele menos precisa disso. Ou poderia falar das três músicas usadas neste filme à exaustão, que são belas, e uma delas praticamente comenta a história (e isso sem letra).

Porém, prefiro focar nessa eterna e implacável passagem do tempo depois que duas pessoas encaram o trauma de suas vidas, e como, paralisadas, não conseguem seguir adiante. É um segredo que compartilham por causa do destino, e acreditam que é o destino que está pedindo pela companhia um do outro, ainda que ao mesmo tempo eles decidam não cair no mesmo pecado de seus cônjuges.

Este é um filme que se constrói com sutilezas e escala um elenco que torna o ambiente real. Fora os astros Maggie Cheung e Tony Chiu-Wai, que conseguem construir seus personagens apenas com olhares e expressões, esta é uma Hong Kong dos anos 60 convincente, ainda que não consigamos enxergar um palmo diante de nosso nariz, exceto o restaurante de onde ela compra seu macarrão e a senhoria de ambos, sempre com animadas visitas e convites para comer.

Wong Kar-Wai é assim: um cineasta preocupado com detalhes e que os explora às custas da paciência do espectador. Se você gosta do tema e quer ver mais sobre ele, a mera passagem do tempo no filme paga seu ingresso. Se você gostaria de algo mais ágil, busque pelos curtas do diretor, e veja o trailer estendido deste filme.


# Trailer - Flordelis : Basta Uma Palavra Para Mudar [link]

2019-08-24 tag_cinemaqui tag_movies ^

Dizem que Deus escreve certo por linhas tortas. Também dizem que ele já fez milagres como abrir o mar do Egito e ressuscitar seu filho dentre os mortos. Porém, esses milagres empalidecem frente ao trailer do filme "Flordelis: Basta Uma Palavra Para Mudar". Este, sim, um verdadeiro sinal de que Deus existe, e Ele é Muito Zuero. Amém.

O longuíssimo vídeo, talvez mais longo que o filme, começa com um personagem interpretado por Reynaldo Gianecchini dizendo que ele escutava das pessoas que era um caso perdido. Ele está com uma meia na cabeça, mas assim que a tira vemos que é o ator. Dizem que ele é um caso perdido e que milagre nenhum daria jeito. Agora eu te pergunto: se alguém com um rosto como o de Reynaldo Gianecchini milagre nenhum daria jeito, o que será de nós, meros feios mortais?

Depois temos uma briga de um casal por uma criança de colo. Os nomes do elenco vão aparecendo nessas icônicas cenas, mas eu vou interromper essa análise para destacar a fotografia do trailer: preta e branca, daquelas que parece que a TV deu defeito. Eu já tive esse problema uma vez. Dizem que é o tubo que começa a pifar, mas é mentira, basta levar em uma autorizada para trocar a plaquinha, que custa mais ou menos o preço da TV. Ou seja, não compensa o conserto. Não há drama maior que ter uma TV funcionando sem cores e que você não consegue consertar. E por isso a produção do filme escolhe sabiamente uma música triste e emocionante para refletirmos nesses momentos de desesperança.

Não demora muito para que comecem a surgir palavras em LETRAS MAIÚSCULAS em um fundo preto dizendo ao espectador sobre o que será essa história. Uma mulher andando na rua escura: "ESPERANÇA..." (o que são essas reticências?). Uma mulher vai dar à luz: "SALVAÇÃO...". A criança nasceu! Mas o verdadeiro milagre é o elenco que vai sendo apresentado: Fernanda Lima, Déborah Secco, Cauã Reimond, Cris Vianna, Ana Furtado, Guilherme Beringer, Bruna Marquesine. Com uma música evangélica ao fundo. Não é pra dar glória, glória, aleluia de pé?

Então, quando você espera impacientemente que o trailer ou a música acabe, Marcello Anthony aparece dizendo que se Deus abriu o mar vermelho e derrubou o gigante Golias, ele vai fazer esse trailer ter o dobro de duração. E a minha fé de que Deus fazia apenas coisas boas diminuiu um pouco... (Vou começar a usar reticências, parece uma coisa boa.)

Vamos para mais uma bateria de palavras... todas minúsculas agora... listando... o que vai ter no filme? Como se fosse algo bom? ruim? neutro? Enfim, aparecem: "tráfico de drogas", "exploração infantil" (e Letícia Spiler aparentemente, é uma criança sendo explorada). Mais nomes de famosos aparecem. Meu Deus, esse filme vai ter nove horas de duração... quando, de repente, o rosto de uma mulher melecado de água/lágrimas surge e... um milagre acontece. Um verdadeiro milagre: a TV se conserta sozinha. As cores voltam! Aleluia, irmãos!

Preciso dizer que este trailer me emocionou de diferentes formas. Formas estas que prefiro não comentar aqui. Portanto, não perca: assine a garantia estendida de sua TV. Não passe por esse drama que esses famosos passaram. Deus vai te salvar uma boa grana no final das contas.


# O Invasor [link]

2019-08-25 tag_movies ^

O Invasor é um experimento da época de reabertura do cinema nacional, lá pelo final dos anos 90 e início dos anos 2000. O diretor Beto Brant tinha até um milhão para gastar e realizaram o que se chamou de filmagens de intervenção. Funciona assim: você "invade" as locações e consegue um tempinho naquele local, geralmente com até não-atores que estavam no momento, de um restaurante, um bar, uma boate, e filmam a cena com os personagens. Barato, colaborativo e inovador.

O resultado disso é que Brant precisa criar uma narrativa que não precise de decupagem ou muito enquadramento de suas cenas. Todas as cenas do filme são feitas com câmeras em movimento, pois elas estão de fato invadindo o local de filmagem para a cena, e não se preparando desde o começo do dia com iluminação, cenário, etc.

Isso torna o título "O Invasor" de uma ambiguidade admirável se compreendermos o processo da filmagem com a história que o filme quer contar, que é uma história da violência e da força. Quando dois sócios encomendam a morte do terceiro através de um assassino de aluguel, isso se vira contra eles quando o assassino toca o terror na empresa. E quem é que vai falar alguma coisa para alguém que não pensa duas vezes em tirar uma vida a mais do mundo?

Além do desafio das filmagens para o diretor há também o desafio redobrado para os atores. Marco Ricca, Alexandre Borges e, principalmente, Paulo Miklos, que faz o assassino, precisam lidar sua mise en scène com o corpo inteiro, e não apenas as expressões do pescoço pra cima, pois a câmera passeia pelo local e os personagens precisam estar de corpo e alma no projeto.

Miklos faz Anísio, um rapaz da periferia de SP que não pensa duas vezes antes de aceitar um dinheiro fácil para dar cabo de um bacana. Ele é cheio das gírias, é folgado e está pronto para tomar conta de seus negócios. O ator obviamente e acertadamente se inspirou em Scarface na construção de seu personagem, pois perto do final do filme, já tendo os dois sócios na palma da mão e estando com a filha de suas vítimas, está usando um roupão extravagante e preparando seu futuro em uma atmosfera que soa deliciosamente irreal.

O problema do filme como um todo são suas viradas, principalmente no terceiro ato. Elas não foram construídas de acordo, com o timing necessário, e quando ocorrem soa tudo muito forçado. Faz sentido se você pensar no roteiro, mas a forma como é apresentada para o espectador é muito jogado e sutil demais. Fora que o filme insiste em realizar diversos vídeo-clipes mostrando os bairros pobres da cidade ao som de rap em um formato quase documental que não colabora muito para a história, exceto a diferença de distância da vida daquelas pessoas para com a região central da megalópole.

De qualquer forma, estamos testemunhando o engatinhar do cinema brasileiro após um longo hiato, e Beto Brant é um dos responsáveis por esse renascer, o realizando com louvor. O Invasor é um filme de referência. Não é nada demais, mas ao analisarmos as condições com que foi feito, ele foi muito bem-vindo ao momento da cinematografia local.


# AlphaGo [link]

2019-08-26 tag_movies ^

Este é um documentário feito daquele jeito que a câmera vai acompanhando a ação acontecendo. É uma disputa memorável entre homem e máquina, mas em vez de xadrez, dessa vez é o Go, um jogo milenar na Ásia. Mas em vez de abordar com a mesma profundidade com que AlphaGo faz seus lances, a super-engine de Inteligência Artificial desenvolvida pela Google, o diretor Greg Kohs prefere que o filme conte sua história por si mesmo.

O que não é ruim; apenas convencional. Acompanhamos os dois matches organizados pela Deep Mind, empresa criada pela Google para este projeto de Machine Learning, em que a máquina aprende através de tentativa e erro e à sua maneira qualquer lógica ensinada, seja jogar Go ou curar câncer. No momento estamos focados no Go, e o câncer vai ficar para depois.

O que o filme não consegue entender é que para leigos, tanto de Go quanto de computação, o que está nas entrelinhas que os nerds de ambas as áreas conseguem entender não é tão fácil assim ao espectador médio, que precisa ser ensinado sobre o que está acontecendo em uma partida do jogo, independente das regras. Nós precisamos entender alguma analogia, ou o que está em jogo aqui. Porém, já que nem os próprios comentaristas do jogo parecem entender de fato o que está acontecendo durante uma partida, e nem os próprios criadores do programa, o filme foca apenas na superfície do evento em si, o espetáculo "homem x máquina", e se esquece de todo o potencial narrativo desta história.

Ela trata do match principal entre o campeão mundial (18 vezes!) de Go, o coreano Lee Sedol. O filme explica que esse software de computador utiliza partidas jogadas por humanos para aprender, mas se esquece de diferenciar que, diferente de uma engine tradicional, AlphaGo não utiliza base de dados de partidas. Ele não olha para o histórico do que aprendeu: o software é a soma do que ele aprendeu. Assim como humanos.

O filme é conduzido com uma trilha sonora emocionante e com uma tensão no ar semelhante ao momento em que a IBM desafia o campeão de xadrez do mundo, Garry Kasparov, na década de 90, a jogar com sua engine Deep Blue. Até aquele momento não havia programas que vencessem grandes mestres. Hoje em dia tanto Stockfish quanto AlphaZero (outro projeto da Google baseado em IA) batem facilmente a maioria dos melhores jogadores do mundo.

Mas Go é mais complexo. Como? Eu não sei. Não quis aprender antes para ver a habilidade do filme em nos situar, e ele falha miseravelmente. Porém, como até os comentaristas desse jogo parecem falhar, e em rede nacional, me parece que este jogo é tão complexo que humanos apenas arriscam dizer que sabem alguma coisa. Já é ponto para a máquina antes mesmo do match começar.


# Minha Lua de Mel Polonesa [link]

2019-08-27 tag_cinemaqui tag_movies ^

Imagine que coisa louca: o que você chama de "você" é a soma das ações dos seus antepassados, uma criação cultural e social (e religiosa) que culminou em sua existência. E quando olhamos para trás é bom saber o que houve no passado, não? Dá uma sensação de identidade, pertencimento, ou pelo menos uma explicação de por que somos do jeito que somos. Agora, e se não soubéssemos nada desse passado? Angustiante, talvez? Minha Lua de Mel Polonesa é um filme que explora um pouco dessa possível angústia do que é não saber sobre suas origens, em uma comédia leve, bem-humorada e... com alguns tiques nervosos.

Sua protagonista é Anna (Judith Chemla), uma francesa cuja avó era judia e polonesa que teve um passado conturbado graças ao sentimento antissemita de sua época. Disposta a viajar para a terra natal de sua avó em uma espécie de lua de mel após casados com seu marido para um evento em memória dos judeus exterminados, Anna insiste em "se sentir polonesa" a todo custo, ainda que ela não tenha nenhuma pista do que é isso através de sua mãe, que nunca compartilhou nada a respeito.

Estreia da atriz Élise Otzenberger na direção e roteiro, "Minha Lua de Mel" é uma comédia de situação bem convencional, que une as experiências que temos quando viajamos para uma terra estrangeira, como pedir pela reserva do quarto do hotel ou entrar em uma loja sem ter a mínima ideia de como vai se comunicar com as pessoas, com o jeito desajeitado e desesperado de sua protagonista em conseguir respostas. Seu tour pela Polônia, seja lá qual for a cidade, é simplista e baseado em pouquíssimos cenários. Talvez de baixo orçamento, Anna olha para o fundo e diz como tudo é lindo, mas nós, espectadores, não vemos nada. Só frio, chuva e um céu nublado.

A maioria dos momentos de fazer rir funcionam, mas Anna se torna a caricatura de uma mulher histérica, e sua jornada acaba perdendo a importância desde o começo, quando a vemos descrevendo de maneira neurótica uma lista detalhada do que deve ser feito pelos pais com seu filho pequeno em sua ausência, usando o agora clichê das "verduras orgânicas que a mamãe deixou na geladeira". Repare nisso: toda mãe jovem em uma comédia irá falar para uma geração mais antiga sobre as verduras orgânicas que separou para seu filho, e isso automaticamente a rotula como chata, pedante ou alguma característica negativa. Além disso, Anna se comporta muito mal em vários lugares diferentes, como ao beber quase uma garrafa de vodca inteira em um restaurante, e não existem motivos para nós, espectadores, de por que ela está fazendo isso.

Para piorar, essa estereotipagem de Anna acaba ficando mais destacado ainda em comparação com os outros personagens. Enquanto Judith Chemla está sempre se comportando de maneira errante e agitada, berrando sempre que possível e incomodada eternamente com o fato de não saber nada sobre o passado de sua família, tanto o marido quanto a mãe, interpretados por Arthur Igual e Isabelle Candelier, estão praticamente alheios à sua necessidade, totalmente relaxados e se comportando como se Anna nunca tivesse dado a entender que acha descobrir sobre seu passado importante. O resultado é que as interações entre essas pessoas soam artificiais e maniqueístas, feitas para rirmos do contraste. E quando surge aquele momento das pessoas se acertarem que todos esperamos, é tarde demais: já estamos incomodados com Anna, a "histérica".

As melhores partes do filme acabam sendo sobre a exploração de dois viajantes de uma terra estranha, com suas idiossincrasias que são fáceis de se identificar por todo mundo que já reparou nas diferenças culturais em suas viagens, como tours guiados pelos cenários da tragédia do Holocausto ou as tentativas desajeitadas de interagir com os locais, como uma lojista que acaba servindo chá para eles ao ouvir a palavra "Kaput", que em alemão significa quebrado, inútil, mas a diversão é tentar entender o que aconteceu no indecifrável idioma polonês.

Por todas essas partes boas "Minha Lua de Mel" acaba se saindo melhor que o esperado. É possível curtir de maneira leve essa comédia de costumes sobre sentimentos de inadequação ou arrependimento de fazer parte de certa etnia ou cultura, mesmo sem mostrar exatamente o que é essa cultura. Como muitos filmes sobre judeus, incluindo os de Woody Allen, as piadas são internas, mas eventualmente conseguimos dar risada de como é estranho que hoje ser judeu possa ser uma ofensa e um incômodo.


# As 4 Aventuras De Reinette E Mirabelle [link]

2019-08-28 tag_movies ^

As 4 Aventuras de Reinette e Mirabelle vai bem reto e certeiro em seu objetivo: ser literal. Em sua primeira cena o pneu da bicicleta de Mirabelle fura, e Reinette a ajuda a verificar onde está o furo e a colocar o adesivo. Todo o processo é explicado do começo ao fim, quase como um programa de TV sobre faça você mesmo. Logo você percebe que o filme é repleto de momentos literais, embora quando se chega em Paris a história fique um pouco mais fantasiosa.

É curioso como, baseado em quatro eventos na vida dessas duas garotas, este longa-metragem tenha tudo para se tornar um seriado. Isso se ele fosse produzido nos EUA. Mas como é francês, a história tem começo, meio e fim. Muito embora tanto faz qual o meio, o fim e o começo. Reinette gosta de pintar, aprendeu sozinha, e vai para Paris morar com Mirabelle e fazer um curso na faculdade de Belas Artes. Ela gosta de ser independente, mas precisa se virar financeiramente.

Ao mesmo tempo três situações do dia-a-dia ocorrem envolvendo pedintes de rua, uma cleptomaníaca e um garçom muito mal-educado, e o filme é sobre observar o que Mirabelle e Reinette acham sobre tudo isso. Ouvir suas opiniões nos faz, como espectadores, pensar sobre as nossas próprias, mas também nos faz refletir como é comum conversar sobre assuntos banais como esse e de repente isso vira uma questão moral sobre nossos valores.

Pautado no minimalismo, a narrativa que o diretor e roteirista Éric Rohmer utiliza, baseado na ideia de Joëlle Miquel (a atriz que faz Reinette no filme), é simples e eficaz. Os diálogos são reais, as situações são banais, e o filme acaba se tornando sobre como vivemos nós próprios vidas banais e discutimos situações triviais em nosso cotididano. É uma imersão em nossa mediocridade em um filme idem. Uma ode à pessoa comum e suas decisões aparentemente cruciais sobre como viver.


# Chicuarotes [link]

2019-08-28 tag_cinemaqui tag_movies ^

A sensação de impotência em Chicuarotes é o que constrói uma tensão que consegue ser ao mesmo tempo trágica e engraçada. Por um lado há o velho clichê de chorar sobre a desgraça dos mais pobres, mas por outro há esse lado humano que reconhece que, dizendo de forma bem chula e preconceituosa, pobre não vale muita coisa, mesmo.

Aqui temos Planchado e Cagalera, dois amigos que vestidos de palhaço são melhores assaltantes que comediantes, desde que eles estejam com uma arma em um ônibus cheio de pessoas indefesas, pois na vila pobre onde moram a dança é diferente, com homens poderosos controlando os bairros. Por que são poderosos? O que fazem? Eu não sei, a camada social é um mistério neste filme, e ficamos apenas com a superfície.

E nela Cagalera está cansado dessa vida, cansado de "comer chocolate duro", e arrasta Planchado para alguns planos furados, como assaltar uma loja de calcinhas, que deveria ser uma sequência mais engraçada do que é. A coisa se complica quando eles decidem sequestrar o filho do açougueiro. O filme consta no IMDB como drama, mas é engraçado acompanhar essa dupla, que nada têm de bonzinhos nem de espertos. Eu não sei se alguém torceria por eles, talvez no automático, mas sem muita razão além da compaixão automática por seres humanos.

Isso porque Chicuarotes é um filme cru, bruto, que não se intimida em mostrar seus personagens imperfeitos tentando viver como podem. Cagalera rouba até o motorista de ônibus, conhecido com quem conversa e que ganha mal, e de uma forma geral não possui valores morais algum. Mas, como falei, nós temos apenas a superfície desse mundo sendo revelada, pois o mecanismo por trás dessas pessoas e dessas cidades mexicanas divididas em vilas e com uma rixa entre elas é uma incógnita para quem é de fora.

Primeiro longa para o cinema depois de Déficit, de 2007, este filme é dirigido pelo ator mexicano Gael García Bernal, e ele exibe um controle forte na narrativa, usando alguns planos-sequência e botando de vez em quando um personagem ou outro enquadrado com toda a dignidade que ele deseja que eles possuam. O problema aqui está mais na incompatibilidade de narrativas, pois o roteirista, Augusto Mendoza, do fraco "Abel", cria uma atmosfera não-linear e sem arcos para explorar personagens desagradáveis pelos quais não torcemos. A história revela mais ao espectador sobre o que seus criadores tentaram do que o que realmente conseguiram.

Por exemplo, há um pequeno arco que se conclui sobre o companheiro da mãe de Cagalera, Baturro, um homem violento que parece ser a desgraça da família, embora se revele mais como consequência dela. Baturro acaba recendo o merecido destino, mas a forma com que ele acontece, se analisado com calma, se revela frágil demais. É como se todos os abusos deste homem fossem permitidos por anos, para de repente se chegar em um limite. Dolores Heredia, em uma interpretação automática, faz a mulher que aguenta esses abusos, e sua personagem se torna uma incógnita. Por que ela permitiu isso por tantos anos?

Esses problemas do roteiro se revelam porque não existe profundidade em seus personagens. Eles dançam nos belos quadros e sequência que García Bernal realiza com a ajuda do fotógrafo Juan Pablo Ramírez, mas não saber quem são eles torna a experiência episódica e inconsequente. Este é um filme de "evento puxa evento", que começa de um jeito e termina de outro, mas que ambos, começo e fim, não mudam em nada a situação dos envolvidos e a análise que o filme faz dessa realidade é simplista demais.

Chicuarotes possui uma estrutura não convencional para fazer seu espectador refletir sobre as relações de poder entre seres humanos vivendo no limite, mas esse limite não é tão limite assim e esse poder não é tão claro assim, de forma que sua própria mensagem se perde nos detalhes que faltam da trama. Me lembra o filme biográfico do diretor italiano Giuseppe Tornatore, "Baarìa - A Porta do Vento", em que ele gasta quase três horas e vários milhões para dirigir um filme tão específico que se perde como Cinema. Mas é bonito, e entretém, se isso vale de alguma coisa.


# Adeus à Noite [link]

2019-08-31 tag_cinemaqui tag_movies ^

Catherine Deneuve está fazendo cada vez mais papéis em que sua idade e sua persona inspiram sabedoria, mas em Adeus à Noite essa sabedoria é impotente e deslocada.

Isso porque a história é sobre um fenômeno recente em nossa geração, e por isso está totalmente deslocada de sua realidade. Tem início com jovens entediados com a vida de primeiro mundo e a esperança de algo mais significativo na promessa fácil do Estado islâmico e sua além-vida pela religião. Lavagem cerebral, basicamente.

Não é muito difícil fazer isso com as mentes fracas e influenciáveis de hoje em dia. Sem o apoio de uma família funcional perdem-se as bases de uma sociedade saudável. Deneuve faz aqui Muriel, a avó de Alex, um rapaz que é órfão de mãe e cujo pai o abandonou para criar outra família. Sua namorada, Lila, também é órfã, e foi adotada por um motivo egoísta: servir de companhia ao seu responsável na velhice, o sócio de Muriel em seu negócio para turistas. Note que é nesse corte entre as gerações, dos "avós" direto para os "netos", que se estabelece o drama no filme.

Alex quase não visita a avó, mas dessa vez, vários meses depois, ele chega muçulmano, fazendo sua reza diária e se mantendo distante deste mundo. A lógica da narrativa parte da observação de Muriel do comportamento desses jovens, que acreditam no paraíso pós-morte com todas as forças através da abnegação, e portanto o aqui e agora não valem de nada. Isso soa estranho também para a maioria de nós, espectadores ocidentais não muito religiosos ou com uma religião mais light.

Esse comportamento, por outro lado, é criticado no filme de uma maneira muito engajada, pois coloca a tecnologia como o verdadeiro "recrutador" desses jovens. Eles não vão à mesquita como um muçulmano tradicional, mas aprendem sobre a religião na internet. O grupo ao qual pertencem não está fisicamente próximo, mas está conectado a todo momento pelos seus celulares. E se não há sinal de antena é o fim do mundo para eles.

O filme nos introduz essa mudança entre as gerações começando com um eclipse. Muriel não liga de observá-lo a olho nu, correndo o risco de ficar com problemas na visão. Já Lila assistiu ao evento pela televisão. Enquanto para os mais velhos o dia se torna noite em um eclipse, para os jovens não existe noite, o período de repouso. A internet conecta a todos o tempo todo, 24 horas.

A direção hábil de Amer Alwan, em sua primeira ficção para o cinema, também nos mostra esse contraste entre o mundo perfeito em que esses jovens vivem e o quanto tudo isso é ignorado por eles. Eles estão cercados de lindas montanhas, um vinhedo e flores que brotam das cerejeiras. É primavera, os primeiros dias, e o filme os vai contanto um a um. Alex e Lila podem cavalgar nesse paraíso em Terra, mas suas mentes estão tomadas pelo Alcorão.

Há um momento muito belo do filme em que o contraste entre vida e morte se torna completo. Pessoas reunidas comemorando após uma corrida de cavalos, e os jovens influenciados pelo mundo árabe reunidos para uma celebração religiosa. O primeiro grupo celebra a vida com música e dança. É uma ode à própria felicidade. Poderia estar tocando a Nona de Beethoven, mas é um momento intenso e leve ao mesmo tempo, então toca uma cantora pop, Sya. Já no segundo grupo acompanhamos sermões sobre porque beber vinho e praticar esportes é um pecado mortal, em que todos estão cobertos com as mesmas vestes sóbrias e há um ar de reverência. Ou seja, praticamente um enterro. Para mim a mensagem é clara: esta geração está morta por dentro.

Conseguindo equilibrar bem essa dualidade de visões sobre a vida no mesmo lugar, o terceiro ato se perde entre acompanhar o realismo do recrutamento de jovens para o Islã e o papel de uma avó ao saber que irá perder seu neto para sempre. Deneuve é desperdiçada na meia-hora final porque esta, como já vimos no começo, não é sua história. E não é de ninguém, pois ela quer ser documental, mas até então era uma convincente ficção.

De qualquer forma, Adeus à Noite dá o seu recado sobre a questão, goste você ou não. Vira um filme educativo, até, mas poderia voar muito mais além.


# Contra Todos [link]

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Dos mesmos produtores de Cidade de Deus, este é um filme em que os personagens do roteiro foram sendo contruídos na preparação de elenco. Não é um elenco de primeira, mas o resultado sim, e mais realista do que se os papéis fossem entregues para celebridades. O resultado é visceral pela história, realista pelos diálogos e potencialmente um quase documentário ficcional.

A história se passa em São Paulo, capital, e essas pessoas vivem suas vidas de pobre como em qualquer megalópole: moram longe do centro urbano, mas estão sempre por lá. A religião e a violência são pauta para análise dessa família disfuncional onde o pai bate na filha adolescente e a madastra tem uma lascívia incontrolável quando o marido não está em casa, mas cortejando uma evangélica que conheceu no culto.

Contra Todos é um retrato fiel da sociedade contemporânea de vários ângulos. A câmera, com baixa resolução e tremendo como as de telejornal, passeia pelos cenários reais do cotidiano e seus elementos: um ferro de passar velho, o leite com café e açúcar de manhã, as conversas fiadas que escondem o que não se deve falar na mesa.

O que fascina mais é apenas observar o dia-a-dia dessas pessoas, e não necessariamente a crítica social à sua moral. Até porque o filme adota uma narrativa naturalista, onde as decisões que cada um toma faz sentido dentro do seu microcosmos, e por isso não há necessariamente mocinhos e vilões, ou são todos vilões do nosso ponto de vista que julga qualquer comportamento fora do normal. O objetivo nem é chocar pelo aspecto cru de seus personagens, mas pelo modo realista de encará-los.

Há sexo realista, violência realista e diálogos realistas. Contra Todos é quase um documentário se for analisada sua atmosfera, mas mesmo assim ainda exibe um pouco de estrutura, principalmente no final, quando as pontas vão se amarrando e reviravoltas acontecem. Na vida real não há tantas reviravoltas. Eu poderia viver muito bem sem nenhuma, e assistiria esse filme mesmo se ele tivesse seis horas.


# Legalidade [link]

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Assistir Legalidade gera sentimentos conflitantes sobre este filme que tenta unir o estilo novelesco com drama político e vai além, abordando outros temas, como filme de espionagem e revisionismo histórico. Com todas essas pretensões fica fácil descobrir por que o resultado deu errado, mas não se trata de um filme completamente descartável, pois há momentos que nos surpreendem por serem tão necessários à filmografia brasileira atual quanto para a democracia naqueles conturbados 14 dias de sucessão presidencial de 1961.

Antes, vamos aos elogios: se há algo que se mantém firme e forte nos melhores momentos do filme de Zeca Brito é o seu design de som. Trabalhado por uma equipe encabeçada por nada menos que cinco pessoas, ele une uma evocação ao patriotismo brasileiro, restaurando um hino de protesto em formato de trilha sonora, com nossas raízes guerreiras, latinas ou indígenas, na busca por uma identidade nacional. É pelo som que podemos perceber que há um ótimo filme querendo surgir.

Porém, o pano de fundo desta história escolhe os personagens principais errados, manipulando nosso foco para uma relação de amor e traição entre uma jornalista obscura dos EUA e dois irmãos envolvidos no processo democrático de uma forma ou de outra, e não se tem muita ideia de como eles foram parar ali. Ao mesmo tempo, a tentativa de unir passado e presente pelo revisionismo histórico se trata de um rascunho completo, quando percebemos que a filha da tal jornalista, ao investigar o desaparecimento da mãe, consulta jornais arquivados da época e sublinha os papéis originais com caneta.

E na mesma medida que sabemos este ser um trabalho pedestre nossa percepção muda quando vemos como o roteiro consegue adaptar e articular de maneira exemplar os discursos de Leonel Brizola naquele momento histórico, com uma dicção enfática e autêntica pelo ator Leonardo Machado, e que nos remete àquela época graças, novamente, ao design de som, que ao migrar sua voz ao vivo para as rádios cria uma cadência muito mais próxima do que seria o verdadeiro discurso (não é; o texto é simplificado).

Todos deveriam saber desse momento na história brasileira, mas infelizmente o sistema educacional é o reflexo perfeito da decadência atual da sociedade. Mas vamos ao resumo: candidato meio populista, meio conservador, Jânio Quadros é eleito para substituir JK em 1961, mas em menos de um ano renuncia, dizendo estar agindo sob forte pressão de "forças ocultas" em um clima político instável, gerado pelas ameaças de influências externas tanto da CIA estadounidense quanto dos movimento populistas no continente financiados pela rússia comunista. No momento da sucessão para o vice de Jânio, o pouco expressivo João Goulart (o Jango), ele se encontra em visita à República Popular da China, o que não facilita em nada a aceitação dessa sucessão por algumas camadas de militares, alinhados aos interesses americanos.

É nessa atmosfera incerta que se passa o filme, e a maior parte do tempo o cenário é Porto Alegre, sede do governador do estado Leonel Brizola, e cunhado de Jango, que tenta articular o devido processo legal previsto na Constituição do país: a troca de poder entre o presidente e seu vice. É em sua dificuldade política e nas manifestações populares que reside a alma de um filme que eu pagaria pra ver de camarote, não fosse o fato de que para acompanharmos esta História tenhamos que seguir de carona pelo arco chinfrim da personagem interpretada por Cléo Pires.

Com o nome artístico resumido agora para Cleo, a atriz principal do filme carrega uma popularidade que embora possa promover o filme prejudica o trabalho de Zeca Brito, pois torna a importância da personagem de Cleo desproporcional ao momento histórico retratado, que se perde facilmente quando tenta também de maneira ambiciosa unir o revisionismo histórico dos anos 2000, quando documentos confidenciais do governo brasileiro da época do regime militar foram liberados para consulta. Ainda de quebra há um romance completamente aleatório entre ela e dois irmãos, um antropólogo e um jornalista, em uma tentativa atrapalhada de assim evocar a personalidade de Carlos Lacerda, influente jornalista desta época histórica.

Claramente influenciado por trabalhos de gênero, Legalidade empalidece por causa de seus personagens estereotipados que não acrescentam em nada à História que está tentando ser resgatada para a memória dos brasileiros. Pior fica quando o filme insiste em mostrar cenas de sexo deste triângulo amoroso completamente disparatado, pois nos faz lembrar de momentos não tão gloriosos da filmografia nacional, onde a nudez feminina era usada como chamariz de bilheteria em vez de conter algum significado na trama.

Enquanto isso, nos momentos mais tensos do drama político, Zeca Brito assume uma ideia arriscada que tenta resolver tanto problemas de orçamento quanto de engajamento emocional: misturar cenas feitas para o filme com cenas gravadas na época, em preto e branco. E funciona, mais uma vez, graças à maravilhosa experiência sonora do filme, que transforma o Hino da Legalidade, criado na época para a campanha da sucessão, em um personagem oculto: o patriotismo.

Há virtudes no roteiro, também, que adapta o realismo histórico ao alterar um detalhe da letra do hino, trocando "lealdade" para "legalidade". Há pequenas adaptações da História para a ficção que valem a pena, e essa é uma delas. Ao mesmo tempo, o trabalho instrumental do hino no filme contraria uma tendência moribunda do design de som no cinema atual, que possui cada vez menos personalidade. O hino aqui vira um tema musical grandioso, que não enjoa ao ser ouvido, e engrandece os momentos que merecem ser assistidos.

Legalidade pode não ser um ótimo filme. Ele pode até não ser um filme muito bom. Porém, nele residem alguns dos momentos mais acertados no cinema nacional dos últimos anos. E pertinentes, se formos pensar na discussão sobre a própria legalidade das últimas ações que têm se configurado no Planalto em Brasília. Ele tem Cleo, romance e espionagem como chamariz de público, e uma mensagem que vale a pena ser divulgada. Infelizmente, a lembrança do filme vai embora rapidamente, logo ao terminar de assisti-lo. A única coisa que fica é a melodia acertadíssima do Hino da Legalidade. Faz você pensar em prioridades para o cinema nacional.


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