# Memórias de um Assassino
Caloni, 2013-01-01 cinema movies [up] [copy]Memórias de um Assassino, do diretor Joon-ho Bong (O Hospedeiro, Mother - A Busca Pela Verdade), compreende que a principal faceta de uma investigação pode estar muitas vezes nos próprios investigadores. Apostando em nossa identificação com os detetives Park Doo-Man (Kang-ho Song) e Seo Tae-Yoon (Sang-kyung Kim), investe na dinâmica entre os dois desde até antes que o primeiro chegue na pequena cidade para ajudar as autoridades locais a desvendar o estupro e assassinato de duas bonitas jovens.
Infelizmente, muito do que se gostaria de saber sobre esses dois personagens fica mais oculto do que o próprio assassino. Nunca entendemos a real motivação de Park Doo-Man ter saído de Seul e nunca chegamos realmente a sermos justificados pelos atos de crueldade e manipulação dos suspeitos de Sang, forçando-se de todo o jeito a encontrar um culpado pelos assassinatos, mesmo que este nunca seja realmente incriminado.
O que nos sobra é a investigação em si, que se aproveita sim da psique dos dois policiais, mas consegue nossa atenção por mais de duas horas de uma busca frustrada exatamente pela criação de um ritmo que oscila de maneira competente entre o humor e o suspense. Acompanhamos cada pista e cada incidente como se fizéssemos parte daquele grupo, e perdemos e reganhamos as esperanças exatamente como eles.
Mantendo a coerência narrativa até o fim, um ato de extrema honestidade com o espectador, ainda que muitos possam não gostar da ideia, Memórias de um Assassino inverte nossas expectativas a todo o momento, misturando realismo e fantasia frequentemente. O final pertence ao campo do realismo, o que não o torna melhor nem pior que outros filmes do gênero, mas sim extremamente honesto.
# Os Bons Companheiros
Caloni, 2013-01-01 cinema movies [up] [copy]A primeira sequência de Os Bons Companheiros começa com os personagens de Robert de Niro (James Conway), Ray Liotta (Henry Hill) e Joe Pesci (Tommy DeVito) tendo que parar o carro para dar fim ao corpo que ainda insistia em manter-se vivo no porta-malas. A violência gráfica com que isso ocorre é sanguinária tanto na luz quanto no ato que ocorre na traseira do veículo. Quando acompanhamos o crescimento de Henry entre os gângsteres e voltamos novamente a essa cena é como se fizéssemos já parte do grupo: da gangue e da família que estes formam.
Não há limites para a violência filmada por Scorsese, mas há sempre um motivo muito claro para ela acontecer, nem que seja um acesso de raiva de Tommy, que, já sabemos, parece explodir pelo menor dos motivos de uma hora para outra. O interessante é acompanhar como Henry encara a impulsividade de Tommy, pois esta é a história de um homem que pertence ao grupo dos "Goodfellas", mas parece manter um dos olhos abertos.
Filmado com uma fotografia absolutamente soberba, de comparar-se a outra obra máxima, O Poderoso Chefão, não possui quase nada comparável ao filme do Copolla mesmo ambos sendo filmes de máfia. A exceção óbvia fica por conta do seu virtuosismo técnico, presente em ambos. Já acostumado com uma equipe que equilibra fotografia, direção de arte e trilha sonora à altura do roteiro e direção impecáveis, como pode ser visto em Taxi Driver e Touro Indomável, Scorsese ainda conta com a magnífica montadora Thelma Schoonmaker, que junto com James Kwei tornam a tarefa de acompanhar mais de duas horas de tensão e envolvimento agradável graças às belíssimas transições.
Não há mais nada a dizer sobre Goodfellas por enquanto, pois é um filme que deve ser degustado com certeza mais de uma vez. A primeira é uma imersão tão completa que acabamos fingindo não se tratar de um filme. É a vida real, romantizada, dramatizada, mas tão real que fica difícil separar os elementos que formam a obra de arte.
# No
Caloni, 2013-01-02 cinema movies [up] [copy]No poderia muito bem ser um documentário, uma vez que seu objetivo principal é aproximar o espectador pelo seu realismo. No entanto, a decisão de "estilizar" essa realidade com um pouco de ficção não poderia ser mais propício em um filme que, acima de política, trata dos detentores atuais do poder da influência no mundo: a publicidade.
Quando o ditador chileno Augusto Pinochet decide, pressionado pela opinião pública de um mundo cada vez mais globalizado, realizar um plebiscito para decidir se ele ficaria no poder por mais 8 anos, duas campanhas opostas ganham cada uma 15 minutos de espaço na televisão: uma pelo Sim, outra pelo Não. O publicitário René Saavedra (Gael García Bernal) é procurado para conduzir a propaganda democrática. Bem de vida, é um dos primeiros a possuir um micro-ondas, e sem motivos para entrar em um debate que poderia manchar sua reputação com seus clientes, René é movido por um misto de vaidade profissional e pessoal. Pelo lado profissional classifica seus trabalhos como expoentes máximos da comunicação com o público. Pelo lado pessoal sua ex-mulher e mãe do seu filho é uma perseguida política, o que poderia pincelar um pouco de humanidade em sua enigmática expressão.
O uso da tela quadrada e câmeras que tremem a todo momento denunciam o tom documental e caseiro da produção, ganhando o filme de imediato duas vantagens: 1) evocar o realismo necessário à nossa imersão na disputa política e 2) não causar a fuga dessa imersão toda vez que vemos os resultados das campanhas gravados como vídeos com qualidade televisiva da época e exibidos em "tela cheia". Poderia até dizer que existe uma terceira vantagem aberta a interpretações: estamos na era de Pinochet e um quadrado representa de maneira simbólica a realidade limitante e sufocante da ditadura.
A interpretação sóbria de Gael García Bernal (Má Educação, O Passado), nunca nos deixando perceber se ele de fato é a favor do "Não", consegue estabelecer um clima ambíguo ou pelo menos um futuro pálido ao não conseguirmos focalizar no filme se de fato a campanha tem dado certo com o público. Essa dúvida se torna tão eficaz que prova disso é ficarmos muitas vezes na incerteza de um evento ocorrido décadas atrás e teoricamente conhecido por todos. Ao mesmo tempo sua expressão praticamente inalterada ao acompanhar um projeto comercial em paralelo revela uma faceta interessantíssima do filme de Pablo Larraín (do filme Tony Manero), mesmo que levemos nossas ideologias para a sala de projeção e defendamos internamente nossas posições fica óbvio que o trabalho de René é pura publicidade e manipulação da opinião popular por meios não pensantes (o que traz à memória o plebiscito de 93 realizado no Brasil cuja presença de atores globais teve papel decisivo no resultado das urnas).
Quando ambas as campanhas vão avançando e aprimorando-se é inegável a força que o hino criado a favor do "Não" possui uma força incomparável com o apelo patético e repetitivo do Sim, cada vez mais caricato e vestindo suas tradicionais vestes acusadoras da oposição. Isso chega a ser sintomático nos dias de hoje, pois a democracia vendida pela campanha do Não possui um formato que não passa, de acordo com seu idealizador, de uma cópia barata de outras cópias.
E de certa forma a própria democracia é posta em xeque quando ela pode vencer através não da coragem do seu povo, mas pela visão de pessoas felizes que poderiam estar votando pela sua liberdade e felicidade ou por qualquer outro motivo. Como comprar coca-cola, por exemplo.
# As Aventuras de Pi
Caloni, 2013-01-03 cinema movies [up] [copy]Pi começa já anos depois dos eventos que são narrados, com um protagonista adulto (Irrfan Khan) e conversando com o escritor (Rafe Spall) que dará vida literária à sua história. Antes de conhecermos o herói temos uma breve introdução sobre o seu nome, uma longa anedota envolvendo um tio e sua fixação por piscinas e que termina em uma brincadeira boba entre matemática, razão e o trocadilho sobre o fato de Pi ser um número "irracional", e talvez aqui seja a origem da grande trollagem que acredito Ang Lee estar pregando aos religiosos que assistirem ao filme.
Quando jovem (Suraj Sharma), por ser indiano, Pi possui a religião naturalmente inserida em sua cultura, motivo pelo qual busca compreender a vida através da pluralidade destas, coisa que o sábio pai desaprova, pois para ele uma melhor ideia fosse primeiro usar a razão para chegar aos mesmos objetivos. E aqui chegamos em um dilema: é óbvio que um espectador religioso pode ter um contato mais profundo com os "desígnios do roteiro", mas estará raciocinando de forma tão desenganada quanto o próprio Pi. Chega a ser patético que o roteirista David Magee gere uma coincidência absurda fazendo com que o herói aceite ao mesmo tempo as religiões mais populares do planeta -- incluindo o deslocado cristianismo -- tentando obviamente atingir o maior número de espectadores "fiéis". Por outro lado, ironicamente, se um católico ao assistir o filme achar engraçado qualquer outro ritual não-cristão que Pi executa -- crente em suas outras religiões -- estará admitindo inconscientemente a sua ignorância destas e ao mesmo tempo sinalizando que é capaz de acreditar em qualquer bobagem narrada pelo herói.
A sensação que o filme nos traz desde o início, então, é que a narrativa se assemelha mais a uma parábola do que uma história feita para acreditarmos. O fato do protagonista ser extremamente religioso e levar sua religião para dentro do barco onde se torna o único sobrevivente de um naufrágio parece reforçar essa hipótese ainda mais, pois mesmo no limite de suas capacidades físicas as suas crenças ainda parecem dominar seu instinto básico e sua noção de realidade. Difícil acreditar que um sujeito desses tenha razão e discernimento para viver tanto tempo ao lado de um tigre, sendo que no começo da história já o vemos cometer a insensatez de querer ser amigo de um feroz carnívoro. O fato do tigre se chamar "Richard Parker", ou seja, antropomorfizado pelo nome de um humano, gera uma rima óbvia com o trabalho de Tom Hanks em O Náufrago e o seu inanimado e redondo amigo Wilson.
Tudo isso mais atrapalha do que ajuda nossa identificação com o seu drama e seus atos, que são tão destituídos de personalidade que muitas vezes até os ângulos da câmera reforçam para o espectador que Pi na verdade é qualquer um de nós. Não que isso torne tudo mais real, mas o problema é que suas reações são desprovidas de traços que o diferencie de qualquer outro ser racional em busca de sobrevivência (com exceção, claro, do seu disparate em ser amigo de um tigre no meio do oceano).
Porém, é inegável que o filme seja tecnicamente impecável e que isso gere uma beleza até então jamais vista com tanta naturalidade (com exceção óbvia do excelente Avatar). Irônico que seja o nosso avanço tecnológico um aliado melhor para tornar a história "acreditável" do que o próprio apelo religioso, que soa como uma discussão tão rasa e primária que chega a ser patético que ela ocupe tanto tempo no início. De qualquer forma, religiões à parte, a história não possui força o suficiente para transformar os eventos que ocorrem mais do que são: motivos para encher os olhos do espectador, e só. E mesmo o uso do 3D se limita ao básico, errando novamente ao utilizar o foco e acertando nas cenas com profundidade de campo. Mesmo assim, cenas muito movimentadas fazem perder facilmente a lógica visual.
Mesmo sem uma história que entregue alma à experiência de Pi, sua conclusão final ainda nos entrega através de um longo diálogo empacotado em uma embalagem de filosofia barata uma versão alternativa e mais realista da mesma história, com que o autor conclui que aceitar a versão mais fantasiosa é equivalente a acreditar em deus (qualquer deus). De uma maneira aparentemente ingênua Ang Lee parece dar mais motivos para os ateístas continuarem ateístas do que um conforto para os religiosos. Se bem que, considerando que o interlocutor de Pi logo em seguida explica toda a versão realista da história, seja compreensível que as pessoas talvez achem dignificante terem participado de um espetáculo visual que ilustra o mais novo conto criado: "A Parábola do Leão".
# O Presente
Caloni, 2013-01-06 cinema movies [up] [copy]O filme baseado no livro homônimo de Jim Stovall, escritor cego engajado em trabalhos para deficientes, claramente tenta passar uma mensagem de caridade para com os mais necessitados. Para isso, contudo, se esquece de estabelecer uma relação afetiva com seus personagens e acaba resumindo uma sequência de eventos simbólicos que forçam a emoção do espectador.
A história gira em torno de Jason (Drew Fuller), um playboy irrelevante e sem personalidade que se vê diante de uma série de tarefas que deverá executar para receber a herança do seu recém-finado avô, um magnata do petróleo que construiu um império em torno do qual sua desprezível família cresceu. Acaba se encontrando acidentalmente com Emily Rose (Abigail Breslin), uma menina irritante pelos seus questionamentos autoritários e que sofre de leucemia (mais um motivo para chorarmos).
A participação de Abigail Breslin, aliás, é totalmente descartável e considero a maior inversão de expectativa do projeto: como pode a doce menina de Pequena Miss Sunshine se transformar em um ser tão irritante e continuar irritante mesmo que saibamos que ela possui pouco tempo de vida?
Porém, isso não importa. O roteiro de Cheryl McKay consegue estragar praticamente toda e qualquer surpresa que poderia surgir do testamento do avô de Jason ao utilizar situações batidas aliadas a diálogos incrivelmente pedestres, em uma tentativa desesperada de tornar as cenas mais impactantes. Quando Jason e sua namorada estão em um restaurante logo após sabermos que todos os bens do rapaz foram confiscados, é óbvio que ele não será capaz de pagar a conta. Mesmo assim McKay insiste e faz o garçom comentar que o casal não está aproveitando sua garrafa de vinho e que é uma "garrafa muito cara para seus clientes".
Conseguindo aliar um roteiro de estrutura previsível e situações específicas improváveis, o diretor Michael O. Sajbel tropeça na coerência da passagem do tempo, pois até a barba do rapaz cresce de maneira inimaginável durante uma semana preso, nem se comparando à sua mudança em um mês como mendigo: nenhuma.
Ao transformar o avô de Jason em um vidente-defunto com o desfecho do seu testamento-vídeo, a lição de moral de Jim Stovall consegue ser ainda mais doutrinária, chegando a rivalizar com Um Conto de Natal, de Charles Dickens. Infelizmente estamos a milhas de distância do poder da mensagem de Dickens com o seu Ebenezer Scrooge.
# O Impossível
Caloni, 2013-01-07 cinema movies [up] [copy]A abordagem que o diretor espanhol Juan Antonio Bayona realiza para contar a história da família que se separa durante o Tsunami de 2004 que matou mais de 230 mil pessoas consegue transmitir a emoção pelo drama específico sem se esquecer da perda incomensurável de vidas naquela tragédia que mudou a vida de muito mais pessoas que podemos imaginar. Diz ainda o que números nunca serão capazes de dizer: que cada vida que se perde é uma tragédia particular.
Os efeitos visuais e sonoros, com certeza ocupando a maior quantia da verba para o projeto, são importantes para que o trágico espetáculo fique na nossa mente por um bom tempo, mas apenas o seu uso inteligente, visceral, garante a sua efetividade no máximo. As tomadas mais apavorantes são as que nada vemos, mas ouvimos apenas, o barulho destruidor.
A trilha sonora, tão importante quanto os sons do próprio filme, marca presença até quando não se ouve, pois precisamos daquele respiro do silêncio, a reflexão entre cenas, para seguir adiante. Tão digno de nota quanto é a maquiagem utilizada especialmente em Maria, a mãe dos meninos, que sofre sérios ferimentos e vai aos poucos definhando, debilitada, tornando cada fala sua um ato de coragem por si só.
Desde o início percebemos uma troca muito justa: a inevitável previsibilidade do ocorrido deixa espaço para a intensidade de cada momento. O uso inteligente da câmera a torna uma testemunha com "opinião formada": se aproxima quando exige intimidade, treme como nós mesmos tremeríamos e ainda tem a vantagem da uma visão panorâmica que tanto assusta quando é usada. É ela que acusa um Deus ausente, procurando-o nos céus logo após a tragédia e, já no hospital, usa-a na "primeira pessoa" para expressar que, se Ele existe, parece observar, impotente, os mortos enfileirados e a mãe que aguarda pela segunda cirurgia. As pessoas desse filme parecem ter muito mais força que seu Deus, e quase não sabemos de onde elas tiram a vontade de continuar.
Quase não sabemos, mas está ali todo o momento. Seus olhares denunciam facilmente, especialmente os de Lucas (Tom Holland), que transforma seu desespero em esperança de reencontrar o pai. Seu desempenho é a grande revelação do filme. Nitidamente à frente dos adultos, enxergar tanta vontade de viver e de ajudar o próximo em uma criança se torna de repente a mensagem mais poderosa que poderíamos aprender, essa nossa geração envelhecida e hipócrita.
Criando ou recriando um final cinematográfico, o que embute na mente do espectador que tudo aquilo poderia realmente ter ocorrido, vibramos e torcemos por aquela família como se fosse a única sobreviventes que se desmanchou pela fúria das águas. Pecando talvez apenas ao não pontuar corretamente o esforço do pai, que varre literalmente todos os hospitais de abrigados (e deve ter perdido um pedaço de esperança em cada um deles) O Impossível não tem um final 100% feliz justamente por não esquecer que desastres como esse costumam marcar uma geração inteira. A coragem de não se esquecer disso é digna dos aplausos finais, uma decisão capaz de mudar algo em nós mesmos.
# Era Uma Vez Eu, Verônica
Caloni, 2013-01-10 cinema movies [up] [copy]Cinema, Aspirinas e Urubus se tornava mais interessante à medida que prestávamos menos atenção à história e mais em seus personagens. Aqui, o diretor Marcelo Gomes repete a fórmula de maneira mais introspectiva ainda, acompanhando a vida de Verônica através quase apenas de seu gravador e seus pensamentos.
Encaramos o ponto de vista da garota a respeito de si mesma assim que ela sai para o mundo real, se dedicando como residente de seu curso de medicina em um hospital público. Mora apenas com seu velho pai, fã de vitrola e de seus discos antigos, e só existe uma coisa que parece tornar sua vida menos comum: o sexo sem restrições. Ou, no caso de Verônica, há uma restrição: ela é incapaz de sentir qualquer sentimento pelos seus casuais companheiros.
A forma com que o filme vai catando as pecinhas do quebra-cabeças que é a realidade da protagonista, através da repetição ad eternum de sua rotina, cria a cornucópia de realidade necessária para começarmos a enxergar o seu, se é que podemos chamar assim, problema. Seus pacientes acumulam doenças através de seus sintomas. Qual o sintoma de Verônica? Nada acontece para ela, e é justamente essa ausência de conflito, esse vazio gerado por não se encaixar em um mundo comum e milimetricamente realista (ajudados por uma fotografia e direção de arte que primam pelo natural e colaboram para a magia da imersão), que conseguem fazer-nos enxergar com uma lupa que o universo de um ser humano não se limita ao que todos esperam.
Tomemos o sexo como exemplo. Nunca deixa de ser sensual. Aqui fica até mais, com tanto realismo. Porém, a repetição aos poucos vai banalizando a experiência. Tudo que vai se repetindo parece fazer esgotar a magia. Logo vira lugar comum para nós, espectadores, assim como é para ela. Logo tudo converge para o nada: o sexo, a vida de médica, o vai-e-vem casa/serviço. O que não se esvai é esse conceito de felicidade de Verônica: estar livre, flutuando nas águas do mar, para ser o que quiser, e não o que esperarmos que seja.
A comparação com A Febre do Rato é inevitável: a mesma Recife vista pela mesma sensação de estranhamento vinda não da rotina, que não poderia ser mais ordinária, mas da ambição dos seus personagens. No caso aqui dA personagem, única, sozinha. Tão sozinha que se auto-diagnostica através dos seus pensamentos e gravações, meio como uma auto-cura ao escutar de dentro.
O grande conflito, talvez, seja entender que a Felicidade pode ser muitas coisas. Menos banal.
# A Casa da Rússia
Caloni, 2013-01-14 cinema movies [up] [copy]John le Carré foi um editor que teve a oportunidade de entrar em contato com um dos gênios da União Soviética logo após o processo de abertura política. Ele vira isca dos serviços secretos americano e inglês, que precisam saber se a Rússia de fato está acabada como potência, e o curioso aqui é o pano de fundo histórico da situação, algo conhecido hoje em dia como a opinião pública pós-Fahrenheit, mas muito provavelmente na época controverso: caso a URSS estivesse de fato acabada o que seria da imponente e latente indústria armamentista americana?
O filme baseado no livro de le Carré, que descreve sua experiência desse momento histórico, explora a visão cínica dos dirigentes da missão, que parecem não perceber o que tramam. Ou pior: talvez saibam.
O final é melodramático demais para uma história tão cínica e faz pensar que talvez seja a mensagem final do filme seja apenas: nada é como parece.
# O Som ao Redor
Caloni, 2013-01-14 cinema movies [up] [copy]O Som ao Redor não é o tipo de filme que a gente consiga descobrir através da sua história qual o tema e a opinião do diretor sobre o que ocorre na tela. A coisa toda está mais como um espelho, onde nossa observação dos fatos e a sua interpretação, sobretudo moral, é que irá inserir um significado. Mesmo assim, dadas as devidas proporções, todo filme possui essa liberdade de interpretação. Do contrário, nem existiria crítica, pois todas as respostas estariam no filme, e não haveriam perguntas.
Acompanhamos a vida das pessoas de uma pequena rua em um bairro de classe média. Não somos propriamente apresentados a eles, mas o vemos meio como quem espia a vida alheia. No caso, várias vidas alheias. O tom de realidade é dado não apenas por interpretações convincentes de todo o elenco como pessoas comuns, como pela ausência completa de trilha sonora. O filme honra o seu título e possui percursão musical, temática e transitória através do aumento e diminuição do volume de determinados sons presentes no próprio ambiente e que, esses sim, nos são apresentados desde o começo, em uma sequência sem cortes de uma menina andando de patinete dentro de um condomínio. A sinfonia que se forma pelos lugares por onde passa é o suficiente para que identifiquemos boa parte dos ruídos que ouviremos deslocados de cena, mas presentes, de certa forma, no momento que percebemos que todas as vidas ali mostradas estão ligadas em maior ou menor grau.
E qual o tema sugerido? Uma resposta das mais óbvias seria sobre a moralidade daqueles cidadãos.
Vejamos um pequeno exemplo para não nos estendermos demais: o toca-CDs da amiga de um personagem é roubado por um dos vizinhos, que, coincidência ou não, é seu primo. Após uma visita nada cordial, afinal, antes de acusar os outros, esteja certo de não insultar sua honra, mesmo que a pessoa seja culpada, o aparelho é devolvido. Só que não se trata do seu aparelho, mas do de outra. Ela decide, no entando, ficar com esse mesmo, que parecia até melhor do que ela possuía.
Pois bem. Quem defenderia a inocência dessa mulher, de que ela não sabia que esse também era produto de um furto? Não precisa ser muito inteligente para saber disso, mas talvez exija um grau de moralidade muito acima da média, o que é uma triste notícia para nós como seres humanos.
E isso é apenas um exemplo, mas existem vários que, apesar de não serem escancarados, o fato de serem sutis é mais um sintoma de que talvez tenhamos chegado em um nível de degradação moral que, haja o que houver, faríamos o mesmo. O fato de inconscientemente sabermos que se trata de um filme, ou seja, produto de fantasia, faz tudo parecer devidamente encaixado em uma realidade que não nos pertence.
Será mesmo? E é aí que entra o espelho, acusando o espectador sem apontar para ele. Somos responsáveis por esse filme, ou pelo menos o que ele significa. Nesse sentido, O Som ao Redor tem muito a dizer como um filme para uma sociedade que acha tudo isso normal.
# Viúvas
Caloni, 2013-01-14 cinema movies [up] [copy]Projeto menor do diretor Marcos Carnevale (Elsa e Fred), Viúvas possui o seu núcleo na história de Elena (Graciela Borges), que perde o marido depois de um infarto. Fica conhecendo assim a sua amante, Adela (Valeria Bertuccelli), muito mais jovem e inexperiente com seus sentimentos. Unindo a vida pós-marido de ambas através de uma última promessa feita pela esposa, a sensação constante é de que ao tentarmos conhecê-las melhor existe um sentimento de repulsa por mulheres tão egoístas (cada uma à sua maneira).
O que é uma pena, pois o curioso plot coloca a questão dos sentimentos acima dos rótulos em pauta, e apesar do roteiro do próprio diretor deixar o tema morno e frequentemente revisto, o fato é que Viúvas não consegue se desvencilhar da óbvia rivalidade entre as duas desconsoladas para criar algo além de situações controversas e cômicas.
De qualquer forma é notável que o núcleo de personagens seja formado apenas por mulheres, sendo que possíveis pretendentes, quando aparecem, são simples adornos para o ego das duas atraentes mulheres. Recriando situações engraçadas no vai-e-vem da história, Carnevale parece não beneficiar nem a comédia nem o drama, pois não há espaço para que as situações cresçam e se tornem a que vieram.
# Janela Indiscreta
Caloni, 2013-01-15 cinema movies [up] [copy]Um dos trabalhos mais lembrados da carreira do mestre de suspense Alfred Hitchcock, o ponto mais marcante da história de L.B. 'Jeff' Jefferies (James Stewart), um fotógrafo que precisa manter-se em seu apartamento por conta de sua perna engessada, é o seu único ponto de vista de todos os acontecimentos. Acostumando-se a observar a vida dos outros prédios em volta, é ele que testemunha um suposto crime. Note que a incerteza dos acontecimentos aliado às histórias paralelas dos seus vizinhos contribui para nossa desorientação, que chega ao seu ápice quando o próprio protagonista passa também a correr perigo.
A questão do ponto de vista é levada a sério do começo ao fim, de forma que o filme transforma os espectadores em uma espécie de voyeurs, já que a maioria dos detalhes cruciais da história são vistos com a ajuda de binóculos e uma lente panorâmica. O uso correto do zoom nas tomadas que temos da visão de Jefferies sem esses aparatos aguça mais ainda a curiosidade, pois não podemos enxergar as expressões das pessoas que vemos à distância. Da mesma forma, mesmo com o uso de lentes, não sabemos exatamente o que essas pessoas falam, o que por si só é um forte gancho para nossa imaginação.
Porém, mais revelador é perceber que, assim como no início é citada uma passagem de conhecimento comum sobre todos nós estarmos nos tornando aos poucos xeretas da vida alheia, há uma espécie de prenúncio do que acontece com os personagens (e com o próprio protagonista, que no início olha pela janela apenas com a intenção de se distrair de sua situação). Isso também é, por que não, um quase prenúncio do que nos tornaríamos em frente à televisão e seus reality shows e telejornais sensacionalistas exploradores de violência. E quando digo nós, pretendo mesmo falar no coletivo, pois o fato de não assistir esses programas não nos limita à sua grande influência exercida através dos que o fazem, uma grande massa da sociedade se transformando em inquisidores da vida alheia e espectadores da violência urbana.
# A Entidade
Caloni, 2013-01-20 cinema movies [up] [copy]O desenvolvimento de A Entidade diz mais sobre o espectador do que sobre a própria história. Em um mundo cada vez mais cínico e cético, a dificuldade em gerar tensão em um filme de horror, com exceção das inúmeras versões de Atividade Paranormal, permanece na credibilidade dos acontecimentos. Se nossas crenças já não mais estabelecem espíritos e demônios como os seres supremos do mal a imersão nas histórias contemporâneas caminham cada vez mais para os efeitos dessas forças malignas: a morte, simplesmente.
Que é o que ocorre nessa produção dirigida e escrita por Scott Derrickson (O Exorcismo de Emily Rose, O Dia em que a Terra Parou). Acompanhamos a crescente obsessão do escritor de casos não-resolvidos Ellison Oswalt (Ethan Hawke) quando ele e sua família se mudam para uma casa onde ocorreu o enforcamento de uma família inteira, com exceção de uma menina. Ao encontrar uma caixa com fitas gravadas de outros assassinatos com as mesmas características, logo Ellison estabelece um paralelo com serial killers, e a questão do sobrenatural fica meio que por debaixo dos panos, aos poucos tomando o contorno principal.
O problema central da direção de Derrickson é tentar encontrar o ponto médio em que o drama familiar que se configura pela obsessão do pai em voltar à fama que obteve 10 anos atrás e sua determinação em continuar suas investigações mesmo percebendo que sua sanidade, e a de sua família, pode estar sofrendo um risco irreversível. Sem tentar convencer o espectador que tudo o que vemos é real, há uma clara tentativa de fazer-nos acreditar que, devido ao nível de estresse de Ellison e o ambiente sugestionável em que ele próprio se inseriu, tudo aquilo pode ser apenas fruto de sua imaginação.
Infelizmente o nosso próprio nível de estresse não é elevado, e tudo o que sentimos através da ótima atuação de Ethan Hawke, que consegue nos convencer de sua própria degradação, não encontra paralelo na situação que está vivendo, onde muitos dos acontecimentos parecem simplesmente jogados convenientemente para nos dar a falsa impressão de que tudo não passa de uma brincadeira, mesmo mantendo acesa a chama da credulidade. Esse jogo desonesto quebra o nosso pacto de suspensão do real, e nunca é possível de fato acreditar junto com o escritor.
O que nos leva ao impreciso terceiro ato, que está determinado a não deixar pontas soltas, mas que mesmo assim, ou talvez por isso, não nos deixe espaço para nossa própria imaginação. Como um caso de suspense policial, mesmo com seu trágico fim, não há perguntas não respondidas, e o espectador médio sai da sala de cinema satisfeito de ter entendido tudo. Ou seja, o Cinema é rebaixado ao nível de um telejornal para atender ao seu consumidor, e com isso sabota o grande poder do terror em elevar o desconhecido e o seu medo ao grande protagonista desse gênero.
# Heleno
Caloni, 2013-01-20 cinema movies [up] [copy]Nada mais apropriado às vésperas da segunda Copa do Mundo no Brasil -- a primeira foi em 1950, para quem não se lembra -- para revermos a biografia de um jogador de futebol totalmente esquecido daquela época e de quebra entendermos um pouco como o processo de modernização do esporte retirou todo o romantismo de uma era e transformou os esportistas em meras figurinhas de um álbum prestes a expirar.
E a expiração desse álbum está cada vez mais rápida: jogadores migram de clube para clube, e os próprios clubes começam a passar de mão em mão sem qualquer vínculo à sua história e tradição. O que fica para trás -- mas isso é um mero detalhe -- é a vontade de jogar. O futebol perde-se no meio de tantas cifras, incalculáveis para nós, simples mortais.
Tudo isso bate de frente com a visão que o diretor José Henrique Fonseca (O Homem do Ano) tenta dar para o ídolo Heleno de Freitas, ajudado pela fotografia incomparável de Walter Carvalho (Central do Brasil, A Febre do Rato), que utiliza um preto e branco cheio de contrastre, o que nos remete diretamente tanto para o símbolo do time em que Heleno jogava, o Botafogo do Rio, quanto para todo o romantismo de uma era. Muitas das cenas, principalmente as externas, utilizam essa estilização fingindo as limitações da época.
Heleno, mulherengo inveterado, mas jogador acima de tudo, é interpretado como que numa incorporação quase espiritual por Rodrigo Santoro. O seu overacting controlado aqui serve como uma luva, pois todo o drama e tragédia vividos pelo jogador nunca conseguiriam ser transpostos para a tela sem a ajuda da caracterização de Santoro (e que aqui também produz o filme). Perto do Heleno de Santoso, todos os outros personagens são meros coadjuvantes necessários, o que não é um defeito, mas mais um toque de gênio da dupla Fonseca/Carvalho, que entendem que uma figura ego centrada como Heleno precisa de um filme só para ele.
Curioso constatar que o próprio futebol fica em segundo plano, e nunca sabemos de fato quem foi Heleno jogador. O que sabemos saiu na mídia ou da boca do próprio Heleno. E ambos, é preciso lembrar, antes de 1950 estavam criando deuses do futebol, indestrutíveis e inabaláveis. Até um templo -- o Maracanã -- acabou sendo construído para os rituais de adoração. A indignação do próprio Heleno de não ter jogado ainda nesse templo ilustra bem a visão que existia na época pré-futebol-arte.
Ao nos mostrar o fim e o ápice de Heleno, acompanhamos apenas sua trajetória em direção ao buraco do esquecimento. Sua lenta descaracterização merece aplausos, principalmente pela sua última frase, seu último pensamento, a respeito de si mesmo, e, por que não, a respeito de todo ídolo honrado do esporte nacional.
# ParaNorman
Caloni, 2013-01-20 cinema movies [up] [copy]A única proposta original em Paranorman é que o seu protagonista consegue ver e falar com os mortos. Aliado a isso, a proposta infantil de lidar com o além-vida envolvendo um mundo de zumbis e bruxas, embora interessante enquanto desenvolve esse conceito atrelado à visão primitiva e violenta que as pessoas tinham em relação ao desconhecido, está envolta em mais e mais clichês que vão enfraquecendo o núcleo da sua original ideia.
O que é uma pena. Assim como Frankenweenie, as animações tem ganhado em expandir discussões geralmente restrita ao mundo dos adultos em forma de aventuras despretensiosas envolvendo crianças e animais de estimação. No entanto, diferente deste, nem a estilização curiosa de seus personagens consegue impressionar. Norman é um garoto normal e não possui nada especial exceto sua comunicabilidade com os mortos. Esse "dom" é usado para enganchar um dramazinho particularmente desinteressante a respeito do garoto ainda conversar com a falecida avó, que insiste em continuar na sala assistindo TV, e o desconforto dos seus pais de que o seu modo diferente de encarar a morte possa prejudicar seu desenvolvimento enquanto criança e covardemente temem que eles próprios sejam expostos às diferenças do seu filho.
Além do clichê da família problemática ainda temos o melhor amigo gordinho (o alívio cômico ingênuo) e a irmã mais velha que só pensa no físico dos rapazes de sua idade e cujos comentários giram irritantemente em torno das novidades tecnológicas do momento, You Tube, Facebook, o que já marca desde já o filme como datado e indiretamente nos lembra seu caráter aproveitador da tendência temporária de glorificar qualquer conteúdo da mídia que fale sobre zumbis.
E por falar em tendência, a conclusão das aventuras do menino freak volta a interessar pela discussão importantíssima sobre os reflexos atuais de uma sociedade em pleno século XXI e que se comporta de maneira cada vez mais intolerante para com as diferenças alheias. Só que até chegarmos lá teremos que passar por diálogos capengas emoldurados em cenas irritantemente longas e desnecessárias, tudo para que tenhamos a duração mínima de um filme. Paranorman é o filme que já chega tentando vender uma possível franquia ou série quando deveria ter começado apenas pelo último.
# O Filho da Noiva
Caloni, 2013-01-21 cinema movies [up] [copy]O Filho da Noiva se esforça para soar tão engraçado quanto dramático e impede que ambos os lados evoluam. Ancorando sua experiência em um personagem que vive para o trabalho que construiu em torno do restaurante que herdou dos pais (um Ricardo Darín ainda jovem) o objetivo do roteiro do diretor Juan José Campanella (O Segredo dos Seus Olhos) e de Fernando Castets (Clube da Lua, Heleno) é mostrar a curva de mudança desse personagem depois de sofrer um ataque cardíaco.
O problema talvez seja essa mudança de tom repentina. Quando esperamos algo tocante, surge uma piada sem ser anunciada. O amigo de infância dele é um chato de galocha que faz o papel do bom moço que agrada a todos (sem entendermos muito bem como isso espontaneamente ocorre). Sua namorada e sua filha são igualmente infantis, e o que mais irrita em tudo isso é que, mesmo que o personagem de Ricado Darín tenha seus motivos, consegue ser o mais irritante de todos por não tomar suas próprias decisões, mas ser levado por essa torrente de opiniões.
Quando de repente surge a figura de sua mãe e seu pai, que decide se casar com ela depois de ter evitado a cerimônia religiosa por 44 anos, surge o problema de sua mulher estar com Alzheimer, e sua decisão de dizer sim é tão forçada quando a do próprio Darín em dizer sim para sua nova vida. A parte mais interessante dessa história é o paralelo criado entre os dois personagens, ambos impedidos de seguir suas próprias vidas pelas amarras de seu destino.
Mesmo com esse enredo caótico, Campanella consegue extrair essa lógica para nos entregar uma visão menos que perfeita de uma comédia romântica argentina, mas mais que apropriada para um personagem tão contraditório quanto qualquer ser humano que vive para o trabalho.
# Amor à Primeira Vista
Caloni, 2013-01-23 cinema movies [up] [copy]Ulu Grosbard, falecido recentemente (2012), não fez muitos filmes. Este é um "drama romântico" "a la anos 80" com Meryl Streep e Robert de Niro nos papéis principais e que lida com um tema ainda muito tabu, como podemos notar em trabalho semelhante (mas menos ousado) que Streep fará com Jack Nicholson, A Difícil Arte de Amar. Este Amor à Primeira Vista flerta o tempo todo com sua posição a respeito de relacionamentos extra-conjugais, e essa indecisão vista hoje em dia pode tanto significar uma época de transição quanto a transição dos seus próprios personagens, aos poucos aprendendo o valor da liberdade. Como fio narrativo, a indecisão de ambos funciona maravilhosamente bem como gerador de tensão.
Essa tensão pode ser sentida materialmente no valor que o tempo possui para ambos. Pelo menos dois encontros na estação um deles se atrasa e o outro precisa aguardar, lembrando que em ambas as situações o encontro entre eles é crucial para o destino de suas vidas. A rima metafórica aqui é clara: o casamento pode ser um atraso em nossa vida (o que não quer dizer que seja em todas), e por isso nossa próxima companhia merece o benefício da espera, e paciência para a transição que gera nossa transformação como seres humanos.
A questão a ser notada é que, mesmo sem a certeza do que está fazendo, o filme de Grosbard alça voos mais altos através do amadurecimento do sentimento entre os dois. Se no começo parecia um capricho ambos terem se encontrado tantas vezes ao acaso, aos poucos notamos uma certa necessidade em seus personagens de evoluírem, no sentido de se livrarem das amarras convencionais do que dita o relacionamento de um casal perante a sociedade.
Embora o figurino muitas vezes seja risível (como a cena em que Streep escolhe seu melhor vestido), não há como negar a força narrativa da trilha sonora de Dave Grusin (A Primeira Noite de Um Homem), que inicia com um tom burlesco do natal (pelo menos visto hoje) e termina no próximo natal com um poder contemplativo admirável (embora flerte perigosamente perto do mesmo tom aplicado por Ennio Morricone em Cinema Paradiso).
Piegas ou não, o romance aqui existe de uma maneira não-convencional, o que para um filme de 84 merece pelo menos uma revisita.
# S.O.S.: Tem um Louco Solto no Espaço
Caloni, 2013-01-23 cinema movies [up] [copy]Entendendo o ridículo em potencial da saga idolatrada de George Lucas (Star Wars, para quem não sabe), a história de Spaceballs contém o mesmo pano de fundo só que trazendo à tona o mesmo padrão já visto centenas de vezes: uma princesa sequestrada, um casamento forçado, o anti-herói que se torna digno de seu amor e por aí vai a valsa. Economizando o personagem de Luke Skywalker colocando-o no papel do próprio anti-herói (o alter-ego de Hans Solo) fica fácil enxergar que já há gorduras no próprio roteiro do filme original.
Não que Guerra nas Estrelas esteja perto de ser ruim. Longe disso. No fundo, qualquer obra de ficção, se vista com uma lupa sarcástica, tende para o ridículo, como vemos tantas vezes hoje em dia nos canais do You Tube que homenageiam filmes contemporâneos em trailers ridicularizados de cinco minutos. A comédia existe em qualquer lugar, e o grande trunfo do diretor aqui foi localizar os elementos que pareceriam mais absurdos sem prejudicar o ritmo de um longa-metragem.
No entanto, o roteiro escrito em parceria com Thomas Meehan (Annie) e Ronny Graham (da série M.A.S.H., homenageado recentemente pela série Community) vai além e utiliza metalinguagem em seus melhores momentos, o que é sinal de ótimos comediantes, que não só zombam do conteúdo alheio como sabem zombar do próprio material. Se em muitos casos isso é desculpa para realizar produções de péssimo gosto aqui é usado em preciosos momentos sem prejudicar a narrativa. (Minha cena favorita é quando eles "alugam" o próprio filme e avançam a fita para o tempo presente.)
Encontrando espaço para "homenagear" de maneira irretocável os clássicos Star Trek, Aliens e Planeta dos Macacos, embora as piadas surjam em cada contexto, a narrativa é seguida à risca e possui começo, meio e fim. E se isso é algo digno de nota hoje em dia é porque a paródia segue hoje sem controle e sem o menor bom gosto em produções patéticas como Espartalhões e a série Todo Mundo em Pânico, que exploram o riso fácil (de uma plateia fácil). Felizmente temos o exemplo passado de Mel Brooks do que é parodiar sem ofender e ainda engrandecer o Cinema como uma arte que pode ser revista de inúmeras maneiras sem soar repetitivo ou apelativo.
# Celebridades
Caloni, 2013-01-24 cinema movies [up] [copy]O que dizer da fase Woody Allen onde ele se propôs a produzir um filme por ano e consegue reunir um elenco tão afiado que conseguem desempenhar papéis que, mesmo longe do seu brilhantismo, participam do universo do diretor de maneira tão orgânica? Temos aqui dois "Allens": o escritor/roteirista Lee Simon (Kenneth Branagh), que possui sua baixo autoestima como gancho de todos os seus fracassos, e sua mulher, a professora Robin Simon (Judy Davis), cuja transformação à base de neurose e uma boa dose de sorte a torna a heroína às avessas da história.
Não há muito foco nos personagens, mas muito mais na atmosfera de Hollywood que faz pano de fundo às situações que testemunhamos. Vendo atores, atrizes, diretores, críticos e toda a fauna reunida como pessoas comuns, Allen destitui todo o brilho desses seres para aos poucos construí-los como mitos de mentirinha, frutos de mero capricho do destino. O que é mais genial no roteiro é que as coisas vão acontecendo de uma maneira tão natural e ao mesmo tempo os eventos sucedem no caminho oposto do que esperaríamos dos seus personagens principais.
O filme começa com a separação entre Lee e Robin. Robin está inconsolada, e parece que nunca voltará à tona. Já Lee encara tudo como um processo natural, e, apesar de romântico, está sempre à cata de celebridades para alimentar o seu ego massacrado pelo fato de saber ser ele um escritor medíocre fadado ao fracasso. A partir daí o espectador precisa se atentar às nuances por trás dos acontecimentos. Nada é ao acaso, mas soa como se pudesse ser.
Com participações inspiradas, com destaque na sequência com Di Caprio, Allen conduz sua orquestra desafinada através de diálogos não particularmente brilhantes, mas que talvez por isso questionem tanto o papel das tais celebridades retratadas em preto e branco. Serão elas de fato o reflexo da sociedade? Como todo bom filmes de Allen, a questão está sempre em aberto.
# Os Caça-Fantasmas
Caloni, 2013-01-24 cinema movies [up] [copy]O que torna Os Caça-Fantasmas ainda um excelente filme e nos faz acreditar em sua história é a sua entrega total ao universo criado desde o início: existem fantasmas por toda Nova York e ninguém discute isso. Eles estão começando a se manifestar, e não há lugar melhor para isso do que uma biblioteca.
Mais importante do que os fantasmas, porém, é acreditarmos em um serviço que os elimine. E lá pelos dez minutos de projeção, quando já vemos o time original de caça-fantasmas formado, seu carro, seus uniformes e seu estilo, e sua empolgante música-tema, já não há mais dúvida que eles existem. O que o resto da história se preocupa em narrar, e o faz maravilhosamente bem, é discutir como eles são necessários.
Com a participação inspirada de todo o elenco, incluindo aí a "musa" Sigourney Weaver (série Aliens) e o sempre ótimo Rick Moranis (S.O.S. Tem um Maluco Solto no Espaço), o roteiro escrito por Dan Aykroyd (um dos caça-fantasmas) e Harold Ramis não deixa pontas soltas e privilegia o fortalecimento do grupo e sua inserção no universo nova-iorquino. Um espírito maligno deseja retornar de seu descanso milenar e utiliza o acúmulo de espíritos capturados pelos rapazes para conseguir se materializar. A mitologia antiga é tratada de maneira irreverente, onde até um monstro de marshmallow pode ser assustador, e funciona tão bem. Mesmo os efeitos especiais datados conseguem segurar as sequências de Ivan Reitman facilmente.
Não há essa história de sucesso na época para Ghostbusters. Suas virtudes se mantém mesmo quase 30 anos depois.
# João e Maria: Caçadores de Bruxas
Caloni, 2013-01-28 cinema movies [up] [copy]João e Maria, como pode-se notar pelo título e sub-título, é uma reinterpretação do conto infantil dos dois irmãos que, perdidos na floresta, acabam entrando em contato com uma bruxa que mora em uma casa feita de doces. Esse é o único detalhe de toda a trama que nos faz lembrar da história clássica. A partir do momento em que eles se livram da bruxa e a queimam viva a história muda completamente de tom. Naquelas duas faces jovens e satisfeitas por assistirem ao seu precoce primeiro assassinato podemos constatar impressionados que a história não é mais de duas crianças indefesas, mas de dois psicopatas.
Em uma criação de arte interessante ao conceber um antigo vilarejo com uma mitura de realismo e fábula vemos agora o já crescido casal de irmãos equipados com uma tecnologia tão avançada que se assemelha à mesma mágica usada pelas bruxas que estes se especializaram em eliminar. No fundo, podemos dizer que para aquelas pessoas simples do campo os exterminadores de bruxas possuem os mesmos poderes que estas, mas os usam para o "bem": eliminar essas criaturas horrendas em troca de recompensas em dinheiro.
A história não deixa claro porque eles se especializaram em matar bruxas ou por que escolheram essa vida. Também não fica muito simples determinar qual a época retratada nem em que mundo vivem, pois uma pequena vila distribui garrafas de leite com desenhos de crianças desaparecidas, como se faz hoje em dia onde as cidades possuem milhões de habitantes, e existe uma espécie de jornal que narra as façanhas do casal eliminando essas pragas que aparentemente existem por toda a parte. (Fora que eles possuem já tratamento para diabetes.)
O que o roteiro escrito pelo também diretor Tommy Wirkola (Zumbis na Neve) e o estreante Dante Harper deixa claro é que não está se levando muito a sério, criando diálogos expositivos demais ("você nunca achou uma bruxa que não quisesse matar?") que acabam por tornar toda a experiência previsível do começo ao fim. Mesmo as cenas de ação são criadas claramente para explorar apenas a sua versão tridimensional do filme, incluindo as cenas escatológicas, e vão perdendo aos poucos o dinamismo inicial, quando ainda não sabíamos as técnicas usadas pela dupla de irmãos para capturar seres que voam em uma vassoura a velocidades impressionantes.
Mesmo assim, o que Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros falhou em utilizar efeitos digitais à exaustão e um tom mais sério totalmente inapropriado para sua história, João e Maria: Caçadores de Bruxas entende que não se recria uma fábula com pano de fundo trash sem conter em seu subtexto algumas piadas a respeito de si próprio ou do mundo fora do filme. E se o fato de existir um troll chamado Edward não é prova o suficiente, não sei o que é.
# Lincoln
Caloni, 2013-01-31 cinema movies [up] [copy]Talvez Spielberg tenha reverenciado demais a figura do presidente abolicionista. Mas quem poderá acusá-lo? Em uma época onde imperava os pensamentos que vemos do povo e dos seus dirigentes é admirável que o filme comece já com uma figura como ele, vindo do sul e com pensamentos simples e bem colocados, como chefe de estado de uma nação dividida.
Daniel Day-Lewis (Sangue Negro) encarna o personagem com uma igual reverência, mas para nós parece mais humano, mais frágil. Fica difícil entender como um velho de olhar e dizer vagaroso conseguia direcionar seus pensamentos e toda sua vontade por sua causa. Por outro lado, é com essa mesma fragilidade que Day-Lewis nos impressiona nos momentos "pulso-firme" do presidente. Mais difícil ainda para sua atuação é conseguir se sobressair a tantas atuações memoráveis, onde até Tommy Lee Jones ganha seu espaço (se fosse apontar uma única exceção seria Sally Field, obviamente desalinhada com a proposta de uma primeira dama amargurada).
A discussão da escravidão, tema central e presente em todo o momento, é colocada até as últimas consequências. Porém, diferente do bobinho Histórias Cruzadas, que investe no sentimentalismo barato, o jogo de poder e influência é o verdadeiro protagonista. A. Lincoln parece inofensivamente perigoso, mas consegue alterar seu humor para cada momento. É uma lenda para seu povo. Não esperaríamos nada menor. Mesmo assim, os diálogos e a questão maior da liberdade para todos os cidadãos é um objetivo que parece inalcançável até para um dos estadistas mais memoráveis da história americana.
E por isso Spielberg investe em tomadas sempre grandiosas, com muitos figurantes, construções e figurinos. Detalhe: sempre em movimento. Um trabalho de encher os olhos para um filme tão cheio de diálogos. A câmera costuma navegar em torno dos seus personagens, levemente, tendo aparentemente o único motivo de apresentar o cenário, uma reconstrução digna de ser vista na telona, com o mesmo capricho fotográfico do igualmente empolgante Na Estrada.
A trilha sonora acompanha a morosidade da evolução sobre a emenda que poderá vencer a guerra e acabar com a escravidão (e a economia) do sul. Porém, com todo o respeito a John Williams, a única que parece querer dizer de maneira mais expressiva o que está acontecendo é a fotografia, que encobre Lincoln de sombras dentro de sua casa, para apenas depois o vermos sob uma luz forte e renovadora. Não é nenhum segredo o que isso significa e por que acontece, mas continua sempre lindo de se ver.