# Argentina 2022

2022-10-03 tag_trips ^

Início de viagem

Dia agitado. Acordamos às seis da manhã para ter tempo de conseguir um Uber para o aeroporto e chegar com duas horas de antecedência. Foi tudo tranquilo. Até demais. Guarulhos estava bem vazio. A passagem pelo raio-x foi a mais suave que já testemunhei em toda minha vida. O embarque foi feito com 20 minutos de antecedência. Vinte pessoas a bordo, incluindo a tripulação. Três horas e meia depois aterrissamos. Um pouco turbulento, mas aterrissamos. Bem-vindo a Salta! Passar pela alfândega e pegar as malas foi de novo a mais tranquila experiência possível. Começo a gostar do mundo pós-pandemia.

Em terra de hermanos e sem nenhum peso, tentamos chamar um Uber, mas eles não estão permitidos de entrar no aeroporto. Como uma ordem de restrição, seu perímetro máximo de aproximação é de cerca de 700 metros. Uma taxista próxima das portas de saída nos ofereceu uma corrida e aceitava cartão ou Mercado Livre, que logo aprendemos ser a forma das pessoas mandarem um Pix por lá. Ela também sugeriu fazer câmbio na praça central. Por que não? Já iríamos trocar dólares de qualquer forma.

Mas com ela foi ainda melhor: de dentro do táxi se aproxima um senhor pelo vidro da porta. Ele oferece pesos por dólares. Falo que quero vender 100. Ele conta 27 mil pesos e os entrega pelo vidro. Depois de contar todas aquelas notas lhe retorno apenas uma, única e singela, de 100 dólares. E o táxi segue por mais uns 100 metros. É o nosso hotel, do lado da praça. Pago a moça com alguns dos pesos que acabei de receber.

Depois descubro que o câmbio de rua está muitíssimo mais em conta que o oficial, que paga 15 mil pesos por 100 dólares. Há um limite no país de compra de 200 dólares mensais por cidadão, o que explica a escassez. Nem pelo cartão de crédito internacional os argentinos podem ultrapassar esse limite ridículo.

Chegamos na pousada para descansar antes do dia de ir para Cafayate. Check-in tranquilo. Pagamento em dinheiro. Parece haver 20% de impostos ou o valor da reserva mudou na hora. De qualquer forma estávamos no lucro.

Hora de bater perna, tomar um sorvete de doce de leite e de banana muito bons (mas não os melhores), comprar as passagens do ônibus e ir comer algo em um restaurante árabe chamado Dubai. Em outras viagens comíamos sempre lá porque era sempre o único aberto em nossos horários bizarros de almoço (a almojanta).

Porém, o cardápio do jantar não estava disponível; nessa hora havia apenas o menu de café e uma degustação de pães sírios com mini-hambúrgueres, com direito a duas infusões (chá ou café) e um suco de laranja. Acabou que foi muito bem servido. Havia até sobremesa. De quebra experimentei um café turco doce e amargo ao mesmo tempo, e um capuccino apenas amargo e com uma especiaria que não identifiquei. A massa usada nos pratos é saborosa e macia. Os molhos são muito bem preparados e frescos. Do lado de fora havia um vendaval. Um dos guarda-sóis das mesas externas saiu voando e quase pegou uma moça. Ele ficou dançando no meio da rua, parando o trânsito até que alguém conseguiu segurá-lo.

Ah, lembrei. Antes dessa almojanta com vendaval fomos em uma feirinha do lado do teleférico; lá havia uma rápida exibição de grupos de dança. Paramos porque é algo que não faríamos sem estar de férias. São danças típicas da região protagonizadas por crianças e jovens.

Mais tarde foi a vez de pegar um cineminha no centro decadente. O cinema estava em reforma na última vez e nessa parecia ainda estar caindo aos pedaços. Uma tela de projeção com brilhos bem estranha. Fomos ver um filme chamado Vertigo, mas não o do Hitchcock. É um em que duas escaladoras estúpidas ficam presas em cima de uma torre de 600 metros de altura. Tenso apesar da história previsível. As situações montadas para o filme e os momentos de ação compensaram. Jovens estavam assistindo conosco. Dublado em espanhol.

Foi um bom dia e bem cheio. E a viagem apenas começou.

Cafayate

Segundo dia é dia de partir para aquela nossa cidade adorada de alguns quarteirões cheios de vinícolas. O albergue que pousamos fica em uma rua em obras e a recepcionista e o dono não possuem facilidade de entender português nem a malícia de brasileiro, pois não aceitaram o pagamento em dólar, mas passou o melhor cambista da cidade para trocarmos o dinheiro: um dentista. A moça passou o endereço do consultório no verso de um cartão de lavanderia.

Depois de alojados fomos dar um rolê pela cidade de meia-hora tomando sorvete aos 10 graus. Experimentei o de dulce de letche cafayateno, na Ruta 40, atravessando a rua próximo da de Miranda. Helados Artesanales Santa Bárbara é o nome desse local. Este sabor vem com nozes e uva passa. É menos doce e as nozes realmente combinam. As uvas passas ficam congeladas e duras.

Meu segundo sorvete foi o da esquina da praça principal, o Il Cavallino Ice Cream. Um dulce de letche comum. Boa qualidade, talvez baunilha demais, embora não tão doce, ou o frio tirou parte do doce.

Depois voltamos para o albergue com o plano de trocar dólares no dentista e ir comer. E lá estávamos, em um lugar que não imaginávamos frequentar nessa viagem: um consultório dentário. A porta estava fechada. Entramos e a mantivemos fechada. Dentro havia duas portas com nomes semelhantes, mas siglas diferentes. Devem ser pai e filho, imaginamos. Aguardamos alguém sair. Cinco minutos depois sai o pai, que nos olha confuso a princípio, mas depois entende sobre o quê se trata. Então pede que aguardemos seu filho. Depois de mais uns dez minutos ele surge. Ele diz falar um pouco de português, já viajou para o Brasil, mas na prática são apenas algumas palavras. Mas não tem problema, o mundo todo fala capitalismo. Ele logo entende o que queremos, diz a cotação e fazemos a troca, por um valor melhor que de Salta: 290 pra 1.

Ao sair de lá com duzentos dólares em maços de pesos argentinos nos sentimos ricos o suficiente para esbanjar no Bad Brothers, o restaurante onde se experimenta pratos exóticos e caros harmonizando com vinhos (igualmente caros).

Porém, ao chegar lá descobrimos que precisávamos de reserva e não havia mesas disponíveis, a não ser que a gente passasse depois das 20:30 para ver se alguém desistiu. Então ficamos andando pela praça até a Casa das Empanadas abrir, outro restaurante favorito, mas ele não abriu. Tentamos o cardápio de um bistrô orgânico na mesma praça, mas só tinha quinoa nos pratos. Exótico demais.

Sem opções seguras e boas, acabamos no restaurante dentro da vinícola Nanni, Retoño, e suas pequenas empanadas de entrada. A de carne saltenha é a melhor, suculenta e com muito molho dentro, a de queijo esquecível e a de quinoa nem sei por quê fizeram isso. De prato principal dividimos o lomo banhado em molho agridoce de Tannat e para combinar pedi um Reserva de 12 meses em barrica da mesma uva, que com muito esforço conseguimos matar. Não por ser ruim, estava delicioso. Esse gosto adstringente, agressivo, dos vinhos de Cafayate já me encantou novamente, mesmo sem ser fã dessa vinícola. O amadeirado chega meia-hora depois de aberto.

Dormi muito bem naquela noite.

Las Nubes

Dia de andar de bike até essa vinícola maravilhosa que fica ao pé do morro que cerca Cafayate. A Mitiko está muito boa nas pesquisas e achou esse lugar, RuralBike RN 40. Serviço muito bom e barato para alugar bicicletas de ótima qualidade e com manutenção no local. O dono mantém uma oficina, o que nos deu uma confiança. O aluguel funciona assim: ele fica com um documento de um de nós como garantia, se cobra por hora ou por dia (ou 8 horas, algo assim) e na volta se paga. Ele explicou todos os detalhes de como usar as bicicletas e fez questão que tentássemos andar antes de sair pedalando. Muito atencioso e cordial. Usaremos sempre que voltarmos para Cafayate.

Voltando ao passeio: nada como pedir em seu restaurante uma tábua de frios riquíssima com um Torrontés bem servido na taça para degustar junto de uma vista e clima maravilhosos. Você pode chegar lá andando pela estrada empoeirada de 5km, andando de bike, de carro ou de moto. A visita e degustação foram as melhores, nossa guia muito simpática, já a conhecíamos da vez passada, explicou vários detalhes sobre a arte de experimentar vinhos que não conhecia. Ao final, houve uma dica matadora para guardar garrafas abertas: expire pela sua boca gás carbônico para dentro, isolando do líquido o oxigênio. Comprei duas botejas da reserva privada de 2015 de um Tannat excepcional experimentado durante a visita.

Depois fomos tentar visitar a Bodega Nanni sem sucesso, pois estava fechando às 18, diferente do marcado no Google. Desisti dessa vez, pois nem gosto tanto assim de seus vinhos e a visita é daquelas feitas por guias recitando um roteiro sem nenhuma paixão por vinhos, apenas tentando vender a ideia da superioridade de um selo orgânico no meio do deserto. Acabei indo provar mais um sorvete doce demais na Ruta 40, quase chegando na praça, em uma lojinha de recordações.

Antes do jantar assistimos a Lords of Metal, uma comédia adolescente com roteiro mais elaborado que o normal e atuações razoáveis que criam pessoas fora do normal com tato e situações bem pensadas. A adaptação de heavy metal com violoncelo ficou soberbo demais.

No jantar comemos no restaurante da esquina da praça, onde já havíamos comido alguma vez na cidade. Bife de chorizo ao ponto rosado e à perfeição com purê de batatas e bonita salada. A atendente foi excelente, nos deixou muito à vontade e satisfeitos com o serviço, e a comida não estava excepcional, mas era o que precisávamos: carne com batata. Ah, e uma linha nova da bodega Salvador Figueroa, da cidade. É uma linha jovem, Malbec, igualmente robusta, com uma certa complexidade além do frutado.

Motinha

A Mitiko achou o aluguel de moto, a Vida Moto Rent. Muito rápido e simples, mesmo sendo estrangeiro, para alugar uma moto. E o preço não é abusivo, é bem justo. O moço pede para você assinar um contrato com seus dados de documentos; se paga na volta. Há preços por 1 hora, por 8 horas e por 24 horas. A moto é bem básica, semi-automática, faz uns 40 a 50 km/h na estrada sem sacolejar muito. Incluso está o aluguel dos capacetes. O tanque dá para dois litros e anda mais de 30 km. É bom ficar esperto com essa autonomia, pois não há muitos postos na ruta. Recomendo fortemente para conhecer vinícolas mais distantes da cidade. Com ela hoje fomos explorar as cidades vizinhas Tolombón e Animaná, mas não havia vinícola aberta com visitação. As das proximidades abririam só a partir de quarta, e estávamos em uma terça. Porém, a Mitiko achou uma nova bodega fora da rota do vinho, cuja visitação começava às 17h.

Dessa forma voltamos para a cidade comer deliciosas empanadas e em seguida fomos visitar as cabras da cidade, onde degustamos os deliciosos queijos produzidos no local com Torrontés e uma vista maravilhosa para as montanhas deste lado. É possível caminhar até o local, ir de carro, moto ou bicicleta. Antes da degustação fizemos a visita opcional do local, onde aprendemos sobre a origem da fazenda, o ciclo de vida das cabras, dos novilhos e a criação de queijo. Trata-se de uma necessidade da bodega Domingos Molina em fornecer adubo às plantações de uvas que fez com que esse negócio iniciasse. Curiosamente as cabras agora se alimentam do refugo da colheita, tornando o local parte da vida sustentável da bodega.

Em seguida fomos para essa nova e excitante vinícola, a Bodega Burbujas de Altura, que se revelou o melhor passeio de Cafayate desta vez. Era uma visita organizada pela própria dona. Ela e o marido, que trabalhou no El Esteco por vinte anos, montaram sua própria finca e com a ajuda de sua filha enóloga criaram o primeiro espumante de Torrontés comercializável, além de várias outras linhas.

A visita foi rica em detalhes. Um grupo de Mar del Plata nos acompanhou e fizeram perguntas que deixavam ela mais à vontade para explicar inúmeros detalhes dos vinhos da família. A demonstração de como se faz um espumante pelo método tradicional foi o ponto alto da visita, fora toda a emoção dos detalhes da criação e planejamento da própria finca.

A degustação foi sem pressa alguma e onde descobrimos um Torrontés único em sua perfeição, um Malbec envelhecido em três meses de barrica riquíssimo em detalhes e um Gran Reserva blend com Cabernet que é o primeiro da bodega após dois anos em barrica. Mas a sensação é mesmo o frisante de Torrontés. Ele mantém a potência de um Torrontés por trás de um espumante. As bolhas são pequenas e vibrantes. O método da segunda fermentação é feito na garrafa. Quando não entendi sobre o aroma de pimentão descrito, a guia/proprietária foi à cozinha me trazer um pedaço de pimentão na taça para eu cheirar. Que simpatia de pessoa!

Nosso muito obrigado ao grupo que nos acompanhou e, principalmente, aos proprietários deste novo e riquíssimo empreendimento na cidade. Muito sucesso nas próximas colheitas!

Depois disso e depois de trocar dólares com nosso dentista favorito foi a vez de visitar Bad Brothers e seus pratos de alta gastronomia. O ruim desse restaurante badalado da região é que você precisa de fato fazer reserva com um dia de antecedência. O bom desse restaurante é que geralmente vale a pena. Eles estão dispostos a arriscar um pouco por surpresas no sabor e nos ingredientes geralmente locais. Dessa vez provamos uma bruscheta curiosa, uma provoleta desnecessária e uma carne de panela que passou por seis horas embebida em vinho Tannat icônica, acompanhada de um risoto de quinoa que de fato se parecia com um risoto de arroz, além do molho delicioso e fora os vinhos que provamos. O cardápio está sempre dialogando com a carta de vinhos e permite escolhermos qualquer opção ou a que harmonize melhor, em quantidades de uma taça a 30 ml, permitindo você mesmo fazer um maridaje com a comida antes de pedir uma taça cheia.

Degustação (de empanadas)

E finalmente voltamos a experimentar os 13 sabores da Casa de Las Empanadas. O esquema lá é pedir em docenas e uma copa de Torrontés da casa, um vinho honesto para o dia a dia. Hoje excepcionalmente nosso pedido demorou bastante porque muitos pediram para viagem ao mesmo tempo antes de nós. Mas valeu cada minuto de espera. A massa é impossível de fazer em casa. Ela é fina, mas bem fechada, saborosa, não seca e ao mesmo tempo úmida por dentro.

Depois do passeio pela cidade fomos ao El Porvenir para visita e degustação. À noite tentamos comer uma Parrilla popular onde não conseguimos pedir carne: usamos o nome chorizo sem bife e veio uma linguiça! Esse dia estávamos panguando loucamente. De qualquer forma, a Mitiko não gostou muito da aparência da parrilla na mesa do lado, então não voltamos mais.

Domingo Molina e Yacochuya

A região de cima do lado oposto ao Las Nubes contém duas vinícolas antigas e reformadas. Pegamos um táxi no centro para a primeira delas, a Domingo Molina, cuja visitação é uma das melhores. No nosso caso foi privada e apresentada por um jovem chamado Ayrton ("de Ayrton Senna"). Ele explicou rapidamente cada um dos detalhes da fabricação, desde os terrenos, o plantio dos varietais, os blends experimentais de enólogos que se divertem a cada ano a experimentar novas versões de vinhos.

A degustação também é ótima, com a opção de wine bar, onde você escolhe qual rótulo e a quantidade. Além disso, o pátio da vinícola tem uma vista de outro mundo e para as montanhas, e Ayrton nos serviu uns biscoitos, água e um queijo delicioso da queijaria da própria família dos vinhedos, a Cabras de Cafayate.

No entanto, diferente do Las Nubes, não achei nenhum dos rótulos complexo o suficiente para a compra, incluindo os dois ícones da bodega e o experimento entre um enólogo italiano e argentino chamado Pachamama. Acredito já ter escrito isso.

A caminhada de 2 km no sol para a próxima vinícola, Bodega San Pedro de Yacochuya, não foi fácil, mas fizemos. Lá a visita é mais simples, mas também vai do começo ao fim, desde a compra de novos equipamentos para retirar os ramos das uvas até uma olhada nas opções de barrica dos rótulos.

A degustação só envolve um vinho tinto e outro branco. Acabei levando o tinto, um blend reserva de um ano ainda áspero (2021) que espero esquecer na adega por vários anos.

Descemos direto a estrada, sem passar pelo Piattelli porque existe também em Mendoza de qualquer jeito e seria a terceira degustação do dia, algo impossível no momento porque estava muito quente na volta. Até queimou o nariz da Mitiko.

El Esteco

Estávamos voltando a pé depois de passar por Domingo Molina e Yacochuya e passamos de bobeira por lá para a visita, mas era necessária a reserva, tanto para a visita quanto para o almoço no restaurante da pousada, então fica a dica: não ande até a recepção antes de ter uma reserva. Já no hotel fizemos pelo site, tanto para a visita e degustação quanto para o almoço. A guia da visita é a mesma da última vez que viemos para a cidade e sua didática é a mesma de roteiro decorado sem muita paixão nem improviso. Ela usa um microfone em um grupo de 10 pessoas quando explica em detalhes o processo de plantio, os terrenos, as formas de plantar, os métodos de fermentação de toda a linha, mas não usa o microfone dentro da fábrica, quando seria necessário por causa do barulho. Após a visita do turista seguimos para uma sala de degustação grande com um telão mostrando propaganda da bodega enquanto a guia ia servindo a todos garrafa por garrafa. Pagamos pela degustação dupla, o que nos deu direito a meia dúzia de taças. Quando a degustação mais barata termina, parte do grupo se retira e ficam apenas os que pagaram pelas taças a mais. Ela explicava cada sensação, desde o visual, passando pelo olfato e chegando no paladar. Me deixei influenciar por ela para entender o processo criativo. Uma busca pelas memórias. No final não levei nenhuma garrafa. Estava interessado na Fincas Notables mais uma vez, mas não aceitavam dólares, apenas cartão, o que usaria o câmbio oficial e não o blue. Não se deixe enganar, turista estrangeiro. Guarde seus dólares e vá para o El Porvenir ou outra bodega um pouco menor, onde realmente desejam lhe atender. Fuja dessas bodegas maiores cujo roteiro demonstra cansaço e desinteresse pelos visitantes.

O almoço no restaurante da bodega/pousada, Restaurante La Rosa, foi muito bom. O ambiente é muito agradável com uma vista atrativa para espreguiçadeiras em volta da piscina. Pedimos para o prato principal uma costela assada e degustação de guarnições, como abóboras, cenouras, cebola, batata, polenta. A carne estava desmanchando e com pouca gordura. Provei com um El Esteco Malbec, o mais intenso que a vinícola que produz 700 mil litros por ano consegue fazer. Eles aprimoraram técnicas de controle para uma larga produção. Estão apenas atrás do El Porvenir, onde a dedicação em uma produção dez vezes menor ainda compensa.

Para sobremesa o vulcão de doce de leite estava com a massa melhor, mas o recheio a Mitiko faz melhor em casa.

Terminamos a série Post Morten, uma visão realista e dramática sobre vampirismo na Noruega e que mantém sua trama fechada com personagens bem definidos em eventos que os amarram. O resultado é um drama de terror que lembra Deixa Ela Entrar.

No final da tarde quente foi degustação na Salvador Figueroa e El Transito, mesma coisa: vinho forte e vinho fraco, respectivamente. Ambos charmosos.

Cabras e Nubes (de novo)

Hoje acordei com uma surpresa: estava sem reserva alguma para Tafí del Valle, nossa próxima parada amanhã. Por algum motivo, selecionei o lugar, mas não reservei. Então fizemos uma correria para achar um hotel próximo do centro. Gostei dessa imprevisibilidade de uma viagem ainda solta. Não sabemos onde passar os dias entre 14 e 18 antes de Mendoza. Provavelmente em San Juan, mas ainda sem reserva.

Hoje também foi um dia quente. O sol lá pelas 11 já estava de matar. Andamos até a fazenda de cabras novamente para comprar queijos, e foi um bom teste de areia no caminho para os tênis, que se saíram bem. O que entrou de areia entrou por cima.

Na volta pagamos uma visita à bodega El Porvenir, para mais degustação e escolha de garrafas. Eles aceitam dólar, então diferente do El Esteco, de onde saí de mãos vazias, comprei sete garrafas.

Três da linha Gran Reserve, das quais duas só tem essa edição. Quatro de linhas intermediárias, mas igualmente complexas e de personalidade. Dois doces que encantaram a Mitiko. Uma nota final: o vinho mais caro da bodega não vale o preço. Experimentei e achei bem simples.

Por fim, seguindo o plano do dia, fomos comer picadas e tomar vinho a tarde inteira no Las Nubes e resolver a aposta se a guia de lá era a mesma da última vez que fomos no El Porvenir, em 2017 por aí. Mitiko apostou que sim e ganhou uma empanada extra hoje no jantar na Casa de Las Empanadas. Droga. Mas ela não usou esta carta e dividimos meio a meio como sempre. Eba.

Pusk'no Bistro

Trocamos uma quantidade massiva de dólares com nosso dentista favorito da Argentina. Quatrocentos viraram 108 mil pesos, o que convertendo para reais daria uma cotação de R$ 9,50 por dólar. Estamos ricos.

As empanadas estavam fechadas hoje à noite, quarta-feira. Sem muita opção escolhemos um restaurante com as mesas na rua com um cardápio estranho que envolve muita quinoa. Pedimos um lomo com risoto de quinoa e para acompanhar um risoto de quinoa. Os cobiertos eram uns queijinhos junto de milho tostado, tomate cereja e uns pedaços de pão. Bem humilde com apresentação tosca, disposta em um prato. Logo vimos que se tratava de um lugar improvisado. Os pratos chegaram e era tudo quinoa. O risoto e a salada pareciam versões quente e fria de quinoa, com o detalhe que a salada estava muito azeda. A carne estava boa, apesar de minimalista. Como meu amigo disse, qualquer argentino sabe assar carne com aqueles gados. A pegada do restaurante parece ser mais natureba, mas os pratos são mal apresentados e com muita quinoa. A atendente era uma fofinha, simpática e um pouco tímida. O preço é no melhor dos casos OK. Achei um pouco caro pelo que oferece. Também pedi uma taça de vinho. Uma segunda opção de vinho orgânico na cidade fica na cola da Nanni, bodega Stutz, este com portas fechadas.

No fim da noite assistimos a uma comédia dos anos 90, Como Agarrar um Marido, com um Steve Martin mais pastelão. Fofinho. É sobre um casamento inventado com base em várias mentiras criadas pela atriz luz do filme. É uma ficção em cima de outra ficção, mas muito realista. Como The Pickup Artist nos ensina, o que é dito importa menos do que como é dito. E a menina tem atitude e ganha o cara. Não há muitos traços de ter envelhecido mal.

Tafí del Valle

Dormi bem a noite passada. Assistimos ao primeiro episódio de uma série boa para dar sono. Se chama O Demônio de Ohio e me faz lembrar aquela chamada da Sessão da Tarde: essa moça que surgiu da plantação está com o diabo no corpo, e vai aprontar poucas e boas nessa família que a adotou, vivendo aventuras de arrepiar. Um episódio de 40 minutos para mostrar um pentagrama marcado em suas costas.

Hora de deixar Cafayate. O plano: acordar às 9, fazer o checkout às 10, deixando as malas na recepção. Tomar um café gostoso com as melhores medialunas no Flor del Valle. Passar no El Porvenir e pegar duas garrafas para o Fábio do Malbec de entrada: uma para abrirmos juntos e outra de regalo. Pegar duas cajas de uma docena de alfajores com azúcar no Calchaquitos. Pedir meia-dúzia de empanadas para llevar e comê-las na rodoviária. De lá mesmo pegar um táxi grande o suficiente para nossa equipage (tivemos que escolher o segundo da fila) e levar até o Hostel. Comer as empanadas e entrar no ônibus. Destino: Tafí del Valle.

A viagem a Tafí é uma mudança de biomas. Fomos dos cactos constantes para cada vez mais escassos. Foi surgindo uma vegetação esverdeada e os montes começaram a ficar mais verdes. Há uma montanha na região de Santa Maria que possui uma camada de rochas de cores bem distintas: branco, amarelo e vermelho. O caminho de Santa Maria a Tafí começa em outra rota em um ambiente desértico, branco. E logo se transforma em um amarelo constante na vegetação. Entre vales se usa muitas pedras para torres, muros e construções inteiras. Estamos no outono e os morros de Tafí estão amarelos.

Chegamos no terminal e fomos os únicos a sair, pois o destino final do ônibus era Tucuman. Mitiko vislumbrou o único táxi disponível, caindo aos pedaços com múltiplas cores, incluindo nenhuma. Ela vai ao banheiro e enquanto tiro as malas o único taxista do táxi caindo aos pedaços chega ao meu lado já oferecendo seus serviços. Aceito. Colocamos as malas em cima do seu carro. O painel está totalmente quebrado, com o botão das setas pendurado. No meio da breve viagem de 700 metros, o tiozinho, de nome Turco, já falou tudo sobre a cidade e ofereceu seus serviços para um passeio por todo o vale. Anoto o número do celular e pergunto sobre WhatsApp. Não. O celular dele deve no máximo aceitar ligação. Uma figura anacrônica em uma região teoricamente turística.

Para jantar vamos ao Rancho de Felix, logo do lado. O garçom é prestativo, mas bem direto e nada simpático. Estilo portenho que não suporta turistas. Depois de um tempo lendo o cardápio ele entende que somos brasileiros e explica os cortes disponíveis com nossos nomes. Escolhemos o contra-filé (lomo), que vem bem bonito no corte de um dedo. A salada de alface e tomate vem meio amarga porque tem pedaços sujos de terra e o purê vem azedo. Reclamamos e trocamos por fritas, que chegam rápido, em pedaços grandes e gordurosos. A jarra de vinho da casa, Domingos Hermanos, é fácil de beber. No final demos a gorjeta mínima.

Trilha, um Perro e Empanadas Caseras

Nosso primeiro dia na cidade foi pegar o Sendero (trilha) del Peleo em seu circuito mais curto de 5 km. Se trata de uma trilha de vegetação aberta, então é muito difícil delinear qual o melhor caminho, pois há vários. Para ter uma ideia, o mapa da entrada da trilha e o mapa do Strava não combinam. Além disso, raramente há placas sinalizadoras.

Para fazer essa trilha, uma ajuda vital foi um cão que ali estava. Ele nos seguiu, mas mais do que isso, nos mostrava o caminho adiante, aguardando chegarmos até ele.

Ao final da trilha fomos comer nas Empanadas Don José, a 2 km de lá. Subida. Quase desistimos, mas quando chegamos valeu muito a pena. Se trata da própria casa do Sr. José, que nos recebeu e pegou já duas empanadas do forno e nos entregou para comer. Estavam riquíssimas! As melhores de carne, já picantes, com um molho que se sente na carne e uma massa com aquela gordurinha que deixa o final depois do forno amarelado. Ele nos fez companhia falando sobre os filhos.

Voltando para o hotel passamos na padaria próxima e de amostra grátis havia brownies e uma espécie de cuca de maçã. Duas simpáticas jovens nos atenderam. Gostei da qualidade da massa e do recheio da cuca. Agora fiquei com vontade de experimentar as meialunas de lá.

À noite fomos no restaurante de uma hosteleria a 700 metros do nosso hotel que parecia melhorzinho que os outros do centro. De nome estranho, Lunahuana repete o design do hotel onde fica. É lindo, combina cores, quadros e piso com a iluminação aconchegante. O atendimento no restaurante é bem deficitário, pouco atencioso. Talvez tenha sido uma noite cheia com pouca equipe. Os pratos se fingem de gourmet, pois o sabor deixa a desejar. O cubierto é um pão seco com uma maionese simples. Pedimos um bife de lomo ao molho de vinho, sugestão do chef. Ele vem com fritas ao molho de queijo. O molho das fritas deixa-as murchas e o molho de vinho deixa o bife doce. O ponto da carne estava ligeiramente acima do rosado. Pedimos um prato principal para compartir e por um bom tempo precisamos chamar a atenção de dois garçons até entenderem que precisávamos de um prato extra para dividir. A sensação é de atendentes de mesa inexperientes que não dão conta de muitas mesas. Isso atrapalha ainda mais a experiência.

Domingo Começou de Preguiça

Fomos fazer o desjejum às 11:30 na cafeteria das moças ao lado, Pan y Cafe Las Rosas. O serviço da mais velha é um pouco impessoal e o da mais nova animado. A mais velha nos atendeu. Chegou tudo junto. O café doce, saboroso para quem gosta de gourmet mais fraco (não é espresso). As meialunas queimadas por fora e secas por dentro. O sanduíche em pão francês com salame e queijo estava bom, mas mais pela maionese. Bem servido. Depois pedi um pedaço de bolo de uma fruta que não sei qual é e um recheio de doce de leite. Lembra bolos de franquia de SP e nada mais.

Depois fomos comprar passagens para Tucuman no terminal, dar um rolê pela cidade e conhecer o caminho de pedra para o povoado ao lado de bicicleta (essa é a ideia para amanhã talvez) e acabamos indo na cruz novamente, início da trilha que já fizemos. Dessa vez subimos no estilo escalada. No topo comi mais uma empanada de Don José com o vinho do El Rancho de Cafayate, o Salvador Figueroa que ainda estava carregando comigo.

O sorvete de dulce de letche no lugar melhor cotado da cidade é um pouco forte no caramelo. Assim como no restaurante de ontem, doce demais.

A cidade estava assistindo ao clássico River Plate vs Boca. A sempre vazia pizzaria ao lado do hotel colocou um telão e finalmente lotou de gente.

No final da tarde ficamos pegando sol na frente do hotel e de noite fomos experimentar o restaurante deles. Nada demais. Uma comida honesta. Pedimos um bife de lomo com purê e salada mista, exatamente o que pedimos no El Rancho, mas o purê não veio azedo, apenas sem sal, e eles colocaram um molho verde em cima do bife. O atendente estava completamente calado. De vinho pedi uma garrafa de Cafayate (o rótulo, não a origem) e comprovei que a carta e a qualidade dos vinhos lá realmente é ruim. Veio um 2019 jovem que já estava envinagrado.

Passeio com o Turco

Turco é o taxista que nos levou as bagagens quando chegamos a Tafí. Hoje iríamos andar de bicicleta até o dique da cidade, mas o aluguel estava muito caro, 800 pesos por hora. Apesar de todo o tempo vermos ciclistas pela cidade, não há nada mais difícil que encontrar aluguel de bicicleta. Fomos ao terminal ver o horário dos ônibus para lá e encontramos o Turco, que nos ofereceu um tour de 3 horas por 5k pesos.

Ele começa subindo com seu táxi até a estátua da Virgem e vai descendo pelos bairros, começando pelo Ovejeiro e indo até o El Mollar, onde está o dique. Há algumas paradas para foto com as paisagem internas do vale e a parada pela queijaria, Estância Los Cardones, fundada por jesuítas há 300 anos. Eles vieram com os espanhóis e trouxeram uma técnica para fazer queijo. Na degustação gostamos do queijo sem nada e iríamos comprar, mas o Turco avisou que tinha o contato de uns funcionários que vendiam pelo mesmo preço, mas por fora. Ele queria dar o lucro para essas pessoas. Porém, ao chegar em suas casas, no bairro ao lado, fomos informados que eles já haviam vendido tudo. Então ficamos sem queijo.

O passeio pelo dique tem a imagem do jato de água saindo da represa, impressionante, e o próprio passeio pela borda do dique.

Iríamos comer uns tamales sensacionais de acordo com o Turco, mas a dona já tinha vendido tudo também. Lunes não é um bom dia para esses passeios.

Fomos nas redondezas, em um lugar chamado Casa de Piedra. O prato do dia era um guisado, que na verdade era um macarrão com molho picante e pedaços de carne. Bem gostoso. Depois pedimos duas empanadas e a de pollo estava bem temperada e a de carne bem recheada. Durante o almoço perguntei ao Turco se ele morava em Tafí. Ele disse que sim e iria me mostrar onde.

O último lugar do passeio era o olho d'água, um lugar de onde sai água da montanha que dizem ser milagrosa. A Mitiko ficou com medo de tomar e ter piriri, e eu troquei pela nossa água; ficou sendo a minha garrafa. Veremos se passo mal.

Disse que era o último lugar. Na verdade era o penúltimo. O último foi a casa do Turco, que ele falou que ia me mostrar. É um terreno do lado da rota em direção a Tafí de cerca de 400 metros quadrados. Nele havia uma construção de 2 metros de madeira sem teto, um monte de lixo em volta e um carro pior que o dele. Dentro do carro ele tinha improvisado uma cama onde usava para dormir. E é isso. Ele não tem mais nada. Seu objetivo é comprar tijolos de adobe e construir sua casa. Pouco a pouco. Torçamos por ele.

Depois do passeio que durou 4h (ele cobrou um extra de 500 pesos) fomos experimentar o sorvete de dulce de letche da sorveteria gourmet próximo do hotel. Um lugarzinho deprimente. A casquinha também é dura como a anterior. O sorvete lembra gourmet: é caro.

Mais à noite, sem opção de onde comer, demos uma olhada na rua central e quase tudo fechado. Andamos até o hotel/restaurante da Tulla Luana e na frente estava aberto aquela parrilla que geralmente está cheio de gente e música ao vivo, mas por ser lunes só tinha uns gatos pingados e música do Spotify. Entramos e pedimos bife de chorizo, papas fritas e salada mista. Para beber seven up e uma botella pequena de vinho, que no caso foi o AlgumaCoisa Viejas, um blend de uvas sem safra, mas que não estava tão vinagrado quanto o Cafayate do hotel.

A carne chegou rápido e bem passada. O ponto não foi perguntado e nos foi entregue esse bife seco, duro e triste que só os piores lugares da Argentina poderiam oferecer. Eu faço uma carne melhor em casa e nem preciso da raça maravilhosa de boi que eles têm. Basta colocar a carne de um lado até o sangue subir, virar e aguardar cinco minutos. O quão difícil é isso? Nem sal precisa colocar, mesmo porque nesse nosso bife eles não colocaram. Bom, não vou criticar o restaurante de uma Estância tão antiga. Eles devem saber fazer bem a carne e gostam de comer como se fosse a sola de um sapato. No final a Mitiko cortou em pedaços e deu a um perro no caminho para o hotel.

Dia de Preguiça

A Mitiko ficou mal da barriga esta noite e essa foi uma manhã e tarde repousando no hotel. Assistimos a Temporada de Patos, um filme no catálogo de arte da Netflix que explora vários nadas. É um filme de arte por definição: puxa a interpretação de todos os seus assuntos do espectador e não oferece nada exceto estética vazia. Uma aventura no tédio de um domingo em preto e branco. Um Cria Corvos sem imaginação ou propriedade. Bem-vindo aos anos onde nada acontece.

Depois foi o Cinquenta Tons de Amarelo, um filme coreano sobre BDSM que torna o assunto politicamente correto e tão boring, não, mais boring que a versão cinza.

E um lanche rápido na Cafeteria das Meninas, onde pedi uma torta de limão com o creme seco e comprovei que o lugar não tem salvação.

Já hoje o jantar no hotel revelou que o cozinheiro mudou ou estava de bom humor, pois o bife veio no ponto certo e o purê mais suculento e melhor preparado. Segue o jogo para a mudança de província amanhã.

Deixando Tafí

Dia de ir embora e sem nada pra fazer, o checkout revelou que o hotel só aceita pagamento em dólares pela conversão oficial de 140. O que é um roubo. Dariam 300 e poucos USD, ou mais de 1500 bozos. Em pesos com os dois jantares ficou 50k.

Para passar o tempo jogamos sinuca e pingue pongue no salão de jogos do hotel, bem tranquilo e com mesas novas. Experimentei o último sorvete e meialunas da cidade, de uma padaria da rua subindo a sorveteria mais afastada. As meialunas são as melhores. Há uma tendência de Tafí em as padarias terem os melhores pães, mas não tem opção de comer um lanche no local ou um café, e os bons cafés não têm lanche decente. A cafeteria das meninas por dois dias seguidos não tinha fiambres, e seus doces ficam lá por dias a fio.

Depois partimos para Tucuman e depois de aguardar duas horas pegamos o ônibus da Andersmar para San Juan. Comemos uma boa pizza no shopping do terminal, massa pan saborosa e bom queijo, e servem cerveja em latas de meio litro.

O serviço da Andersmar deixou a desejar. Poltrona semileito que abaixa pouco e não me deixaram despachar minha mochila cheia que não cabe nem em cima nem embaixo da poltrona. A temperatura interna do ônibus variou entre 28 e 31 graus. As paradas em terminais não são anunciadas, incluindo San Juan.

Chegamos no hotel às 8, mas o check-in era apenas 13. Então ficamos zanzando pela cidade, buscando sorveteria e ver o aluguel do carro (que não era onde pensávamos). Depois do check-in fomos comer massa em um lugar bem bom e simpático chamado Siciliano onde tomei um Malbec suave e conheci um macarrão diferente: sorrentinos. O meu veio com ossobuco ao Malbec.

Depois fomos visitar a bodega Argos de táxi para voltar a pé. Era uma casa e não tinha ninguém. Então voltamos a pé no sentido de outra bodega, de litrão. Mas estava em reforma. No final andamos 9 km.

Ah, experimentei o sorvete da praça, um dulce de letche bem servido em um vasinho comestível gostosinho. Não é muito doce e a textura é gostosa.

Também fomos em um café chamado infinito bem meia-boca. Não voltaremos. O atendimento é relapso e a comida bem mais ou menos. Espresso suave como todas as cafeterias que já fomos.

Corrida por um Carro

A Mitiko tinha conseguido agendar um almoço hoje em uma bodega em Pedernal. Tudo que faltava era um carro, que devia ser pego a uns 2km do hotel às 10:30. Depois do desaluyo na galeria paga pelo hotel com meialunas ok, mas facturas sem manteiga ou doce (pagamos à parte) e um suco horrível de laranja, andamos até o local, que é uma casa grande com tudo fechado. Tocamos a campainha três vezes e nada. Andamos até uma agência de turismo na esquina da avenida próxima e a moça está ocupada com uma viagem para a Europa com seu cliente. Atravessamos a rua em uma sorveteria, peço o wifi e um sorvete de dulce de letche, muito próximo do da esquina da praça principal. Tento ligar pelo Whatsapp da locadora sem sucesso. Envio mensagens, mas não estão sendo lidas. Foi o tempo de tomar o sorvete para decidirmos por buscar um outro local para alugar.

Pegamos um táxi até a Avis, mas eles não têm carro para hoje. Andamos mais duas quadras até o alquiler que vimos fechado na véspera e está aberto. Um casal está devolvendo um carro. São 11:30. Depois que somos atendidos a moça diz que eles têm um carro, mas demora uma hora pra limpar. A Mitiko diz que pode ser sujo mesmo. O almoço é às 15h a uns 100km de lá. Eles limpam interno apenas.

Um detalhe: a gasolina está na reserva. Andamos até o posto mais próximo para abastecer e quase faço um gato na frente da polícia. Depois um outro carro faz gato em mim.

Carrego 4k, deu pouco mais que meio tanque. Seguimos viagem pela ruta 40. Finalmente!

Paramos em uma vinícola de champanhe. A tia, Sônia, apresenta muito bem esse projeto família que começou há 50 anos e que agora tem os certificados orgânico e sem glúten. Eles seguem o esquema de virar a garrafa um quarto todo dia e fermentação in vitro. O ponto alto é ela abrindo uma garrafa na hora com a levedura congelada, arrancando a tampa corona na pressão e servindo para nós a versão natural. Ela despeja uma colcha de licor, mexe bem e serve um extra brut, algo assim. Coloca mais licor e serve o dulce. Da mesma garrafa. Sensacional. O sabor é normal. Nada comparado com de Cafayate.

Eles produzem um monte de coisa. Até o tomate orgânico sai da mesma horta.

Depois bora comer. Chegamos quase 15h. Os pratos são bem feitos, mas nada excepcional. Um bife de chorizo ao punto e peixe com molho. Nem o vinho, apesar de gostoso. O ambiente é bacana tipo bodega ao lado da pré cordilheira.

Na volta fomos ao cinema: Me Respeita que Sou Sua Mãe é baseada em alguma obra e vem ao cinemas como uma comédia sobre exageros da família italiana, conflito de gerações e é fofinho. O ator que faz o Nono se esforça no limite do ridículo, mas falar tudo em Italiano lhe garante uma certa dignidade. Sua nora, a protagonista, é interpretada de maneira mais solta, teatral, como o resto do elenco. Uma farofa apenas curiosa.

Um Dia Perfeito

Hoje foi dia de ir visitar Calia no começo do dia e Sierras Azules no final. Na primeira bodega nos recebeu a Giuliana, muito simpática, em uma visita privada, pois não havia mais ninguém, e com uma informalidade agradável. Ainda mais se pensarmos que essa é a visita de uma produtora gigantesca de vinhos, nível industrial. Ela é dos mesmos donos da Salentein de Mendoza, adquirida quando ainda era menor nos anos 2000. Hoje está lançando novas linhas e um logotipo mais moderno. A degustação foi muito divertida, que sem pressa foi regada a uma conversa que parecia de amigos de longa data.

Já a última bodega, Sierras Azules, surgiu como hobby em 2003 e hoje continua, pois suas poucas milhares de garrafas anuais são para as visitas e degustações. Foi um evento cheio de gente, a maioria locais, no entardecer ao pé da serra, que fica de fato azulada próximo do pôr do sol. A apresentação da host foi também bem bacana, explicando conceitos simples para um grupo grande. A degustação ao entardecer foi no estilo maridaje; um evento único. Tentamos harmonizar várias comidinhas de picadas com nossa taça de vinho.

No meio do passeio de hoje, já na região de Zonda, almoçamos em um lugar que estava cheio de gente, comida de campo. Uma lasanha do campo com mato dentro com uma proposta interessante. E vegetais na brasa absolutamente sensacionais. Queria muito conseguir reproduzir esses vegetais.

A devolução do carro foi suave. Pagamos em dólares e foi descontado o que enchemos antes da devolução. Se tiver em Mendoza pode ser uma opção.

Amanhã vamos a Mendoza.

Também provamos o melhor sorvete de San Juan, Helados Artesanales. Um mundo de sabores feitos lá mesmo. Quem nos serviu foi uma simpática senhora. A Mitiko quase se perdeu em meio a infinitos sabores. O de dulce de letche com certeza é o melhor de San Juan.

Mendoza

Dia de se mover novamente. Dessa vez para Mendoza de ônibus. As malas estão muito pesadas e há muitas garrafas, mas por algum milagre conseguimos colocar todas as garrafas ainda nas malas originais. Deu tudo certo até chegar no terminal e não termos nem táxi no terminal de Mendoza nem internet para vermos o código para entrar no prédio do AirBnB. Peço o wifi para uma barraca de pipoca na nossa frente e o sujeito estava sem a internet do local funcionando, mas compartilhou numa boa sua internet do celular. Consegui ler o código e comprei uma pipoca.

No caminho (quando estávamos no ônibus ainda) terminamos de assistir a Cine Holliúdy, um filme cearense que mantém um ritmo de piadas incessante sobre o jeito cearense de ser e fala sobre o sonho do cinema existir nos lugares mais remotos. No final ele salva o cinema contando uma história. E cinema não é sobre isso?

Chegamos na casa e parecia aqueles jogos de escape room ao contrário: digitar o código do portão, digitar a senha do cofre do corredor para pegar as chaves do portão, subir o elevador com as malas, encontrar a porta do nosso apartamento e abrir.

Aguardamos nossos amigos Fábio e Mari chegarem do aeroporto e fomos comer em um restaurante próximo aberto com um garçom que falava um pouco de português porque aprendeu com os meio-irmãos. Sopinha de calabaza e champignons no começo fez um carinho bom na barriga, seguido de legumes grelhados em uma provoleta OK e com um vinho escolhido com ajuda do sommelier bem mais ou menos que não tinha muita madeira, mas não era tão caro. Chegou os ojos de bife com legumes grelhados também. A carne estava no ponto, mas não exatamente suculenta. Estava OK também. O preço ficou OK de 12k pesos para quatro pessoas.

À noite ainda pegamos uma pizza do lado, um lugar cheio. Massa boa, apesar de um pouco seca. Tomates meio estranhos. A de calabresa estava melhor. Abrimos um Esperado da Callia, já que havia garrafas no Carrefour que estavam até mais baratas que na própria bodega.

O apartamento é meio velho, mas organizado. As instruções de chegada foram muito boas.

Bodegas

Hoje estava chovendo e a ideia de subir o morro e ver a paisagem vai ficar pra depois. Fomos trocar dólar e real no mesmo lugar de sempre (taxa de 260). Depois fomos comer as melhores meialunas de acordo com o amigo do Fábio, no La Vene, e elas eram boas mesmo. Um pouco mais secas, mas a massa é bem equilibrada e gostosa. Lá também havia churros e empanadas. Os churros são salgados demais e as empanadas possuem uma massa muito boa e as de carne um tempero ótimo. Há também um bom café.

Depois fomos para a região de Luján de Cuyo, onde estão os vinhos top. Dá pra chegar com uma corrida de táxi de menos de 2k pesos. Luigi Bosca e Trapiche estavam fechadas e fomos para Lagarde, cujo passeio era o mais caro de todos. Pegamos uma degustação de sete taças incluindo uma taça do top de linha por 5k pesos. Os outros eram reservados em barrica e ordenados do menor para o maior tempo de reserva. Todos possuem algo interessante no sabor, mas nenhum deles chega a ser comprável, pois é mais caro que o dobro de vinhos mais acessíveis com o mesmo alcance de paladar. O topzão, Gran Reserve, realmente oferece sabores complexos, que vão mudando com o tempo. Só que ele custa 600 reais.

Depois a Mitiko encontrou uma bodega que foi um achado: Carmine Granata. A atendente Luli não costuma atender sem reserva, mas mora perto e coincidentemente estava por lá quando tocamos a campainha. Ela nos atendeu tão bem e com uma empolgação tão grande em explicar com detalhes técnicos desde a plantação das uvas até a degustação que foi possível aprender coisas novas mesmo depois de tantas bodegas já visitadas. Foi uma visita privada de apenas nós quatro. A bodega fazia 7 milhões de litros e havia tanques gigantescos de concreto em funcionamento. Agora boa parte deles é usada como salas. Inclusive a sala de degustação! Uma das melhores visitas de minha vida em uma bodega.

Não havíamos comido ainda e o dia já estava acabando. Pedimos um táxi na primeira bodega e voltamos a Mendoza. Iríamos comer no Azafran, mas precisa de reserva. Vamos no La Pasion para mais bife e vegetais assados. Gostoso. Lá provamos um Luigi Bosca jovem com preço de reserva. OK, nada demais.

Amanhã com o tempo fechado devem continuar as visitas em bodegas.

Subindo o Morro

Hoje foi um dia ensolarado então fomos subir o morro. Não muito quente, nem muito frio. Turistas poderiam descer de ônibus em um ponto próximo dessa trilha, mas pelo menos para nós foi impossível achar o cartão de sube nos kioskos do centro, passamos em pelo menos cinco deles, e também passamos no próprio centro de atendimento ao sube e lá não havia cartão, apenas fila. Nessa situação pedimos um táxi até lá. Estávamos em quatro. O valor ficou em torno de 2000 pesos.

O táxi nos deixou no começo de uma estrada que dá carro, mas é proibido para pessoal não autorizado, embora alguns subam mesmo assim, pois não há fiscalização. Há um certo movimento de pessoas subindo e descendo, então é seguro caso você precise de ajuda. A subida não é tão íngreme, apenas longa, de 5 km. No final, logo depois da antena, não há sinalização, mas há um mirante para uma paisagem de Mendoza inteira e da cordilheira do lado. Fica ao lado das antenas e você precisa atravessar por elas, um grupo de pessoas que lá estavam nos avisaram. Vale a pena essa vista maravilhosa.

Após descer o serro, aproveite que este boteco/restaurante tem empanadas e uma cerveja IPA artesanal (Quapaq) para relaxar. O atendimento é muito cordial, os preços são OK e eles podem pedir o táxi de volta para a cidade. Não espere luxo.

Depois rolê no Carrefour pra achar farinha e mate.

Depois jantar no restaurante do Hyatt junto de um amigo do Fábio, o Giovani. Ele era chefe de cozinha e virou QA trabalhando para uma empresa americana recebendo em criptomoeda. Bem bacana a história. Ele foi estagiário no DOM.

O atendimento do Hyatt pode ser considerado excelente e cordial pela maioria, mas na minha opinião o tratamento passa um pouco do equilíbrio que deve existir entre intimidade e distância. Exceto isso você pode contar com seus pedidos sendo atendidos de maneira impecável.

A comida estava OK, mas não se esperava apenas OK de um bistrô. Estávamos em cinco e pedimos pratos variados. Aqui vai a impressão geral. O bife de chorizo, meu prato, estava passado demais (foi pedido ao ponto), embora vistoso. Bem temperado, mas o sabor passa logo porque a carne começa a ficar seca rapidamente quando você não usa o ponto certo. Veio acompanhado de fritas não tão vistosas nem apetitosas. Estavam sem cor. Outro prato, o risoto com ossobuco, não havia nada demais em seu sabor (lembrando que a expectativa era de um bistrô). Foi pedido um cordeiro assado que veio com partes duras. A pessoa que pediu se lembra de como era fácil preparar um bom cordeiro assado no interior da Bahia, no Brasil. Infelizmente o chef do local não conseguiu atingir essas expectativas básicas. Por fim, a sobremesa que me lembro foi a de sorvetes, com o sabor de dulce de letche forte, o de pistache aromático e o de limão azedo demais.

O ponto forte da noite foi a sommelier e o vinho escolhido após essa consulta. Depois de pesquisar conosco nossos pedidos, o ponto da carne e a faixa de preço ela nos trouxe algumas opções de não-Malbecs: um Pinot Noir e dois Merlots. Ao escolher por um Merlot de autor feito pela bodega Mendel ela ainda nos deu a opção de duas garrafas em temperaturas diferentes. O melhor atendimento que já recebi de uma sommelier em um restaurante. Até minha esposa que não é tão fã de Merlots adorou, tanto que no dia seguinte fomos visitar a bodega.

Amanhã pegamos o carro pra começar a explorar lugares mais distantes.

Maipu

Hoje peguei o carro. No serviço mais espetacular de aluguel. O rapaz trouxe o carro até mim e eu irei devolver no sábado no aeroporto. Sem cobrar nada a mais por isso.

E hoje fomos para Maipu. Primeiro na bodega do Merlot sensacional da noite anterior, Mendel. A apresentação da vinícola foi pela Silvinia, muito intensa e cheia de analogias para entendermos alguns conceitos de elaboração de vinhos e envelhecimento (vinhos são como pessoas, jovens têm aquele brilho…). Ela nos levou através dos tanques que são usados como cavas no meio do trabalho da bodega. Eles estavam limpando barricas infectadas. A degustação foi lenta, no seu tempo, e ela nos deu um 2014 para experimentar, mesmo esgotada, para seguirmos a diferença da evolução de um mais recente.

Depois foi a vez da Cecchin Family Winery, uma pequena bodega dessas orgânicas (está na moda ter esse selo) que nosso guia apresentou em vários detalhes de como as pragas são evitadas sem o uso de fertilizantes e como não se usam sulfitos em alguns rótulos. No entanto, ele estava no automático e aparentemente com pressa; passou pelo seu roteiro, incluindo a degustação apressada, sem apresentar cada rótulo. Não levei nada, mas foi bacana as informações, principalmente sobre o controle da plantação.

Hora de comer. A Mitiko achou um IL Mercato Maipú, que é uma praça de alimentação com várias opções, mas estava fechando e acabamos pegando um lanche de vacio (fraldinha, ou fraldão, não está muito claro). Bonzinho. Administrei meu sono com coca zero.

Por último, chegamos atrasados na Bodegas López, que de longe é a produção mais gigantesca que testemunhamos. A visita foi cheia de gente e não deu para entender muito do que o guia estava falando, pois havia uma multidão no meio, mas observamos os tonéis e tanques gigantescos que nos deixavam pequenos. No final a degustação de graça do lado da piscina e eu sem minha sunga. Um tinto safado, áspero, e um doce branco colocado na mesma taça e o guia falando de analisar a cor rosé que ficou. É possível notar a felicidade das pessoas depois em poder comprar caixas de seu vinho favorito. Muitos gostam da linha que a Lopes produz, eles conseguiram um mercado gigantesco sem sacrificar toda a qualidade. Detalhe divertido: eles têm uma meia garrafa Grand Reserve em seu décimo ano por 1400 pesos. Eu passo.

À noite fomos bater perna pela rua de lembranças e comprar alfajores da Entre Dos para degustar. Eles realmente são bons.

Amanhã o plano começa cedo: ir para Valle del Uco e fazer blend às 10.

Valle del Uco

Hoje foi o dia que acordamos mais cedo, mas por um bom motivo: chegar 10h no Valle del Uco a tempo de visitar a bodega Sophenia com a experiência de fazer seu próprio blend. O dia estava ótimo, sol, e as montanhas charmosas, cheias de neve da noite anterior. Havia uma fumaça no meio do caminho que parecia incêndio, que depois nosso guia da bodega nos explicou ser uma prática comum para proteger as plantações da geada. O nosso guia foi muito falador e informal. Nos deixou muito à vontade em uma experiência de degustação enquanto visitávamos a vinícola. A Sophenia é uma bodega que se tornou orgânica recentemente e tem um porte médio para pequeno. Eles trocaram toda uma cepa para Cabernet Franc usando enxerto economizando 5 anos de evolução se fossem plantar tudo do zero; a primeira colheita após o enxerto é descartada. Tomamos alguns vinhos também direto do tanque que foram usados para fazer o blend: um Cabernet Sauvignon sem madeira, um Merlot com pouca madeira e um Malbec com muita madeira. Na hora do experimento, regado a mais degustações que nos eram servidas, foi dividido o grupo em dois. Estávamos em quatro: Sra. e Sr. Mitiko, Fábio e Mari. Nós começamos montando um blend base e criando o rótulo. A partir de algumas degustações e conversando com minha parceira cheguei em uma versão do que queria levar para casa: um vinho com mais coisa acontecendo, um tanto desconcertante e ao mesmo tempo fácil de beber. Um vinho egoísta. Ao final, o guia chama sua colega para fazer uma avaliação às cegas do melhor blend de cada um. E eu ganhei um prêmio especial que foi degustado no churrasco ao voltar de viagem. Foi muito divertida e inesquecível toda essa experiência. Única.

Depois fomos procurar um lugar para comer, mas minhas primeiras duas dicas não deram em nada. No lugar bem pontuado o tiozinho tinha uma paisagem bonita e uma Parrilla ligada, mas queria 45 USD de cada um. A segunda dica, logo do lado, estava fechada. Então fomos para a dica da Sra. Mitiko. Como no caminho estava a Azul, onde iríamos fazer a segunda visita, o Fábio teve a ideia de perguntar se mesmo sem reserva não teria uma mesa. E sim!

Esta bodega é nossa queridinha desde a nossa primeira visita a Mendoza, há vários anos atrás. Na época era apenas um galpão. Qual não foi nossa boa surpresa de ver um restaurante em anexo com menu de passos.

E a comida do restaurante estava sensacional. Tanto as entradas de feijãozinho e um choripan memorável quanto ambos os pratos principais (estávamos em quatro), um contra-filé suculento e uma costela de porco desmanchando de tão cozida. As sobremesas estavam boas, embora menos marcantes. Um detalhe: os vinhos servidos durante os passos eram à vontade.

Depois havia ainda a visita, feita dentro do galpãozinho da Azul, o mesmo que visitamos vários anos atrás, mas mais apertado, com mais gente participando e com muitas barricas e tanques. Os tanques iniciais, menorzinhos, estavam lá. Mas do lado um novo galpão com tanques bem maiores.

Das 80 mil garrafas da produção da primeira visita que fizemos, muitos anos atrás, pularam para 300 mil anuais. Foi uma explicação histórica da família mendocina que iniciou este negócio e que têm tanto orgulho. Bem bacana o carinho que todos nutrem.

Ao final, seguindo a tradição, experimentamos um gran reserve em processo de evolução direto da barrica. Um Syrah com dez meses. Faltando ainda 14, ele estava bem alcoólico e precisando respirar até sentirmos alguma coisa agradável.

Esta bodega é uma da lista que com certeza voltaremos em nossa próxima visita em Mendoza. Espero vê-la ainda mais próspera, mas mantendo esse ambiente agradável e informal de pessoas comendo boa comida, bebendo um bom vinho e dançando ao sol, com a vista da cordilheira ao fundo.

E foi isso. O final do dia foi degustando mais uma pizza do lado com um Malbec/Bonarda de latinha que peguei no Carrefour. Muito bom, apesar de estar em uma latinha. Melhor que o do López. Amanhã não há grandes planos. Não de vinhos. Até porque já passei das 30 garrafas.

Catena e Gran Enemigo

O último dia não estava ainda muito agradável para as termas e ainda havia uma lista de compras para arrumar as malas: plástico bolha, saco de lixo, dulce de letche e Gran Enemigo, o vinho que o Incrível me pediu para levar.

Como estávamos com o carro fomos até o Catena Zapata para comprar algo de lá (e apresentar a pirâmide para o Fábio e a Mari). Foi um pouco longe e havia um horário para acessar a loja com uma espera de 20 minutos, onde nesse tempo fomos tentar entrar em outras bodegas daquela rua. Entre elas a Chakana, no final da rua de pedra, onde estava tudo aberto, mas não estavam recebendo visitas. A paisagem por lá também é bem bonita.

Finalmente no Catena e todo aquele longo caminho de pedras até a pirâmide. Ficamos olhando os preços e os vinhos disponíveis no wine bar, mas nada me apeteceu. O Fábio foi pegar um Reserva deles e perguntamos se daria para provar essa linha, então o sommelier deles nos deu uma taça de cortesia de um já aberto e de duas safras atrás. Muito bem feito, amadeirado e equilibrado. Demais para mim. Não levei.

Depois fomos a um bar e restaurante chamado Casa Vigil onde há uma vinoteca, onde teoricamente teríamos almoço e vinhos da linha El Enemigo. Isso fica no próprio Shopping Palmares onde na última vez tínhamos caminhado para ver um filme. Na praça de alimentação aberta há vários restaurantes e cervejarias, mas chegamos em um horário ruim, com as cozinhas fechadas. Comemos hambúrguer no Patagonia, tomamos sorvete em um Inn do local e fomos à vinoteca, já aberta, que estava com promoção de 15% para quaisquer quatro garrafas e 20% para quaisquer seis. Estava pensando em levar um Gran Enemigo também para mim.

Porém, eis a surpresa: este vinho custa mais de 10k pesos. Ou seja, daria uns 300 e tantos. Falei com o Incrível e ele disse que estava ótimo, se pudesse pegasse dois. Então tá bom. Menos para mim. Estou levando para ele o Cabernet Franc e um blend com Malbec, dos anos 2018 e 17.

Depois do almoço e das compras de vinhos foi hora de comprar dulce e montar mala, algo que a Sra. Mitiko domina. Terminado o plano básico eu e o Fábio, sem sono, fomos dar um rolê pela rua das baladinhas, tomar uma breja e conversar. Depois uma caminhada de volta. Essa conversa foi longa; esticamos até umas 6 e pouco da manhã. Mas valeu a cada segundo. Peguei no sono rápido e acordei às 9:30 e 10:40. Imaginei que o aeroporto estivesse a uns 15 minutos e estaria tudo de bom, mas eram 25 minutos, o que para duas viagens já daria uma hora e meia. Saímos 11 e pouco.

Não dando tempo de abastecer e meia hora atrasados para devolver o carro, chegamos e o Cláudio, que me entregou o carro três dias atrás, estava lá, e tudo estava tranquilo. Paguei o valor do aluguel, do combustível, e mesmo com o carro todo cagado pelas árvores da rua onde ele ficou as noites, Cláudio apenas verificou se não tínhamos esquecido nada e partiu. Tenho que elogiar muito, muito mesmo, esse serviço de San Juan. Pretendo usar todas as vezes que voltar para Mendoza.


# A Queda (2022)

2022-10-09 tag_movies ^

O título desse filme que vimos na Argentina é Vertigo, mas não é o do Hitchcock. É um filme em que duas escaladoras estúpidas e deliciosas ficam presas em cima de uma torre de 600 metros de altura. Tenso, apesar da história previsível. As situações montadas para o filme e os momentos de ação compensaram. Jovens estavam assistindo conosco. Dublado em espanhol.


# Cine Holliúdy

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Um filme cearense que mantém um ritmo de piadas incessante sobre o jeito regional de ser e fala sobre o sonho do cinema existir nos lugares mais remotos. No final ele salva o cinema contando uma história. E cinema não é sobre isso, mesmo, miserávi?


# Amor com Fetiche

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Cinquenta Tons de Amarelo

Um filme coreano sobre BDSM que torna o assunto politicamente correto e tão ou mais boring que a versão cinza. Versão preta continua a mais divertida.


# Como Agarrar um Marido

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Com um Steve Martin mais pastelão. Fofinho. É sobre um casamento inventado com base em várias mentiras criadas pela atriz luz do filme. É uma ficção em cima de outra ficção, mas muito realista. Como The Pickup Artist nos ensina, o que é dito importa menos de como é dito. E a menina tem atitude e ganha o cara. Não há muitos traços de ter envelhecido mal.


# Lords of Metal

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Uma comédia adolescente com roteiro mais elaborado que o normal e atuações razoáveis que criam pessoas fora do normal com tato e situações bem pensadas. A adaptação de heavy metal com violoncelo ficou soberbo demais.


# Me Respeita que Sou Sua Mãe

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É baseada em alguma obra literária e vem ao cinemas como uma comédia sobre exageros da família italiana, conflito de gerações e é fofinho. O ator que faz o Nono se esforça no limite do ridículo, mas falar tudo em Italiano lhe garante uma certa dignidade. Sua nora, a protagonista, é interpretada de maneira mais solta, teatral, como o resto do elenco. Uma farofa apenas curiosa.


# Meialunas argentinas [link]

2022-10-09 tag_cooking ^

Meialunas são como croissants mais doces e com mais sabor. Vou usar como base a receita do canal CUKit! (link principal), embora irei usar também como referência um pior, o vídeo da Paulina Cocina, onde ela faz meialunas bem nas coxas, mas é justamente o que me dará forças para quando a minha também ficar meia-boca, e o vídeo de Isabel Vermal, que me pareceu um bom meio termo entre os dois vídeos, e de brinde com mais explicações do processo.

Para a massa de 25 meialunas vamos usar 500g de farinha de trigo da mais fina (na Argentina 0000, no Brasil peneira bem o Tipo 1). Junte 40g de açúcar, 5g de sal, raspas de laranja a gosto e misture. Acrescente 8g de fermento seco, 300ml de leite frio, 15g de mel e 1 colher de sopa de essência de baunilha. Misture novamente para incorporar e em seguida amasse um pouco na bancada até conseguir uma massa uniforme e ativar um pouco a rede de glúten. Coloque dentro de um recipiente fechado ou plástico filme, cubra e leve à geladeira por pelo menos meia-hora.

Agora pegue 200g de manteiga. Se for um bloco corte em dois e deixe um do lado do outro. Cubra com plástico filme e comece a dar umas batidinhas com o rolo, esmagando com pressão, e vá aos poucos abaixando sua altura. É importante que a manteiga esteja fria para conseguir trabalhar melhor, assim como será com a massa durante as dobras. Estique até a espessura de meio centímetro com a largura de cerca de um palmo ou 20cm como base; dobre as pontas no plástico filme para manter a forma retangular. Leve também à geladeira por pelo menos meia-hora.

Agora é a hora de iniciar as dobras. Polvilhe farinha na mesa e pouse a massa sobre ela. Tire o ar que ficou na massa e comece a passar o rolo para esticar. Puxe delicadamente os lados com a mão para formar um retângulo. O objetivo é cerca de um palmo e mais quatro dedos, ou 25cm, de base de largura para envelopar a manteiga; a altura precisa ser mais que o dobro. A grossura final deve ser de meio centímetro, também. Após isso você coloca a folha de manteiga em um dos lados da massa e dobra a massa para cobrir por completo, envelopando a manteiga; deixe um espaço generoso nas bordas, cerca de dois dedos, para não vazar enquanto estiver fazendo as dobras, e pressione os lados após dobrar. Agora você polvilha farinha novamente na mesa, deixe a dobra lateral para a frente e começa a esticar novamente com o rolo, sempre focando em um retângulo alongado. Depois dobre a massa em três, como um envelope, cobrindo o meio com a parte superior e inferior da massa. Por final role mais um pouco a massa para dar uma esticada leve, só para deixar a massa um pouco mais fina, e coloque em uma forma. Cubra e leve à geladeira por meia-hora.

Depois de meia-hora você deverá repetir os procedimentos de alongar a massa, dobrar em três partes e repousar mais duas vezes, sempre descansando na geladeira por meia-hora. Sempre polvilhe farinha na mesa antes de começar e use as dobras laterais para cima. Os descansos são frios com dois objetivos: evitar que a massa fermente e evitar que a manteiga derreta.

Após o último descanso retirar a massa da geladeira para começar os cortes. Polvilhe a mesa com farinha e comece a alongar a massa, tendo a largura de cerca de 25 centímetros, ou um palmo e quatro dedos. Se começar a grudar o rolo pode polvilhar um pouquinho de farinha por cima da massa. A espessura final também deve ser de 1 centímetro. Depois de alongada corte as bordas ao longo da massa e dobre a massa ao meio de forma longitudinal para marcar o centro. Corte a massa nessa marca para dividir em duas partes. Para cada parte vá cortando triângulos com 6 centímetros de base (cerca dos quatro dedos juntos), ou seja, com os dois outros lados mais alongados. Coloque esses triângulos sobre a forma, cubra e volte à geladeira por meia-hora.

Depois do descanso é a hora de modelar. Com as mãos abra suavemente a massa, tanto na base quanto esticando a ponta mais longa do triângulo. Depois na mesa comece a enrolar da base para a ponta. Coloque a base para cima e vá enrolando. Enquanto enrola vá estirando levemente a massa, ou seja, puxando um pouquinha toda a parte que ainda falta enrolar. Depois de enrolar todas comece a montar na forma uma após a outra, bem próximas, mas sem encostar. Deixe a pontinha final sempre no sentido para baixo, estique um pouquinho as pontas laterais e dobre-as para baixo, formando uma meialuna, amassando as pontas para fixar na forma. Cubra e leve à geladeira para descansar por 12 horas. Boa noite.

No dia seguinte ou 12 horas depois, ao retirar as meialunas da geladeiras elas devem ter dobrado de tamanho. Se isso não aconteceu deixe-as na temperatura ambiente até que dobrem. Depois de crescerem deixe-as cobertas ainda em temperatura ambiente.

Prepare o xarope pós-forno. Coloque em uma panela 150g de açúcar e 150g de água. Tire uma lasca de casca de laranja e coloque junto. Deixe ferver por cinco minutos. A consistência final deve ser fluida. Reserve o xarope.

Prepare a cobertura pré-forno. Quebre um ovo com uma pitada de açúcar, uma pitada de sal e 2 colheres de sopa de leite. Bata levemente. Pegue o resultado e pinte a superfície de todas as meialunas. Agora coloque-as no forno alto a 210 graus por 20 minutos, ou até, acredito eu, elas estarem amarronzadas.

Depois que retirar do forno, enquanto ainda estiver quente, cubra-as com bastante xarope pós-forno. Alguns chefs furam as meialunas antes disso para o xarope penetrar na massa.

Pronto!

Histórico

2022-10-02 Primeira fornada de meia receita: ficou a metade do tamanho (não deveria ter cortado ao meio), ficou com muita laranja (não usar raspas de uma laranja inteira), ficou com um tanto de baunilha demais. Não tive tempo de deixar crescer em temperatura ambiente, mas na geladeira cresceu, acredito, uns 50%. A textura ficou boa, macia e com as dobras visíveis. Uma das meialunas destacou a pontinha e é por isso que ela deve ser deixada para baixo na forma. Queimou um pouco além do ponto embaixo, melhor deixar na parte de cima do forno.

2022-10-03 Segundo preparo. Estou tentando usar o tamanho original. Uma parte importante de preparo da manteiga é não deixar ela muito fina ou não vai caber quando a massa estiver com 5 milímetros. Deixe ambas com essa espessura. Esqueci de cortar as bordas. Untei com manteiga e farinha a forma e acho que isso foi demais, pois as orelhas das meialunas não ficaram presas; melhor manter apenas a manteiga, mesmo. Hoje de manhã a massa ainda não tinha dobrado. Coloquei na luzinha e uma hora depois senti que já estava bom. Ter untado demais atrapalhou as orelhas, que não ficaram presas e se perderam. Ter colocado na parte de cima do forno ajudou a não queimar tanto no fundo. Eu ter esquecido o corte das bordas não atrapalhou a textura final como eu achava que seria, nem ter vazado um pouco de manteiga. Manter mais de meia-hora entre as dobras parece que tornou a massa mais maleável, pois ela já estava crescendo um pouco. Como fui votar entre uma dobra e outra isso também deve ter influenciado. O bottom line é que não precisa se preocupar tanto assim com o tempo entre as dobras, desde que seja acima de meia-hora e mantenha a massa fria.

2022-11-15 Dica "mental": quando estiver muito calor é preciso tomar muito, muito cuidado para a manteiga não vazar. Deixe mais que meia-hora na geladeira e amasse a massa com muito mais carinho. Dessa vez vazou tudo. A solução para não destruir de vez foi ir fazendo cada vez mais aos poucos, voltando para a geladeira. Tenho fé.

2022-11-17 Segunda fornada da semana de meialunas e segunda vez que estoura a manteiga, mas acho que fiz uma dobra a mais. De qualquer forma a massa não parece estar ficando muito firme. O glúten não está ajudando. E descobri por quê: precisa sovar. Nem que seja um pouco para ganhar uniformidade. Outra questão é conseguir medir as proporções da manteiga e da massa corretamente para que consiga envelopar a manteiga de maneira ordenada. O foco é um retângulo com meio centímetro de espessura, tanto a manteiga quanto a massa, mas a largura deve ser próxima para conseguir envelopar certinho.


# Nanni Tannat Reserve 2019

2022-10-09 tag_wine ^

Reserva de 12 meses em barrica da mesma uva, que com muito esforço conseguimos matar. Não por ser ruim, estava delicioso. Esse gosto adstringente, agressivo, dos vinhos de Cafayate já me encantou novamente, mesmo sem ser fã dessa vinícola. O amadeirado chega meia hora depois de aberto.


# O Demônio de Ohio

2022-10-09 tag_series ^

Série boa para dar sono. Faz lembrar aquela chamada da Sessão da Tarde: essa moça que surgiu da plantação está com o diabo no corpo, e vai aprontar poucas e boas nessa família que a adotou, vivendo aventuras de arrepiar. Um episódio de 40 minutos para mostrar um pentagrama marcado em suas costas.


# Post Morten

2022-10-09 tag_series ^

Uma visão realista e dramática sobre vampirismo na Noruega e que mantém sua trama fechada com personagens bem definidos em eventos que os amarram. O resultado é um drama de terror que lembra Deixa Ela Entrar.


# Restos do Vento

2022-10-09 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Quanto mais penso na subjetiva e impactante introdução de Restos do Vento, filme que está na Mostra de SP esse ano, mais me convenço que ela gradativamente aumenta sua importância instrumental na análise e interpretação de sua história. Não apenas a trama, que já é bem amarrada em suas premissas. É o conjunto temático da obra, que transcende fácil o nível de "apenas mais uma sessão" e fica em nossa mente, remoendo a injustiça fundamental que "testemunhamos" na sala de cinema.

A introdução é impactante porque é traumática para o nosso herói. Ele é Laureano. Acompanhamos ele jovem se misturando com outros em uma espécie de irmandade masculina. Eles participam de um ritual pagão em uma época em que é tolerável, incentivado até, sair batendo em moças que estão andando pelas ruas de um pequeno vilarejo em Portugal. Eles vestem um capuz intimidador e seguem essa tradição alimentada e incentivada pelos mais velhos através de bebida alcoólica.

O mais importante nesse contexto é notar que Laureano se mistura porque pertence a uma "casta" inferior nessa sociedade. Por conta das fraquezas de seu progenitor ele é visto como fraco; durante o batismo do grupo ele perde inclusive o nome da família para ser aceito. E a seguir, os acontecimentos daquele dia se tornarão o nosso guia para descobrirmos quem é quem no futuro, vinte e cinco anos depois, quando iremos acompanhar pela maior parte do filme os mesmos jovens na fase adulta.

Comentário social com viés realista e uma pitada de provocação que se revela mais teatral, Restos do Vento confia na percepção do espectador de que algumas permissões poéticas se fazem necessárias pelo bem do drama. Mais relevante não é a pensar se tudo isso aconteceria na vida real, mas entender a essência dos personagens e o que eles significam na esfera maior de uma sociedade.

Samuel, por exemplo, representa o poder puro. Seu gênio incontrolável e caprichoso ecoa na personalidade do próprio filho, líder de um grupo semelhante ao visto no início da história. Samuel é o tipo de pessoa que dá as cartas na mesa e puxa mais algumas da manga; o que for necessário para ficar por cima. Paulo é um seguidor de ordens; ordens de você sabe quem. É o clássico pau-mandado que quando veste um uniforme policial na fase adulta revela a rede de influências que todos nós gostaríamos que não existisse em um mundo ideal.

Essa percepção do mecanismo da sociedade por trás da personalidade dos personagens principais é o que rouba nossa surpresa no final, pois já sabemos como uma história dessas termina na vida real: de maneira injusta. O filme de Tiago Guedes vai se alongando em múltiplos falsos-finais, já que ele apenas precisa repetir na tela o que já captamos em nossa mente. Pode ser previsível e doloroso para alguns, surpreendente para outros.


# Retoño Restaurant de Bodega Nanni (Cafayate)

2022-10-09 tag_food ^

Acabamos neste restaurante novamente por falta de opção na cidade naquela noite. Já havíamos ido na última vez e sabíamos que não era tão bom. Ele se fantasia de gourmet e alta gastronomia sem de fato sê-lo. Ele fica dentro da vinícola Nanni. Suas pequenas empanadas de entrada podem ser pedidas antes do prato principal. A de carne saltenha é a melhor, suculenta e com muito molho dentro, a de queijo esquecível e a de quinoa nem sei por quê fizeram isso. De prato principal dividimos o lomo banhado em molho agridoce de Tannat e para combinar pedi um Reserva de 12 meses em barrica da mesma uva, que com muito esforço conseguimos beber, já que eles não servem taças. Não foi uma tarefa ruim, pois estava delicioso. Esse gosto adstringente, agressivo, dos vinhos de Cafayate já me encantou novamente, mesmo sem ser fã dessa vinícola. O amadeirado deste reserva chega meia-hora depois de aberto.


# Temporada de Patos

2022-10-09 tag_movies ^

Um filme no catálogo de arte da Netflix que explora vários nadas. É a filme de arte por definição: puxa a interpretação de todos os seus assuntos do espectador e não oferece nada exceto estética vazia. Uma aventura no tédio de um domingo em preto e branco. Um Cria Corvos sem um imaginação ou propriedade. Bem-vindo aos anos onde nada acontece.


# A Criança

2022-10-11 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

A Criança é um épico que caminha por uma crise histórica sem fazer parte desta, compartilhando com o espectador momentos da vida privada de uma família onde seus costumes atrapalham a vida de todos, mesmo que ditos livres. É um gigantesco teatro no campo onde o dito amor encontra oponentes à altura, onde a poesia portuguesa não atinge os corações porque já estão todos falando em francês.

O seu pano de fundo é histórico quase como uma coincidência, pois não se encontra paralelo nos acontecimentos do filme. Estamos no início do século 16. A coroa portuguesa acabou de perder seu herdeiro e a esperança ainda está no ventre da princesa, o que naquela época não inspirava muita confiança. O único descendente poderia ser perdido facilmente, bastando um parto mal sucedido. A única chave para desvendar a época onde se passa o filme é que Bela, o protagonista, é uma criança adotada.

O que está acontecendo nessa família do interior próximo de Lisboa é que as intenções deste filho único é abandonar sua família e seguir o caminho de sua noiva, Rosa, que deseja retornar para sua terra natal. A família está vulnerável desde que perderam seu outro filho, um assunto nunca falado durante as refeições ou entre elas. A mãe, Maria, sofre de melancolia por conta de um amor perdido e o pai, Pierre, mantém uma relação misteriosa e que quase escapa aos nossos olhares curiosos dos costumes da época.

Direção de estreia da dupla Marguerite de Hillerin e Félix Dutilloy-Liégeois e uma das escolhas nesse ano para a Mostra de SP, este filme é falado quase totalmente em francês com algumas poucas frases em português, o que soa bem estranho pela história se passar apenas em Portugal, embora seja fácil de compreender pelas notas de produção: adaptado livremente de uma obra literária francesa e dirigido por franceses, as complicações nessa tradução não atingem nenhum objetivo multicultural, exceto a estranheza.

As atuações são um negócio fino, além do necessário para um roteiro delicado e sutil demais para fazer algum barulho que atinja a mente do espectador. Veteranos como Grégory Gadebois e Maria João Pinho enriquecem alguns momentos, embora o trio de jovens que mais ganha tempo de tela, João Arrais, Inês Pires Tavares e Alba Baptista, façam de tudo para tornar essa experiência mais televisiva que cinematográfica. Abusando de clichês de atuação, como abraçar seu estereótipo e compor quadros inertes em longas cenas, o elenco mais jovem frustra o que poderia ser uma provocação até que curiosa.

Como é de praxe em filmes de diretores estreantes, falta o pulso firme no controle do tom com que o drama é convertido em personagens pelo elenco mais inexperiente e a vontade de cortar o que está sobrando nos rolos de filmagem. Quando a tragédia anunciada acontece as consequências não são sentidas nos personagens, mas na duração de cada cena de conclusão.


# L4

2022-10-11 tag_movies ^

Road trip está na moda: paisagens vazias em um horizonte fundo verde. Personagens genéricos desprovidos de uma aventura mais complexa que a primeira passada dos roteiristas. Você fica o tempo todo tentando entender por que alguém filmaria uma obra como essa se não fosse única e exclusivamente por dinheiro? Terminamos sem saber.


# Mutzenbacher

2022-10-11 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Este livro pornográfico lançado na Áustria no início do século 20 é um clássico porque é bem escrito e foi alvo de críticas e censura por décadas. O motivo é se tratar das experiências de uma jovem que começou cedo sua vida sexual. Aos cinco anos. Todo o livro são suas experiências na infância e adolescência com todo tipo de homem que ela pudesse encontrar. E agora em Mutzenbacher, filme da Mostra de SP, a diretora Ruth Beckermann reúne em um mesmo set todo tipo de homem que ela pudesse encontrar para falar a respeito.

Descrito lindamente de forma vulgar, é óbvio que o livro se trata de um autor masculino fantasiando sobre a luxúria de possuir uma jovem, já que ela sente êxtase por fazer parte de tudo disso. As suspeitas maiores de autoria recaem sobre Felix Salten, escritor de Bambi. No entanto, apesar de óbvio, seu conteúdo não é tão simples e manipulador assim, pois do contrário seria esquecido há muito tempo. Nas entrelinhas se enxerga um misto de vergonha e dor intercalados às cenas que talvez todo homem secretamente queira fazer parte.

Ruth Beckermann vira o jogo de uma maneira fascinante ao dar voz a estes homens de hoje em dia lendo e interpretando esta obra-fetiche, relacionando as cenas e livro como um todo com suas próprias experiências iniciais no sexo. A vaga no casting está aberta a qualquer ser masculino dos 16 aos 99 anos. Um sofá antigo com um estofado que sugere um fundo erótico é palco desses momentos de instrospecção. Nós somos convidados a interpretar a visão desses homens sobre a sexualidade e abordando temas dos mais controversos para se falar com estranhos, como pedofilia, incesto, trios e tabus. No entando, o poder da edição extrai os melhores momentos desta que deve ter sido uma atividade enfastiante.

A boa ideia é colocar sob o prisma do espectador a percepção masculina sobre o sexo com uma jovem hoje considerada jovem demais. A luz interpretativa está sob nosso controle, e talvez além do interessante. Não saímos da experiência mais sábios. O filme explora questões pela metade, pois são pontos de vista dilapidados sem uma intenção uníssona. É abrir um debate sem foco de como discorrer ou terminar.

Logo, o potencial de dar voz a esses homens de ampla faixa de idade sobre assunto controverso é alto, mas o resultado insatisfatório. Não é como se houvesse algum momento sublime nessa exploração do antigo e do novo, dos "novos tempos" e como as coisas funcionavam antes para a mulher e como é agora. Há poucos momentos políticos que jogam uma luz no pensamento masculino atual sobre a opressão sofrida recentemente aos homens da sociedade moderna, mas não é apenas isso que está em debate, e logo termina, o que torna a discussão estéril nessa arena. A necessidade da diretora em tentar extrair conteúdo de seus candidatos acaba frustrando o projeto.

Ou talvez para um homem este não seja um filme com alguma novidade sobre como funcionamos. Extrair a diversidade de opiniões possui o efeito indesejado em uma obra de arte em colocar tudo no mesmo patamar. A falta de uma opinião forte ou uma interpretação definida sobre o livro, por outro lado, acaba o glorificando mais uma vez. Talvez este seja o motivo deste ser um clássico da pornografia até os dias de hoje. E talvez seja por isso que eu espero ansiosamente por uma tradução para o português.


# Amaco

2022-10-12 tag_wine ^

Vinho jovem da menor vinícola do mundo Salvador Figueroa. Forte e frutado, merece respirar. Vai bem com carne. Provamos no El Rancho.


# Carmine Granata

2022-10-12 tag_wine ^

Visitei esta bodega na viagem à Argentina em 2022. Estávamos de bobeira em Maipu. A atendente Luli não costuma atender sem reserva, mas mora perto e coincidentemente estava por lá quando tocamos a campainha. Ela nos atendeu tão bem e com uma empolgação tão grande em explicar com detalhes técnicos desde a plantação das uvas até a degustação que foi possível aprender coisas novas mesmo depois de tantas bodegas já visitadas. Foi uma visita privada de apenas nós quatro. A bodega fazia 7 milhões de litros e havia tanques gigantescos de concreto em funcionamento. Agora boa parte deles é usada como salas. Inclusive a sala de degustação! Uma das melhores visitas de minha vida em uma bodega. Havia garrafas da década de 90 à venda.

Fabio trouxe este Gran Reserva para o churras com picanha Argentina. E o jeito foi beber, claro. Ainda está agressivo no sabor. Mereceria mais tempo de guarda. Curioso que sendo um Gran Reserva já deveria ter uma complexidade considerável. No entanto, como vamos aprendendo nessas aventuras de degustação, cada vinho tem sua história. Não é o rótulo que vai determinar o sabor final.

2022-11-07 Segunda garrafa que experimento e não me surpreendeu. Por ser um Gran Reserva falta madeira e tanino. Ele é menos argentino e mais europeu. Tem o estilo mendocino, o que faz sentido, mas não possui aquele sabor mais presente. É fácil se esquecer o que se está bebendo. Fábio trouxe para o happy hour depois da reunião dos sócios.


# Chico Zossi

2022-10-12 tag_wine ^

Esse vinho não foi bebido na melhor das circunstâncias. Ele não é fácil de beber e fui o único que estava bebendo. O lugar é um restaurante dentro de uma pousada em Taffí del Valle bem decorada que tivemos o prazer de conhecer. Infelizmente a comida não é das melhores, nem o atendimento. A temperatura do vinho não deve ter sido a melhor para servir. Enfim, não me lembro se cheguei a gostar de um gole que seja.


# La Primera Revancha

2022-10-12 tag_wine ^

Este vinho eu bebi pela primeira vez no melhor atendimento que já recebi de uma sommelier em um restaurante. Até minha esposa que não é tão fã de Merlots adorou, tanto que no dia seguinte fomos visitar a bodega e eu comprei mais duas das únicas quatro garrafas disponíveis. Então levamos para abrir na casa da família Incrível e continua um Merlot excepcional. Equilibrado e frutado sem o "gosto de remédio" de alguns Merlots. Uma verdadeira obra-prima.


# Oüled Thäleb

2022-10-12 tag_wine ^

Estou com um estoque de vinhos considerável em casa. Precisei usar meu armário e meu porquinho do lado da cama para dar conta. E vinho continua a chegar.

Minha assinatura de dois vinhos bimestrais da Sociedade da Mesa me trouxe este marroquino. Eles sempre tentam inovar nos países de origem, mas as uvas dessa região mais desértica carecem de personalidade como as clássicas. Há dificuldade de nos relacionarmos com estes produtos exóticos, quanto mais a vinícola criar algo novo.

O resultado é um vinho jovem de corpo médio para forte e com um teor alcoólico que pode ser sentido mesmo aberto por mais de uma semana. Como é possível? Eu não sei. Essa foi a sensação.

Marrocos tem uma história secular na produção de vinho, mas isso foi paralisado por conta do advento do Islã. Hoje a produção está na ativa e em alta velocidade. 40 milhões de garrafas por ano são produzidas no país, principalmente para uso doméstico. E Domaine des Ouled Thaleb é a vinícola mais antiga de lá. Em 1923 fizeram a primeira plantação em Benslimane, entre Casablanca e Rabat, perto do frio da costa, e 4 anos depois a primeira safra atingia o mercado. As uvas Viognier e Chardonnay vem de diferentes vinhedos da região de vinhos Zenata.

2022-11-11 Mais uma garrafa dessa vinícola de Marrocos. O corpo médio desse vinho é muito bom nos primeiros dias aberto, particularmente depois de uma taça bem cheia.


# Pinot Negro

2022-10-12 tag_wine ^

Há duas formas de dizer Pinot Noir na Argentina. Pinot Noir (duh) e Pinot Negro. Uma boteja antiga de Carmine Granata, lá na região de Luan de Cuyo em Mendoza, acusava essa denominação.

Conhecimento você sempre adquire ao visitar bodegas. A experiência por si só sempre será gratificante. No caso de Carmine Granata, mais do que isso: especial. Mágico. Transcendental.


# Roberto Luka Sophenia

2022-10-12 tag_wine ^

Este foi meu prêmio por ter feito o melhor blend na visita à bodega Sophenia. Se trata também de um blend, feito em edição limitada com o objetivo de compartilhar com os amantes do vinho como é possível existir novas criações mesmo dentro das mesmas cepas e colheitas. Um brinde à imaginação. E um abaixo ao sistema de notas.

Achei espetacular. Amadeirado em equilíbrio com os tons frutados. Pouco alcoólico em um corpo médio. Os taninos firmes, poderosos sem ser agressivos. Este é sem dúvida o melhor blend feito com as uvas que brincamos de enólogo.


# Sin Reglas

2022-10-12 tag_wine ^

Primeiro vivo compartilhado em Mendoza, no almojanta logo depois de todos chegarem. Não me lembro dele, mas nosso sommelier não foi dos melhores. Nossa intenção era sentir um pouco de barrica, mas acho que nem reserva ele era.


# A Saída Está à Nossa Frente

2022-10-13 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Há algo de belo na vida dos simples de mente, dos humildes de ambição. As pessoas são protagonistas da própria história, mesmo que essa história não seja grande coisa. Pelo menos são mais protagonistas do que as que estão na corrida dos ratos, correndo de um lado pro outro tentando melhorar de vida ou apenas pagar as contas. A Saída Está à Nossa Frente, filme americano independente daqueles independentes mesmo, está na Mostra de SP esse ano. E captura essa essência. E nós somos capturados por essa fascinação.

Dirigido, escrito, produzido e editado por Rob Rice, sua câmera noturna dá o tom onírico e poético na jornada de uma família da vida real prestes a perder um ente querido. Mantendo em segredo isso, eles bolam um plano para sua filha, Cassie: ir morar em Los Angeles, deixar a periferia de beira de estrada onde morou a vida toda e ganhar a esperança de uma vida melhor. Deixar seus amigos de infância, também. Deixar seus parentes. Essa futura despedida acontecerá principalmente para seu pai, diagnosticado com uma doença terminal. Suas almas devem se encontrar em outro plano.

O filme todo é acompanhando essas pessoas, morando nesse vilarejo improvisado no meio do nada. O verdadeiro American Way of Life; não o anunciado, o com marca registrada. Essas pessoas estão no limiar da pobreza e isso, por alguma razão que nos escapa, parece ótimo. Elas têm umas às outras, e isso é alguma coisa. Se formos pensar, apenas isso basta para viver um dia de cada vez.

A fotografia focada no horizonte, que no deserto sempre muda de cor e luz, serve para uma rima elegante entre os espaços caóticos dos habitantes. Os semblantes oscilam entre os planos sugerindo uma conexão do mundo mundano para o além. As interpretações são livres para o espectador. Peço que se lembre da primeira cena, em uma caverna, e irá entender.

Essa trilha sonora caótica como a história adquire um status de pertencimento, mas mais do isso, participa do clima de estranhamento, do distanciamento ao que estamos acostumados a ver no cinema. É curioso que em alguns momentos lembra música de alienígena. É o outro mundo o que aspira o trabalho de Colyn Cameron. E em uma troca visual com o filme ele nos entrega uma certa esperança.

Rob Rice pega uma influência nervosa dos cineastas de outras partes do mundo onde é comum filmar pobreza (nós inclusos). Ele transforma isso em uma poesia ao céu aberto, com direito a cores e luzes que não são comuns de serem vistas no horizonte norte-americano. Este é um filme que você deveria anotar para essa Mostra. Nem que seja para se sentir melhor.


# Entrelinhas Pontilhadas

2022-10-13 tag_series ^

Animação italiana curta e bacana. É sobre os anseios de um jovem millenial e seus pensamentos egocêntricos sendo mastigados pela nova era. A parte boa é vê-lo devaneando pelas mesmas viagens que nós, ex-usuários de MSN, já tivemos em algum momento de nossas vidas virtuais. Ou não.


# Nós Que Aqui Estamos Por Vós Esperamos

2022-10-13 tag_movies ^

Algum estudante de cinema fez essa atrocidade com software de edição, chamou de filme porque arte, e aí está. Acabei de ver na Wikipédia que o sujeito se inspirou no livro A Era dos Extremos. De fato, há muito disso nessa visão exagerada, comunista, de ver o paraíso capitalista criado pelo homem, sua individualidade e vontade.


# O Curioso Mundo de James

2022-10-13 tag_series ^

Animação feito para crianças do novo século. Contém algumas ideias extrapoladas recicladas de animações passadas. É a ideia de um crocodilo que surgiu de um experimento científico para explicar por que ele fala, junto de uma figura amorfa e sem gênero, lembrando a versão cartoon da mascote do Community. Ambos confabulam sobre como criar melhor sua torradeira consciente, que ainda é um bebê e que precisa de cuidados dos dois recém-pais. É bobo? É. É esquecível? É. Então por que assistir? Não sei, já esqueci. Acho que não precisa assistir, não.


# O Edifício Yacoubian

2022-10-13 tag_movies ^

Este filme egípcio imita aqueles grandes épicos, com trilha sonora grandiosa e movimentos de câmera evocativos. Muitas vezes não sabemos o que eles invocam e sentimos vergonha pelo filme. Se trata de várias histórias que giram em torno do edifício título em sua época decadente. Uma pequena introdução histórica no começo nos conta que o prédio onipotente surgiu em tempos gloriosos do Egito, mas que isso se foi depois da guerra, quando estrangeiros compraram a sociedade e a trocaram. A moral está em decadência e grupos religiosos fanáticos começam a fazer sentido. Ao mesmo tempo é tudo um novelão, com belas mulheres, flertes, abusos e relações entre classes sociais distintas. A ousadia em filmar essa antologia é o que torna o filme palatável. A falta de vergonha da produção levanta sua bandeira do pertencimento. E as duas horas e quarenta passam tranquilamente.


# Scheme

2022-10-13 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Scheme poderia ser reduzido ao drama das adolescentes em busca de dinheiro fácil tendo seus corpos explorados através do que podemos chamar de "prostituição light". Ele poderia ser reduzido ao drama, mas ele não é. Obcecado em descobrir como jovens garotas são atraídas para o covil de homens de meia-idade em festinhas particulares que levam ao consumo de drogas e sexo desenfreados, o filme vencedor do Generation 14Plus do Festival de Berlim, que chega agora à Mostra de SP, não está interessado em mais um drama juvenil sobre os abusos da idade. Está interessado no como.

Para introduzir o assunto o diretor-roteirista do Cazaquistão Farkhat Sharipov utiliza logo na primeira cena sua abordagem. Ele cita de passagem na TV da sala o caso Jeffrey Epstein, aliciador de menores que em 2019 foi pela segunda vez condenado por abuso sexual. Scheme constrói em seu cerne um esquema muito próximo do de Epstein, e quando digo muito próximo é para não soar uma cópia descarada. A única coisa que falta é a menção direta aos poderosos que o Epstein da vida real mantinha conexões; entre eles nada menos que Bill Gates, um dos homens mais ricos do planeta.

Porém, essa obsessão em replicar o império sexual de Epstein sem adentrar em todo o esquema de fato gera problemas na versão cinematográfica. Outra questão é que ao caracterizar sistematicamente as festinhas que a jovem Masha e outras participam como o único protagonista da história o processo narrativo passa por cima do desenvolvimento de seus personagens.

"Scheme" enxerga jovens de 14 a 18 anos, pura e simplesmente, como descerebrados que estão sendo levados ao sabor de jovens populares nas redes sociais com quem acabam tendo contato. A história de Masha gira em torno de Ram, o garoto pelo qual ela se apaixona e que está envolvido no esquema. E com isso o filme, aí sim, justifica jovens serem descerebrados. Ou usando o sinônimo desse estado mental: apaixonados.

A condução do diretor Farkhat Sharipov caminha com a câmera na mão através de diferentes ambientes em sequência, como se cada vez mais a vida de Masha sumisse da escola e se resumisse unicamente na quantidade de horas que fica ao lado de Ram, o que envolve necessariamente consumo de drogas e fazer parte de ambientes propícios para libertinagens.

A atuação de Victoriya Romanova é instrumental, pois a obsessão de Sharipov em caracterizar o esquema de Epstein está na mesma proporção dos objetivos de Romanova como atriz, que constrói uma jovem completamente alheia à sua própria vida, entregue aos anseios do jovem que ama. Masha inicia a história ainda na escola e usando uniforme, mas termina como uma boneca de carne, incapaz de tomar as próprias decisões.

Scheme é ágil e vai direto ao ponto. Sua duração é pouco mais de uma hora. Talvez as horas restantes tenham sido cortadas na pós-produção, vai saber. Sua conclusão é ríspida, mas infelizmente correta. Não há muito o que se pode fazer contra esquemas desse tipo, assim como, brevemente citado no filme, não há como evitar que as pessoas participem de pirâmides financeiras. Está implantado em nosso cérebro.

Nos resta, então, observar com mais atenção a mensagem de filmes como esse, que assim como o magistral Elefante, tentam nos fazer pensar mostrando o que há lá fora. E saber como os esquemas acontecem já é ganhar uma certa consciência. Não que isso ajude muito se você não souber quem são os poderosos por trás disso.


# The Midnight Gospel

2022-10-13 tag_series ^

A pegada dessa animação viajada é colocar um áudio e um visual descolado para as reflexões e anseios do mundo moderno. A história é sobre um jovem que viaja para diferentes dimensões para fazer seu podcast, e no meio disso rolam alguns acontecimentos enquanto ele tem um papo transcedental (leia: cheirado) com algum ser desse mundo diferentão. É fácil se conectar porque eles conversam sobre temas universais e ao mesmo tempo íntimos. É fácil se conectar até mesmo se você estiver sob o uso de alucinógenos criativos. Mas talvez ao apenas assistir você já sinta um barato. Quer um?


# À Noite Todos os Gatos São Pardos

2022-10-14 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Mostra de SP é sinônimo de filmes estranhos. E é assim mesmo. Sair da caixa e explorar o diferente não é parte apenas do trabalho de um diretor. Também é de sua equipe e do espectador. À Noite Todos os Gatos São Pardos é uma experiência em que todos sabem onde estão se metendo. Cinema é saber disso e mesmo assim continuar apontando a câmera ou olhando para a tela. Muitas vezes sem querer continuar fazendo.

Esse é daqueles filmes que brinca com ficção e metalinguagem. É sobre as filmagens desse diretor, Valentin Merz, que junto do elenco aparece tanto como personagem quanto nos créditos com o mesmo nome. O filme é sobre... sobre... ele é erótico. E demonstra como a câmera lenta, se usada com boa música italiana dos anos 70 e um pouco de imaginação animal, rende bons momentos. De videoclipe, mas ainda assim: bons. Ficamos compenetrados. É um misto de estranheza, curiosidade e exploitation. O que esse diretor quer tanto do seu elenco? Qual será o resultado final de tudo isso?

Uma morte acontece. Isso muda a cena. Mas não o tema. Policiais mantém a estranheza no ar, fazendo perguntas nunca antes feitas em um interrogatório sobre pessoas desaparecidas. Eles levam em conta os sonhos de um sujeito do elenco. Os detalhes dos sonhos são importantes para conseguir alguma pista. Nada segue a cartilha do senso comum. "Todos os Gatos" parece brincar a todo momento com essa expectativa, e daí a metalinguagem, mas não é corajoso o suficiente para atravessar seus limites do razoável. Então a história, apesar de estranha, é reconhecida por nós, espectadores, como aceitável.

Quando chega o inspetor para a investigação, lá pelo meio do filme, nossa curiosidade já tinha sido aguçada até o limite. E agora é só ladeira abaixo. O experimento fracassou. Da estranheza inicial e o senso erótico e estético provocantes surge a frustração de uma história sem nenhum significado. E cinema sem significado não é um filme. Continua experimental, ou nem isso. Um filme pode não ter os pés no chão, mas uma vez com a cabeça nas nuvens, precisa estipular quais as regras desse céu.

E por isso cinema experimental não é ruim se ele se posiciona bem além do convencional. Mas hoje em dia o que é convencional? Eu não sei mais de nada. E nem Valentin Merz e seu fiel elenco. Porém, uma coisa é certa: experimental ou não, cenas sensuais em câmera lenta continuam o máximo.


# Sonne

2022-10-14 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Religiões do Oriente Médio são sinônimo de respeito absoluto aos costumes e às regras impostas aos fiéis, sobretudo as vestes de cerimônia. E é por isso que, nessa Mostra de SP, Sonne é um exemplo que foge à regra e faz você reavaliar esse sinônimo nos tempos atuais.

O que chacoalha os conceitos são sempre eles, os jovens. A nova geração. Yesmin nasceu em território estrangeiro, na Áustria, faz faculdade com responsabilidade, mas às vezes se diverte com as amigas. Em uma dessas vezes as três gravam um vídeo cantando, dançando. Detalhe: usando hijab, vestimenta reservada para orações pela sua mãe. E rebolando. Ela não enxerga nada de errado nisso. Seu pai apóia as meninas, mas sua mãe ainda se lembra dos tempos difíceis se escondendo em sua própria casa quando ainda não haviam fugido para a Europa.

O que impacta no começo, o motivo de ser do filme, é essa gravação que Yesmin e as amigas fazem e acabam publicando na internet. Usando a mais que sugestiva música Losing My Religion (Perdendo Minha Religião) por boa parte do filme, pensamos este ser motivo suficiente para levar a história e o tema até o fim, até as últimas consequências.

Ledo engano. Os caminhos tortuosos, naturalistas, do roteiro da diretora iraquiana Kurdwin Ayub preferem traçar um panorama em volta dessa família, que inclui seu outro filho caçula, que diferente de sua irmã é um adolescente como tantos outros, consumindo drogas e experimentando bobagens nas horas livres. O apoio do pai de sua filha e as críticas para seu filho viram a recorrência da história, que não consegue mais gerar a mesma tensão de seu início.

Sonne constrói uma atmosfera propícia para a discussão sobre a mudança de ares, costumes e horizonte. E o filme decide não fazer nada disso. O motivo? Sem religião não há motivos. Talvez este seja o melhor eco do que acontece quando uma família perde suas origens ao preço da liberdade.


# O Que Esperar da 46 Mostra SP

2022-10-15 tag_mostra ^

A lista de filmes foi divulgada para a imprensa. Como sempre (ou quase) tento fazer, vai uma lista de diretores e filmes que já andei dando uma olhada. Os parágrafos seguintes falam sobre cineastas em que já escrevi algumas linhas no blogue. Algum trabalho deles estará nessa Mostra. Então trata-se de se identificar, procurar e assistir. Bons filmes.

O diretor e roteirista panamenho Abner Benaim precisa de um motivo para filmar Meu Nome Não é Ruben Blades, patrocinado pelo governo argentino.

Alexander Sokurov (Alexandra) é um dos diretores mais enfadonhos e mais fascinantes da Rússia. Seu trabalho em A Arca Russa de um filme inteiro em plano-sequência e de fato sem cortes ainda é algo a se mencionar.

Alê Abreu é o diretor da animação O Menino e o Mundo e esse ano estreia na mostra mais um trabalho abjeto como aquela propaganda comunista.

Ana Carolina é a diretora deste clássico libertino da época das pornochanchadas, Das Tripas Coração. Ele é divertido em boa parte do tempo, e no resto dele enfadonho. Os exageros e os gritos se tornam repetitivos. Vai passar nesta mostra.

Ela também escreveu junto de Cristiano Burlan Elegia De Um Crime, o que não faz muito sentido. Talvez seja um homônimo.

Andrew Bujalski é o diretor de Computer Chess, pseudo-documentário sobre um campeonato de xadrez filmado em preto e branco e com uma história interessante (spoiler: não tem relação com xadrez).

Anna Muylaert dispensa apresentações. Diretora de Que Horas Ela Volta?, que ganhou os corações da classe média paulistana a respeito das empregadas que eles contratam. E tem Regina Casé, em um marco em sua cinematografia.

Antonio Carlos da Fontoura dirige o Somos Tão Jovens, pedaço biográfico da história do cantor Renato Russo, e insiste em burocratizar a história com cortes episódicos entre ação e músicas, e evita polemizar demais em torno do temperamento explosivo do protagonista.

Arnaldo Jabor foi o diretor que me fez pensar que filmes não precisam fazer sentido ou deixar de serem apelões para conseguirem nos encantar. A Suprema Felicidade, seu último trabalho, caminha por essas beiradas de tentar ser novela histórica e ainda relevante. Mesmo com todos seus defeitos narrativos, A Suprema Felicidade poderia muito bem ter sido uma Baarìa nacional, representando no Rio de Janeiro o coração de todos os habitantes do Brasil.

Carlos Saura também dispensa apresentações. Seu documentário musical Argentina é primoroso e seu clássico Cria Corvos vai ficar para sempre em nossa imaginação sobre a época da ditadura. E ele está nessa mostra.

Carolina Markowicz, por outro lado, não imagino o que faz aqui. Sua série capenga da Netflix Ninguém Tá Olhando pode a ter alavancado, mas não há nada relevante que ainda vi dessa diretora/idealizadora.

Claire Denis é uma diretora francesa. Precisa falar mais? Seu Deixe a Luz Do Sol Entrar utiliza uma Juliette Binoche em estado de luto como se deve.

Cristiano Burlan é um dos responsáveis pela Trilogia do Luto, entre elas Elegia de Um Crime. Seu filme Fome, porém, sobre um professor comunista que decide ser coerente e virar mendigo, dá as cartas de fato.

A fotografia de César Charlone em Cidade de Deus ainda deve ser lembrada. O curioso é que ele virou diretor de cinema também. E está nessa mostra.

Damien Manivel dirige em conjunto com Kohei Igarashi este Takara: A Noite que Nadei, que é bem fofinho e inocente. Sem diálogos, ele conduz o público por uma experiência minimalista e gratificante. Vale a pena dar uma olhada no que Manivel e Igarashi andam aprontando recentemente.

Denis Côté já impressionou em Antologia da Cidade Fantasma, um terror psicológico que flerta com questões sociais sem conseguir desenvolver com sucesso nenhuma delas. E na Mostra passada (ou retrasada) veio com esse Higiene Social, pós-pandemia (é, foi a passada) e que explora o minimalismo e distanciamento social. E quando um diretor tem dois filmes citados com social no nome pode esperar alguma coisa ou nada.

Emmanuel Mouret é responsável por uma comédia de Woody Allen sem Woody Allen. Caprice: Amor à Francesa. Enquanto engraçado pelo absurdo, ele vai aos poucos criando um renovado estilo de comédia romântica que é charmoso, inteligente, puro e sem malícias gratuitas. Vale a pena dar uma olhada no que ele está fazendo.

Farkhat Sharipov é um diretor proeminente do Cazaquistão e estreia nessa mostra com Scheme, um filme sobre o esquema de prostituição juvenil de Jeffrey Epstein. Curioso.

Domingo é um trabalho ambicioso ou mais do mesmo? Se você gostou da fábula sobre a classe média às vésperas de "uma grande mudança social" no país, então deve gostar de trabalhos que interessem a Fellipe Barbosa, um dos diretores deste filme que passou na mostra (eu estava lá). Talvez tenham selecionado este diretor (e talvez o filme) por se tratar de vésperar de eleição e Lula estar se candidatando mais uma vez? Nah, coincidência.

Gero Camilo não conseguiu soltar seu Os Pobres Diabos a tempo no cinema. Quatro anos entre a estreia em Brasília e chegar nos cinemas comerciais. E o filme é uma merda colossal. Acho que você precisa ter paciência se quiser explorar próximos trabalhos desse diretor.

Hong Sang-soo é um diretor focado nas relações humanas do cotidiano, e sem muita lógica na narrativa em si. Em A Câmera de Claire os acontecimentos lembram muito a vida real, onde a mecânica não apenas se reflete, como simplesmente é. Já em Encontros, último filme, há um quê de "oi sumido" nas relações pós-pandemia curioso, mas insosso.

Isabel Coixet dirigiu a versão feminina de Dança com Lobos, o Ninguém Deseja a Noite, com Juliette Binoche e aquela menina, Kumiko, do Caçadora de Tesouros, em que ela busca o tesouro escondido do filme Fargo, dos irmãos Coen. Que mistureba, não?

Jafar Panahi é conhecido da garotada da mostra. Estreou com O Balão Branco, e O Círculo passou em uma das mostras, sobre uma sociedade realmente sexista no Irã. Ele filma a opressão como um documentário em tempo real. Se for hora de assistir cinema iraniano na mostra, fica a dica.

James Gray, diretor norte-americano, habituado a grandes produções alternativas como Era Uma Vez em Nova Iorque ou Ad Astra, aventura emoespacial com Brad Pitt, está na mostra. Fazendo o quê? Acho que não interessa muito, já que deve estrear no circuito comercial de qualquer forma.

Assim como os filmes de Lars von Trier, participante assíduo do evento. Diretor interessante em Festa de Família e mantenedor do clássico absoluto da depressão humana, Dançando no Escuro, von Trier está sempre às voltas com projetos interessantes que capturam as sombras da alma humana.

Louis-Julien Petit é um diretor que consegue conciliar filmes de arte com o teor comercial. Em As Invisíveis, por exemplo, ele enriquece a história contratando um batalhão de atrizes em moldes semelhantes à série Orange is The New Black.

Marcelo Gomes, diretor do pop Cinema, Aspirinas e Urubus e do menos pop Era Uma Vez Eu, Verônica, está habituado a oscilar entre uma pegada mais comercial e algo mais íntimo ou independente. Por exemplo, em Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar, um documentário, ele explora a questão do capitalismo nos confins do Nordeste. Não há traços de "Cinema, Aspirinas" neste trabalho. Já em "Eu, Verônica" o lado vazio da alma humana é discutido através da protagonista-título. O que eu quero dizer é que nunca é chato acompanhar seus trabalhos.

Marco Bellocchio é o diretor italiano dos exageros, como se essas duas expressões já não fossem sinônimos. Em Belos Sonhos ele traça uma verdadeira homenagem e uma investigação sobre essa relação tão íntima, possessiva e determinadora de caráter entre uma criança e sua mãe italiana, a figura eterna da mama. Já em Irmãs, Jamais o diretor mostra ainda mais como é fã de alusões à nostalgia. E esses são dois exemplos de décadas distintas de seu trabalho.

Mia Hansen-Løve gosta de brincadeiras metalinguísticas, como em O Pai dos Meus Filhos, onde flerta com o nosso próprio sentido de narrativa. De maneira covarde, mas flerta.

Quentin Dupieux pode ser uma surpresa nessa mostra. O último filme que vi dele, A Jaqueta de Couro de Cervo, é um soco na mente dos cinéfilos. Assistimos nossa própria incompreensão de quando começa o fascínio por uma história de cinema.

Ruth Beckermann eu já vi em mostras recentes. Seu A Valsa de Waldheim é uma investigação que torna fascinante observar as engrenagens do poder girando de ambos os lados. Já seu Mutzenbacher é sobre um clássico da literatura pornográfica austríaca que envolve pedofilia e abuso de menor. E a virtude de Beckermann no projeto é reunir em um mesmo set todo tipo de homem que ela pudesse encontrar para falar a respeito.

A atriz Sabrina Greve, mais acostumada a personagens dramáticos, criou em Onde Quer Que Você Esteja a personagem Zélia, que virou um respiro do novo muito bem-vindo, pois sua dedicação ao humor da personagem, sob o controle dos diretores, manteve o interesse do espectador em uma história trivial em torno de tantos temas pesados. Agora Greve está na direção em um dos filmes da mostra.

Sérgio Machado dispensa introduções. Além de seu trabalho fotográfico ele dirigiu Cidade Baixa, no mínimo um entretenimento sobre as castas inferiores e no máximo um romance triangular com tensão de respeito.

Sérgio Tréfaut transforma o romance Raiva de uma ficção para outra: a famigerada luta de classes do qual tanto se fala ultimamente. Sua estética chama atenção e sua cadência merece ser ressaltada. Seria ele um Robert Eggers (O Farol, A Bruxa) mais tímido e focado em dramas?

Terence Davies é o nome por trás da adaptação cinematográfica de Além das Palavras, biografia da poetisa norte-americana Emily Dickinson. Uma biografia exagerada, mas apaixonante, intensa e, sobretudo, didática. Seria ele capaz de mais?

Tiago Afonso dirige A Causa e a Sombra, filme sobre pessoas torturadas que se torna ruim por causa de ideologia. Quando um diretor consegue segurar suas opiniões para si mesmo é quando ele consegue criar algo mais complexo que um textão no Facebook. Torçamos para Afonso se segurar em suas próximas obras, pois este é um diretor competente em conseguir trazer uma narrativa com fluidez em uma história contada aos poucos por cada um dos envolvidos.

Tiago Guedes é um diretor português já conhecido. Ele passa nessa mostra com um thriller dramático mais que interessante: Restos do Vento. Assisti na cabine de imprensa antes de iniciar o festival e posso dizer, algumas cabines já passadas, que continua ainda na minha memória. Anote o nome.

Valentin Merz é o responsável por À Noite Todos os Gatos São Pardos, um filme metalinguagem em que ele coloca seu elenco em câmera lenta em movimentos sensuais ao som de músicas italianas da década de 70. Quem não gosta disso?

Zeca Brito documentou A Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro, uma figura da época em que os jornalistas faziam jornalismo. Investigativo, inclusive. Teci alguns elogios a esta obra quando fui na cabine. É dele também Legalidade, um trabalho já mais torto, que apela para o há muito tempo esquecido patriotismo na remota época dos anos 60, de onde se fala ainda muito, mas pouco se conhece. Tem Cleo Pires no elenco. É um diretor que vale a pena ficar de olho, seja pelo seu nome ser um trocadilho engraçado ou por esses dois filmes citados. Quem sabe surge um terceiro com mais concisão?

Argentina é primoroso e seu clássico Cria Corvos: cria-corvos

Elegia de Um Crime. Seu filme Fome: fome


# Objetos de Luz

2022-10-17 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Filmes bons de 4 horas de duração podem ser curtos demais. Porém, Objetos de Luz, com sua pouco mas de uma hora, é longo demais. E depois de cinco minutos de projeção ele já dá poderes a qualquer espectador itinerante de rotulá-lo com muita propriedade como um porre descomunal.

Esta é uma reflexão sobre a luz (trocadilho proposital) trazida por um diretor de fotografia, Acácio de Almeida (do filme Raiva, entre dezenas), auxiliado pela atriz Marie Carré. O filme é movido a recortes de outros filmes, montagens com imagens do espaço e suas infinitas estrelas, trilha sonora constante e narrações em off para dar uma perspectiva do assunto. Há infinitos artifícios narrativos menos a própria protagonista: a luz.

É como se participássemos daquelas salas temáticas de arte moderna, mas no lugar da obra há um auxílio sonoro e recortes de jornal espalhados no recinto. Imagine essa galeria. Está escrito em um letreiro bem grande lá fora: LUZ. E dentro há depoimentos, textos a respeito, recortes de jornal. E tudo isso disponível em uma sala escura.

É mais ou menos assim que você irá se sentir a bordo desta jornada em direção a coisa nenhuma. Uma ode à ignorância, talvez? A narração indica que sim. O texto faz analogias com DNA e fótons e ao mesmo tempo usa rimas de recursão, como "um filme aprisiona a luz e outra luz depois é necessária para libertá-la". Tudo isso é dito sem nenhuma vergonha. Pelo contrário. Há um certo orgulho e até um tom de grandiosidade. É como se Michael Bay, aquele diretor de filmes de explosões aleatórias, tivesse virado um minimalista e abraçado a arte moderna. Este seria um filme assinado por ele nessa sua nova era.

Breve graças a Deus, assista a Objetos de Luz nesta Mostra de SP quando só tiver uma hora e meia entre sessões que realmente tentam fazer algo pelo cinema. Se sobrar mais tempo depois você me diz aqui nos comentários o que achou de toda essa bobagem pretensiosa.


# That Kind of Summer

2022-10-17 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Você por acaso está cansado de filmes sobre retiros espirituais onde os pacientes repassarão os fantasmas de sua vida e descobrirão que nada adianta, pois são fracos, ou viverão um momento de ruptura e aprenderão a viver de sua própria força? That Kind of Summer, novo filme de Denis Côté (Antologia da Cidade Fantasma, Higiene Social) com certeza não é um deles.

Isso porque este filme não enxerga suas protagonistas como vítimas, anormais ou qualquer adjetivo que indique que elas precisam de reparos. São jovens viciadas em sexo, um vício talvez causado por algum trauma de infância ou um motivo qualquer. Simples assim.

Elas tiram umas férias de 26 dias de tudo isso em um retiro que não irá julgá-las ou incentivá-las. Durante essa estadia podem usar o celular 90 minutos todo dia, ganham um passe para ir lá fora de 24 horas, podem usar drogas, apesar de não incentivadas a fazer, e ingerir álcool socialmente. Não há psicólogos nem terapeutas no recinto. Uma mulher, Octavia, está lá para anotar o comportamento das meninas. Sami, o único homem do local, é seu assistente, usado para conversar com as meninas sobre assuntos não-sexuais e ajudar em qualquer outra tarefa.

Antes que você imagine, sim, é claro que haverá tentativas de sedução mirando em Sami, mas ele está nesse programa já faz um tempo e não cede à tentação. E Octavia, apesar de bissexual, está em um relacionamento em crise e não tem tempo para ser seduzida, o que não daria frutos, pois todas as garotas demonstram serem héteros.

Depois de longa jornada de duas horas e meia a conclusão a que quer chegar That Kind of Summer é que todos possuem seus problemas em se relacionar e se expressar, sexuais ou não. Este filme é longo demais para uma conclusão tão óbvia e desinteressante. Lá pela metade já não estamos sequer curiosos em seu desfecho. Côté, que também assina o roteiro, é mestre conseguir trazer monotonia, mesmo com conteúdo sensual em seu filme. É com muito pouco esforço que ele nos fazer perder a curiosidade por essas lindas garotas.


# Leonor Jamais Morrerá

2022-10-18 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Toda Mostra de SP merece sua cota de homenagem ao cinema. E nesse ano Leonor Jamais Morrerá é o filme melhor cotado para fazer as honras. Ele é leve, fofinho e inclusive didático. Ele faz com pouco o que a maioria precisa de muito. Ele é filipino, um país pobre, com dificuldade de desenvolver seu cinema, então ganha um valor social. E, por fim, ele é divertido do começo ao fim.

Sua estrela é Leonor (Sheila Francisco), uma roteirista aposentada que sente que pode mais. Em luto desde que seu filho se foi em um acidente no set de filmagens, ela está terminando seu último roteiro inacabado quando uma TV cai em sua cabeça. E quando toda a magia do faz-de-conta na telona começa.

O filme atravessa várias paredes narrativas, mas nunca fica confuso de entender. O sucesso na empreitada é graças a um trabalho em conjunto de edição, fotografia, som, arte e atuações. Cada um desses elementos mantém a personalidade de cada momento em que a realidade ou ficção adquire um novo formato, incluindo os próprios gêneros com os quais a produção brinca: ação, drama, musical, comédia.

Além disso, o toque final da direção e roteiro inspirados de Martika Ramirez Escobar é saber disparar os gatilhos necessário para sabermos quando trocar nossa percepção do mundo diegético. A diegese é tudo o que diz respeito ao que pode ou não pode acontecer dentro do universo de um filme. E se o mundo diegético afirma que em cenas de ação uma pá pode passar a dois palmos de distância do ator e mesmo assim acertar o personagem, assim será.

Detalhes como esse piscam o tempo todo para o espectador, que sabe que uma cena foi mal feita de propósito. É a tal da referência de época, dos filmes de ação de baixo orçamento. Algo que nós cinéfilos adoramos. Nada mais natural que cineastas vivam flertando com subgêneros como este, ainda apreciado no mundo todo.

Um ponto de destaque deve ser dado à atriz Sheila Francisco. Mais habituada ao teatro, sua participação especial no debut da diretora Martika Escobar foi certeira. Sheila esbanja uma energia e simpatia infinitas. Sem ela todo o projeto poderia ir por água abaixo. Com ela nós temos certeza que o filme poderia ir ainda além.

No entanto, apesar da brincadeira do filme ganhar sua liberdade poética até o fim, a conclusão de "Leonor" acaba ficando aquém das possibilidades que o próprio filme levantou. Apelando para o "tudo pode" nas regras de um roteirista ou do próprio cinema brincando de metalinguagem, acaba soando fácil demais concluir a história. Pior que é fácil mesmo, uma vez que você botou toda sua imaginação a serviço de recriar mundos.

Isso quase desmerece alguns inspirados momentos do filme, que roubam nossa atenção por conta do suspense das promessas ainda não cumpridas, como se Leonor conseguirá sair do seu estado dormente e produzir seu último roteiro. No entanto, somos cinéfilos, e detalhes como este é um pecadilho comparado com a leveza e diversão despretensiosa que este filme oferece. Vale o momento descontração, que ninguém é de ferro.


# Roza

2022-10-18 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Nem sempre "heróis" do cinema são personagens que merecem ser fonte de inspiração para sermos pessoas melhores. No caso desse Roza, uma ode a pessoas fracas, chega a dar vergonha chamar qualquer uma dessas pessoas de herói.

Seu protagonista real, apesar dos créditos finais sugerirem quatro, é Hector. Pai de família, ele foge de casa e deixa mãe e pai, esposa e filho. O filme começa quando ele retorna, contra todos os prognósticos da família, e logo começa a arrumar problemas em casa. Mas sua esposa não o reconhece mais e seu filho não sabe sequer como reagir com sua presença. E sua mãe, agora viúva, é um autômato da geração passada, repetindo o que lhe foi ensinada sobre arrumar um porto seguro e sobreviver. Ela ainda fala a língua nativa de seu povo e não usa o espanhol.

Por falar em povo, este é claramente um filme onde a etnia interessa. De maneira pejorativa, no caso. Existe um descompasso entre o que esperamos que um ser humano ideal seja e as pessoas do filme. Como não fica claro quais os fantasmas que as atormentam, a conclusão natural do espectador é concluir ser este um caso genético, cultural ou ambos. De qualquer forma, sob qualquer ponto de vista de pessoas que almejam o melhor a cada dia, Hector é um desastre.

A escalação e atuação ajuda nesse sentido. De cara arredondada e quieto, a escolha de Hector Ramos é simbólica. Quando o ator diz algo é com uma voz fraca e fina. Falta fôlego e caráter nesse sujeito. Ele não tem fibra para afirmar nada, esteja certo ou errado. Com falhas graves de comunicação e de postura, se isolando de um mundo que não lhe interessa, é fácil entender a dinâmica dessa família disfuncional.

O roteiro de Andres Rodriguez, ou melhor dizendo, a ausência de um, já que estes são personagens da vida real, é minimalista. Cria situações bem demarcadas sobre o retorno de Hector com começo, meio e fim. Não há trama, os eventos se sucedem como na vida real. E como um filme de arte preguiçoso que se preze, se há alguma mensagem escondida sua interpretação fica sob total responsabilidade do espectador, esse pobre coitado que entrou em uma daquelas sessões erradas da Mostra de SP. Acontece. O lado bom é que sempre há um próximo filme para tirar o gosto ruim do que já passou.


# O Deus do Cinema

2022-10-19 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Pela Perspectiva Internacional da Mostra de SP este ano, o japonês está nostálgico e cinéfilo. O Deus do Cinema chega no festival relembrando a indústria que estava nascendo no pós-guerra através de uma ficção inserida na época e recordada em plena pandemia. Feito para fazer chorar, uma vez que a quarta parede se quebra ela vira uma apelação bonitinha e teatral; um filme difícil de desgostar.

Seu núcleo é um triângulo amoroso formado na juventude e cujas vidas voltam a se cruzar no tempo presente. Suas vidas se cruzaram em torno do cinema japonês. Terashin, um projecionista, Goh, um assistente de direção e Yoshiko, uma atendente de bar tão simpática quanto Setsuko Hara em Era uma Vez em Tóquio (um dos filmes referenciados no longa). O flashback sobre essas pessoas é charmoso e instigante, pois tem relação direta com a produção cinematográfica.

Conversar sobre cinema sempre é um prazer, e assistir a um filme sobre pessoas conversando sobre cinema o prazer é em dobro. Observar os jovens da época dá um quentinho no coração. A paixão juvenil de tentar transformar o velho drama e romance em algo mais fantasioso e introspectivo é ingênuo e revolucionário ao mesmo tempo. Essa é a forma do filme querer voltar no tempo e no estilo, onde novas ideias iriam pavimentar os novos caminhos da arte.

No entanto, a trama é conduzida pelo consagrado diretor Yôji Yamada com pouca imaginação. Seu roteiro feito em parceria com a escritora Maha Harada começa acompanhando essa família com o avô Goh viciado em apostas e bebida e conduz a explicação movido pelo amor da época em que ele poderia ser um grande diretor, com um roteiro nas mãos que de maneira cômica referencia um dos melhores filmes do centenário Woody Allen, A Rosa Púrpura do Cairo.

A história vai ganhando contornos nostálgicos. O amor pelo cinema de Yôji Yamada e Maha Harada não precisa de esforços para conduzir esta experiência pelos bastidores das produções da época. No entanto, o núcleo da história perde a força conforme vamos descobrindo que não há reviravoltas. Tudo o que imaginamos para um final feliz é o que acontece, e não de uma maneira instigante, mas convencional.

O Deus do Cinema soa como trabalho inacabado. O roteiro dentro do filme precisa ser atualizado para os tempos atuais para concorrer à altura em um prêmio literário de prestígio. A sensação é que o roteiro do próprio filme poderia se beneficiar de algumas reedições pós-pandemia. A nostalgia está no ar, mas não como a imaginávamos em 2019.


# Um Homem

2022-10-19 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

A vida lá fora é cruel. Não pode vacilar. Você tem que ser duro. Tem que manter o respeito. Ouvimos vários testemunhos como se estivéssemos em um documentário no começo de Um Homem, ficção da Mostra de SP sobre a completa impotência do sexo masculino nesta geração.

Estamos em Bogotá, capital da Colômbia e da violência da América do Sul. Acompanhamos um desses testemunhos, Carlos. Ele acabou de fazer um novo corte. "Para homem", ele pediu à cabeleireira. Porém, sua cara e seu corpo não negam: ele é uma menina. Não uma garota, o que remeteria a uma mulher jovem. Uma menina, mesmo: frágil, vulnerável, delicada. E usa roupas esportivas para disfarçar. E caminha com gingada para se enturmar.

O objetivo de Carlos é reunir novamente a família. A mãe está abrigada em algum lugar desconhecido. A irmã está se prostituindo nas ruas. Ele está em um abrigo para homens e faz um dinheiro vendendo drogas de um parceiro das ruas. É véspera de Natal e a saudade bate. Carlos faria de tudo para ter um final de ano normal.

Este é um filme sem fim. Se trata do subgênero de uma fatia de vida (slice of life). A fatia de Carlos é fingir a todo momento ser um cara durão para sobreviver. Ele segue com a cara fechada e o movimento dos ombros, idioma oficial dos manos. Porém, ele chora em dois momentos de um filme curto sobre um assunto prático: sobreviver nas ruas. Patético.

Menos crítica social e mais uma denúncia velada de como homens hoje em dia não são como antigamente, Um Homem termina rápido e fugaz. A lembrança é de um testemunho sobre o fracasso masculino nos ombros de uma menina.


# Como Está Katia?

2022-10-20 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Do circuito ucraniano nessa Mostra temos este Como Está Katia, um filme tenso que no início parece ser mais um sobre as injustiças do mundo, mas que aos poucos vai descolorindo sua realidade dramática, drenando nossos sentimentos. Logo vemos um mundo onde apesar do egoísmo não ser desejável nos membros de uma sociedade, ele acaba se revelando inevitável ou talvez até necessário.

"Exceto para a mãe de Katia", você diria, caro leitor, humano como eu, e portanto disposto automaticamente a defender o lado mais fraco. Porém, o que não está no script é que nem sempre o lado mais fraco é o que inspira nossa solidariedade. Não se observarmos de maneira totalmente racional. Cada um possui sua agenda. Às vezes é difícil se desvencilhar de sua ideologia, mas faça um esforço. Se coloque no lugar de todos os envolvidos.

A história é simples e direta: Anna é uma médica de primeiros socorros e tem sua filha (a Katia do título) atropelada por uma adolescente, a filha de uma política eminente, e agora precisa decidir entre o sistema de vingança judiciário que colocará a jovem rica na gaiola por uns 2 a 3 anos ou aceitar de bom grado um acordo financeiro que irá resolver boa parte dos seus problemas em família, além dos problemas de publicidade da tal política. Ela pondera sobre isso até o momento que sua filha, na UTI, não resiste. E agora, sim, é sobre "justiça".

A pintura nua da realidade no filme acaba se tornando bem cruel. Como Está Katia faz questão de caminhar por todas as relações da heroína: mãe, irmã e até o amante com família. Tudo para extrair, ou melhor dizendo, drenar as cores de sua realidade. No final não sobra nada. As sombras dominam este drama com todas as forças, e não há forças para suportar o cálculo objetivo de uma equação em que a morte de uma criança está na balança.

Não se busca mostrar os dois lados de uma maneira simplista, mas escancarar a desesperança de um sistema não injusto, mas humano, e portanto falho. Note como todos neste drama estão seguindo seus instintos mais primitivos, o mecanismo de autoproteção, e é isso o que mais dói: é um mecanismo. E as engrenagens que o fazem girar são impessoais. A sensação de não conseguirmos fazer nada a respeito é o que faz com que a fotografia do filme seja tão drenada de luzes, exceto as luzes piscantes da ambulância de Anna que percorre as redondezas em busca da próxima fatalidade.

Como Está Katia é sobre nosso pior lado como sociedade: o distanciamento social metafórico. Ninguém é responsável pelo próximo em uma democracia capitalista, a ficção doentia de que cada um de nós faz parte do mesmo povo. Seja na Ucrânia, no Uzbequistão ou qualquer outro país.


# Febre do Mediterrâneo

2022-10-20 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Febre do Mediterrâneo é o filme que ganhou o prêmio de roteiro na categoria Um Certo Olhar de Cannes e agora estreia na Mostra de São Paulo. No entanto, o nome também se refere a uma doença congênita que afeta principalmente povos dessa região: árabes, judeus, turcos. O sintoma é uma dor abdominal. No filme é o sintoma sentido por uma criança e que iniciou logo depois que sua professora de Geografia ensinou-o que Jerusalém é a capital de Israel. Detalhe: seu pai é palestino e não aceita a ocupação judia. E agora você começa a entender o poder da trama nesta comédia de humor negro.

Sua história é simples de acompanhar e é curioso que já não existam filmes com o mesmo argumento. Isso comprova que sempre é possível reciclar velhas ideias e surgir com algo fresco, instigante, hipnotizante como este trabalho da cineasta Maha Haj.

Seu pano de fundo é sobre Waleed, um escritor sem livros e sem ideias. Com depressão crônica por anos, decide se matar. As condições se tornam propícias quando seu novo vizinho Jalal se muda, um sujeito que possui atividades e conexões ilegais e que precisa urgente de dinheiro para uma dívida.

Conduzindo a história com toda a calma do mundo, em pequenos passos que nos fazem entender um pouco mais sobre essas pessoas, Febre do Mediterrâneo, apesar de lidar de certa forma com um drama pesado, em momento algum fica parado. Isso porque seu ritmo é determinado pelos diálogos e ações. A direção de Maha Haj o transforma em uma comédia dark. Ah, e não há aqui a maldita muleta da narração em off, tão comum em filmes com personagens introspectivos como Waleed.

Como não há uma voz que nos explique os sentimentos do protagonista, somos obrigados a prestar atenção em qualquer interação entre Waleed (Amer Hlehel) e Jalal (Ashraf Farah) em busca das entrelinhas. Eles estão se dando bem? Qual o limite dessa nova amizade?

A interpretação dos atores Amer Hlehel e Ashraf Farah é instrumental. Rola uma antiquímica entre os dois, de forma que não é possível saber se a amizade entre eles está crescendo ou apenas os interesses mútuos. A análise de personagens feita pela roteirista Maha Haj é cirúrgica, pois em momento algum duvidamos que esse relacionamento pudesse de fato ir tão longe.


# Sue Perkins

2022-10-20 tag_series ^

Hoje há tanto dinheiro para produzir qualquer coisa. Como esta minissérie estrelando Sue Perkins. O que ela faz? Viaja para a América do Sul, bebe até cair e segue a agenda que os comediantes locais bolaram para ela. Como levar um tiro em uma fábrica de coletes. É divertido ou enfadonho, depende de você, ouvir toda vez que Sue entra em uma nova atividade seu ponto de vista liberal-americano sobre o mundo. Ela é vegana e não come taco de língua. É antiarmas e leva um tiro de 38. Defende profissionais do sexo por serem... profissionais do sexo. Parece uma inglesa mimada de que descobriu outras partes do mundo. Ela tem medo de estagnar e continua de esquerda mesmo cinquentona.


# Takki

2022-10-20 tag_series ^

Série indiana com episódios curtos que vão variando. Eles gostam de cortar no momento dramático. É uma novela com drama, ação e romance. Muito mal dirigido e editado. Os ângulos são de turista tirando foto e os cortes às vezes precisam dar seu jeito, como repetir uma cena que foi filmada com duração tão curta que não dá para saber onde estão os personagens. A lógica visual e espacial é divertidíssima. Em um momento há uma perseguição à noite que termina no dia seguinte. Esses indianos têm um fôlego admirável. E não têm medo de passar vergonha.


# Thermae Romae Novae

2022-10-20 tag_series ^

Este anime se passa na roma antiga e é engraçado ser dublado em japonês. Mas quando o protagonista viaja para o futuro ele não entende os japoneses com quem interage e fala em um latim safado. Esta é a história de diferentes formas de construir uma terma. O padrão de um episódio é sempre o mesmo: ele mergulha e vai parar no Japão. Fascinado em como os japoneses respeitam a cultura de termas, quando ele volta para seu tempo imita tudo que viu. A proposta de sua criadora é provocadora, mas sua fascinação pelas termas japonesas é legítima. Ela visita várias no decorrer da história. Ao final de cada episódio a vemos fazer isso, para mostrar de onde se inspirou. Nos primeiros dois episódios é bacana de acompanhar, depois fica repetitivo e episódico.


# A Noiva

2022-10-21 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Há algo de mágico na região do Oriente Médio. Seja cem anos atrás ou ontem ele consegue gerar um drama como ninguém. Pegue o exemplo de A Noiva. A prévia da história é que jovens da Europa acessam a internet e migram para o recém-criado Estado Islâmico para tocar o terror. E agora que o jogo virou eles estão sendo julgados na mesma medida. E isso aconteceu ontem, não foi no século passado.

No entanto, a história é contada sob outra ótica. Ela é filmada de maneira épica, com uma fotografia primorosa que evoca a desolação das mulheres e crianças prisioneiras. A câmera captura na ficção a realidade maior, mais intensa.

A primeira sequência do filme é uma execução. O marido da protagonista está no meio. Ela desmaia. É um dramalhão superproduzido.

A duração do filme também me agrada. Com pouco mais de 80 minutos, não é necessário mais. Nem mais detalhes. Já sabemos pelo noticiário. O resto é puro drama. A tensão do que será feito dessas viúvas que serão julgadas como terroristas, sob o risco da pena capital. Assim como seus maridos.

A música-tema é de Amy Winehouse, uma cantora que morreu ainda jovem. Ela nos induz a pensar o mesmo do destino desta mulher com dois filhos e um terceiro chegando. Tudo colabora com essa atmosfera apocalíptica. Além dela vestir a burca com barriga de grávida.

Ela é portuguesa e reza para Alá em português. Detalhes curiosos como esse são a novidade desse episódio da região que mais possui ruínas de guerra no mundo. Elas fazem parte obrigatória da paisagem. Se elas não existissem nas filmagens o filme estaria incompleto. As ruínas, tristemente, completam o panorama desértico do Iraque.

Mas, enfim. Duração. Este é um filme em cinco atos, divididos por catarse. Econômico e certeiro. Não faz pensar muito, mas é muito bem conduzido.


# Luxemburgo, Luxemburgo

2022-10-21 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Há algo melancólico em Luxemburgo, Luxemburgo, um filme que deveria ser uma comédia. Ele é engraçado, mas há um ruído ao fundo de tristeza, ou pelo menos de saudade.

Essa saudade está na época que Kolya e Vasya, dois irmãos de quase a mesma idade, faziam coisas de meninos juntos. Subiam em trens parados e pulavam assim que ele começasse a se mover. Nessa época o pai da família era alguém importante do mundo do crime. Quando ele precisava ir parar o trem porque um dos filhos ainda estava nele isso era feito com o poder da bala de seu revólver.

Tudo isso não existe mais no tempo presente, que é o que acompanhamos, na fase adulta. Um dos irmãos vende drogas e trabalha como motorista se ônibus; outro segue a carreira de policial, sabotada pela conduta do irmão. A mãe vive em outro casamento e não há notícias do seu pai até então... quando ligam de Luxemburgo, avisando que ele está no hospital em seus últimos dias.

Luxemburgo, Luxemburgo é uma mistura de sentimentos conforme cada novo episódio com os dois irmãos se desenrola. Há uma esperança lá no fim do túnel para ambos, mas, por algum motivo, a redenção demora a chegar. Talvez nunca chegue. Será que eles reviverão a época com o pai com saudosismo ou amargura?

Um ponto que me chamou a atenção no roteiro de Antonio Lukich (que também dirige) foi o episódio em que uma senhora é gravemente ferida por causa do irmão motorista. Interpretada por Lyudmyla Sachenko, a atriz é homenageada nos créditos finais, pois não pode se assistir, vindo a falecer depois das filmagens e antes da estreia.

O que chama a atenção é que essa é a parte com a edição mais rica e uma participação maior no filme, além de ser um momento que vira a história do avesso. Isso faz pensar se o roteiro não foi modificado para inchar este momento, pois esse episódio é o único que foge de uma breve passagem para a mudança que irá chegar na conclusão. Mais do que isso, foi um verdadeiro milagre este momento, pois ele chacoalha um filme que estava quase definhando e dando sono.


# Luiz Carlos Merten

2022-10-22 ^

Tem um crítico de cinema chamado Luiz Carlos Merten que foi demitido do Estadão em 2020 depois de décadas trabalhando com eles. Motivo: salário muito alto. Agora ele escreve em um blog e a cada post durante a Mostra desse ano ele fala sobre Bolsonaro. Chega a ser doentio essa fascinação pelo sujeito. Talvez através dele eu esteja desvendando por que a esquerda é tão tarada em falar sobre esse tiozinho que calhou de ser o presidente.

Merten sempre escreveu de maneira bem despojada sobre cinema. Seu estilo lembra uma Pauline Kael sem muita cultura. É gostoso de ler, fácil porque é para a classe média brasileira. Kael nem sempre, pois havia devaneios filosóficos que Merten apenas arrisca. Seu conhecimento sobre cinema é enciclopédico e sua forma de destrinchar o que está rolando no cenário mundial é pretensioso e muitas vezes autoritário disfarçado de vitimesco.

Eu gosto muito de alguns textos desse senhorzinho que vejo de vez em quando nas cabines de imprensa. Já com seus mais de 75 anos é uma inspiração para todos nós, escritores. E uma profecia: estamos destinados a trabalhar de graça ou por muito pouco na seção de não-ficção.

Isso acontece porque no circuito de imprensa global é raro a figura de pessoas pensantes, que vão no âmago do assunto e tentam desvendá-lo com sinceridade. Muitas vezes acontece o que aconteceu com o Merten: ficou à deriva. Fala de política mais que Pablo Villaça e sem propriedade. Se tornaria trágico, se não fosse cômico. Hoje em dia quem liga para política está perdido.


# Camila Vieira [link]

2022-10-23 tag_mostra ^

Esta é uma escritora séria sobre cinema. Em seus textos da última Mostra de SP pode-se notar a facilidade em construir suas impressões sobre o filme sem depender, como muitos escritores no início, em ficar contando a história e alguns spoilers. Camila está interessada em deixar notas curtas e certeiras sobre sua opinião sobre o que o filme quer dizer, qual a atmosfera estabelecida pela narrativa e coisas do gênero. Ela nunca se deixa levar pela visão rasa de um espectador de primeira viagem. Apesar de não relacionar trabalhos e citar rapidamente apenas o filme assistido, é um trabalho competente. Talvez sem tanta vontade e já com conclusões automáticas, mas quantos de nós conseguimos assitir tanto em tão pouco tempo e ainda escrever suas 1000 palavras por filme? Há de se descontar.


# Vanessa Panerari

2022-10-23 tag_mostra ^

Da leva desse ano de contatos encontrados no grupo de imprensa da mostra está Vanessa Panerari. Encontrei dois sites onde ela escreve(u): o Francamente, Querida e o Era Uma Vez na América Latina. No "Era Uma Vez" ainda não há textos sobre a cobertura do evento, apenas uma nota jornalística. No "Francamente" há um texto sobre Tantas Almas que revela ser de fato uma escritora jornalística, e não crítica. Ela entrevista os realizadores. Seu texto é eficiente. Vanessa resgata detalhes da produção e, sucinta, traça um panorama usando poucos parágrafos.


# A História de Um Lenhador

2022-10-24 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Pepe é um lenhador. Não sei se muito bom. É uma pessoa feliz. Ou pelo menos não-triste. Tudo muda quando ele e seus amigos perdem o emprego. Quer dizer... muda, mesmo? A História de Um Lenhador tem uma pegada tão budista que fica difícil compreender um protagonista onde a dor e o sofrimento dos demais é uma mera curiosidade.

O filme escrito e dirigido pelo finlandês Mikko Myllylahti se passa em um vilarejo em que a neve chega até os joelhos. Isolados do mundo, o significado de vida daquelas pessoas era a serralheria, talvez até o motivo de existência da própria vila. Quando a fábrica fecha toda as pessoas ficam desnorteadas. Há traição, mortes, fanatismo religioso, violência e caos. Tudo pode estar conectado com esses lenhadores desempregados, mas não necessariamente.

Este não é um filme exatamente literal. Aos poucos ele vai soltando as asinhas da metáfora. De repente aparece um peixe falante aqui, um carro pegando fogo no meio da estrada ali. Nada para assustar o espectador. Existe um fio da meada, mas a história que o filme quer contar vai além da mera historinha da vida real. A essência está sendo dita a todo momento pelos personagens: a busca pelo significado. A resposta para as três desconfortantes perguntas. De onde viemos? Para onde vamos? Esqueci a terceira.

No entanto, obcecado com a busca pela compreensão de nossas uma vez pacatas vidinhas antes da tempestade acontecer, A História de Um Lenhador fica muito preso dentro de sua própria simbologia. É como se o filme inteiro fosse essa pessoa presa em uma discussão filosófica e ela só vai conseguir sair quando tiver uma resposta. E você, caro leitor, se já se meteu em alguma discussão filosófica antes, sabe que a última coisa que você vai conseguir é uma resposta.


# Nezouh

2022-10-24 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Há tantos filmes de guerra tristes por aí. Nezouh não é um deles. Pautado no lado lúdico de uma menina "coming of age", é uma viagem fofinha de como você lida com a realidade quando sua casa é bombardeada e você não tem amigos porque todos fugiram da cidade em ruínas.

Estão pai, mãe e filha no meio dessa cidade abandonada e sitiada pelas forças aliadas que "protegem" os últimos cidadãos que ousaram permanecer em suas casas. A casa deles parecia uma moradia comum, mas você descobre em que buraco se meteram depois que a bomba abre inúmeros buracos literais pela casa, quase que em um formato teatral. Há um buraco bem em cima da cama da menina que serve para escapar das preocupações da briga entre os pais e, metaforicamente, atingir a puberdade que acabara de chegar.

O pai quer ficar em casa, a mãe sente pela sua filha que partiu com o marido, e a jovem Zeina fantasia sobre sua vida no meio de uma guerra da melhor forma que pode. Nós participamos desses devaneios que tornam a dura realidade mais palatável, como quando ela joga pedras pela janela em direção ao céu e é como se fossem pedras pulando na água, ou seus desenhos na parede sobre um outro mundo que ela desejaria visitar em vez de ficar presa em seu quarto.

Tudo fica mais fácil depois que ela faz amizade com Amer, um dos últimos garotos de sua rua ainda por perto. Esta é uma amizade que a diretora Soudade Kaadan toma os devidos cuidados para permanecer ainda do lado inocente da história, o que não dá nem pano para a manga das inúmeras preocupações do seu pai, ainda imerso nos valores de uma sociedade onde faltam as pessoas.

Rápido e direto, Nezouh é um filme sobre essas pessoas que ficaram e se recusaram a virar refugiados na Europa. É também um sopro de vento fresco vindo do imaginário do Oriente Médio, que está sempre em guerra, mas que quase sempre seus cineastas se sentem na obrigação de permanecer no gênero dramático e adotar a abordagem denúncia quando conseguem o dinheiro para produção. Nesse caso, felizmente, temos a visão fofinha, na medida do possível, de sua diretora.


# Plano 75

2022-10-24 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

A ideia por trás de Plano 75 permite explorar diferentes temas da vida moderna, em que a recente pandemia poderia ser o exemplo mais icônico (explico depois). No entanto, uma vez apresentada, o universo criado pelo filme é tão tímido em expressar o subtexto de por quê veio à tona que fica difícil sequer entender se existe de fato uma motivação mais forte que a ideia inicial.

A ideia: vários ataques a idosos estão ocorrendo no Japão como protesto pela economia colapsando por causa de um aumento cada vez maior de idosos na sociedade. Fast forward, é aprovada uma lei que permite que cidadão acima dos 75 anos de idade escolham ter sua morte assistida, uma espécie de sacrifício ofertada à população mais sênior para que ajude os mais jovens a ter mais espaço.

Isso faz com que empresas se especializem em fornecer esse serviço, tratando seus clientes com todo o respeito e oferecendo cremação e enterros gratuitos no plano básico, além de uma certa quantia em dinheiro para poderem gastar no que quiserem antes do último dia de suas vidas. O dinheiro, é claro, tem fundo estatal. Essa é a parte em que a analogia com produção em massa de vacinas patrocinada pelo Estado deixando a indústria de medicamentos mais que bilionária da noite pro dia encaixaria como uma luva. Também é possível encaixar como propostas inicialmente opcionais podem aos poucos serem espandidas para algo mais coercitivo ou inclusivo. No caso do filme, implantar um Plano 65, por exemplo.

Acompanhamos a vida de alguns idosos em que cada um terá como escolha de finalizar sua vida um motivo pessoal, muitas vezes influenciada pela solidão, por remorso do passado, ou até mesmo por complicações financeiras. Apesar do Japão servir muito bem à terceira idade, nem sempre o benefício chega a todos que estão precisando (de acordo com o filme). Aos poucos o filme explora um pedacinho de cada uma dessas vidas.

Ao mesmo tempo temos a figura da imigrante, uma filipina que precisa operar com urgência sua filha de 5 anos e que para isso precisa de uma quantia grande de dinheiro em pouco tempo. Trabalhando responsável por reciclar os bens dos finados idosos que se alistaram no programa de terminar suas vidas, é sugerida a ela que esses bens são de pessoas mortas, ou seja, sem dono, e que por isso não haveria nenhum mal em usá-los para bem próprio.

Ou seja, há vários caminhos pelos quais a ideia de uma eutanásia institucionalizada e propagandeada poderia ser expandida. No entanto, o roteiro escrito por Jason Gray e a diretora Chie Hayakawa decide não ir a fundo em nenhum deles, ficando apenas na superfície, curtindo o eco dessa ideia, estendendo o máximo possível sem se comprometer com nenhum tipo de ousadia que seria esperado de algo digno de um futuro distópico ou pelo menos o início de um.

Plano 75 é um filme problemático em não problematizar sua ideia-nucleo. Quando cineastas do mundo todo estão sem ideias para combater a falta de imaginação dos streamings, Hayakawa decide descartar uma boa ideia com timidez e sugestões vagas do que está tentando dizer.


# Terceira Guerra Mundial

2022-10-24 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Que filme maravilhoso esse Terceira Guerra Mundial. Ele te coloca em uma posição constante de reavaliar o que está vendo na tela. Sua manipulação é cinema e sua trama é perfeita para isso. O pano de fundo político trazido no título ganha contornos bizarros que flertam com o trash enquanto mantém o drama real e vivo durante toda a história.

Ela começa simples e engraçada, mas não se engane, pois fica "pior". No entanto, o que nos fisga desde sua introdução é a inconformidade em ver trabalhadores comuns sendo transformados por uma espécie de coerção em extras de uma filmagem que os colocam na pele dos judeus em um campo de concentração em plena Segunda Guerra.

No epicentro dessa loucura está Shakib, que surge de uma origem extremamente humilde, um ninguém, para se tornar de uma hora pra outra o astro dessa produção dentro do filme. Não há muita explicação de como isso é possível, e é melhor que fique assim mesmo. Afinal, esta é a visão dos bastidores do poder, que nunca escala. Ficamos o tempo todo observando apenas o ponto de vista dos que não tem onde cair mortos.

WWIII possui o controle coeso e tenso do diretor sírio Soudade Kaadan. O uso de campo reduzido permite focar em detalhes do fundo com muito controle. Vemos uma câmera de passagem pelo escuro, um alçapão que se abre rapidamente com alguém jogando neve, ou os corredores "infinitos", porque é muito difícil ver seu final.

A trilha sonora de Rob Lane e Rob Manning é econômica, pois mantém notas evocativas que nunca cumprem a promessa de comentar o filme, o que é a melhor parte. É sempre um falso começo que atordoa na medida certa e define um tema.

A atmosfera da ficção se amplia sob o contexto social. Essa relação de poder na questão econômica entre as classes envolvidas permite criar a rima que Mark Twain cita, em sua frase sobre a história usada no começo do filme: "a História raramente se repete, mas quase sempre cria rimas".


# Alysson (Cine com Pipoca)

2022-10-25 ^

Instagram de sinopses e dicas. Nada mais. Lembra os chamados da Netflix.


# Lobo e Cão

2022-10-25 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

O Lobo e o Cão é um porre incomensurável. Parece que não há uma única cena no filme inteiro que valeu a pena ter sido filmada. Aguardamos eternamente por alguma história começar e quando sentimos que deve estar terminando parece que não acaba nunca.

Nada fica em suspenso no filme de Cláudia Varejão, que estreia na direção após trabalhar como editora e fotógrafa. Nada na história é elevado à categoria de "prestar atenção". Sem narrativa, a análise que sobra em uma obra dessas é a análise do nosso sono. Pelo menos até quanto durar a vontade de acompanhar personagens alheios à nossa vontade. E até quando vencer a vontade de ficarmos acordados.

Se bem que não entender o sotaque tão característico da Ilha dos Açores, em Portugal, ajuda a mantermos uma distância natural dos assuntos que teoricamente estão acontecendo. Para não dizer que não há nada, este filme "explora" a sexualidade de seus personagens. E coloco explorar entre aspas porque ele simplesmente mostra a rotina desses jovens em busca do prazer fácil de sua idade onde todos são bonitos, não importa o estilo ou a orientação.

Dessa forma, Ana e Luís são os bichos citados no título, uma forma bem-humorada de relacionar a sexualidade com um bicho diferente. Em uma sala de aula cada aluno veste a cabeça de um animal em uma espécie de sarau. Essa é a analogia que deve ter parecido muito sagaz às roteiristas Varejão e Leda Cartum. Durante todo o filme vemos a dupla da história se relacionando com outros jovens. Luís é o mais empolgado. Ele participa ativamente da comunidade. Ana, por outro lado, é uma menina quieta, na dela, mas quando surge sua prima sexy, vinda do exterior, aí é que o bicho pega.

Filmado na ilha de Açores e com um casting formato por membros de comunidades sobre orientação sexual não-normativa, Lobo e Cão tenta demonstrar como não existe nada de errado na forma de viver desses jovens, mas justamente por focar demais no lado sexual seus objetivos se viram contra eles mesmos. É o equivalente do episódio do South Park sobre pessoas que nascem com um feto em suas cabeças: de tanto falar sobre isso, e apenas sobre isso, vira uma espécie de bullying-homenagem.


# Luiz Joaquim (Cinema Escrito) [link]

2022-10-25 ^

O crítico de cinema de Pernambuco Luiz Joaquim possui alguns bons textos no site Cinema em Escrito e notícias recentes, por exemplo, sobre a Mostra desse ano. Contudo, seus textos são bem, bem antigos, da época que escrevia para jornais. Mas os textos são bons, resenhas curtas e eficientes. Dão aquela impressão rápida sobre o filme que informa o cinéfilo.


# O Teto Amarelo

2022-10-25 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Este documentário denuncia o que antes era visto como comum. Ou talvez pior: não visto como comum, mas com todos sabendo que havia algo de errado e mesmo assim ninguém falava a respeito. O Teto Amarelo é um filme-denúncia contemporâneo.

Trabalhado todo em cima dos casos de abuso sexual cometidos por Antônio, um ex-professor do Teatro Lleida, na Espanha, o fato mais conturbador do longa é que as vítimas desses abusos eram todas adolescentes de 14 e 15 anos e confiavam na figura da autoridade de um ator mais velho, visto como um ídolo por todos e que portanto nunca se pode desafiar. Ele acabou virando uma inspiração para muitas. O que é até certo ponto natural e compreensível quando se é jovem e sonha em trabalhar no teatro. Isso levanta uma conversa séria sobre a relação professor e aluno, sobretudo nas artes.

Além disso, graças aos testemunhos das corajosas mulheres deste projeto, o longa discorre muito bem em montar o modus operandi do meliante, explorando a questão de fingir ter sido vítima das circunstâncias em momentos-chave, que mais tarde entende-se que eram situações forçadas, para em outros dar as cartas e exercer o controle, incluindo desmoralizar algumas de suas alunas quando não as agradava. Toda história dividida em capítulos cria um processo que seria difícil de se desvencilhar no tribunal, não fosse pela legislação ter considerado as denúncias prescritas após tantos anos. No entanto, isso mais que legitimiza o filme, que pode ser usado por qualquer aluna que tenha sofrido abusos em tempo mais recente.

Infelizmente o filme falha em explicar a origem e o desenvolvimento do grupo Mulheres em Cena, formado por ex-alunas. É uma pena, pois elas trabalharam muito esse momento na vida delas para unir forças e chegar em um veredito completo sobre o acusado. Preocupado em falar apenas sobre Antônio, o professor molestador, suas introduções nos impedem de se conectar com quem se tornaram e como voltaram a falar sobre isso após tanto tempo.

Com uma edição didática, mas igualmente poderosa, O Teto Amarelo não é apenas um filme, mas um serviço de ajuda a mais vítimas abusadas, o que se torna nessa Mostra de SP duplamente mais importante, já que Antônio, até onde se sabe, está foragido no Brasil.


# Fire of Love

2022-10-26 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Será que só eu achei Fire of Love brega? Não sei, pode ser coisa da idade. Todos esses vídeos da época em que dois amantes vulcanólogos passavam o tempo observando erupções juntos é montado de forma a contar uma breve história do final do século 20 sobre amor e sobre vulcões.

Porém, há uma vantagem. Tudo é narrado pela voz da atriz Miranda July, que também dirigiu na década de 2000 o fofíssimo Eu, Você e Todos Nós. Você se identifica com a paixão que Miranda expressa no texto. Menos pelo texto e mais pela bagagem emocional dos momentos que a dupla Katia e Maurice Krafft testemunharam juntos.

Tudo foi filmado pela própria dupla de cientistas, o que é uma forma bonitinha de acompanhar a história do casal. A virtude da diretora Sara Dosa é se meter o mínimo possível na construção da história e aproveitar ao máximo as maravilhosas imagens capturadas pelos dois. Katia era uma fotógrafa de encher os olhos. Maurice, um cinegrafista amador que dá um banho em muitos profissionais que vemos por aí dirigindo filmes insensatos. Apesar de fazê-lo com a desculpa do registro científico, como bem observa o texto de Sara Dosa e as tomadas que vemos não deixam mentir, não é possível menosprezar os dotes de cineasta.

Há curtas disgressões feitas por montagens que contam como o casal se conheceu e breves explicações para leigos de qual a maior problemática no estudo dos vulcões: você nunca sabe quando eles vão explodir. Há também uma dica valiosa para nós sobre como reconhecer a periculosidade de um quando o virmos pela sua cor: vermelho são os mais seguros; cinza, os mais destrutivos.

Se você gosta de imagens da natureza em movimento, Fire of Love está repleto delas. E é uma homenagem a duas pessoas que viveram intensamente suas curtas vidas buscando o que fascinava a ambos. Quantas pessoas têm a sorte nesse mundo de encontrar sua alma gêmea e passar tantos bons momentos fazendo o que se gosta com a pessoa que se gosta? Talvez haja algo de mágico mesmo nesse encontro. Não é tudo brega. Eu é que não tenho a sensibilidade de entender essa união única na história da ciência. Um evento tão singular quanto uma explosão descomunal desses gigantes adormecidos.


# Nação Valente

2022-10-26 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Grupos nacionalistas não costumam ser bem vistos, mas e quando além de nacionalistas eles também são zumbis? Nação Valente, vencedor de melhor filme europeu no Festival de Locarno, é um épico que trata de questões históricas da década de 70 sobre Portugal. Essas questões estão presas, entaladas na garganta do povo português, mas também na história de uma terra estrangeira tomada pelo colonialismo.

O filme de Carlos Conceição acompanha um batalhão de soldados isolados em Angola. Eles estão há décadas por lá e não têm a menor ideia de quanto tempo passou. A retomada da região pelas tribos locais envolveu mantê-los presos em terra estrangeira sem nem eles mesmos saberem. A guerra já acabou faz tempo, mas na mente desses soldados a loucura permanece.

Uma das sacadas do filme é manter esse mesmo suspense para o espectador. Não sabemos quanto tempo passou, apenas que foi muito. É comum haver história de soldados que ficaram sem comunicação por anos a fio sem saber sua próxima missão. Então eles simplesmente ficam no local aguardando ordens. E muitos deles começam a sentir uma saudade imensa da mãe, o que é um símbolo curioso se você pensar no evento traumático, violento e irracional, que acontece no começo da história.

Diferente de História contada em sala de aula as circunstâncias aqui são mais fantasiosas e de certa forma mais atraentes, porque apela para nossa visão subjetiva, emocional, de qual foi o real impacto para os habitantes. O exemplo mais impactante é que os nativos que eram mortos naquela época não podiam ser velados pelos obrigatórios três dias de cantos pelos vivos porque o homem branco os ouviriam e os matariam também. Só que isso faz mal para a alma do defunto, que não se aquieta, e pode levantar do túmulo. E nos sonhos mais terríveis isso de fato acontecia.

A linha entre a morte e a vida é ultrapassada, ou muito tênue. E a saudade dos que ficaram é imensa, de ambos os lados. Só há dores em Nação Valente, e o filme explora o sentimento de dor de vários ângulos. Faz uma sessão dupla boa com Mosquito, outro filme que já passou em Mostras passadas. Se enxerga muita culpa do povo português nessa cinematografia sobre as dívidas do passado. E também se enxerga muita violência. Ao menos eles não têm medo de retratar a brutalidade dos acontecimentos, que choca, mas é por motivo justo.


# As Paredes Falam

2022-10-27 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Carlos Saura, diretor de clássicos como Cria Corvos e neoclássicos documentais como o musical Argentina, está explorando possibilidades. E eu vejo uma fase se reavaliação em As Paredes Falam, trabalho que une as pinturas pré-históricas e a arte das ruas, o grafiti.

Neste filme são conversados temas subjacentes à arte da pintura, como a afirmação do ego e a criação individual de um artista, além do suposto ciclo que iniciou nas pinturas rupestres e se completa com a arte contemporânea ou moderna. Isso é discutido no longa com colegas e conhecidos do cineasta, que teoricamente são especialistas no que dizem.

No entanto, há um certo tom de achismo e muita opinião para pouca ciência. E quando se fala de comportamento humano de dezenas de milhares de anos atrás não há muito conhecimento disponível. Nesse caso deveria haver um aviso no início ou final do filme de que tudo é apenas uma visão poética desses artistas sobre como eles imaginam que ambas as artes se conectam, ou em quais circunstâncias o ser humano pré-histórico provavelmente fez aqueles desenhos.

Saura aparece no filme entrevistando as pessoas e acha praticamente tudo o que vê maravilhoso e fantástico. Sem muita argumentação e mais contemplação, este encontro de artistas vira um passarempo despretensioso que poderia ser assistido entre sessões mais sérias da Mostra de SP. Não me leve a mal: a ideia é boa, mas faltou se aprofundar, ou ao se aprofundar se descobre que ela não é tão boa assim.


# Blanquita

2022-10-27 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Como se constrói bem a tensão nesse thriller em busca de justiça, mas todas as esperanças por ela vão embora depois que o castelo de cartas construído por este padre e sua protegida cai abaixo. Nós somos conduzidos através da ingenuidade e senso puro de fazer o que é certo de "Blanquita" e nos esquecemos como o mundo é muito mais cruel e complexo lá fora.

Inspirados em eventos reais, acompanhamos um escândalo sexual envolvendo um político de alto escalão sob o ponto de vista de uma das garotas abusadas e um padre que cuida de um abrigo para jovens com traumas de abusos. Enquanto o padre interpretado por Alejandro Goic mantém uma áurea de bondade que incomoda por ser boa demais, a interpretação de uma nota só da sem sorrisos Laura López funciona como uma cara que se mostra à tapa, apesar de construir uma ideia em vez de uma personagem. Suas motivações, falsas ou não, acabam não importando.

Caímos no mesmo golpe de assumir o papel de vítima, mas não pensar no que a move por essa via crucis por onde ninguém gostaria de caminhar. Dinheiro? Ter uma moradia? O filme assume a inocência da protagonista porque é isso o que o público alvo irá naturalmente buscar e pré-aprovar. Se você pensar no filme sem cinismo vai ser mais fácil acompanhar essa luta inocente, mas perderá a oportunidade de perceber como o mundo construído pelo diretor Fernando Guzzoni várias vezes se configura como cinza.

A própria visão da religião está multifacetada, como a hierarquia da igreja católica e sua ainda presente conexão com os poderosos. Há também a sempre grande vertente evangélica e seu expurgo fácil da culpa. E, por fim, um padre sem nenhuma intenção exceto ajudar esta niña, lembrando um pouco o padre de Ricardo Darín em Elefante Branco, ou filmes em geral, um clichê, onde o religioso fica com o papel de defender sua comunidade que resolveu abraçar.

É icônica também a forma como o suporte do início de todos envolvidos, como a psicóloga e a deputada, vai perdendo as forças aos poucos, até sobrar apenas os dois que iniciaram essa luta.

A câmera subjetiva de Guzzoni serve a todo momento para nos colocar no lugar dessas pessoas, mas a disposição dos personagens nos cenários não indica isso. É um trabalho apressado e formal para um roteiro maravilhoso. Curioso que o próprio Fernando Guzzoni, que escreveu o roteiro, na direção não viu ou não aproveitou o potencial dessa história. No entanto, todo o filme é tenso e envolvente. Faz lembrar que um bom roteiro sempre vai vencer uma direção medíocre. Já a melhor das direções provavelmente não salva um roteiro ruim.

A grande sacada no subtexto da história surge com base nas confissões de um garoto que também sofreu abusos, mas sendo borderline é incapaz de servir como um testemunho válido no processo, o que acaba formando os alicerces da construção de uma mentira que poderia ser verdade e assim criar um caso digno de um processo contra o poderoso político. Porém, ao mesmo tempo essa sacada colabora para entendermos o mecanismo de gado que se formou na atualidade, onde dizer a verdade é a maior das armadilhas, e construir uma mentira das mais convenientes acaba não sendo uma solução quando você precisa atacar os intocáveis.


# Boicote

2022-10-27 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Boicote é um dos filmes que escolhi ver nessa Mostra porque ele é o mais icônico para entendermos os contrastes que estão acontecendo sobre a liberdade de expressão. Não digo isso em solo brasileiro, pois isso não existe de fato, mas em solo americano, onde ele é uma das bases mais sólidas da constituição. Os fundadores do país acreditavam que não se criam leis sobre algo que já é natural de todo ser humano. Isso inclui a liberdade de se expressar, sob a qual não deverá existir lei que a regule. E isso quer dizer, sim, mesmo que isso seja rotulado por alguns grupos como discurso de ódio.

Porém, o filme em questão fala mais sobre a posição política de se expressar com base em dólares: o boicote. Se recusar a fazer negócios com determinado grupo ou empresa porque você discorda do que eles estão fazendo. Com base nisso foi criado o boicote a Israel durante os constantes ataques à vida civil dos palestinos no território ocupado.

É aí que surge o tema do filme, que fala sobre uma lei proibindo esse boicote, mesmo que a constituição e a tradição considerem o boicote uma ferramenta legítima de posicionamento e expressão política. O melhor exemplo que o filme encontra está na moda: racismo. Ele usa como exemplo o boicote aos ônibus na época da segregação, quando negros ficaram um ano inteiro sem usar os ônibus para se locomover e finalmente conseguiram fazer com que a lei de segregação no transporte acabasse.

Para focar no combate à lei presente o filme aborda o acontecimento sob o ponto de vista de três indivíduos que tiveram seu trabalho afetado. Uma fonoaudióloga palestina, um jornalista independente americano e um consultor de prisioneiros de família judia, uma sacada de mestre para tornar o debate mais equilibrado. E todos os três processaram seus estados responsáveis por criar essa lei que determina que todo contrato assinado deve constar que a pessoa não boicotará Israel. E, sim, a lei cita especificamente Israel.

Essa lei se espalhou por vários estados através de um modelo que foi compilado justamente para isso por uma organização pouco conhecida e que se reúne duas vezes ao ano de portas fechadas. Suspeito? Teoria da conspiração o suficiente para você? E que tal o jornalista investigativo palestino que descobre o mecanismo pelo qual Israel envia recursos a organizações sionistas para os EUA usando uma empresa privada, o que curiosamente faz lembrar muito a campanha de Trump sendo alavancada por uma empresa privada, a Cambridge Analytics?

O documentário de Julia Bacha, uma brasileira, explica e explora esse assunto abordando todos os lados. Ele vai muito além do que se esperaria de um filme de pouco mais de uma hora, pois consegue tocar em vários assuntos periféricos com uma didática e rapidez invejáveis. E não é um assunto fácil, cheio de tecnicidades e palavras difíceis, mas tenho certeza que alcançável pelo cinéfilo mais afeito a pensar. Pense como se fosse um A Grande Aposta, o filme de Adam McKay sobre a crise de 2008, só que mais conciso e com menos analogias. Além de ser um documentário.

Porém, o filme também é um pouco piegas. Julia demonstra não ter muito jeito para lidar com pessoas diante das câmeras e a parte mais família do longa conta com alguns momentos de pura manipulação, com direito a trilha sonora dramática e testemunhos em família embaraçosos. Talvez fosse melhor que a diretora esquecesse esse teor humano em seus próximos trabalhos, pois além de prejudicar o filme como um todo sobraria mais tempo para as tecnicidades, onde, aí sim, ela domina completamente o assunto. Um tanto paradoxal, pois focar na parte técnica dá mais credibilidade e consequentemente pode ajudar mais pessoas a conseguir justiça.


# Deus e o Diabo na Terra do Sol

2022-10-27 tag_cinemaqui tag_mostra tag_movies ^

Assisti nessa Mostra a Deus e o Diabo na Terra do Sol, o filme icônico de Glauber Rocha, criador do cinema novo na época, em sua versão remasterizada de 2021, feita em 4k com base na restauração passada, de 2007, feita para DVD. Infelizmente houve apenas uma sessão. Ficam as impressões.

A primeira coisa que se nota nessa revisita é que o desenvolvimento do filme é muito problemático e pedestre, de ficar se arrastando em longas tomadas e de filmar as cenas de ação cheio de amadorismos. É até de se admirar que bons nomes da dramaturgia brasileira estejam associados com este filme, como Othon Bastos e Yoná Magalhães, mas importante lembrar que estes estavam no início de suas carreiras.

No entanto, curiosamente os atores menos conhecidos são os mais emblemáticos. Geraldo Del Rey faz Manuel, um fazendeiro que quis justiça e matou o coronel que quis ficar com suas vacas. Maurício do Valle faz Antônio das Mortes, com o título "matador de cangaceiros", um personagem que ele levou depois para outros filmes. E, importante lembrar, foi um dos poucos filmes de Yoná Magalhães, e ela está muito bem, obrigado.

A produção pedestre ocorre com atores exagerados, teatrais, em um cenário onde Rocha quer de todas as maneiras nos forçar ao sono pela lentidão de suas cenas, e ao mesmo tempo se gabar, utilizando ângulos inusitados, brincando com a proporção entre os personagens, mas sem pensar muito na decupagem, ou seja, como melhor enquadrar os elementos na tela 4 por 3.

Aliás, não acredito que o cineasta estivesse pensando em muita coisa. Adepto da máxima "uma ideia na cabeça e uma câmera na mão", isso é o que de fato vemos no filme, mas infelizmente a ideia na cabeça não vale muita coisa. Se trata de uma versão teatral da exploração do mais pobre pelo governo da República e referências à história sofrida do povo nordestino, não apenas pela seca, mas por terem sido sistematicamente massacrados pelas forças coronelistas e militares. Mais curioso é que em dado momento o profeta do povo, Lidio Silva, outra exageradíssima interpretação, comenta de forma saudosista sobre a época do imperador.

Cheio de diálogos pobres e cenas de ação risíveis de tão ruim, mesmo com duas horas de duração perde-se o foco e não se consegue entender este filme exceto sob os olhares históricos. É desonesto, mas acurado, dizer que filmes que o sucederam disseram muito mais sobre a exploração histórica do que este filme. Hoje ele é apenas um filme em preto e branco de duas horas com cenas lentíssimas e que não vai para lugar algum. Mas há quem defenda. Se você gostou do filme, leia-os, por favor.


# Don Juan

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A figura de Don Juan vira e mexe é desconstruída, o que tem acontecido bastante nas últimas décadas. Aliás, desconstrução, ou destruição, é a atividade primordial da geração atual, preocupada em desfazer o que foi dito, escrito, visto e pensado ao longo dos séculos. Vivemos na era da destruição sistemática do pensamento, o que pode render bons frutos para críticas válidas, mas na maioria das vezes apenas expõe a mediocridade presente.

No entanto, o cinema ou toda arte merece esse momento de se reavaliar através dos tempos que sempre mudam. Seja uma obra nova ou velha. Nesse caso é uma nova. Um filme francês que apresenta um personagem-título inspirado no arquético da literatura espanhola completamente perdido. Se trata de um papel e "função" em eterno contraste com sua felicidade.

Ele é Laurent (Tahar Rahim), um ator que pela primeira vez pegou um protagonista em uma peça e foi justamente um Don Juan. Porém, isso tem atrapalhado a relação com a noiva (Virginie Efira). Tanto que ela não conseguiu comparecer ao casamento. Foi mais forte que ela. E serve de momento-chave no filme, quando o drama é apresentado, já de forma teatral e cantada.

A partir desse enredo acompanhamos o comportamento inadequado da figura de Laurent, que diz estar focando em seu papel enquanto constrange mulheres na rua. É um pacotão sobre a visão dos novos tempos do impacto da sedução masculina sob o prisma feminino. E a interpretação de Tahar Rahim é exemplar. O sujeito é um falastrão. Sua dicção e seus trejeitos favorecem nossas risadas quando percebemos de imediato cada uma das cantadas que nunca irão funcionar.

O filme não é apenas sobre abordagens a estranhas na rua, mas também da responsabilidade nos relacionamentos quando se está em um. E temos a figura de um pai que perde sua filha depois que seu namorado a abandonou. Aliás, interpretado por Alain Chamfort, é a figura masculina mais fascinante do filme, pela simpatia do ator e pelo seu tom paternal. Mas até ele precisa pisar em ovos para abordar uma mulher e avisá-la dos perigos de ser abandonada.

Don Juan são esses contrastes colocados todos em torno da peça homônima. É metalinguagem para tentar compreender a "obra" original, mas no meio se perde nas digressões do mundo moderno. Também é um musical, o que evoca os romances americanos e, como tudo hoje em dia, os destrói. Podemos arriscar que faz até uma certa questão sádica ao fazê-lo.


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