Quando assistimos à introdução que marca o início da amizade entre John, um garoto de 8 anos (Bretton Manley), e Ted, um ursinho de pelúcia que começa a falar a partir de um desejo que o garoto faz para uma estrela cadente, entendemos ser essa amizade o núcleo da história dirigida e escrita por Seth MacFarlane, do desenho politicamente incorreto Family Guy, e que aqui além de dirigir dubla o ursinho com sua voz. Apenas o fato do filme acreditar nessa relação entre os dois é o suficiente para fazer com que o espectador faça o mesmo, e desista de assistir mais um besteirol com piadas envolvendo ursinhos de pelúcia falantes. Ted é tão ou mais real do que John, e depois que ele e John "crescem" (Mark Wahlberg) nunca deixam de honrar a promessa que fizeram quando crianças: que seriam companheiros inseparáveis.
O problema é que, apesar de John e Ted agora terem vozes mais grossas e John estar até namorando por quatro anos com a estonteante Lori (Mila Kunis) não faz com que ambos deixem suas manias de quando crianças, como fazer trocadilhos estúpidos, usar referências aos anos 80 e fazer piadas sobre peidos. No entanto, a proporção com que isso ocorre reflete a fase adulta, e agora a dupla de amigos, bebe, cheira e faz piadas envolvendo inúmeros palavrões (suavizadas por uma legenda mutiladora, o que provavelmente deve se repetir na versão dublada). Esse desapego de John com a vida adulta faz com que Lori se canse deles, e a relação entra em um impasse: ou ela ou o urso.
A produção abraça os anos 80 e toda a nostalgia da época através de uma fotografia com cores mais pálidas e uma trilha sonora muito à vontade com o tema, buscando inspiração em obras como E.T. e Esqueceram de Mim. Sua direção de arte busca retratar o período sem exageros, mas aplica cuidados necessários para que percebamos se tratar de uma singela homenagem. Afinal de contas, o mundo de John reflete essa realidade, onde o centro é seu ursinho Ted. O saudosismo faz parte da experiência de convivermos com o ser de pelúcia falante, e o diretor Seth MacFarlane consegue perceber isso e não estragar tudo engarrafando a história no formato medíocre das comédias românticas que seguem uma fórmula.
Nesse sentido, a comédia politicamente incorreta é inteligente o suficiente para não cair na batidíssima gafe da auto-paródia, se mantendo na superfície com uma história tão sensível quanto cômica, e ainda conseguindo manter uma saudável dose de humor negro (e, sim, isso é possível). Seus personagens são cativantes, por parecerem reais, e a sensação final é de que deveríamos passar mais tempo com esses caras. Não importa que um deles seja um urso de 30 centímetros se ainda consegue ser divertido.
Vendo dois anos depois, Ted me parece um filme extremamente coeso e coerente com sua proposta, algo quase que imprevisível, considerando que seu diretor e roteirista Seth MacFarlane é conhecido pela série de animação com piadas sem contexto formada por gags que produzem risos pelo absurdo e pela repetição de piadas: Family Guy.
Porém, é necessário dar o braço a torcer: usando como premissa o urso que magicamente ganha vida para uma criança e passa a conviver com ela até depois dos seus 30 anos é uma metáfora eficiente para os jovens que se recusam a amadurecer e costumam colocar a culpa no resto do mundo pelo seus fracassos. A maneira com que o filme discute isso consegue trazer ao mesmo tempo as piadas sem contexto de Ted assim como o drama de um personagem (um Mark Wahlberg assustadoramente eficiente) que ganha vida pelas conversas com seu urso (dublado pelo próprio MacFarlane).
No topo da lista de melhores filmes de todos os tempos, Cidadão Kane, em 2012, deixa a respeitável posição para o suspense Um Corpo que Cai. É uma notícia que não muda em praticamente nada a importância da obra de Orson Welles para o Cinema, mas altera a percepção do espectador médio para com a Sétima Arte. Se antes as pessoas não enxergavam como que fosse possível que um filme preto e branco recheado de diálogos e múltiplos pontos de vista, uma bagunça, enfim, pudesse ser considerada a obra máxima audiovisual, com o filme de Hitchcock as coisas ficam um pouco mais fáceis.
Afinal de contas, a história gira em torno de elementos muito mais simplistas que a grandiosidade do roteiro de Wells. Aqui temos apenas um policial aposentado (James Stewart) por conta de um trauma com alturas que o fez perder seu parceiro do topo de um prédio e o impede de subir escadas longas. Recebe, porém, uma proposta de um velho amigo para que investigue o paradeiro de sua esposa, a bela Madeleine (Kim Novak). Ela, aparentemente, está tendo alucinações que a faz pensar ser outra pessoa e vagar pela cidade sem rumo definido. Sem muito o que fazer, boa parte do filme se dedica a esse passatempo em que o espectador exerce o mesmo fascínio que o protagonista a descobrir detalhes da vida de Madeleine, até o já esperado clímax.
Porém, não conte com um enredo simplista demais. Hitchcock faz questão de tornar os detalhes simples os mais visíveis possíveis para o terceiro ato do longa, que é de arrebatar. A sua câmera sugestiva apresenta pistas falsas e reais que se misturam em um jogo de imersão completa do espectador à prova de algo palpável. O "Vertigo" do título original diz muito mais do que simplesmente o medo de altura. No entanto, há ângulos extremamente inusitados na história e no visual do filme que dizem muito mais sobre a psique do espectador. Os enquadramentos quase sempre incluem elementos próximos e distantes da câmera. As cores, representativas ao máximo, enfocam o estado de espírito de seus personagens e suas identificações com aquele mundo. Uma fotografia belíssima de Robert Burks continua belíssima e vívida em todas as cenas. E a trilha sonora de Bernard Herrmann é um encantamento à parte e com certeza participa ativamente de toda a história, sem nunca soar intrusivo demais (apenas quando precisa). Para quem está ouvindo pela primeira vez, vai notar certamente as mesmas notas em determinada cena de O Artista, que homenageia o filme.
Até os detalhes cafonas hoje em dia, apesar de datados, possuem um significado maior naquele universo. Ótimos filmes criam ótimas histórias utilizando um tema e gênero qualquer. Filmes inesquecíveis respiram seu tema e se aprofundam nele o tempo todo. É impossível resistir à beleza de uma obra de arte como Vertigo.
Os juízes do futuro pós-apocalíptico em Dredd utilizam apenas duas ferramentas para fazer valer a ordem: uma pistola com diversos tipos de disparo e uma interpretação literal das leis. Olhamos essa realidade através do implacável juiz que empresta seu nome ao título, que em suas rondas se limita a aplicar a sentença cabível aos criminosos, incluindo aí a pena de morte. Sua decisão do que fazer a seguir é a resposta da pergunta como posso melhor julgar este caso.
Se passando em uma cidade pós-apocalíptica de proporções continentais chamada pomposamente de Mega City 1, seus sobreviventes precisam suportar, além da radiação que os circunda, uma violência constante e em um grau cada vez mais desumano. Para manter a ordem os já citados juízes possuem o poder conjugado de policiais que capturam os criminosos, os julgam no mesmo lugar e, se necessário, aplicam a sentença definida. Os objetivos por trás dessa organização nunca são reveladas, e nunca conhecemos os governantes (se é que existem) da caótica megalópole.
A história gira em torno do implacável juiz Dredd (Karl Urban) e a novata Anderson (Olivia Thirlby), uma pequena ilha de beleza em meio a tanta opressão e que possui poderes psíquicos resultantes de sua vivência em meio à radiação, e que por conta disso ganha créditos junto à corporação, mesmo não se destacando em seus exames admissionais. Para seu teste prático ela é levada junto em uma missão para descobrir o assassino de três pessoas em um prédio dominado por Ma-Ma (Lena Headey), a líder inescrupulosa de uma gangue que vende uma droga conhecida como slo-mo, que como o nome diz, possui o curioso efeito de retardar os sentidos na mente de uma pessoa.
Aqui reside, aliás, uma das maiores virtudes de Dredd: o uso orgânico do 3D. Além de investir em planos fundos com longuíssimos corredores e gigantescos arranha-céus, o que já causa um efeito e tanto, a tecnologia consegue ir além e compor quadros multidimensionais que não agridem os olhos justamente por serem filmados em uma câmera lentíssima, resultado mais uma vez orgânico pois enfoca o ponto de vista dos usuários de slo-mo. O efeito é ressaltado ainda mais pelo uso estético de partículas em suspensão que, apesar de marca registrada de Guy Ritchie, aqui encontra um uso muito mais legítimo.
Porém, Dredd não se destaca apenas pelo seu aspecto visual, mas pelas ideias por trás dele. Utilizando um uniforme que nunca revela seus olhos, para proteção e para uma alusão à justiça cega, os juízes reafirmam sua imparcialidade através dos seus atos quase mecanizados. Curioso notar que Anderson não utiliza o capacete para não prejudicar sua mediunidade, e o fato dela ler a mente das pessoas cria um contraponto interessantíssimo que é explorado apenas marginalmente: enquanto Dredd executa suas ações baseado apenas nos acontecimentos à sua volta, Anderson enxerga também o contexto das pessoas que encontra, o que a possibilita, por exemplo, identificar uma vítima em meio a uma gangue sanguinária, ou expandir o significado da vida dessa pessoa, o que gera a cena mais tocante e desafiadora do filme, com a capacidade real de fazer-nos pensar a respeito de toda aquela matança com um olhar mais crítico.
Aliado a isso, temos a informação extremamente relevante, mas não tão óbvia a princípio, da existência de juízes corruptos, que fazem favores aos criminosos em troca de dinheiro fácil. Na posição de uma figura que os cidadão devem não apenas obedecer, mas confiar, exatamente por se tratar do executor e julgador de seus atos, essa simples metáfora da vida real consegue ilustrar de maneira extremamente eficiente os estragos em nossa sociedade de uma justiça enviesada.
Contando com uma conclusão simplista mas corajosa por deixar claro não se tratar de um final feliz, Dredd ainda se afirma otimista por um simples ato de humanidade vindo de um ser que teria tudo para continuar isolado de seus sentimentos. Uma mensagem que se torna ainda mais poderosa depois de termos participado do processo sanguinário responsável pela morte de dezenas de pessoas, pelo simples fim de fazer valer uma lei que não permite a reflexão de como nos devemos organizar como seres humanos e ainda continuarmos humanos.
# Looper: Assassinos do Futuro
Caloni, 2012-10-09 cinema movies [up] [copy]Não é sempre que uma ideia fantasiosa pode render uma boa história, como infelizmente foi visto no irregular O Preço do Amanhã. Porém, apenas a tentativa de usar um conceito futurístico como viagem no tempo e tentar aplicá-lo em um filme de ação já merece créditos. No caso de Looper estamos falando de um roteiro original escrito e dirigido por Rian Johnson, que também assina a dupla função em Vigaristas e A Ponta de um Crime.
Roubando cem por cento de nossa atenção desde o início, estamos em 2042, quando a viagem no tempo não foi inventada ainda, mas para onde são enviadas pessoas de 30 anos no futuro para serem eliminadas por uma gangue de assassinos. A explicação é muito sensata: em 2072, as técnicas forenses estarão tão avançadas que será impossível eliminar por completo o corpo das vítimas. Para essa função são contratados delinquentes que precisam apenas apontar seus bacamartes para onde a pessoa do futuro surgirá e atirar. O bacamarte, vale a pena notar, só serve de fato para atirar em alvos muito próximos, sendo quase ineficaz em uma luta armada.
Tendo todos os detalhes extensamente explicados pela figura onisciente de Joe (Joseph Gordon-Levitt), um looper ainda em início de "carreira", a grande questão que o filme coloca é que a aposentadoria desses sujeitos é feita no mesmo molde: o próprio assassino é enviado do futuro para que ele mesmo termine o serviço, eliminando-o e criando uma espécie de suicídio com 30 anos de atraso. Acostumados a receber o pagamento em barras de prata presos ao corpo de suas vítimas, essa última "remessa" possui uma generosa quantidade de ouro, para que de fato o looper viva o resto de sua vida longe de problemas.
Não há por que duvidar que essas pessoas matem a si próprias para aproveitar uma vida de luxo. O universo criado em 2042 é uma extensão da nossa própria sociedade atual, onde o que mais importa é usufruir o momento e ostentar personalidades que hoje soariam patéticas caso não se venerasse tanto o estilo do século XX. Há inclusive uma piada a respeito de gravatas proferido por Abe (Jeff Daniels), o mandante dos loopers que viajou para o passado justamente para criar a gangue de assassinos.
O filme realmente começa quando um pequeno infortúnio na vida do jovem Joe faz com que ele evite matar seu eu do futuro (Bruce Willis) e desencadeie uma série de eventos que poderão culminar na eliminação de um suposto chefão supremo do crime que estaria eliminando todos os loopers um a um. O encontro dos dois, é preciso dizer, constituiria o maior deleite para os aficionados por desafios intelectuais de viagem no tempo, caso esse não fosse um filme de ação. No entanto, é possível se divertir com o fato de que o velho Joe obviamente é mais experiente que o novo, e é esse que salva "a si próprio" de maiores problemas.
O roteiro de Rian Johnson é rico em pequenos detalhes que exploram esse universo de maneira a sempre evitar que o espectador entenda o que está para acontecer. Com isso, a tensão se cria a partir da história como um todo, e não apenas de pequenos fatos isolados, o que engrandece a narrativa. No entanto, para isso o diretor Rian Johnson gasta boa parte do tempo apresentando corretamente seus personagens intermediários, que terão um papel cada vez mais primordial na história, e note como essa importância é pontuada por uma breve homenagem à série O Exterminador do Futuro. No entanto, justamente por aparecerem na metade da projeção essas longas introduções forçam o ritmo para um drama e acabam distraindo mais do que impulsionando a tensão. Salvo, é claro, por uma sequência pontual capaz de tirar o fôlego de quem estava já se acomodando para dormir na poltrona do cinema.
A experiência final, porém, não consegue negar que no fundo estamos vendo a dois filmes diferentes, de tão distintos os conflitos. Isso, contudo, não desmerece a virtude de Looper de conseguir criar tensão justamente pela sua história original o suficiente para ganhar nossa atenção. Um mérito, é preciso dizer, cada vez mais raro em Hollywood.
Se visto como um filme com começo, meio e fim, Cosmópolis pode se transformar em uma decepção. No entanto, se percebermos o padrão utilizado em seus caóticos diálogos, será possível destrinchar ao menos o tema da história: um dia na vida de Eric Packer (Robert Pattinson), um bilionário resultado da soma da especulação financeira com sua inteligência fora do comum ao transformar em dinheiro a commoditiy mais importante da nossa era: a informação. Sintetizando a frase anterior, como o próprio Eric o faria: um dia na era da informação.
Aliás, o uso ou desuso de padrões é uma constante na jornada do bilionário dentro de sua limusine em direção à única coisa que sabemos de concreto que ele deseja: um corte de cabelo. Para isso, participaremos de uma visão extremamente peculiar de Cronenberg a respeito do que ele pensa desses senhores donos das pessoas e suas vidas, visionários que se misturam com a população com a única exceção de não fazerem parte dela. É uma jornada de ego, onde o melhor exemplo que pude encontrar foi quando o próprio Eric conta uma passagem de sua infância: contando quatro anos de idade, calculava quanto pesaria em cada planeta do sistema solar. Como sua recente esposa conclui: o exemplo perfeito entre ciência e ego. Digo mais: temos nesse único exemplo referências à sua inteligência (tão jovem), o uso da informação comum (gravidade nos planetas) e a detecção de padrões (gravidade vs peso). A sua descoberta de criança será sua própria recompensa, o que mais uma vez é icônico: como se sabe, o que faz "traders" ganharem mais dinheiro que todos não é o foco em ganhar dinheiro, mas o desejo insaciável de estar certo. Estar certo e antes de todos.
Não contando sequer 30 anos, aparentemente não há mais nada de novo na vida de Eric, ou pelo menos nada que o interesse o suficiente para fazer mudar sua expressão. Assistimos estupefatos às suas tentativas em sentir algo novo, onde até a palavra "novo" é referência a uma droga usada pelos jovens. Note como o rapaz nem liga para o despudor com que fala dos seus funcionários, ou a maneira apática com que assiste por um de seus monitores no carro de luxo a um ataque brutal a uma pessoa conhecida, ou até mesmo eventos extremamente impactantes ocorrendo a poucos metros a partir de sua visão das janelas de sua limusine, tudo isso filmado com a calma e a competência de um maduro Cronenberg. Talvez no fundo ele saiba que nada pode atravessar seu carro/escritório "à prova de riscos", o que revela, através de sua falta de reação a eventos mais humanos, seu distanciamento das pessoas. Porém, ao mesmo tempo que compreendemos a postura apática diante da humanidade de Eric, é curioso acompanhar sua ânsia de conhecer tudo sobre as pessoas sob um ponto de vista observador e objeto, o que faz inclusive com as mulheres.
Ao mesmo tempo em que sua vida é baseada em comprar coisas e ele coisifique suas relações humanas, sua verdadeira paixão, embora notemos pela falta de outras coisas que o interesse, é a busca por padrões. Nesse momento o roteiro encontra sua razão de ser e os diálogos começam a fazer sentido pela sua falta de um sentido simples. A vida de Eric vai desmoronando e com ela sua lógica. Nós sentimos o mesmo que ele na sua impotência de entender a moeda chinesa na economia. As frases que ouvimos não fazem sentido, assim como as suas ações não fazem. Incapaz de entender sua própria vulnerabilidade dentro do sistema seu único anseio é ter o seu corte de cabelo, uma ação, a única, talvez, que o remeta à sua humilde origem, o que é fácil de notar pelas paredes sujas e pela cadeira infantil da barbearia, um carrinho velho e empoeirado. O fato de quando criança não querer se sentar na cadeira para crianças é sintomático e cria uma curiosa rima com sua própria limusine.
Se, por fim, entendermos as mensagens de seu segurança a respeito da ameaça que o cerca, e todos os elementos repetidos à exaustão em meio a conversas subjetivas e codificadas com seus outros funcionários, encontraremos por fim seu arco dramático: o impassível Eric que conversa em pé no começo de um ensolarado dia não é o mesmo excitado Eric do final da noite, ansioso por uma revelação do seu próprio destino, esse que não conseguiu prever. A participação apaixonada de um Paul Giamatti cria o contraponto que esperávamos não de um antagonista, pois não há inimigos para Eric, mas de alguém que, diferente dele, mas com as mesmas condições, não conseguiu ser ninguém além de um dejeto humano. Ambos objetificam as pessoas e até os sentimentos, mas Eric possui dinheiro/poder/influência. E isso, hoje em dia, é o que faz toda a diferença.
A produtora de animações Dreamworks ainda estava trilhando sua evolução qualitativa que a levaria aos inspiradores Kung Fu Panda e Como Treinar seu Dragão. Nessa aventura que se passa debaixo dos esgotos, no mundo dos ratos, os diretores David Bowers (Astro Boy) e Sam Fell (O Corajoso Ratinho Desperaux) lançaram mão do politicamente incorreto, marca registrada de suas animações e que a união Disney/Pixar parece apavorar, e criaram gags que divertem, mas quase nunca estão inseridas na narrativa, como a alusão ao peixinho Nemo ou enquetes protagonizadas por simpáticas lesmas. De qualquer forma, conseguem empreender um ritmo ágil e que mesmo atrás tecnicamente de sua rival Pixar, na época estrelando o estonteante Carros, conseguia empolgar pela capacidade de fazer rir sem precisar ensinar lições de moral quadradinhas ou muitas vezes já batidas.
# Ruby Sparks - A Namorada Perfeita
Caloni, 2012-10-17 cinema movies [up] [copy]Orquestrada pela dupla de diretores Jonathan Dayton e Valierie Faris (Pequena Miss Sunshine) e escrita pela atriz Zoe Kazan, que interpreta a Ruby Sparks do título, a história gira em torno de Calvin (Paul Dano), um jovem escritor que nem terminou o colégio e vendeu um livro de sucesso. Considerado por muitos um gênio da literatura (uma palavra que Calvin abomina), todos aguardam pelo seu próximo trabalho.
O problema é que Calvin não consegue mais escrever. Faz terapia para conseguir destravar sua inspiração, quando repentinamente começa a sonhar com uma garota (Zoe Kazan), algo normal na vida de alguém que está sozinho, já passou por uma decepção amorosa e não consegue encontrar alguém que preencha seu vazio. Ele escreve, portanto, em um ritmo cadenciado por suas noites de sonhos e páginas batidas em sua clássica máquina de escrever, um resquício, talvez, de um jovem escritor sem condições de ter um laptop ou um sinal de alguém que se considera único.
As coisas começam a fugir do lugar-comum quando misteriosamente Ruby Sparks, a menina dos sonhos e páginas de Calvin, aparece na vida real do escritor. Ele não é bobo, e imagina, como toda pessoa normal, estar alucinando. Até que descobre que todos à volta conseguem enxergá-la. A realidade mostrada pelos diretores parece difícil de assimilar, mais difícil do que outro filme que lhe faz eco, Mais Estranho que a Ficção, que abraça a estranheza da relação autor/personagem de maneira muito mais fluida. Aqui, a relação é mais de autor/namorada, o que confere um grau maior de intimidade com a psique de Calvin, ou seja, todos os trejeitos de Ruby refletem tão somente os desejos infantis do rapaz em torno da garota perfeita.
O que ocorre em seguida possui lógica mas perde em espírito. Se por um lado a história é divertida e tem um potencial fabuloso, por outro dependemos da imaginação pueril de um escritor sem experiência com mulheres (como seu próprio irmão enfatiza) para avançarmos nessa "relação" baseada em controle. E controle, não importa a relação, nunca é algo bom. O resultado, conforme acompanhamos a vida a dois do casal, é naturalmente imprevisível e explosivo, nunca constituindo algo completo e realizador para ambos (e a maneira como Calvin ordena que seu cachorro, Scotty, faça cocô durante seus passeios matinais é a rima semântica para entendermos isso).
De qualquer forma, "Ruby Sparks" agrada principalmente por não cair nos maneirismos do gênero, e por não transformá-lo em uma comédia barata. Existe a parte cômica, mas conforme o filme avança, vemos o lado cruel de seu protagonista, e a coisa deixa de ser engraçada para ganhar um peso dramático inesperado em uma história inicialmente tão leve. Apenas isso garante uma experiência única na telona.
Os Infratores é um filme de gênero: de gângsteres, para ser exato. Se passa na época da lei seca, quando comercializar bebidas nos Estados Unidos era um crime punido severamente. Acompanhamos a narrativa em off de Jack (Shia LaBeouf), um dos três irmãos Forrest (Tom Hardy), Howard (Jason Clarke) e Cricket (Dane DeHaan). Juntos formam a família Bondurant, que através do controle da distribuição ilegal de licores criados de forma caseira administram sua influência no Condado de Franklin, uma região isolada vizinha de Chicago (que, não é preciso lembrar, foi a morada de Al Capone).
A maneira quase episódica com que a história é conduzida, através de pequenos acontecimentos que, aparentemente inofensivos, revelam cada vez mais sobre a situação vivida por aquelas pessoas, foi a solução empregada pelo diretor John Hillcoat (A Estrada) para que consigamos apreciar o cenário do pequeno condado por completo, desde as diferenças entre os irmãos, a relação com as outras famílias e as autoridades e até a igreja local. Para isso boa parte do tempo é sabiamente empregada para distinguir seus personagens, transformando-os, aos poucos, em pessoas de carne e osso. A grande vantagem do projeto é contar com um elenco extremamente competente, que mesmo em seus papéis de menos destaque, como o do sempre excelente Gary Oldman como o gângster da cidade Floyd Banner, conseguem garantir o "seu momento", e quando olhamos para todas essas figuras ao mesmo tempo é possível entender o drama não apenas por sua violência gráfica, mas principalmente pelo seu lado mais humano.
Dessa forma, é vital que a atuação de Tom Hardy como Forrest Bondurant, o líder entre os irmãos e os seus negócios escusos, esteja afiada como uma navalha, e que seu sotaque interiorano cuspa semi-frases que dizem mais pela maneira com que são ditas do que pela frase em si. É dessa maneira que entendemos de maneira cômica um "sim" não dito para a recém-contratada garçonete de seu bar, a confiantemente linda Maggie Beauford (Jessica Chastain), que confirma que deseja que a moça trabalhe para ele, mas ao mesmo tempo tente empregar um desdém nesse desejo, embora sem muito sucesso. Da mesma maneira, a participação impressionante de Shia LaBeouf como Jack Bondurant emprega uma inocência meticulosamente construída para que o rapaz possa se transformar a qualquer momento em um membro legítimo da família, lidando com os negócios de igual para igual.
Não menos importante, porém, é a construção enérgica do odiável vilão Charlie Rakes (Guy Pearce), que com seus maneirismos urbanos e repulsa pelo meio de vida rural consegue a proeza de, com menos tempo de tela, parecer tão ou mais importante do que os habitantes da vila. Sua maneira de falar e gesticular lembra um Coronel Hans Landa (Bastárdos Inglórios) menos polido e mais mesquinho, embora dificilmente perto da comicidade dúbia de Christoph Waltz.
Fora o elenco afiado, e voltando ao filme em si, o que mais impressiona em Os Infratores é a montagem do tabuleiro para o seu xeque-mate fatídico, que é sublime em sutilezas. O cuidado e a calma com que os pormenores são colocados fazem valer a pena a paciência empregada na uma hora e meia inicial para a síntese do que a opressão às liberdades pode causar. Ou, por outro lado, talvez a opressão amoral seja o combustível para que nós, como seres humanos, consigamos evoluir ou para que um carro sem gasolina dê a partida.
# E se Vivêssemos Todos Juntos?
Caloni, 2012-10-21 cinema movies [up] [copy]"E se todos vivêssemos juntos" parte do princípio que se eu apresentar as características que definem cada um dos simpáticos velhinhos que protagonizam essa comédia poderia me livrar de qualquer compromisso narrativo e simplesmente criar situações engraçadas, livre das amarras de discutir uma questão importantíssima na Europa de hoje: a terceira idade se tornando uma maioria ativa e, se bobear, economicamente mais ativa.
O que não evita que o filme se torne uma experiência leve e agradável. O elenco formado por ícones como Geraldine Chaplin (Chaplin, Dr. Jivago) consegue arrancar risadas apenas aparecendo na tela, extravasando e exagerando seus caricatos personagens, expondo simultaneamente seu melhor e pior. Se não há na história aspirações melhores do que ser engraçadinho, ao menos temos um filme engraçadinho com charme.
Eclipse encontra no eterno drama -- protagonizado pelo trio Jacob (Lautner), Edward (Pattinson) e Bella (Stewart) -- o combustível para prosseguir com a saga das famílias de vampiros e lobisomems mutantes que povoam o limitado universo da escritora Stephenie Meyer.
O que distingue esse terceiro capítulo dos dois anteriores, além de efeitos digitais aprimorados e uma fotografia que elegantemente dá nome ao filme, são os velhos diálogos envolvendo a transformação (necessária) de Bella em uma vampira brilhante e o amor sufocante que um sente pelo outro inseridos em um clima de guerra, que pode explodir a qualquer momento, e que mais uma vez possui Bella em seu centro.
E quando digo "que um sente pelo outro" incluo aqui também os sentimentos do lobisomem descamisado Jacob, que deixam de ser completamente platônicos, em relação a Bella. O triângulo finalmente se completa em uma inspirada cena em uma barraca gelada, quando Edward finalmente confessa que seria capaz de gostar de Jacob. Os diálogos, como sempre, são bem atrapalhados, mas note o olhar dos dois rapazes e entenderá a mensagem muito melhor. Olhe em seus lábios e... bem, deixo o resto das conclusões para um próximo encontro do casal/trio no alto de uma montanha, quando precisarem armar novamente a barraca e se proteger da intolerância e do preconceito lá fora.
Começo a achar agradável a tragicomédia que aqui se configura.
Lado a Lado coloca a questão do formato digital no cinema exatamente como defende o título: uma alternativa para a arte que, assim como o colorido, o som e o 3D, talvez tenha ganho não uma ameaça, mas uma ferramenta.
Produzido por Keanu Reeves, que também é o entrevistador, a maior virtude do documentário talvez seja não resumir a questão como um mero avanço tecnológico, mas adentrar nas salas de edição e nas mentes de diretores, fotógrafos e montadores para extrair quais são os verdadeiros desafios que essa transição enfrentou e vem enfrentando como indústria e como trabalho nas mãos desses habilidosos artistas.
Possuindo a sabedoria em não dividir os lados entre contra e a favor, o filme mescla opiniões dissonantes sem manipular o debate para transformá-lo em discussão. Entendemos que não há conflito em usar digital, mas a necessidade de entendê-lo a ponto dele ser uma opção tão válida quanto a película.
Há filmes que possuem uma catarse tão forte e fluida durante a narrativa que parece fácil produzir isso no espectador. No entanto, muitas vezes tudo isso é fruto da nossa imaginação, e há um trabalho grande do início ao fim para que esse efeito seja criado da maneira com que ocorre. Ora, como explicar que um amontoado de bonecas consiga ser tão impactante para os nossos olhos?
Baseado em livro homônimo de John Boyne, o filme de Mark Herman narra as aventuras de um garoto cujo pai faz parte do exército nazista e precisa se mudar com sua família para uma casa extremamente próxima de um campo de concentração. Nele vive um menino de mesma idade e por isso forma-se uma amizade inusitada. O roteiro do próprio Herman consegue oscilar do frívolo ao cruel sem com isso perder o fio da meada, que é enxergar os horrores do holocausto através dos olhos ingênuos de uma criança.
Além de em pouquíssimo tempo de projeção conseguir a proeza de impactar-nos não só com a "solução final" de Hitler como também com os pequenos detalhes, como a convívio com um serviçal judeu na casa. Como se isso não bastasse, a história possui uma coragem fora do comum em sua conclusão, mas que com um pequeno gesto de reflexão é possível entender como era também inevitável. O impacto de um momento horroroso na história da humanidade não deve ser amenizado para irmos para casa tranquilos.
Solaris exige do espectador uma imersão surreal e ao mesmo tempo filosófica. Tudo bem que isso já é esperado de toda boa obra de ficção-científica, que nos coloca em uma realidade alternativa mas que continua debatendo temas da época em que foi feita.
Só que aqui estamos falando de uma união entre sci-fi e filosofia Tarkosvkiana. Quero dizer, o diretor é intenso. E é russo. Sonhos aqui não são apenas descritos: são vividos.
E por falar em sonhos, nos colocamos na situação do psicólogo Kelvin (Donatas Banionis), cuja missão se passa na estação espacial em torno da atmosfera misteriosa do planeta Solaris, que possui um oceano que se comporta como uma espécie de cérebro, materializando criaturas que se parecem (e agem) como humanos. Como não poderia deixar de ser, essas aparições estão deixando a equipe de pesquisadores extremamente perturbada, o que não os ajuda em nada a desvendar o funcionamento do planeta.
O mais curioso de uma história envolvendo gabaritados doutores é que estes fazem parte do filme, e por isso não conseguem entender algo que para nós, espectadores, munidos do poder da metáfora e alegorias, conseguimos enxergar de maneira muito óbvia: o oceano que adquire diversos formatos faz o papel da psique humana. E a psique não se desvenda, se interpreta.
E é exatamente isso que Tarkovski nos sugere, aplicando rebuscados planos e se estendendo em torno de quadros que repetem um padrão (ou a falta de). Quando Kelvin passa a conviver com sua ex-amada Hari (Natalya Bondarchuk), a experiência é tão intensa que é como se nós mesmos a conhecêssemos de outras vidas.
De certa forma, isso não é completamente mentira. O oceano de Solaris pode representar, de certa forma, a psique da humanidade inteira. A visão junguiana favorece as elucubrações filosóficas que ocorrem. E se estas podem parecer simplesmente jogadas, é preciso lembrar que ela está saindo da boca de representantes máximos da espécie humana (e Sócrates está presente em ambos os ambientes, na Terra e no Espaço). Estes homens não conseguiram desvendar Solaris assim como o Homem não consegue a si mesmo.
Que triste fim para o Homem que, por não saber quando vai morrer, vive apressadamente. Se pelo menos tiver apreciado uma sessão de Solaris, talvez a viagem não tenha sido feita em vão.
Não é difícil se interessar por Clara e Nicolai, os dois personagens de Noite No. 1, primeiro trabalho em longa metragem de Anne Émond. Ambos possuem angústias mais ou menos universais, e é isso que de certa forma os acaba unindo para uma noite de filosofadas e aberturas íntimas de seus medos e fraquezas. Encontramos os dois em pleno ato sexual, sensual mas realista, para logo em seguida os sentirmos como completos desconhecidos para nós mesmos e um para o outro.
A descoberta aos poucos das "verdades" por trás de cada um dos jovens é o grude da história, e os subtextos que tentam poetizar ou tornar mais profundo o significado de suas confissões, embora bonito a princípio, acaba soando enfadonho e desnecessário para entendermos a plenitude de seus atos. E os dois momentos em que ela tenta sair do apartamento acaba soando igualmente artificial, não colaborando para a dinâmica do casal. Aliás, parece que apenas a troca de frases semiabertas consegue manter o suspense, quando na verdade esse é apenas a metade do caminho. Diferente de Antes do Pôr do Sol, onde os personagens dinamizavam discussões relevantes e que ao mesmo tempo revelavam sobre a personalidade de cada um, aqui há uma parede invisível que impede essa conversa mais aberta, e transforma no fundo em dois monólogos feitos no mesmo ambiente.
Igualmente frustrante é sua conclusão, apressada e que passa despercebido de tão ignorada que é a dimensão dos traumas de Clara, que mesmo passando por uma espécie de catarse, jamais a colocaria na situação da última cena, colocando em xeque o respeito que o roteiro tem da sensibilidade do espectador. Um grave furo, se pensarmos que o filme todo se baseia apenas nisso.
Padak, primeiro trabalho do diretor Lee Dae Hee, não cria uma história muito envolvente, mas possui um arco que chega a ser angustiante e libertador. Basicamente acompanhamos as tentativas frustradas de uma cavala (uma espécie de peixe) em tentar escapar de um aquário de um restaurante de frutos do mar. Há muito diálogo e pouca ação. Quando há ação, a animação peca por recorrer aos mesmos movimentos vistos.
Talvez pelo aspecto técnico não chegar de fato a competir com os grandes estúdios, a fixação do diretor em animar sempre as cenas não corresponde aos seus esforços. Uma melhor forma de investir sua criatividade seria com o uso de cores e ritmo, estes sim com um potencial relevante. Dessa forma, chega a ser irritante o modo com que a câmera gira 90 graus a cada momento, um artifício repetido à exaustão, e empolgante as mudanças mais radicais de ângulo, como a que alterna a visão dos peixes e dos humanos, com a largura do quadro correspondendo a dois mundos tão distintos.
No entanto, há algumas virtudes interessantes, que poderiam talvez existir apenas em produções independentes como essa. A crueldade com que os peixes são vistos, sendo decepados pelo funcionário do restaurante e o prazer dos clientes em degustar os pedaços de um peixe ainda com espasmos, ou o modo claustrofóbico com que os peixes se aninham em fila para olharem para o seu chefe, uma arraia com uma história traumática no passado e que hoje se esconde debaixo de uma tampa.
Há números musicais, e são inspirados. A animação criada para eles é criativa, mas não consegue realizar uma transição do "mundo real" sem quebrar o seu ritmo. Se sai melhor os inúmeros flashbacks, que apesar de confundir presente e passado, passam uma imagem vívida da mente dos personagens, em especial uma cena envolvendo uma criatura à espera de sua morte.
O uso competente de uma "pista e recompensa" especial e o ritmo milimétrico da última cena consegue criar o clima angustiante no último momento, que faz quase valer os rodeios que a história passou até então.
Há uma introdução vigorosa e poderosa em Felicidade, novo trabalho da diretora Doris Dörrie (Cerejeiras em Flor). Sem diálogos e um jogo de sons e imagens extremamente econômicos em sua mensagem, acompanhamos a vida perfeita e feliz de Irina (Alba Rohrwacher) em seu país de origem seguido da tragédia que vem com a guerra, representada por um grupo impiedoso de soldados. O choque de realidades é intenso, mas em poucos momentos aliviado com a visão de um cervo, que representa não apenas a última visão de Irina e sua terra natal, mas a capacidade do filme de amenizar passagens fortes de sua história, uma virtude e ao mesmo tempo a sua maior fraqueza.
Mesmo debilitada emocionalmente, ou talvez por causa disso, Irina começa uma outra vida na cidade grande. A capacidade que ela tem de se manter de pé e continuar a respirar suas emoções só consigo atribuir à sua vida passada, plena e cheia de felicidade. A felicidade aqui tem cheiro e cor, representada por elementos simples como o mel ou um pouco de imaginação. Irina diz se alimentar de mel por ser uma abelha. Lembramos do enxame de sua fazenda fugindo dos tiros de canhão. O texto visual do filme é sempre forte e sutil como esse exemplo.
Irina conhece Kalle (Vinzenz Kiefer) e enxerga nele a mesma leveza que possui. Juntos tentam buscar novamente a felicidade, e mesmo que seja difícil nunca sentimos ser mais difícil do que é para qualquer um de nós, que precisamos quase sempre matar um leão por dia. É nesse ponto que a leveza do filme impede que acontecimentos particularmente trágicos e tensos não possuam espaço para crescer. Ao amenizar as situações, perde-se o potencial dramático por uma tenebrosa comédia, e com ela vai-se o significado maior do filme: a felicidade a qualquer custo sacrifica o poder da tristeza.
Um Inferno cresce bem, como qualquer trabalho de terror/suspense bem executado. O que fortalece o primeiro trabalho do diretor Tim Fehlbaum como trama, porém, é o uso sem ressalvas de um dos seus personagens mais importantes: o sol.
Acompanhamos a peregrinação de duas irmãs e um rapaz dentro de um carro completamente vedado através de um cenário que lembra um deserto, mas que possui estradas, florestas e postos de gasolina. Descobrimos que acontecimentos ainda não entendidos fizeram a temperatura na Terra chegar a níveis que matou boa parte da população por queimaduras e sede. Em um habitat agora seco, árido e sem leis, a busca por água é mandatória.
O uso de uma fotografia que prioriza em absoluto a luz incandescente vinda do sol e que consegue oscilar para um escuro débil de noite é a chave para que sintamos o mesmo que seus personagens. O sentimento de urgência de início é representado por uma câmera inquieta cheia de zooms, que felizmente é interrompida quando o grupo é abordado por um bando de homens que por algum motivo vem capturando os aventureiros por aquelas bandas, que geralmente chegam sedentos e debilitados. O esclarecimento dos mistérios é feito sem pressa e com uma cadência que cria tensão pelas complicações crescentes que prenunciam um terror completo. Os personagens, diferente de suspenses medíocres, não são estúpidos, nem as soluções para os conflitos vem de maneira fácil e mágica. Cada novo passo em direção ao terror possui suas complicações, que se desencadeiam em direção a uma perseguição climática das mais estonteantes, mais uma vez protagonizado pelo sol.
O jogo de cenas é rápido o suficiente para que as pistas-recompensas surjam naturalmente, o que é um ponto forte para a conclusão, que não soa forçada. De uma maneira completamente inusitada, cria uma rima sutil com a animação Padak, do coreano também estreante Lee Dae Hee, que igualmente brinca com a busca pela liberdade de um grupo. Pode ser uma tendência contemporânea ou é a vida pregando na arte a sua ironia.
Que filme odiável. Não que ele seja odiável do começo ao fim. Houve uma tentativa realmente sincera de quem vos escreve de tentar decifrar a narrativa difusa e aparentemente amadorística de um filme que estava sendo apresentado quase que como um tributo à vida do diretor Amos Gitai (presente na sessão) e sua mãe, que viveu as agrúrias do povo judeu desde muito antes da Segunda Guerra. A base da história são as cartas dela, que teoricamente poderiam fazer eco com décadas e mais décadas da visão judia sobre seu povo e suas relações com o mundo.
No entanto, o que mais vemos é o despreparo de diretor e montador em conseguir unir pontas que se confundem entre cenas documentais pré-ensaiadas, leituras de cartas de início a fim, cenas fictícias recriadas ou como peças de teatro ao ar livre ou como telenovelas da pior qualidade e, ainda, sequências inteiras que tentam unir todos esses elementos simplesmente sobrepondo-os com o uso de efeitos que poderiam ser comparados à festas de aniversário em um buffet infantil.
A falta das informações básicas sobre o que estamos vendo revela, além do amadorismo ensaiado, a descarada auto-indulgência dos seus criadores, crentes, talvez, que as importância do diretor e de sua vida fosse tão visível para todos os seres humanos que qualquer tentativa de criar um pano de fundo para o filme fosse inútil e óbvio demais. Bom, não é. Não me importa quem fez o filme e quais são os membros da família de quem fez o filme que nele aparecem. Menos ainda me importa sobre a confecção do filme no momento em que o estou vendo.
No entanto, o filme começa a se tornar odiável quando percebemos estarmos chegando em sua(s) conclusão(ões) e que não há qualquer menção ou relação entre as vidas que foram mostradas e com a vida do povo judeu de maneira geral. Se há, são pequenos traços culturais que, além de ignorar por completo que a maioria da população mundial não saber o que significam, ignoram que a maioria da população conhece o maior conflito da história ainda em andamento, com o povo palestino. Ignorar não só o povo judeu como um símbolo de resistência, como ignorar o povo da palestina como membros legítimos de sua rivalidade religiosa é o ponto mais controverso e enigmático da película. Qualquer interpretação pode ser dada. No meu caso, prefiro entender isso como um sinal de extremo mal gosto para com os espectadores e para com o Cinema. E isso em uma Mostra da Sétima Arte.
O pastor de uma pequeníssima comunidade com cerca de 50 habitantes (Rowan Atkinson) possui como preocupações diárias uma palestra que precisa proferir no encontro de pastores. Enquanto isso, sua cansada esposa (Kristin Scott Thomas) começa a planejar uma fuga com seu amante professor de golfe (Patrick Swayze). A vinda da nova governanta (Maggie Smith), porém, pode mudar completamente o que o pastor e sua esposa tinham em mente. De Bico Calado é ágil como deve ser uma comédia com pouquíssimas e pontuais tiradas, e se dedica a fazer um rodízio entre esses poucos temas. É leve para um humos britânico, e esquecível logo depois de assistido.
E não que ela não consiga. O problema é que a história gira muito em torno apenas de pequenos eventos que se refletidos não fazem muito sentido, o que torna tudo muito artificial e burocrático. Os cacoetes de Perez em frente à sua amada Romina (Leticia Brédice) são repetitivos. A narrativa apenas se move com essas incursões artificiais, como o conflito principal que parte do princípio que Romina, depois de tanto tempo vendo Perez, não consiga perceber que ele se trata de um tímido com problemas graves de comunicação.
Primeiro longa de Lars-Gunnar Lotz e seu trabalho de graduação, O Peso da Culpa gira em torno de Benjamin (Edin Hasanovic), um jovem delinquente que ao ser preso é transferido para um programa de sociabilização organizado por Niklas (Marc Benjamin Puch) e sua mulher Eva (Julia Brendler). Eva recentemente foi vítima de um assalto onde foi gravemente ferida. O grande plot do filme é que seu agressor foi justamente Benjamin, e essa descoberta feita por ele e como ele deve lidar com isso durante sua evolução como um rapaz menos agressivo e mais sociável é o conflito central que toma conta durante um certo tempo de nossa respiração.
É preciso destacar a atuação de Edin Hasanovic como um ponto fora da curva, que consegue trazer esse sentimento de impotência ante a culpa, por não saber mesmo o que fazer, mesmo estando arrependido até a alma. Já o tratamento dado à história por Lars-Gunnar passa longe do impacto capaz de causar, ficando sempre à margem de pequenos acontecimentos que nunca recriam os sentimentos de Benjamin no ambiente. A situação apenas piora quando seu relacionamento com uma das internas passa a ter um papel maior do que deveria na história, atestando a falta de foco da narrativa.
Com uma fotografia corretamente sóbria, cujas cores nunca aparecem por completo, O Peso da Culpa carrega a estigma de ter uma bela história para contar desperdiçada pela falta de ambição de sua direção. Esperamos que Lars-Gunnar tenha mais ousadia da próxima vez.
Shun Li e o Poeta assume que apenas o fato de inserir dois personagens de culturas e povos longínquos em uma terceira nação pudesse significar uma boa história. É possível apreciar a interação entre Shun Li, uma trabalhadora chinesa que assume o controle de um bar na beira do cais de uma cidadezinha litorânea na Itália, com "O Poeta", um pescador local que emigrou da Iugoslávia e que já aposentado começa a repensar sua vida de solteiro.
Unindo esses dois personagens metaforicamente pela lenda de um poeta chinês que possui um dia especial onde as pessoas colocam pequenas velas acesas no mar para que ele se salve, a relação entre Shun Li e o poeta de carne e osso se indefine como uma amizade verdadeira, pois não há tempo para que haja um amadurecimento nesse sentido. O que fica é a sensação de uma narrativa lenta que acrescenta muito pouco em suas incursões a respeito dos temas discutidos, como o trabalho injusto de Shun Li com os seus patrões e o preconceito entre povos.
No entanto, uma fotografia mais competente consegue nos transportar pelas emoções da nostalgia que o encontro entre duas inusitadas figuras poderiam causar. O mundo como é hoje é um novo universo de pessoas interconectadas. A visão dessas pessoas para seus passados não confere conforto por estarem vivendo em um ambiente que não mais reflete o que um dia foram. No sentido estético, o filme agrada pelo que como história não foi.
Era Uma Vez no Oeste parece ser a tentativa de Sergio Leone de fazer o "Grande Cinema", tornando todas as cenas costumeiras de seu faroeste mais solenes, lentas e cerimoniosas. Isso explica a trilha-comentário do músico Ennio Morricone, que oscila elegantemente entre toda essa solenidade e o pitoresco, com direito a pausa em uma música que lembra o cavalgar e que serve de tom cômico.
Essa ambição de Leone talvez fosse apenas um ledo engano, pois precisou filmar este épico para chegar em sua continuação temática em Era Uma Vez na América, que poderia muito bem ser exibido em uma sessão dupla.
Com exceção do cenário deslumbrante, as melhores partes do filme lembram muito as técnicas de enquadramento da trilogia dos dólares, em especial o último, Três Homens em Conflito. A montagem ritmada, que cria transições tão eloquentes quanto um tiro e um trem a vapor, exagera ainda mais o tom cartunesco já visto nos outros filmes. E pensar que tudo é feito sem efeitos de divisão de tela (como em Hulk, filme de Ang Lee) ou a fotografia alterada (como em Sin City). Não, aqui as pinturas que se criam com o aspecto panorâmico conseguem tanto evocar a beleza do quadro quanto seu tom exagerado.
Mas sou obrigado a voltar para a música. Morricone aqui cria um eco surreal vindo de uma gaita de boca tocada por ninguém nada menos que Charles Bronson, que faz o papel de homem misterioso junto com outros dois que logo se revelam: Jason Robards e Henry Fonda, este que depois de uma carreira como mocinho clássico faz aqui o seu primeiro papel de vilão, sendo por isso devidamente apresentado em uma cena particularmente cruel. Tanto essa mudança de expectativa com Fonda quanto o uso da harmônica com Bronson criam um clima estranho, quase onírico. E note como o som da gaita mescla com a música e tema e todos os outros sons do ambiente.
Aliás o uso do som "natural" no filme é digno de um maestro, pois este colabora com a tensão de uma maneira harmoniosa e ritmada, como pode-se ouvir logo na primeira cena, que utiliza o som de um velho moinho, o bater de gotas em um chapéu e uma mosca teimosa.
No entanto o mestre Leone quer deixar sua marca, e para isso tenta transformar seu bangue-bangue em uma alegoria do progresso - representado pelo trem. No fundo, a visão de Leone é um tanto ácida e talvez pessimista, pois em ambos "Era uma Vez..." os heróis e heroínas nunca representam a visão idealizada do bem, possuem falhas de caráter e conseguimos enxergar bondade em seus atos meramente pela situação onde se encontram.
Se bem que, de certa forma, a trilogia dos dólares dança no mesmo ritmo: fico feliz pelo músico ser o mestre Morricone.