Há ótimas ideias em Jogos Vorazes, produção baseada no romance homônimo de Suzanne Collins (que também participa do roteiro) e que deve ser o primeiro de uma trilogia. Ambientado em um mundo futurista, mas devidamente verossímil, apresenta a delicada situação de 12 distritos que, após perderem uma tentativa de revolução contra o governo dominante, se veem sujeitos a sacrificar um casal de jovens anualmente em uma batalha por sobrevivência em uma floresta "criada" de maneira inóspita cujo objetivo é condecorar o último ser humano que restar.
Acompanhamos essa história através dos olhos de Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence, vinda dos ótimos Inverno da Alma e X-Men: Primeira Classe), uma moradora do Distrito 12 junto com sua irmã caçula e sua ausente mãe. A história dessa família e dos próprios distritos são apresentados en passant, pois o filme foca mais em descrever a vida dos organizadores dos jogos do título, e como isso destoa completamente da visão dos jovens sequestrados para essa diversão alheia.
E não há o que reclamar: o design de arte da produção é detalhista em tornar aquele mundo tão fascinante quanto impessoal. Note os largos aposentos (como o quarto de Katniss) sendo usados meramente como artefatos de exibição do poder que é exercido por aquelas pessoas.
Ainda que o foco da história fosse justamente os tais jogos é o acompanhamento deles pelos que estão de fora que se torna mais interessante no decorrer da jornada, como podemos notar pelo dramático momento da morte de um personagem que gera uma comoção popular que não apenas enriquece a trama como dá pistas do que pode acontecer nos próximos filmes.
O jogo da manipulação da mente, cada vez mais fraca.
Como é triste quando a humanidade se perde em criar jogos onde nossos jovens são assassinados brutalmente, e quando esses homicídios são festejados como troféus. Triste quando isso é televisionado, controlado e manipulado de tantas formas que não existe algo que possamos fazer. Triste saber que a audiência para esses programas sobe cada vez mais, e a personalidade do ser humano cada vez mais decai ao nível de mediocridade e auto-flagelo de nosso potencial criativo.
Triste saber que o único motivo de existência de muitas pessoas é conseguir ver o final do capítulo a tempo, e saber quem ganhou, quem foi o vencedor do jogo da manipulação.
Feliz fico com o fato de tudo ser um filme, fruto da imaginação de produtores e que não existem coincidências com a vida real. Certo?
A Greve é um belíssimo ensaio do crítico, montador, diretor, roteirista Sergei M. Eisenstein antes de sua dita obra-prima O Encouraçado Potemkin, do mesmo ano. Digno de nota, porém, é saber que é seu primeiro longa, e já nesse trabalho notam-se as invencionices e montagem usadas de maneiras tão originais quanto a novidade da sétima arte poderia desejar. Rodado sem diálogos, mas com uma trilha sonora que evoca a urgência e a dramaticidade dos acontecimentos, Eisenstein conta a história de uma greve entre operários usando para isso de 6 diferentes estágios, ou historietas, que didaticamente exploram a mente das massas pró-revolução.
Ainda que fosse mestre no drama, o filme extrai momentos cômicos que conseguem aliviar um pouco a tensão. As sequências insistem em nos mostrar muito além do óbvio, como quando os grevistas são atacados por mangueiras dos bombeiros. Existem momentos verdadeiramente cruéis durante toda a projeção.
Em um momento em que Hollywood se esqueceu que os bons policiais/suspenses quase sempre vem dotados de uma carga dramática e multidimensional em seus personagens, o segundo trabalho de Christopher Nolan na direção vem lembrar aos cinéfilos que é possível construir uma narrativa inteligente e ainda assim ser envolvente pela sua ação.
Fazendo como David Fincher em Os Homens que Não Amavam as Mulheres e refazendo um longa sueco (na verdade, também norueguês) de 1997, a história gira em torno de uma cidade em que o sol não se põe (no original, na Noruega, aqui, no Alaska) e um crime envolvendo uma jovem brutalmente assassinada. Quando os detetives Will Dormer (Al Pacino) e Hap Eckhart (Martin Donovan) chegam ao local, no entanto, o clima de tensão já estava no ar e apenas piora em terra.
Sem revelar spoilers fica difícil falar sobre a trama, mas podemos dizer que a relação entre Al Pacino e o misterioso assassino consegue produzir as melhores cenas, cheias de significado.
# O Lorax, em Busca da Trúfula Perdida
Caloni, 2012-04-02 cinema movies [up] [copy]O Lorax parte de uma premissa bonitinha e se esquece que em um roteiro, mesmo de animação, há muito mais do que piadinhas isoladas e ótimos efeitos visuais. Tudo começa com Ted, jovem morador de uma cidade feliz por ter conseguido dominar o plástico como solucionador de todos os problemas. A consequência é que a única forma de vida existente na cidade são seus moradores humanos; nem gatos ou cachorros têm vez. Querendo conquistar a garota dos seus sonhos, Ted parte em busca de uma jornada para conseguir o que não existe mais na paisagem onde mora: uma árvore.
O garoto precisa ouvir a história que um velho que mora isolado em um lugar inóspito a respeito do que aconteceu com ele e com as árvores que outrora encantavam o vale, assim como criaturas fofinhas e ignorantes da presença humana no mundo.
Misturando flashbacks de uma história cativante a respeito da natureza e como a encaramos hoje em dia e a mais fraca história inicial, Lorax consegue entreter justamente onde não termina, e a maior prova é os idealizadores da história colocarem o título do filme para um personagem que não participa ativamente dos acontecimentos em sua volta, nem é determinante em nenhum ponto crucial. Além disso, as músicas colocadas em torno da história soam muito artificiais e em determinado momento acusam justamente a falta de lógica para as resoluções finais.
De qualquer forma, é sempre bom poder ver ideias novas de uma outra produtora que não seja a Pixar ou a Dreamworks, e nesse ponto podemos dizer que a criadora de Meu Malvado Favorito vem avançando em qualidade gráfica. Esperamos apenas que um dia suas histórias sejam tão fascinantes diante das principais rivais.
# Le mystère du Snæfellsjökull
Caloni, 2012-04-02 cinema movies [up] [copy]Esse média-metragem islandês procura mostrar a história de uma região no país em que, de acordo com "relatos" e com a declaração de Júlio Verne de que ali seria o ponto de entrada para o centro da Terra, é um lugar de concentração de energias e poderia muito bem ser o ponto de contato com extraterrestres.
Oscilando relatos com canções da cultura, somos guiados sempre pela visão de pessoas que, de uma forma ou de outra, querem acreditar que o local é mais do que parece, escondendo seus segredos para os céticos e se abrindo para os que verdadeiramente veneram o que a região representa.
Parecendo um pouco canalhesco em suas opiniões unilaterais, no fundo pode ser considerada uma crítica velada sobre crenças exacerbadas da humanidade, ou, por outro lado, uma espécie de homenagem às pessoas que decidiram nutrir suas vidas com os mistérios não resolvidos de sua existência.
Não há nada para se ver em Thor. É bobinho, está na direção automática e possui uma fotografia e uma trilha sonora que combinam com sua falta de personalidade. Ou seja, a Marvel pode levar a sério seus cronogramas e personagens, mas não o Cinema em si.
Inspirado no herói homônimo da revista em quadrinhos, que por sua vez foi inspirado na mitologia nórdica, o Thor do filme vem do espaço, de uma civilização mais avançada que os humanos e que preza pela paz entre os nove planetas por eles conhecidos com vida inteligente. Foram eles que expulsaram os Gigantes de Gelo da Terra quando eles nos atacaram (daí a mitologia). Thor é um dos dois filhos de Odin, rei da civilização e grande guerreiro que, mais do que ninguém, percebeu que a solução dos problemas não está na guerra.
Seu filho mais velho (Chris Hemsworth, colírio de revistas adolescentes), Thor, é jovem demais para entender isso. Loki, o caçula, parece inofensivo, mas assume em seu semblante de quem pensa mais do que fala. Ao desobedecer Odin, Thor é jogado para a Terra sem seus poderes para aprender o valor de seus atos. Na verdade o filme faz um flashback logo no início, entortando desnecessariamente a história, já que logo depois do início na Terra somos apresentados diretamente ao herói da história.
Herói este que possui uma curva de aprendizado tão rala quanto outros projetos mal-sucedidos, como o Lanterna Verde. Fora isso, o enredo secundário desaponta tanto na Terra quanto em Asgard. Nem Natalie Portman consegue convencer através de sua personagem bobinha cuja única função parece ser a de correr atrás do loiro alto que caiu do céu. Da mesma forma, suas contrapartes terrenas fazem rima com os amigos de Thor pois são tão desinteressantes e unidimensionais quanto estes. E Loki, ainda que comece a apresentar algum perigo na história, nunca é tão ameaçador a ponto de se fazer sentir presente na trama.
As tomadas abertas, por fim, acabam comprovando que os efeitos visuais do filme são elementos mais importantes do que a própria história dessas pessoas. O objetivo da história é sairmos ilesos e termos apresentados mais um personagem do futuro filme Os Vingadores, que tem gerado mais e mais filmes medíocres sem qualquer personalidade ou argumentação.
Nada como diretores como Wim Wenders e Martin Scorsese para resgatar a esperança do Cinema no 3D. Inicialmente usado para aumentar o rendimento das bilheterias e forçar o espectador a ir às salas ver algo que não poderia ver em sua própria casa, o 3D foi massacrado inúmeras vezes em seus primeiros anos, ou com brincadeiras adolescentes de jogar objetos na "cara" do espectador ou com as terríveis versões convertidas. Agora, aos poucos, diretores que conhecem Cinema em sua essência se arriscam a experimentar novos caminhos para a Sétima Arte, e quem ganha com isso obviamente somos nós, cinéfilos.
Aqui Wenders narra um documentário sobre a coreógrafa de dança moderna Pina Bausch usando para isso números protagonizados por alunos que aprenderam com ela o significado místico e essencial da dança. E aqui é preciso abrir um parênteses sobre o uso do 3D, que não é simplesmente parte itinerante do filme, mas praticamente um personagem e uma ferramenta de linguagem. Wenders entende isso e faz de tudo para que isso seja visível para o espectador, além da óbvia experiência de usar os óculos 3D.
Podemos notar isso desde o início ao perceber que, diferente de outros projetos que usam a tecnologia, o desfoco não é usado, de maneira que podemos olhar para qualquer parte a qualquer momento. Para chamar nossa atenção, a decupagem aplica porcentagens de quanto cada personagem e objeto ocupa na tela em vez de desfocar todo o resto. Isso permite, por exemplo, que olhemos para qualquer participante de uma fila indiana de dançarinos, tema recorrente ao longo do filme. O uso de ângulos não-retos nos ambientes, aliado com uma profundidade de campo evidenciada pelos elementos em cena em diferentes distâncias da tela ajuda o espectador a ter uma imersão que não seria possível sem um preparo tão experiente de cada cenário. Dessa forma, ao colocar uma mulher ao fundo, de vermelho, carregando uma árvore, Wenders está nos mostrando os limites de sua construção da cena. E, obviamente, da mesma forma, quando brinca com metalinguagem ao perceber que uma largura de campo maior no 3D dá a impressão dos objetos assumirem as características de uma maquete, o filme brinca com esse "defeito" de uma maneira brilhante, ajudando mais ainda em nossa imersão naquele mundo novo.
Indo mais além do que na arte da decupagem, ou seja, dar formas tridimensionais às cenas, o filme brinca com metalinguagem de uma maneira sutil mas efetiva. Note, por exemplo, como existem momentos em que um projetor exibe as mesmas danças vistas em uma parede 2D para um "público" -- ou seja, pertencente ao filme -- em 3D. Quando as danças voltam com uma terceira dimensão, possuem uma energia tão forte na transição que é como se fosse sugerida uma troca de papéis com o público real -- nós, no cinema -- para que virássemos o 2D de outrora: o ambiente multidimensional do filme, tão forte em sua mensagem corporal, toma as rédeas da realidade, mesmo com seu aspecto onírico.
Apesar de haver talvez um abuso aqui e ali envolvendo um trem suspenso e não haver uma narrativa clara da história, esse espírito de experimentar com o 3D caminha junto com a própria dança de Pina, focada mais na alma e na individualidade. Não existem caminhos errados, mas apenas a descoberta de cada um. Dentro dessa ótica, faz todo o sentido um filme que envolva os dois -- Dança e Cinema -- de maneira indissociável. Sem a tecnologia 3D, esse filme não existiria. E nem deveria. Wenders sabe o que está fazendo, assim como Scorsese. Hugo e Pina são a única coisa hoje em dia que dá esperanças ao 3D de se aliar ao Cinema como arte.
Quadros episódicos e geralmente com a câmera parada foram a forma da diretora e roteirista aumentar nossa cumplicidade com a protagonista absoluta Lucy (Emily Browing, de Desventuras em Série e X-Men: Primeira Classe). O fato do ritmo do filme ser mais lento não é para que fiquemos com sono, mas que olhemos com mais atenção ao que está acontecendo de fato, e não apenas na superfície. Assim como as paredes invisíveis de Dogville estamos testemunhando essas cenas que poderiam muito bem ter acontecido na vida real, com a diferença que na vida real ninguém ficaria sabendo. A fotografia triste e que ao mesmo tempo evoca um ambiente onírico parece querer dizer que essa realidade, ainda que triste, não pode mudar por causa de seus personagens e não de suas situações.
Lucy é uma estudante que realiza diferentes trabalhos e atividades para conseguir dinheiro, como ser cobaia de um laboratório e faxineira em uma lanchonete. Porém, além disso, não há nada mais que defina Lucy, como seus amigos ou suas relações. Quando a vemos iniciar atividades menos louváveis como vender seu corpo para bizarros clientes de sua cafetina acabamos por conhecer seu corpo melhor do que ela mesma, e talvez esse seja o grande drama exposto na tela, representado em quase sempre vermos a protagonista a partir de uma determinada parte do filme mais dormindo do que acordada.
Quem sabe, talvez, estar dormindo não seja o estado normal de Lucy, e nós é que estamos sonhando?
Funny People, aqui no Brasil conhecido como "Tá Rindo do Que?" e lançado diretamente para as locadoras por não ser um filme típico para o grande, mas limitado, público de Adam Sandler, é uma mescla entre drama e comédia, que está presente exatamente por ser esta uma história em torno de um comediante de sucesso que, como muitos no ramo, iniciou sua carreira na comédia de stand-up (entre eles, Jim Carrey, Robin Williams e Eddie Murphy).
George Simmons é aclamado pelo público e faz sucesso com seus filmes de humor duvidoso (Adam Sandler, quem poderia ser). Quando ele se vê diante de um problema de saúde que pode lhe dar apenas mais algum tempo de vida ele decide refrescar seu repertório de piadas e voltar a ter mais contato com o público de stand-up, como se quisesse um contato mais íntimo com seus admiradores e ao mesmo tempo anunciasse para todos de forma velada seu fim mais ou menos próximo.
Para ajudá-lo ele encontra Ira Wright, um comediante que ainda está no início (Seth Rogen) e que lhe consegue criar piadas interessantes. Ira, com seus problemas em relação a mulheres, é cômico e trágico ao mesmo tempo, o que, como uma síntese interessante da psique do comediante é o que parece melhor resumi-lo. Exagerado em sua ingenuidade, consegue ser tocante em alguns momentos, como ao admirar o jatinho que o espera para acompanhar Simmons.
Como comediantes que são, a vida desses sujeitos parece envolver sempre uma ou duas piadas em diálogos ocasionais, como se tirassem inspiração a partir daí, uma ideia muito poderosa, pois cria empatia para o público e os torna mais únicos em sua forma de fazer humor. Dessa maneira, enquanto Ira faz de maneira inconsciente piadas que evitam o contato feminino George aponta exatamente essa ferida no repertório do amigo, mostrando de maneira sutil o ressentimento que Simmons tem pelas pessoas.
Aliás, a atuação de Adam Sandler aqui pode-se dizer muito acima da média de seus trabalhos costumeiros, o que não implica em um grande papel, mas já é alguma coisa. Competente assim como o resto do grupo e contido como deveria ser um comediante prestes a morrer, Sandler impressiona mais por querer representar alguém que não seja ele mesmo, apesar de ironicamente estar inserido em um personagem que diz muito sobre sua personalidade. Significativo também notar que, talvez devido às limitações nas atuações do elenco, Judd Apatow tenha escolhido cortes frequentes em diálogos, mesmo os mais intimistas, demonstrando que muitas vezes apenas uma direção mais presente consegue extrair tomadas interessantes de atores na maioria das vezes medíocres.
No entanto, a história move-se pelo drama e é uma pena sentir a duração maior do que necessária em diversas cenas expositivas do caráter do protagonista, como se precisássemos acreditar que por trás daquele humorista cruel existe um ser humano que se preocupa com seus entes queridos. O que não deixa de ser curioso, pois é justamente a parte engraçada da trama que consegue informar no subtexto das piadas contadas e apenas isso bastaria para informar o espectador.
"Dê seu preço. Eu quero vender minha alma. Sem passado. Sem futuro. Apenas um ganancioso presente."
Há uma unicidade entre as três histórias contadas em Three Times que consegue ser percebida tanto pelas suas semelhanças quanto pelas diferenças. O uso de fotografias diferentes, mas todas belíssimas, para distinguir as três épocas onde as história se passam é um meio de diferenciar que acaba juntando exatamente pelas belas cores utilizadas apropriadamente em cada situação: o belo é o elemento de união. Elementos mais óbvios como figurino e direção de arte também executam sua função divisora, mas ao unir os episódios em torno de dois carismáticos atores Zui hao de shi sabe que conseguirá acertar em cheio o tom de universalidade dos temas, por mais espaçados e únicos que eles sejam.
Até porque, em sua essência, o filme como um todo fala sobre o tempo e como ele influencia as pessoas nos elementos mais simples, como a comunicação, seja ela por carta tradicional ou uma mensagem de texto dos tempos atuais. O que diferencia nossa percepção nem é a mensagem em si, mas o tempo que ela leva para chegar ao receptor.
Iniciando com a história apaixonante do jovem casal em uma visão idealizada do amor, repleta de ótimas músicas da época que refletem exatamente isso, Zui hao sabe que haverá um eco simétrico e revelador na parte final, passada nos tempos atuais entre um fotógrafo e uma cantora. Enquanto isso, a história do meio, mais antiga, mostra elipses imensas, de meses, além de usar de maneira inteligente a técnica do cinema mudo, ao tirar a voz da boca dos personagens e colocar em um letreiro que também lembra um pergaminho, referenciando que naquela época não tínhamos gravações de voz, e cada palavra era importante, ou cada diálogo, espaçado demais.
Porém, a verdadeira maestria da montagem reside no ato final, onde temos exatamente o oposto: nossos pensamentos, falas e textos trafegam tão rápido, a informação que nos chega é tão instantânea, que ela simplesmente nos escapa, deixando-nos atrasados em relação à nossa própria fala. É por isso que só ouvimos as palavras de nossos personagens após seus lábios começarem a se mexer ou até mesmo a digitar. Se por um lado a primeira história era a mais romântica, não há mensagem filosófica mais poderosa e poética do que essa.
O Buraco é muito mais sobre nossa posição como seres humanos e como nos relacionamos com ambientes e situações que quase sempre nos diz mais do que ela mesma. Após a descoberta de uma epidemia de um vírus que levava à loucura e à morte em uma região de Taiwan o governo ordena a retirada das pessoas e deixa o local em estado de quarentena. No entanto, vários moradores fazem questão ainda de sobreviver no bairro onde antes viviam normalmente, só que com o passar do tempo o estado mental e seu ânimo estavam muito diferentes do usual. O aparecimento de um vazamento no chão entre os apartamentos de um rapaz e uma moça, que vivem em torno de goteiras e vazamentos, representa não só o estado de calamidade do local como o próprio estado de espírito.
Nesse ambiente ostensivo e isolado, a chuva nunca passa, e as goteiras apenas aumentam a desilusão de que um dia tudo volte ao normal. A única esperança da moça que vive agora com um buraco no teto é enfeitar sua realidade em torno de números musicais que imagina estar participando, e se não fosse isso o filme seria um mistério ainda maior. Aos poucos somos informados dos detalhes da doença que atingiu a população. Mas o diretor Ming-liang Tsai está menos preocupado com isso do que com o psique dos seus personagens, que não tem nome, e que por isso representam os sobreviventes desse mundo.
A direção de arte é opressiva. A fotografia parece ampliar a imundice de um clima eternamente úmido. Não é preciso criar um mundo inóspito e desconhecido para entendermos a angústia que aquelas pessoas vivem dia a dia. Talvez o próprio fato de estarmos em terreno conhecido torne tudo mais cruel por seu realismo. Não são os efeitos visuais que convencem sobre o fardo dessa vida, mas a imaginação. E essa não tem limites.
Baseado em um seriado dos anos 60 escrito por Gene Roddenberry (1921-1991) onde a nave U.S. Enterprise comandada pelo Cap. Kirk explora o espaço e tenta manter a paz entre os Planetas Confederados, Star Trek já começa o projeto com um enorme desafio. Juntos, tanto a pressão dos fãs para que o reboot da saga seguisse os mesmos rumos da série original, focada no intelecto das situações, quanto a pressão comercial para que o filme não fizesse as pessoas acostumadas às explosões no espaço de Star Wars e derivados bocejassem na sala de projeção conspiravam para seu fracasso completo.
No entanto, eis que surge um roteiro desenvolvido pelo dupla Roberto Orci e Alex Kurtzman que consegue ao mesmo tempo ser inteligente e ágil (e é difícil conceber que ambos assinam o roteiro da catástrofe megalomaníaca de Michael Bay, Transformers 3). A história resolve focar, de maneira orgânica, na montagem da tripulação original da Enterprise e a história de seus principais tripulantes, notadamente, claro, Capitão Kirk (Chris Pine) e Spock (Zachary Quinto), o vulcaniano que não sente emoções e que é o contrapeso do instintivo Kirk.
O filme surge como um recorte fluido de situações que favorecem tanto o embate físico quanto o psicológico, como podemos notar na primeira parte da saga através dos atos dos jovens Spock e Kirk, em linha com suas futuras personalidades. Ciente disso, a direção sempre constante de J. J. Abrams emplaca rimas magníficas que adicionam profundidade à trama, como o momento em que o pequeno Kirk destrói uma "antiguidade" ou no momento que observamos a metade humana do jovem Spock dando vazão à sua raiva e incompreensão diante de sua origem mestiça.
Tudo isso, porém, ainda seria chato se não pudesse despertar no espectador médio o interesse pela trama, que consegue se construir apenas através do desenrolar natural das relações entre os personagem e das belíssimas "tomadas externas" do espaço aberto e de planetas exóticos, que não funcionam apenas como meros efeitos, mas criam o contraponto necessário com a gigante e ao mesmo tempo minúscula Enterprise. Ainda construída em cima da nave, as cenas mais movimentadas conseguem ser não apenas ágeis mas inteligentes, pois refletem as personalidades de seus personagens, como (mais uma vez) as ações impensadas do incauto Kirk e as frias decisões do ponderado Spock.
Até mesmo o humor está presente, de maneira pontual e que funciona perfeitamente como alívio cômico dos momentos de tensão que este intercala. O timing cômico de Chris Pine e Simon Pegg como o empolgado/atrapalhado Scotty conseguem criar um contraponto humano às atitudes sempre milimetricamente calculadas da tripulação da Enterprise.
Porém, o que chega realmente a dar um nó na garganta é a maneira orgânica com que o novo Jornada consegue explorar e homenagear a série antiga. Mesmo para quem não conheça quase nada sobre o original, será difícil passar ileso da maestria com que a história consegue explicar uma improvável relação. (Quem dirá o que os fãs devem pensar.)
Conseguindo criar um desfecho satisfatório e que ao mesmo tempo abre o leque de possibilidades para continuações, o novo Star Trek é uma notícia muito positiva para os cinéfilos, pois consegue através de decisões inteligentes e bem orquestradas agradar gregos e troianos, algo que, diga-se de passagem, não é tão fácil em outras galáxias tão tão distantes.
Agora que o segundo filme da nave Enterprise chegou fica claro o empenho de J. J. Abrams em estabelecer a amizade entre Kirk e Spock, além da confiança e dedicação do primeiro com sua tripulação, como pilares para qualquer aventura que a nave da Federação tenha pela frente.
Star Trek não é ainda um "Star Wars para adultos" porque seu foco não se localiza na emoção das arrancadas da Enterprise ou em seus tiros e avarias (e como dá pau nessa nave). Por enquanto, graças a um delicado trabalho de composição do diretor, roteiristas e elenco, a pirotecnia da ação fica escalada como entretenimento George Lucas, mas isso não prejudica o fã dos detalhes mais fascinantes da agora série: como humanos conseguiriam a sanidade no espaço com os seus riscos sempre iminentes, a solidão das decisões de seus líderes e o empenho individualizado de cada membro desse grupo que, antes refém da tecnologia que os possibilita viajar para as galáxias mais distantes, são reféns do destino que escolheram.
Nesse sentido, é justificável que Abrams decida investir tanto tempo no primeiro filme justificando as escolhas de cada elemento da tripulação. E não estou falando apenas de Kirk e Spock, mas cada cena com um dos participantes da série clássica ganha um ar de substituição à altura, o que garante o imenso prazer do fã e evita que o espectador iniciante se aborreça ao ter que conhecer tantas pessoas diferentes de uma só vez (que, diga-se de passagem, aqui são tratados como seres de carne e osso, ainda que menos dramáticos que os protagonistas).
Pelo contrário. Se há algo que vai na contramão da obra de George Lucas é a criação de personagens. Para Lucas, são todas figuras icônicas que merecem ser reverenciadas (quando a maioria não merece mais do que uma olhada). Para Abrams, são pessoas comuns tentando dar o máximo de si na aventura singular de exploração do espaço. As comparações são descabidas, mas ensinam a nos pensar o que distingue Star Trek como série.
# Engenharia Reversa em Itajubá
Caloni, 2012-04-17 [up] [copy]Essa segunda (ontem, 16 de abril de 2012) foi dia da minha palestra na Unifei, parte do II Composium Unifei, que reúne diversos profissionais e suas especialidades para que estudantes vejam o quão útil pode ser o curso de engenharia.
Tive o prazer de conversar com diversos alunos após a palestra, e me animou muito saber que existem pessoas no mundo acadêmico considerando a possibilidade de escovar bits como um meio de vida. Espero que muitos pesquisem e testem seus conhecimentos em torno da arte da Engenharia Reversa e, em casos extremos, entrem em contato comigo, pois estarei feliz em responder dúvidas pontuais ou direcionar melhor o aprendizado.
O que eu aprendi durante o evento foi que a Unifei já é um polo de engenharia dedicada à formação completa dos seus alunos e uma base de pesquisas realmente interessantes. No entanto, eles querem mais, e me parece que o futuro reserva muitos desafios e conquistas naquela região no que diz respeito à P&D de novas tecnologias em um grau de maturidade que o país, infelizmente, ainda não foi capaz de atingir.
Tudo isso, contudo, depende do grupo dos focados professores e organizadores do evento, cuja companhia tive o privilégio de compartilhar. É preciso tirar o chapéu para o que estão fazendo em Itajubá. E preciso agradecer a Rodrigo Almeida pelo convite para a palestra; foi de fato uma experiência única conhecer o campus e a maravilhosa cidade mineira.
Aleksandr Sokurov tem um estilo próprio para contar histórias. Quase sempre apostando na imersão do espectador pelos longos quadros e movimentos exóticos de seus personagens, muitas vezes a situação é propícia e gera grandes trabalhos (como Mãe e Filho), e em outras, como este Moloch, fica aquém do impressionante, mas mesmo assim é uma imersão que vale a pena ser vivida.
Estamos diante de uma história que contém figuras históricas do nazismo que passam um fim-de-semana isolados em um castelo em cima de um monte onde nada pode-se ver abaixo a não ser uma névoa impenetrável. Nesse cenário podemos notar tanto a liberdade explícita do ambiente (como pode ser visto na primeira tomada, quando uma mulher desfila nua em torno das paredes externas do castelo) quanto a liberdade implícita contida na posição privilegiada daquelas figuras, no auge da Segunda Guerra Mundial. Vistos sempre em torno da névoa da região ou em aposentos quase sempre grandes demais e mal iluminados, representando com maestria tanto a privacidade quanto o aspecto obscuro de suas personalidades em torno da grandiosidade de seus atos (não aqui, historicamente).
Diante disso, é compreensivo e ao mesmo tempo surreal vermos um Adolf Hitler livre das amarras existentes em suas aparições públicas, tão efusivo e eloquente. É preciso dizer que não apenas ele exerce um papel hipnótico na inusitada história como seus aliados Josef Goebbels e Martin Bormann realizam atos impensáveis se imaginarmos o poder de influência dessas pessoas na opinião pública de toda a Alemanha.
Nesse sentido Moloch é uma redescoberta e ao mesmo tempo reinterpretação desses personagens históricos fascinante. Por outro lado, isso nos nega a visão mais realista, e pode soar uma viagem um tanto além das fronteiras entre a ficção e o documentário, visão essa que estamos acostumados a ver em filmes que lidam com a história em geral.
Hitler está, mais do que nunca, fora do seu eixo. O trabalho de Leonid Mozgovoy parte do correto pressuposto que pessoas são pessoas, independente de serem ditadores sanguinários ou camponeses. A partir dessa universalização ele insere elementos únicos da psique do ditador alemão que poderiam existir em uma figura histórica e controversa como ele. Portanto, faz pleno sentido os diálogos do Führer oscilarem entre patéticos e brilhantes.
Porém, muito diferente do que vemos no brilhante "A Queda!", aqui há uma introspecção que ao mesmo tempo que nos revela muito, ainda abre um leque ainda maior de nuances, principalmente na relação entre Hitler e Goebbels e as respectivas esposas Eva Braun e Magda Goebbels. Talvez isso alerte para o fato que, não importa o quanto estudemos sobre essas figuras históricas, elas são e continuarão sendo imensos poços de mistério, e nunca conseguiremos entendê-los, mesmo que conseguíssemos observá-los na privacidade de seus lares.
É um sintoma relevante do Cinema no Brasil que os temas mais polêmicos, salvo jovens clássicos como Cidade de Deus e Tropa de Elite, sofram uma obliteração criativa. Xingu, novo trabalho de Cao Hamburguer na direção (O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias), com produção de Fernando Meirelles (que dispensa apresentações), não consegue fugir desse estigma completamente, embora tenha seus bons momentos.
Baseado nas experiências que três irmãos passaram durante uma expedição de reconhecimento de áreas inabitadas no Brasil, o filme traça uma relação entre os históricos Villas-Bôas e suas versões fictícias. Com narração em off de um dos irmãos o filme segue um rumo didático e burocrático, salvo os empolgantes momentos de ação ampliados pela ótima trilha sonora. Os pensamentos narrativos depois de um certo momento nem mais importam, pois o impacto gerado pelo encontro entre os índios e a nossa civilização dispensa palavras (em que língua deveriam elas ser ditas?).
Porém, em troca dos ótimos momentos silenciosos entre dois povos no meio da mata virgem há uma mensagem idealizada e romantizada a respeito da situação dos ingênuos e incapacitados índios após a chegada dos brancos maldosos e gananciosos que simplesmente fica difícil de engolir. Podemos sentir esse ponto de vista unilateral não apenas nos representantes do governo central estereotipados, mas também na fotografia granulada que nos remete para uma realidade utópica e distante. Se não é o bastante, a própria visão desgarrada do mundo real de Cláudio Villas-Bôas é destruída por ele próprio e seus impensados atos.
É muito fácil assistir à Marvada Carne sem compreender o mínimo de subtexto em uma trama que de tão simples parece totalmente despretensiosa. No entanto, se engana quem imagina que existem filmes que estão aí apenas para entreter. Todo filme reflete necessariamente uma opinião, um argumento e um ponto de vista. Partindo desse princípio, podemos afirmar que A Marvada Carne não só contém muito mais do que aparenta ter em sua superfície como tristemente seu conteúdo carece de exemplos na recente filmografia da comédia nacional, que aposta na exploração sexual e nas piadas contemporâneas vazias.
Vejamos, então. Nhô Totó possui apenas um sonho na vida: comer carne de boi. Para conseguir o que quer, resolve se mudar e encontra uma oportunidade de tornar seu sonho realidade se comprometendo com uma garota cujo pai supostamente pretende matar um boi para a festa de casamento. A garota, aliás, é Fernanda Torres, com seus 20 e poucos anos, já demonstrando seus trejeitos e talento para representar personagens caricatos mas verossímeis em seu contexto.
É com essa argumentação simples e com o título sugestivo que o filme consegue não apenas extrair humor das situações na roça e do falatório caipira típico da região como extrair um conteúdo inclusive de cunho político: como é possível que um cidadão que trabalhe tanto e viva em um país especialista em exportar carne (como um programa de TV inclusive consegue ressaltar o fato) não possa saborear, pelo menos uma vez na vida, um produto tão presente na economia local? Existirá termômetro melhor da desigualdade social do que quando os cidadãos de uma nação não podem sequer apreciar o que de melhor produzem?
Consequentemente, por sua desproporcional importância na "saga", a carne é elevada à própria categoria de protagonista, pois é ela que move as ações de Totó do começo ao fim. Ações essas ritmadas por um competente trabalho de Alain Fresnot na função de montador e orquestradas pela somatória de canções regionais, incluindo aí uma bucólica participação de Tonico e Tinoco em uma espécie de baile da região, que criam o ambiente perfeito, aconchegante, que irá criar o contraponto dramático do terceiro ato, quando Totó experimenta o caos e a desorientação de uma "tal de cidade" e seu progresso desordenado.
Mais um filme dos anos 80 que envelheceu muito bem. Leveza e ingenuidade caminham juntos na história dos quatro amigos que partem em uma jornada com o objetivo de se tornarem heróis. E por mais piegas que pareça a argumentação de Conta Comigo, ela é levada a sério, o que faz toda a diferença no desenvolvimento dos personagens (que não são crianças genéricas).
Dessa forma, as personalidades de Gordie (Will Wheaton), Chris (River Phoenix), Teddy (Corey Feldman) e Vern (Jerry O'Connel) não são levadas apenas pelas suas impecáveis e inspiradas atuações, mas também por suas roupas, suas casas e seus pais, em um esmero imperceptível (o que o faz tão bom) de direção de arte e figurino. Ainda recheada de pequenos pedaços de músicas da época, a trilha sonora transporta-nos facilmente.
No entanto, o que garante uma atenção e carinho pela história não poderia ser mais nada que sua universalidade, já que cada um de nós, em menor ou maior grau, já vivenciou diálogos ou situações semelhantes. E não há nenhuma técnica mágica de Cinema que consiga um nível de cumplicidade tão grande como esse: o da vida real.
# Os Vingadores - The Avengers
Caloni, 2012-04-28 cinema movies [up] [copy]Há um momento na nova produção da Marvel em que o personagem central Nick Fury (Samuel L. Jackson) comenta que o conceito de super-heróis é antiquado. Iss pode até soar contraditório vindo de uma figura como Nick, crente que sua heterogênea equipe de seres com poderes extraordinários, mesmo com suas diferenças, é o melhor que a Terra precisa em momentos de apuro. Porém também é uma maneira do espectador não-fã de quadrinhos conceber o absurdo da situação de reunir tantos heróis em uma única história. E se a maior virtude de um filme é conhecer seu universo e fazer de tudo para que as pessoas acreditem nele, nesse sentido Os Vingadores se sai muitíssimo bem.
A história começa quando experimentos em torno de uma nova forma de energia acabam trazendo para o planeta o semi-deus Loki (Tom Hiddleston), irmão de Thor (Chris Hemsworth). Loki não deseja nada menos do que conquistar a raça humana e se tornar governador do que restar de uma provável guerra entre mundos. Considerando que esta é uma "continuação" de diversos filmes periféricos (Homem de Ferro, Capitão América, Thor) e muitas informações seriam por demais redundantes, o filme se concentra nesse núcleo essencial para que entendamos o tom de urgência para que Nick Fury acione rapidamente todos os heróis conhecidos e "monitorados" pela S.H.I.E.L.D., uma organização que a princípio zela pela paz no planeta.
A ameaça iminente em torno de Loki e da aparente inesgotável fonte de energia que possibilitou sua vinda é o grude para que o ritmo da história continue constantemente acelerado e que aceitemos que muitos dos detalhes envolvendo os personagens ou mesmo seu passado sejam ignorados. Não havendo muito espaço para explicações, com uma introdução que necessariamente precisa cortar uma enorme lacuna envolvendo a própria S.H.I.E.L.D., o que sobressai são justamente as interações entre os heróis e suas diferentes personalidades, o suficiente para que entendamos suas reais motivações e o potencial de cada um. Dessa forma torna-se discutível, por exemplo, o tempo empregado para explorar a história da já conhecida Viúva Negra (Scarlett Johansson), o que nada acrescenta à trama, ao mesmo tempo em que nada sabemos sobre o estreante Arqueiro (Jeremy Renner), que fica em segundo plano mas que desempenha um papel mais ativo nas cenas de ação. E se estamos falando das potencialidades de cada herói não deixa de ser curioso que uma reviravolta envolvendo a figura de Bruce Banner (Mark Ruffalo) e seu Hulk pareça mais uma trapaça do roteiro do que algo que o enriqueça.
Enfim, há obviamente uma disparidade de personalidades e atuações, mas isso acaba por tornar mais interessante a interação entre eles, como as conversas entre o comprometido Steve Rogers/Capitão América (Chris Evans) e o descompromissado e irreverente Tony Stark/Homem de Ferro, que continua sendo interpretado com uma dedicação ímpar de Robert Downey Jr. e que aqui é um ponto alto na trama, mérito dos roteiristas ao entenderem sua importância para os fãs. É particularmente divertido, por exemplo, compreender que Stark é muito mais interessante fora de sua armadura e que Bruce Banner, por sua vez, o seja "dentro dela". Não deixa de ser curioso, também, a fixação do primeiro pela criatura verde escondida entre os nervos do controlado Doutor.
Já tecnicamente Os Vingadores, como não poderia deixar de ser, é deslumbrante. Além dos trabalhados efeitos visuais, uma fotografia estilizada e ligeiramente sombria dão o tom da trama, ao mesmo tempo em que um aspecto de tela não tão largo favorece a identificação do filme com as próprias referências aos quadrinhos. Já o mais decepcionante em vários pontos é a burocrática trilha sonora, que sem imaginação não consegue de fato incorporar-se ao que está ocorrendo na tela, com justa exceção para a aparição de Hulk e as proporções dramáticas que isso acarreta. Mas o que se revela mesmo como uma das mais completas experiências em filmes do gênero é a montagem, sempre fluida nos diálogos e absurdamente convincente nas cenas de ação, que mesmo nos momentos mais caóticos consegue guiar o espectador através de sua lógica visual pelo meio do campo de batalha. Ainda ciente de sua função na narrativa, se abstêm em uma significativa sequência, que além de tirar o fôlego ainda possui o significado intrínseco de vermos todos os heróis lutando juntos como uma equipe (e daí a necessidade de não haver cortes).
Mesmo assim, se Tom Hiddleston faz um esforço reconhecível para transformar seu Loki em louco temível, o mesmo não se pode dizer do design de arte dos seus vilões, sem personalidade e criatividade, resumem-se a seres sem uma face humana que chegam para aterrorizar as pessoas da forma mais sem imaginação possível, voando em círculos e escalando prédios para atirar a esmo em torno de humanos desesperados, cuja única reação se resume a correr atônicos e nunca ser atingidos. Considerando que o tema central nunca foi em momento algum a ameaça que o mundo corre, mas a interação entre os heróis que pretendem salvá-lo, é significativo que o filme foque mais, por exemplo, neles sendo abativos e ficando exaustos, o que não deixa de ser uma maquiagem eficiente principalmente em figuras mais humanas como Capitão América, Viúva Negra e Arqueiro.
Nunca cansativo em seus 142 minutos de duração, o final precoce apenas prenuncia o mais uma vez óbvio: essa é apenas a introdução de um grupo que promete participar em outras aventuras. Considerando que o filme consegue transportar-nos facilmente para esse universo, por mais absurdo que ele seja, e ao mesmo tempo fazer-nos empolgar com a interação entre os heróis e suas cenas de ação de tirar o fôlego, essa é uma ótima notícia.
No começo, assistimos à rotina de Okwe (Chiwetel Ejiofor) em seus inúmeros empregos, incluindo taxista clandestino no aeroporto e recepcionista de um sombrio hotel nos subúrbios de Londres. O clima opressivo e pessimista apenas aumenta conforme a história se desenrola, e a única esperança de paz parece residir nas gavetas do IML, junto do único amigo de Okwe. Vemos tudo sob o ponto de vista de Okwe, o que não é necessariamente uma coisa boa.
Todos os personagens que encontramos nesse pedaço de mundo esquecido possuem suas funções nessa alegoria da imigração ilegal. Estão todos mais ou menos ligados ao que ocorre nos quartos mais obscuros do hotel que Okwe trabalha, inclusive sua colega de domicílio, a bela e assustada Senay (Andrey Tautou, que consegue uma competente personificação que retira parte de sua doçura vista em O Fabuloso Destino de Amelie Poulain). Uma intrincada rede de relações é montada, e cada situação aumenta o significado da vida dessas pessoas. O fato de Okwe ser médico não é por acaso, assim como não é o acaso que faz com que seu companheiro de partidas de xadrez lide diretamente com a morte (e nesse sentido o filme faz uma bela, mas igualmente obscura referência ao O Sétimo Selo e a partida de xadrez entre o cavaleiro das Cruzadas e o diabo em pessoa).
Mas quem realmente faz diferença é Chiwetel Ejiofor, pois é através de seu olhar cuidadoso que observamos e vamos aos poucos percebendo o horror em que essas pessoas vivem e o horror dentro de algumas dessas pessoas. O dia e a noite se misturam em uma fotografia sombria e que apenas se diferencia pela cor dominante, enquanto uma trilha sonora seca e quase imperceptível marca a passagem do tempo. Uma história mental, mas que aqui consegue empregar um ritmo que nunca se perde graças a um roteiro e direção coesos com uma montagem que privilegia as excelentes tomadas do diretor, que oscilam entre um close do recepcionista e o que ele vê. Sem contar que o jejum de sono faz com que a câmera também oscile em torno de relógios e de ângulos muitas vezes distorcidos, mas nunca deixando sua hábil manipulação do tempo.
Com um final enfraquecido justamente por dar ao espectador um pouco de alívio, só que falso, de que vai ficar tudo bem (quando na verdade nada mudou), a situação apresentada está longe de mudar. Nesse sentido não é tão corajoso, por exemplo, quanto O Jardineiro Fiel. Mesmo assim, uma agradável surpresa para quem procura por um olhar diferente sobre a cidade de Londres e suas injustiças ocultas.